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UNESP
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
Jlio de Mesquita FilhoInstituto de Artes
Programa de Ps-graduao em Artes - Mestrado
Apropriao e insero na contra-arte da gerao AI-5
Diana Vaz de Jesus
Dissertao submetida UNESP comorequisito parcial exigido pelo Programa dePs-Graduao em Artes, rea de concentraoem Artes Visuais, linha de pesquisa emAbordagens Tericas, Histricas e Culturais daArte, sob a orientao do prof. Dr. JosLeonardo do Nascimento, para a obteno do
ttulo de Mestre em Artes.
So Paulo
2010
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Banca Examinadora
Prof. Dr. Jos Leonardo do Nascimento
Orientador (Instituto de Artes UNESP)
Prof. Dr. Srgio Romagnolo
(Instituto de Artes UNESP)
Prof. Dr. Francisco Cabral Alambert Junior
(Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas USP)
Data de aprovao: 17 de dezembro de 2010
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Ficha catalogrfica preparada pelo Servio de Biblioteca e Documentao do Institutode Artes da UNESP
(Fabiana Colares CRB 8/7779)
CDD 709.81
V393aVaz de Jesus, Diana, 1979-
Apropriao e insero na contra-arte da gerao AI-5 /Diana Vaz de Jesus. - So Paulo, 2010.
144 f. ; il. + 01 CD
BibliografiaOrientador: Prof. Dr. Jos Leonardo do NascimentoDissertao (Mestrado em Artes) Universidade Estadual
Paulista, Instituto de Artes. 2010.
1. Arte Histria. 2. Arte brasileira. I. Nascimento, JosLeonardo. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto deArtes. III. Ttulo
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AGRADECIMENTOS
Aos meus pais pelo apoio, carinho e amor incondicional.
Ao Daniel Gis, pelo amor, companheirismo e compreenso.
Ao Prof. Dr. Jos Leonardo do Nascimento, pelo incentivo, confiana e orientao.
Aos membros da Comisso Julgadora de Qualificao: Prof. Dr. Omar Khouri e Prof. Dr.
Srgio Romagnolo pelas valiosas colocaes e comentrios.
CAPES por ter-me concedido a bolsa e possibilitado a realizao desta dissertao.
A todos aqueles que, de alguma forma, auxiliaram na minha pesquisa.
Galeria Luisa Strina pelo material cedido e Patricia Dominguez por ter sido to prestativa.
Fundao Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, pelo material enviado.
WSET Multimdia, ao Guilherme Whitaker e Simone Rodrigues por terem me
presenteado com um maravilhoso catlogo.
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RESUMO
Este trabalho tem como objeto de pesquisa obras de artistas brasileiros, que nas
dcadas de 1960 e 1970 produziram seus trabalhos utilizando como procedimento artstico a
apropriao e tambm a (re) insero de suas obras no cotidiano. Dentre os que mais se
destacaram nesta prtica no perodo estudado, selecionaram-se para anlise os artistas: Nelson
Leirner, Cildo Meireles e Antonio Manuel.
Definindo melhor o conceito de apropriao e retomando a histria desse
procedimento na arte foi possvel fazer um levantamento de questes que este tipo de prtica
aponta e as mudanas de paradigma que ocasionou. Desde os readymades de Duchamp aos
dtournement dos situacionistas, a prtica da apropriao problematizou questes como a
autoria do artista e a prpria natureza da arte.
Como o suporte de tais obras so objetos do cotidiano, foi tambm analisada a
questo do que definiria um objeto apropriado como obra de arte, tendo como base terica a
definio de arte de Arthur C. Danto (A Transfigurao do lugar-comum).
Partindo para a arte brasileira, buscaram-se as primeiras manifestaes desta prtica
para verificar sua adaptao aos ideais de arte nacional. Retomando o contexto scio-poltico-
econmico dos anos 1960 e 1970, em particular o perodo do AI-5, foi possvel analisar se talcontexto influenciou na criao das obras dos artistas analisados. Tendo como referncia o
termo contra-arte - cunhado pelo crtico Frederico Morais para referir-se arte da gerao
AI-5 - verificou-se que esses artistas somaram a contestao poltica contestao da prpria
arte, residindo neste ltimo seu verdadeiro legado.
Palavras-chave: apropriao, insero, readymade, arte brasileira, gerao AI-5
Grande rea: letras, lingstica e artes
rea: artes
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LISTA DE ILUSTRAES
Fig. 1: Pablo Picasso. Natureza Morta com Cadeira de Palha, 1912. Fonte: Pablo Picasso: ARetrospective. New York: Thames and Hudson, 1980. Catlogo de exposio, 22 mai.-16 set.1980. The Museum of Modern Art. p. 157
20
Fig. 2: Raoul Hausmann. O crtico de arte, 1919/20. Fonte: O livro da arte. So Paulo: MartinsFontes, 1999. p. 210
21
Fig. 3: Alexander Rodchenko.Maquete para uma ilustrao para Sobre isto (Pro eto), um poemade Maiakovski. 1923.Fonte:< http://www.moma.org/interactives/exhibitions/1998/rodchenko/index.html>
22
Fig. 4: Max Ernst. Uma semana de bondade ou Os sete elementos capitais, 1930. Fonte:BATCHELOR, David; FER, Briony; WOOD, Paul.Realismo, Racionalismo, Surrealismo. SoPaulo: Cosac Naify, 1998. p. 58
23
Fig. 5: Kurt Schwitters.Relevo, 1923. Fonte: WALTHER, Ingo F. (org.).Arte do Sculo XX.Taschen, 2005. p. 462
23
Fig. 6: Marcel Duchamp. Fonte, 1917/1964. Fonte: MINK, Janis.Marcel Duchamp: a arte comocontra-arte. Taschen, 2000. p. 66
25
Fig. 7: The Blind Man, N 2, 1917. p. 4-5. Fonte: The International Dada Archive. Disponvel em
25
Fig. 8: Marcel Duchamp.L.H.O.O.Q., 1919. Fonte: MINK, Janis.Marcel Duchamp: a arte comocontra-arte. Taschen, 2000. p. 65
29
Fig. 9: Man Ray. O Enigma de Isidore Ducasse, 1920.Fonte:
30
Fig. 10: Meret Oppenheim, Minha ama-seca, 1936. Fonte: BATCHELOR, David; FER, Briony;WOOD, Paul.Realismo, Racionalismo, Surrealismo. So Paulo: Cosac Naify, 1998. p. 240
30
Fig. 11: Robert Rauschenberg. Canyon, 1959. Fonte: OSTERWOLD, Tilman. Pop Art. Taschen,1994. p.149
32
Fig. 12: Andy Warhol.Marilyn Monroe (Marilyn), 1967.Fonte:
32
Fig. 13: Arman. Acumulao de jarros, 1961. Fonte: OSTERWOLD, Tilman. Pop Art. Taschen,1994. p.117
34
Fig. 14: Raoul Vaneigem e Grard Joanns.Internacional Situacionista, 1967.
Fonte:
37
Fig. 15: Asger Jorn. O Pato Inquietante, 1959. Fonte: 37
Fig. 16: George Maciunas. Fluxus Manifesto, 1963.Fonte:
38
Fig. 17: Ben Vautier.Mystery Food, 1963. Fonte: O que Fluxus? O que no ! O porqu. Braslia/Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2002. p. 58
39
Fig. 18: George Maciunas. Seu nome soletrado com objetos G E O R G E B R E C H T, 1976. Fonte:O que Fluxus? O que no ! O porqu. Braslia/ Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco doBrasil, 2002. p. 204
40
Fig. 19: Joseph Kosuth, Uma e trs cadeiras, 1965. Fonte: DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas emovimentos. So Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 240
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Fig. 20: Sherrie Levine,After Walker Evans: 4, 1981. Fonte: http://www.metmuseum.org 46
Fig. 21: Walker Evans,Allie Mae Burroughs, Hale County, Alabama, 1936.Fonte: http://www.metmuseum.org
46
Fig. 22: Michael Mandiberg, Sem ttulo (AfterSherrieLevine.com/2.jpg), 2001.Fonte: www.aftersherrielevine.com
48
Fig. 23: Michael Mandiberg, Certificado de Autenticidade.Fonte: www.aftersherrielevine.com
48
Fig. 24: Andy Warhol,Brillo Boxes, 1964.Fonte: http://www.nationalgalleries.org/whatson/exhibition/:/372/3741
55
Fig. 25: Michael Craig-Martin, An Oak Tree, 1973.Fonte: http://www.tate.org.uk/servlet/ViewWork?workid=27072
64
Fig. 26: Roy Lichtenstein. Retrato de madame Czanne, 1962. Fonte: The Roy LichtensteinFoundation. Disponvel em:
65
Fig. 27: Jorge de Lima. Manequins de mulher sem rosto, 1939. Fonte: CHIARELLI, Tadeu.Apropriaes/ Colees. Porto Alegre:Santander Cultural, 2002. p. 67
74
Fig. 28: Alberto da Veiga Guignard. Sem ttulo, 1949. Fonte: CHIARELLI, Tadeu. Apropriaes/Colees. Porto Alegre:Santander Cultural, 2002. p. 63
75
Fig. 29: Athos Bulco. Recordaes de Viagens O Turista II, 1953. Fonte: CHIARELLI, Tadeu.Apropriaes/ Colees. Porto Alegre:Santander Cultural, 2002. p. 54
75
Fig. 30: Nelson Leirner. Pr-do-sol, 1962. Fonte: CHIARELLI, Tadeu. Nelson Leirner: arte e noArte. So Paulo: Galeria Brito Cimino: Takano, 2002. p. 35
80
Fig. 31: Nelson Leirner. Pintura I, 1964. Fonte: CHIARELLI, Tadeu. Nelson Leirner: arte e no
Arte. So Paulo: Galeria Brito Cimino: Takano, 2002. p. 39
81
Fig. 32: Nelson Leirner. Acontecimento, 1965. Fonte: CHIARELLI, Tadeu. Nelson Leirner: arte eno Arte. So Paulo: Galeria Brito Cimino: Takano, 2002. p. 44
82
Fig. 33: Antonio Dias.Nota sobre a Morte Imprevista, 1965.Fonte: http://www.antoniodias.com
84
Fig. 34: Carlos Vergara. Vote, 1965. Fonte: http://www.carlosvergara.art.br 84
Fig. 35: Marcelo Nitsche.Aliana para o progresso, 1965. Fonte: http://www.mac.usp.br 85
Fig. 36: Hlio Oiticica.B 36 Blide caixa 01- Apropriao 01, 1966. Fonte: RAMREZ, Mari Carmen(org.).Hlio Oiticica: the body of colour. London: Tate Publishing, 2007. p. 114
87
Fig. 37: Hlio Oiticica.B 38 Blide Lata 01- Apropriao 02 Consumitive, 1966.Fonte: RAMREZ, Mari Carmen (org.). Hlio Oiticica: the body of colour. London: TatePublishing, 2007. p. 116
89
Fig. 38: Rex Time, n 4, 1967. Fonte: Biblioteca do Museu de Arte Moderna de So Paulo 90
Fig. 39: Antonio Manuel. Represso outra vez eis o saldo, 1968. Fonte: FILHO, Paulo Venncio;BRETT, Guy. Fatos Antonio Manuel. So Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2007. p. 26
92
Fig. 40: Cildo Meireles. Tiradentes: totem-monumento ao preso poltico, 1970. Fonte: CAMERON,Dan; HERKENHOFF, Paulo; MOSQUERA, Gerardo. Cildo Meireles. So Paulo: CosacNaify, 2000. p. 64
94
Fig. 41: Artur Barrio. Situao T/T, 1 (2 parte), 1970. Fonte: CANONGIA, Ligia (org.). Artur
Barrio. Rio de Janeiro: Modo, 2002. p. 22 23
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Fig. 42: Nelson Leirner. O Porco, 1967. Fonte: CHIARELLI, Tadeu.Nelson Leirner: arte e no Arte .So Paulo: Galeria Brito Cimino: Takano, 2002. p. 108
100
Fig. 43: Nelson Leirner. Tronco com cadeira, 1967. Fonte: CHIARELLI, Tadeu.Nelson Leirner: artee no Arte. So Paulo: Galeria Brito Cimino: Takano, 2002. p. 103
100
Fig. 44: Cildo Meireles. Estudo para espao/tempo, 1969. Fonte: MEIRELES, Cildo. Babel / CildoMeireles. Rio de Janeiro: ARTVIVA Editora. So Paulo: Estao Pinacoteca do Estado de SoPaulo, 2006. p. 25
106
Fig. 45: Cildo Meireles. Espaos virtuais: Cantos, 1967-68. Fonte: CAMERON, Dan;HERKENHOFF, Paulo; MOSQUERA, Gerardo. Cildo Meireles. So Paulo: Cosac Naify,2000. p. 9
106
Fig. 46: Cildo Meireles. Inseres em circuitos ideolgicos: Projeto Coca-Cola, 1970. Fonte:CAMERON, Dan; HERKENHOFF, Paulo; MOSQUERA, Gerardo. Cildo Meireles. SoPaulo: Cosac Naify, 2000. p. 109
107
Fig. 47: Cildo Meireles.Inseres em circuitos ideolgicos: Projeto Coca-Cola, 1970. Fonte: GaleriaLuisa Strina, So Paulo/SP
109
Fig. 48: Cildo Meireles.Inseres em circuitos ideolgicos: Projeto Coca-Cola, 1970. Fonte: GaleriaLuisa Strina, So Paulo/SP
112
Fig. 49: Cildo Meireles. Inseres em circuitos ideolgicos: Projeto Coca-Cola, 1970. Fonte:CAMERON, Dan; HERKENHOFF, Paulo; MOSQUERA, Gerardo. Cildo Meireles. SoPaulo: Cosac Naify, 2000. p. 111
114
Fig. 50: Exposio A Nova Crtica, 1970. Fonte: FREITAS, Artur. CONTRA-ARTE: vanguarda,conceitualismo e arte de guerrilha 1969-1973, 2007. p. 97
116
Fig. 51: Antonio Manuel.Isso que , 1975. Fonte: Arte como questo: Anos 70. So Paulo, TomieOhtake, 2009. p. 75
118
Fig. 52: Cildo Meireles. Inseres em circuitos ideolgicos: Projeto Cdula, 1970. Fonte:CAMERON, Dan; HERKENHOFF, Paulo; MOSQUERA, Gerardo. Cildo Meireles. SoPaulo: Cosac Naify, 2000. p. 51
119
Fig. 53: Antonio Manuel. Estudantes fazem o caos e anunciam nova passeata, 1968 Fonte: FILHO,Paulo Venncio; BRETT, Guy. Fatos Antonio Manuel. So Paulo: Centro Cultural Banco doBrasil, 2007. p. 82
121
Fig. 54: Antonio Manuel. Clandestinas, 1973. Fonte: Coleo de Arte da Cidade de So Paulo. Foto:Diana Vaz
123
Fig. 55: Antonio Manuel. Clandestinas, 1973. Fonte: Coleo de Arte da Cidade de So Paulo. Foto:Diana Vaz
124
Fig. 56: Antonio Manuel. Clandestinas, 1973. Fonte: Coleo de Arte da Cidade de So Paulo. Foto:Diana Vaz
124
Fig. 57: Antonio Manuel. Clandestinas, 1973. Fonte: Coleo de Arte da Cidade de So Paulo. Foto:Diana Vaz
126
Fig. 58: Antonio Manuel. Exposio de 0 a 24 horas, 1973. Fonte: Fundao Biblioteca Nacional,
Rio de Janeiro
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Fig. 59: Antonio Manuel. Exposio de 0 a 24 horas, 1973. Fonte: Fundao Biblioteca Nacional,
Rio de Janeiro
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Fig. 60: Antonio Manuel. Exposio de 0 a 24 horas, 1973. Fonte: Fundao Biblioteca Nacional,
Rio de Janeiro
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Fig. 61: Antonio Manuel. Exposio de 0 a 24 horas, 1973. Fonte: Fundao Biblioteca Nacional,
Rio de Janeiro
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Fig. 62: Antonio Manuel. Exposio de 0 a 24 horas, 1973. Fonte: Fundao Biblioteca Nacional,
Rio de Janeiro
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Fig. 63: Antonio Manuel. Exposio de 0 a 24 horas, 1973. Fonte: Fundao Biblioteca Nacional,
Rio de Janeiro
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SUMRIO
Introduo 12
1. Apropriaes 18
1.1.Readymade 23
1.2. Para alm do readymade: anos 60 e 70 31
1.3. A questo da autoria 49
2. A Transfigurao do lugar-comum 55
3. Apropriaes no Brasil 73
3.1. Brasil anos 60 e 70: contexto 76
3.2. Vanguarda e apropriao 79
3.3. Gerao AI-5 92
3.4. O porco do Nelson Leirner 97
3.5. As inseres de Cildo Meireles 104
3.6. Os jornais de Antonio Manuel 1203.7. Contra-arte (guerrilha artstica) 132
Consideraes Finais 135
Bibliografia 138
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INTRODUO
Vivemos hoje o chamado pluralismo na arte contempornea. Uma obra de arte pode
ser feita a partir de qualquer coisa objetos comuns, materiais precrios e descartveis, p,
aes, letras - o que a imaginao do artista demandar. E esses materiais utilizados pelo
artista, em geral, no so feitos por ele, mas adquiridos, apropriados. Sabemos que no foi
sempre assim e que, em algum momento, o paradigma da arte se modificou para poder
abarcar essas variaes de procedimentos artsticos.
Foi em busca desse momento que percebi a necessidade de se compreender melhor a
prtica da apropriao. Buscando referncias de artistas que se utilizaram da apropriao em
seus trabalhos, encontrei na arte brasileira uma gama enorme de obras ricamente poticas e
questionadoras. Desde ento, venho me dedicando a pesquisar arte brasileira e o
procedimento da apropriao.
Na minha pesquisa de concluso do curso de graduao (2003) intitulada S me
interessa o que no meu: aspectos da apropriao na arte brasileira apresentei um
histrico sobre a Arte Brasileira que, desde o descobrimento do Brasil, teve modelos
importados e adaptados nossa cor local. Passando pelo barroco, pela arte acadmica, pelo
modernismo e pelos movimentos de neovanguarda, os artistas brasileiros se influenciarampelo que vinha de fora para construir uma arte nacional. Relacionei este fato com a prpria
identidade brasileira, que formada pela juno da raa que j havia nesta terra (ndios) com
raas vindas de outros continentes (Europa e frica). Ainda pensando neste aspecto de se
apropriar do que vem de fora me remeti ao Manifesto Antropfago de Oswald de Andrade e
ao movimento antropofgico, que props uma devorao da arte estrangeira para se fazer uma
arte brasileira. Partindo para outro sentido de apropriao, o de readymade1
1 Termo em ingls cunhado pelo artista francs Marcel Duchamp (1887 - 1968), que literalmente significa feito pronto.Neste procedimento, o artista se apropriava de objetos do cotidiano, retirando-os de seu contexto original e inserindo-os no
circuito de arte.
e em suas
inmeras possibilidades dentro da prtica artstica, analisei dois tipos de procedimentos: aapropriao de obras de arte e a apropriao de circuitos. Esses dois tipos de apropriaes tm
em comum o fato de lidarem com sistemas (o sistema de arte e o sistema de circulao de um
objeto no cotidiano).
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Em outra pesquisa, para concluso do curso de ps-graduaoLato Sensu em Histria
da Arte (FAAP, 2008) intituladaApropriaes e a Orte de Nelson Leirner, focalizei-me no
artista Nelson Leirner. Apresentei um breve histrico da apropriao na arte e comparei a obra
de Nelson a dos outros artistas citados. Verifiquei que o artista exerce um dilogo com a
tradio da apropriao e foi um dos pioneiros desta prtica no Brasil. Tambm foi possvel
verificar que alm de similaridades, ele possui singularidades que o torna o artista que .
Dando continuidade s minhas pesquisas, esta dissertao tem como objeto obras de
artistas brasileiros, que nas dcadas de 1960 e 1970 produziram seus trabalhos utilizando
como procedimento a apropriao e tambm a (re) insero de suas obras no cotidiano. Entre
os que mais se destacaram nesta prtica no perodo estudado, selecionei para anlise os
artistas: Nelson Leirner, Cildo Meireles e Antonio Manuel.Algumas idias e resultados obtidos nas pesquisas anteriores sero retomados, mas
neste trabalho irei abordar outras questes e idias que no foram levantadas nestas outras
pesquisas. Para apresentar as questes que irei abordar se fez necessrio retomar a histria da
apropriao.
Muitos historiadores consideram que esta prtica tenha se iniciado no cubismo atravs
das colagens. Artistas como Picasso e Braque, por volta de 1912, comearam a incorporar
elementos do cotidiano, como recortes de jornal ou cartas de baralho, em suas pinturas. Mas aprtica da apropriao deu seu grande salto e encontrou sua maior expresso com Duchamp e
seus readymades. O artista produziu uma srie de obras em que ele retirava o objeto de seu
contexto e funo original e o inseria no circuito de arte, resignificando-o, como seu famoso
urinol assinado e intitulado Fonte de 1917. Seguindo a linha do readymade surgiu o objeto
surrealista, baseado na idia de objet trouv2
Antonio Manuel e Nelson Leirner fizeram trabalhos em jornais e Cildo Meireles
devolvia circulao suas garrafas de coca-cola e suas cdulas de dinheiro modificadas. As
obras de arte desses artistas eram disfaradas de objetos comuns e misturavam-se entre eles.
Circulavam no mundo e no em museus. Com essa suposta dissoluo da fronteira entre arte e
. Aps um perodo sem grandes mudanas dentro
deste quadro, a apropriao ser retomada nas dcadas de 1960 e 1970 numa amplitude maior:
o objeto apropriado e resignificado era tambm reinserido em seu contexto original, ou seja, oartista devolvia o objeto ao cotidiano. Este o caso dos artistas que irei analisar nesta
pesquisa.
2
(fr. objeto encontrado) um objeto encontrado ao acaso pelo artista e exposto como obra de arte.
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vida, o que ento difere um objeto comum do objeto apropriado, ou seja, o que define o objeto
apropriado como obra de arte? O que levava o artista a buscar esse circuito alternativo de
exposio? E ao trabalhar com apropriao, como se d a autoria do artista? Sendo o conceito
de apropriao de origem estrangeira, como se deu sua adaptao para a arte brasileira?
Tentando responder algumas das questes levantadas acima percebi a necessidade de
retomar a situao scio-poltico-cultural no Brasil. Os anos 1960 e 1970 foram marcados por
um governo ditatorial. O regime militar imps a censura e a represso que afetaram a
dinmica cultural, o que exigiu do artista um posicionamento poltico. O perodo da
publicao do AI-5 fez surgir uma gerao de artistas com obras mais radicais e
contestadoras. Em certos casos, as dificuldades em expor seus trabalhos em instituies de
arte levaram os jovens artistas s ruas, produzindo assim obras que estabelecessem umarelao comunicacional com o pblico, convidando-o participao. Este compartilhamento
da obra com o pblico fez com que o artista dividisse sua autoria com o
observador/participador, e a insero da obra no cotidiano levou o artista a quase um
anonimato. Com tudo isso, diluram-se a autoria da obra, a sua mercantilizao e os limites da
arte. Todos os sistemas foram questionados. Para isso, o artista inseria sua obra nestes
sistemas usando de sua linguagem e especificidade. Assim, encontrava uma maneira
camuflada de expressar seu discurso e sua potica e uma maneira mais abrangente de difundirseu trabalho e suas idias. O artista brasileiro, em grande parte por causa deste contexto
poltico, adaptou a prtica da apropriao aos seus ideais, construindo uma produo de
carter ativista, diferenciando-se assim da produo de arte norte-americana e europia.
Apesar de a apropriao ser uma prtica j tradicional dentro da arte, amplamente
utilizada nos dias de hoje, existe pouca bibliografia especfica sobre o assunto, sendo ainda
incompreendida e pouco aceita por uma grande parte do pblico no especializado, gerando
sempre polmicas, discusses e at processos de direitos autorais. Dentre os artistas jprocessados podemos citar Andy Warhol, Roy Lichtenstein e Jeff Koons que tiveram casos
ganhos e tambm perdidos. Existe at um site canadense3
3 http://www.appropriationart.ca Acesso em: 05 out. 2009
, com mais de 500 profissionais da
arte afiliados, em que se discute uma lei de direitos autorais menos rgida e mais condizente
com a realidade da arte contempornea, onde os artistas possam trabalhar com a apropriao
sem correr riscos. Isso demonstra a necessidade de se discutir a apropriao na arte e
compreender melhor seus conceitos.
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Os estudos sobre arte brasileira vm crescendo constantemente e tem se dado bastante
ateno arte dos anos 1960 e 1970. Mas ainda pouco se pesquisa sobre a apropriao na arte
visual brasileira. interessante notar que a maioria dos textos sobre este assunto foram
produzidos pelos prprios artistas que refletiam sobre sua produo e sobre a arte de seu
tempo, muitas vezes travando disputas com a crtica de arte vigente. O uso de apropriaes na
arte modificou toda sua estrutura, sua linguagem e sua conceitualizao, criando uma
revoluo artstica, e de extrema importncia entender como se deu este processo na arte
brasileira. Como disse Dcio Pignatari:
Os grandes criadores os inventores de Ezra Pound contribuemcom signos novos estruturais antagnicos em relao ao sistemaanterior que no os pode absorver sem destrurem-se. Por isso os
combatem. Um signo novo estrutural tem funo crtica emetalingstica: ele ameaa o sistema de valores preexistenteapontando para a possibilidade de um novo sistema. (PIGNATARI,1998: 64)
Um signo novo estrutural ressurgia numa poca de mudanas em que tudo era
contestado. Compreendendo este tipo de arte, seus conceitos e definies, compreenderemos
melhor seus reflexos na arte de hoje.
Assim sendo, os objetivos desta pesquisa so apresentar um breve histrico da
apropriao na arte e de seus conceitos; verificar como se deu a adaptao da prtica da
apropriao na arte brasileira; analisar como o contexto scio-poltico-econmico brasileiro
dos anos 1960 e 1970 influenciou a arte da poca; compreender a teoria que existe por detrs
de uma apropriao artstica e como se estrutura (ou desestrutura) o sistema de arte com este
tipo de procedimento; apresentar e interpretar algumas obras dos artistas selecionados e
contribuir para uma reflexo sobre a arte brasileira.
Para tanto, recorri a diversas fontes bibliogrficas. Deu-se prioridade a fontes
primrias como entrevistas, textos e manifestos produzidos pelos prprios artistas estudados.Tambm utilizei como fontes: livros e teses especficos sobre esses artistas e sobre arte
brasileira, como os escritos pelos historiadores Aracy Amaral, Cristina Freire e Tadeu
Chiarelli; textos sobre a linguagem da arte e a prtica da apropriao como os do artista
Marcel Duchamp, do filsofo americano Arthur C. Danto (A Transfigurao do lugar-
comum, 2005) e dos tericos franceses Nicolas Bourriaud (Ps-produo, 2009) e Anne
Cauquelin (Arte contempornea: uma introduo, 2005); e de livros sobre a situao scio-
econmica-poltica das dcadas analisadas.
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Escolhi como base terica da minha pesquisa o conceito de arte contido no livro A
Transfigurao do lugar-comum de Arthur C. Danto. Partindo da questo Qual a diferena
entre uma obra de arte e um objeto comum similar a esta?, gerada aps visitar uma exposio
de Andy Warhol, Danto tentou formular uma definio de arte. Como a diferena no se
encontra no visvel, mas sim no carter ontolgico, o filsofo retomou diversas teorias da arte
e apresentou algumas proposies para encontrar a verdadeira essncia da arte. Isso
demonstra sua predileo pela esttica do sentido do que pela esttica da forma. Afirmou, por
exemplo, que toda arte deve ter um significado, portanto, toda arte representacional e por
isso mesmo passvel de uma espcie de anlise semntica, sendo o formalismo inadequado
como filosofia da arte. Afirmou tambm que a obra de arte um veculo de representao que
corporifica seu significado, so significados corporificados, e que a chave para entend-la ainterpretao. A obra o objeto mais o significado, e a interpretao explica como o objeto
traz em si o significado que o observador (...) percebe e ao qual reage de acordo com o modo
como o objeto o apresenta. (DANTO, 2005: 19).
O mtodo utilizado nesta pesquisa foi o de anlise comparativa. Tomando como grau
de igualdade o tempo (anos 1960 e 1970), o espao (Brasil) e o fato dos trs artistas
trabalharem com apropriao e insero; compararei suas produes, seus procedimentos e
seus questionamentos. Levando em conta a influncia dos movimentos de arte internacionalda poca como a pop art, o novo realismo francs, a arte conceitual, os situacionistas e o
grupo Fluxus, comparei esses movimentos com a produo da arte brasileira para verificar
suas similaridades e singularidades.
Sendo assim, a pesquisa foi estruturada da seguinte maneira:
No primeiro captulo foi abordado o conceito de apropriao na arte, suas
manifestaes iniciais e as mudanas que provocou no sistema da arte ocasionando a criao
de um novo paradigma. Apresentei em seguida um breve histrico das apropriaes artsticas,produzidas aps a assimilao deste novo paradigma e, posteriormente, provocadoras de seu
alargamento. Foram analisados os problemas da autoria e da expresso subjetiva do artista.
No segundo captulo, discorri sobre o livro A Transfigurao do lugar-comum, de
Arthur C. Danto. Apresentei um resumo sobre as idias e questes contidas no livro,
chegando concluso de uma definio de arte. Neste captulo foram abordados os problemas
da suposta dissoluo da fronteira entre arte e vida e do que definiria um objeto apropriado
como obra de arte.
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O terceiro captulo contem um estudo da apropriao na arte brasileira dos anos 1960 e
1970. Foi apresentado um breve histrico do contexto scio-poltico-econmico da poca e
das mudanas que essa situao provocou na arte. Em seguida, apresentei algumas obras dos
trs artistas estudados e todos os questionamentos que elas provocaram. Verificou-se que,
embora a influncia do contexto repressivo e a presena do dado poltico contido nessas obras
fosse inegvel, sua importncia encontra-se na renovao da linguagem artstica.
Nas consideraes finais relacionei as obras analisadas e os procedimentos da
apropriao e da insero com a definio de arte proposta por Danto. Por fim, comentei
sobre o legado deixado pela arte aqui apresentada na arte contempornea brasileira, fechando
assim essa pesquisa e abrindo possibilidades para novas indagaes, discusses e concluses.
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1. APROPRIAES
O fim da hegemonia da Academia de Arte e o enriquecimento da classe burguesa, no
fim do sculo XIX, foram pontos iniciais de mudana no sistema e no mercado de arte.
Opondo-se Academia, os artistas buscavam cada vez mais a autonomia da arte. Embalados
pela sociedade moderna, que exigia sempre novidades para alimentar o consumo, os artistas
inovavam cada vez mais. Seguindo esse fluxo, no sculo XX, as sucessivas vanguardas
fizeram surgir novas prticas artsticas e novas maneiras de encar-las. Uma dessas prticas
foi a apropriao.
Apropriao, em sentido amplo, significa apoderar-se, tomar como prprio, adaptar.
Podemos, por exemplo, comentar da apropriao de elementos da cultura de uma sociedade
por outra. Nesse sentido, podemos citar o caso da apropriao de diversos elementos da
cultura grega (como a arte e a religio) pelos romanos. Mesmo dentro do contexto artstico, a
palavra apropriao pode ser usada para designar diversos procedimentos. Se pensarmos no
sentido de adaptar, apropriao pode se referir a procedimentos como releituras e citaes. Ao
tentar diferenciar esses procedimentos, Ana Amlia BARBOSA (2005: 145), esclarece que
releitura reler, ler novamente, dar novo significado, reinterpretar, pensar mais uma vez.
Aponta que na citao no existe referncia direta. No entanto, quando me aproprio da
imagem, ela est contida em meu trabalho, inteira ou desconstruda, mas est presente.
At mesmo a noo de cpia deve ser repensada dentro do amplo conceito de
apropriao. Contrapondo as noes de cpia tradicional e moderna, David Evans comenta:
Para um pintor como Ingres, copiar era um componente vital deaprendizagem que era completada com sucesso quando aoriginalidade se tornasse discernvel. Em contraste, o copiarmodernista no um meio para este fim. o fim. Ou melhor, o meio
para diferentes fins. (EVANS, 2009: 15)
4
O ato de copiar (as obras dos antigos mestres, elementos da natureza, etc.) foi, por
sculos, um dos mais usuais mtodos de aprendizagem. A partir da arte moderna, a cpia
tomou outros rumos, outros sentidos e questes como originalidade e valorizao do gesto
criador do artista comearam a ruir.
4 Traduo da autora do ingls: For a painter like Ingres, copying was a vital component of an apprenticeship that wassuccessfully completed when originality became discernible. In contrast, modernist copying is not a means to this end. It is
the end. Or rather, it is the means to different ends.
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Outra forma de abordar a distino das diversas prticas de apropriao foi
apresentada por Douglas CRIMP (2005: 116) que props duas categorias: o de carter
regressivo e o de carter progressista dos usos da apropriao. Para ele, a apropriao de
carter regressivo um retorno a uma compreenso pr-modernista da arte enquanto
combinao criativa de elementos derivados de um vocabulrio historicamente dado. Nesta
categoria, o artista apropria-se do passado, de um estilo e, embora se saiba que os elementos
de estilo no so inveno do artista, h de fato uma iluso muito forte em relao ao
produto final como um todo e em relao contribuio criativa do artista para a
ininterrupta e contnua tradio da arte (CRIMP, 2005: 116-117). J na apropriao de
carter progressista, o artista retira da histria um objeto real. Os elementos individuais desse
objeto apropriado conservam firmemente sua identidade. No passam a iluso de um todosem emendas. A obra no aspira a uma universalidade atemporal e afirma sua efemeridade.
Com base nessas definies, ser abordado nesta dissertao o conceito de apropriao
de carter progressista, ou seja, quando a artista toma para si imagens, objetos, espaos,
veculos, etc., e torna claro este emprstimo, conservando a identidade da coisa apropriada.
Outro fator importante dentro deste conceito de apropriao a quebra do fazer manual e da
criao a partir de uma matria prima. Como aponta BOURRIAUD:
Pode-se dizer que esses artistas que inserem seu trabalho no dosoutros contribuem para abolir a distino tradicional entre produoe consumo, criao e cpia, ready-made e obra original. J no lidamcom uma matria-prima. Para eles, no se trata de elaborar uma
forma a partir de um material bruto, e sim de trabalhar com objetosatuais em circulao no mercado cultural, isto , que j possuemforma dada por outrem. (2009: 8)5
Bourriaud utiliza o termo tcnico Ps-produo6 para designar as manifestaes
artsticas contemporneas. Para ele, a apropriao a primeira fase da ps-produo: no se
trata mais de fabricar um objeto, mas de escolher entre os objetos existentes e utilizar ou
modificar o item escolhido segundo uma inteno especfica.7
5 Ps-produo: como a arte reprograma o mundo contemporneo , p.8
6 Termo tcnico usado no mundo da TV, do cinema e do vdeo que designa o conjunto de tratamentos dados a um materialregistrado.
7
Ibid., p.22
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Para melhor compreender a prtica da apropriao, to amplamente utilizada na arte
contempornea, tentei compor um histrico, apresentando diversos procedimentos e as
principais questes que estes levantaram.
Muitos historiadores consideram que a apropriao, ou seja, o uso de imagens ou
objetos que no so feitos pelo artista, mas apossados por ele como elementos constituintes de
seu trabalho, tenha se iniciado no cubismo atravs da prtica da collage (palavra francesa para
colagem). Essas colagens comearam a ser produzidas na fase conhecida como cubismo
sinttico que abrange os anos de 1912 a 1914. Uma das primeiras colagens, feita por Pablo
Picasso (1881 1973), a obraNatureza Morta com Cadeira de Palha de 1912 (fig.1). Nela,
o artista inseriu um pedao de oleado8 que imita o assento de palhinha e usou uma corda
como moldura. Picasso, Braque (1882 1963) e outros adeptos incorporavam elementos docotidiano em suas pinturas. Recortes de jornal, cartas de baralho, simulacros de texturas,
pedaos de madeira, tudo se transformava em matria artstica que era agregada suas telas.
Esses objetos eram deslocados de seu habitat e ganhavam novos significados, mas ainda eram
presos superfcie da tela. Alm de terem a funo de representar (serem parte de uma
imagem) eles tambm tinham a funo de apresentar, pois mantinham sua identidade original
como fragmento do mundo real. Olhamos tanto a iluso quanto a coisa real.
1. Pablo Picasso.Natureza Morta com
Cadeira de Palha, 1912
Colagem e leo sobre tela
27 x 35 cm
Muse Picasso, Paris
8
Lona impermeabilizada por uma camada de verniz; encerado.
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Outros movimentos artsticos tambm
aderiram ao procedimento da colagem, como o
dadasmo, o construtivismo e o surrealismo,
mas cada um a seu modo, ampliando cada vez
mais a operao e o limite desta prtica. Suas
colagens eram feitas com recortes de
fotografias, ilustraes e tipografias extradas
de todo o tipo de material impresso que faziam
parte da moderna cultura de massa. Este
procedimento foi inicialmente chamado de
foto-colagem pelos dadastas eposteriormente de fotomontagem pelos
construtivistas russos, termo que acabou se
generalizando.
As fotomontagens dos dadastas
berlinenses, como as de Raoul Hausmann
(1886 1971) (fig.2), tinham forte teor crtico
e colocavam-se contra a arte burguesa e a pintura a leo. Queriam atacar o realismoconvencional da pintura (...) com o prprio realismo.9
Na origem e na difuso do conceito de fotomontagem, podemosidentificar uma opo tanto ideolgica quanto descritiva de umatcnica adequada nova tendncia que busca assemelhar o processode trabalho artstico ordem industrial, mecnica, do sistema demontagem que opera a partir da apropriao e reorganizao deelementos j existentes no mundo. Desta forma, repudiam acriatividade fetichizada do gnio artstico que ancorava seu fazerna habilidade manual para expressar idias originais. Mais do que
uma simples tcnica de construo de imagem, a fotomontagem seapresentava como bandeira-manifesto da anti-arte que pretendiaconfrontar os valores da tradio das belas-artes. (RODRIGUES,2010: 8)
Como Simone Rodrigues coloca:
10
9SCHARF apud Tadeu CHIARELLI, A Fotomontagem como introduo arte moderna: vises modernistas sobre a
fotografia e o surrealismo. In:ARS (USP), 1: 71
10
Simone RODRIGUES, Jorge de Lima, Fotomontagista. In:A Pintura em Pnico: Fotomontagens de Jorge de Lima, p. 8
2. Raoul Hausmann. O crtico de arte, 1919/20
Fotomontagem
31,7 x 25,4 cm
Tate Collection, Londres
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Alm disso, buscavam emitir uma
mensagem de rpida decodificao pelo
observador. Os construtivistas russos (fig.3)
tambm compartilhavam dessa opo
ideolgica. Formalmente, as fotomontagens
desses dois movimentos tm um aspecto
planar (rompendo com a iluso de
tridimensionalidade), so fragmentadas e
abusam das linhas de fora do plano.
A fotomontagem foi um procedimento
bastante utilizado tambm pelos surrealistas,talvez por se adequar to bem s suas
propostas de extrair significados da
justaposio de elementos dspares. Max Ernst
(1891 1976) (fig.4), por exemplo, criticava o
excesso de ideologia dos dadastas berlinenses
e se dedicou a um novo tipo de colagem,
chamada por ele de colagem-romance, comuma inteno expressiva mais lrica, onrica e
bem-humorada.11
Outro artista do perodo que vale a pena ser destacado Kurt Schwitters (1887 1948)
(fig.5) que, indo alm das colagens cubistas e das fotomontagens, agregava em suas telas
objetos variados, geralmente usados, resduos da cidade moderna. Nestas suas obras, ouMerzcomo ele denominava, o artista criticava a civilizao moderna, mas, ao mesmo tempo,
acreditava na fora transformadora e na liberdade criadora da arte abstrata.
Formalmente, nestas
fotomontagens, ao contrrio da fragmentao dad, h uma aparente continuidade do espao.
Disjunes e deslocamentos ocorrem dentro de uma cena real.
Apesar das colagens terem sido uma inveno de suma importncia na arte, outro
artista do mesmo perodo foi muito mais alm no procedimento da apropriao, causando uma
mudana de paradigma na arte, apontando um novo sistema. Este artista foi Marcel Duchamp
(1887 1968) e este novo procedimento foi chamado por ele de readymade.
11
Cf. Ibid., 9
3. Alexander Rodchenko. Maquete para uma
ilustrao para Sobre isto (Pro eto), um poema
de Maiakovski, 1923
Fotomontagem
42.5 x 32.5 cm
State Mayakovsky Museum, Moscou
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4. Max Ernst. Uma semana de bondade ou Os sete
elementos capitais, 1930
Colagem
5. Kurt Schwitters.Relevo, 1923
Colagem de vrios materiais sobre madeira,
35,5 x 30 cm
Museum Ludwig, Colnia
1.1Readymade
No ano de 1917, em Nova Iorque, Marcel Duchamp mandou um urinol invertido,assinado R. Mutt e intitulado Fonte (fig. 6) ao Salo Sociedade dos Artistas Independentes
(do qual fazia parte da organizao). A idia principal deste salo era dar oportunidade a
qualquer um de expor sua obra, sem passar por nenhuma seleo. Como Duchamp fazia parte
da organizao, resolveu inscrever sua obra usando um pseudnimo: Richard Mutt. Mas por
se tratar de algo completamente diferente do que era feito at ento, e por acharem que era um
objeto vulgar, a obra no foi exposta, causando uma discusso entre alguns dos organizadores,
levando renncia de Duchamp do seu cargo no conselho. Logo em seguida, o artista, junto a
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outros colegas, editou a revista The Blind Man e publicou nela um artigo que defendia o Sr.
Mutt12
O caso Richard Mutt
:
Dizem que qualquer artista que pagasse seis dlares podia expor.Richard Mutt enviou uma fonte. Sem discusso, essa peadesapareceu e nunca foi exposta.Quais so as bases para a recusa da fonte de Mutt?1. Alguns alegaram que ela era imoral, vulgar.2. Outros que era um plgio, uma mera loua sanitria.
Bem, a fonte de Mutt no imoral, isso absurdo, ela to imoralquanto uma banheira. um acessrio que se v todos os dias naslojas de aparelhos sanitrios.Se Mutt fez ou no com suas prprias mos a fonte, isso no tem
importncia. Ele ESCOLHEU-A. Ele pegou um objeto comum do dia-a-dia, situou-o de modo que seu significado utilitrio desaparecessesob um ttulo e um ponto de vista novos criou um novo pensamento
para o objeto.Quanto a ser uma loua sanitria, isso uma tolice. As nicas obrasde arte que a Amrica j produziu so seus aparelhos sanitrios esuas pontes.
Ao lado do artigo citado havia uma foto da Fonte tirada por Stieglitz em seu estdio
(fig.7). Logo depois de ser fotografada, a obra desapareceu, permanecendo o debate que se
tornou mais importante que o objeto.13
A Fonte um dos mais conhecidos e polmicos readymades14
12 DUCHAMP, Marcel; WOOD, Beatrice; ROCH, Henri-Pierre. apud TOMKINS, 2004: 208-209
de Duchamp. O artista
criou o conceito de readymade por volta de 1915, que consistia na apropriao de objetos
retirados do cotidiano, objetos industrializados, com larga escala de produo, que eram
desprovidos de sua funo original para tornarem-se obras de arte. Com os seus readymades
ele questionava a presena da mo do artista na obra, dizendo que o que importava a idia
que o artista quer passar, que no importa se o artista fez o objeto, o importante ele o ter
escolhido. Suas escolhas eram baseadas numa neutralidade esttica, na indiferena em
relao aos objetos, deixando de fora o julgamento de gosto, numa completa anestesia.
Duchamp se preocupava muito com o problema do gosto e, falando da comparao dos seus
13Nos anos 60 Duchamp mandou fazer rplicas da Fonte e de outros readymades.
14 comum encontrar a palavra readymade escrita de maneira separada: ready-made. Optou-se usar nesta dissertao apalavra sem separao por ser o modo mais constante em livros em ingls, sendo provavelmente a forma como Duchamp a
escrevia.
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6. Marcel Duchamp. Fonte, 1917/1964
Readymade: urinol de porcelana
Coleo de Arturo Schwarz, Milo
7. The Blind Man, N 2, 1917
Pginas 04 e 05
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readymades com o objet trouv (procedimento que ser retomado nesta dissertao),
comentou:
Os meus Ready-Mades no tm qualquer relao com o objet trouv,
pois o chamado objeto achado completamente submetido aogosto pessoal. o gosto pessoal que decide que determinado objeto nico e belo. (...) Considero o gosto, o bom e o mau, o maior inimigoda arte. (DUCHAMP, 1962: 109)15
Com seus readymades, Duchamp libertou o artista da habilidade manual e da
associao a um estilo. Mas sem a presena gestual e habilidosa do artista, sua autoria, como
era concebida anteriormente, desaparece. O pintor no mais ligado a sua tela por uma
misteriosa relao fsica anloga a procriao. (...) emergiu o que vem sendo chamado a
personalidade da escolha. 16
Arturo Schwarz comenta que Andr Breton foi um dos primeiros a tentar fornecer ao
termo readymade uma definio precisa: objetos manufaturados promovidos dignidade de
objetos (obras) de arte atravs da escolha do artista. (BRETON, 1922 apud SCHWARZ,
1987: 45). Schwarz ento afirma que esta definio genrica em excesso e diz ser necessrio
fazer uma srie de definies:
Ou seja, o gesto do artista est na escolha e no deslocamento do
objeto. Ele se torna ento aquele que mostra, aponta. O ato de escolher suficiente para
fundar a operao artstica.
A grosso modo, o readymade pode ser definido como qualquerentidade comum e elaborada que, unicamente em razo de ter sidoescolhida pelo autor, e sem sofrer nenhuma modificao, consagrada como uma obra de arte. (SCHWARZ, 1987: 45)
Se nesta definio o objeto no pode sofrer nenhuma modificao, os readymades que
de alguma maneira so modificados entram em outras categorias, que so:17
Readymade assistido: esse tipo de objeto surge quando a interveno do autorrestringe-se mudana do ngulo a partir do qual um elemento normalmente
percebido, mas sem transformar ou modificar de modo algum o objeto.
15 Entrevista concedida a Katharine Kuh.In: KUH, Katharine.Dilogo com a arte moderna. 1965, p. 109
16 Traduo da autora do ingls: the painter (...) is no longer bound to his canvas by a mysterious physical relationshipanalogous to procreation. () has emerged which has been called the personality of choice. ARAGON, Louis. TheChallenge to Painting, 1930. In: EVANS, David. (org.)Appropriation, 2009: 27-28
17
Cf. SCHWARZ, 1987: 45-46
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Readymade retificado: quando o autor retifica um readymade.
Readymade retificado e imitado: quando o autor repete e corrige um readymade.
Semi-readymade: quando o autor elabora uma montagem, que uma combinao de
readymades mais ou menos modificados.
Readymade recproco: proposta de Duchamp para expor a antinomia bsica entre a
arte e os readymades. Como exemplo prope o uso de um Rembrandt como tbua de
passar roupa.
Todas essas questes nos levam a perceber que o readymade foi a primeira
manifestao CONCEITUALIZADA do procedimento da apropriao. 18
No livro Arte Contempornea: uma introduo, Anne Cauquelin destrincha melhor
essas questes e apresenta em Duchamp alguns pontos que o coloca como o embreante da
arte contempornea:
1. A distino entre a esfera da arte e da esttica.Esttica designando o contedo das obras, o valor da obra em si; aarte sendo simplesmente uma esfera de atividades entre outras, semque seu contedo particular seja precisado.
2. Na esfera da arte, considerando-a no mais dependente de umaesttica; os papis dos agentes no so mais estabelecidos comoanteriormente.Produtores, intermedirios e consumidores no podem mais serdistinguidos. Todos os papis podem ser desempenhados ao mesmotempo. O percurso de uma obra at o consumidor presumido no mais linear, mas circular.
3. Essa esfera no est mais em conflito com as outras esferas deatividades, mas, ao contrrio, integra-se a elas.
Abandono dos movimentos de vanguarda e do romantismo da figuraartista.
4. Como a arte um sistema de signos entre outros, a realidadedesvelada por meio deles construda pela linguagem, seu motordeterminante.
Importncia dos jogos de linguagens e de construo da realidade; aarte no mais emoo, ela pensada; o observador e o observadoesto unidos por essa construo e dentro dela. (2005: 90)
18
Cf. BOURRIAUD, 2009: 22
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Na primeira proposio Anne comenta da ruptura de Duchamp com a prtica esttica
da pintura, se declarando um antiartista. A arte no mais para ele uma questo de
contedos, mas de continente. Basta o continente (meio) para afirmar que o objeto se trata de
arte, ou seja, o local de exposio torna esses objetos obras de arte. A obra pode ser qualquer
coisa, pois o valor mudou de lugar, est relacionado ao local e ao tempo e no mais ao objeto.
O autor desaparece como artista pintor, a assinatura sua nica marca de existncia e um dos
indcios de valorizao do objeto.
Na segunda proposio, demonstra como o artista desempenha diversos papis. O
artista identifica-se com o galerista-marchand pois arranja e exibe um objeto, no cria, mas
utiliza materiais. Encontra-se identificado tambm com o observador dizendo que o
observador que faz o quadro pois este faz parte do sistema que observa, produzindo assimcondio de transformar o objeto observado. Desempenha tambm o papel de jri (Duchamp
foi membro da Sociedade dos Artistas Independentes), crtico de sua prpria obra (produziu
textos e notas sobre seus trabalhos e agrupou-os em caixas) e curador de exposies. Assim
sendo, o artista no um elemento parte, no h separao de papis, apenas uma cadeia de
comunicao encerrada em si mesma.
A terceira proposio diz respeito integrao da arte com o sistema geral (social,
poltico, econmico). O artista no mais aquele que vivia margem. A arte e o artista fazemparte de um sistema geral, de uma rede. As operaes que se desenrolam no interior dessa
rede tm a ver com as propriedades da rede, e no com a vontade do artista.
Dentro desta mesma proposio podemos citar o apontamento de Bourriaud ao afirmar
que, ao utilizar
como instrumento de produo um objeto fabricado em srie, ele[Duchamp] transporta o processo capitalista de produo (trabalhara partir do trabalho acumulado) para a esfera da arte, ao mesmo
tempo inscrevendo o papel do artista no mundo das trocas: de repenteele parece um comerciante, cujo trabalho consiste em transferir umproduto de um local para o outro. (2009: 19-20)
Finalizando o pensamento de Cauquelin, na quarta proposio a autora chama a
ateno para a importncia da linguagem. Duchamp enchia de potncia seus trabalhos com
ttulos e com jogos de linguagem. Atravs dos trocadilhos que criava, redimia a palavra do
lugar-comum. Os objetos dos quais se apropriava eram deslocados de seu contexto
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principalmente pelo ttulo (isento de qualquer relao bvia com o objeto) que os rebatizava.
Sobre esse uso da linguagem, o artista comenta:
Uma importante caracterstica era a curta frase que eu
ocasionalmente inscrevia no readymade. Esta frase, em vez dedescrever o objeto como um titulo, era feita para carregar a mente doespectador em direo a outras regies mais verbais. (DUCHAMP,1961)19
Um grande exemplo disso seu trabalho
intitulado L.H.O.O.Q. (fig.8), um readymade
retificado em que acrescenta bigode e cavanhaque
a uma reproduo daMona Lisa de Da Vinci. O ato
dessacralizador dessa obra mitolgica vemprincipalmente da ironia do ttulo que, lido em
francs, significa algo como ela tem fogo no rabo.
Mas ao mesmo tempo em que ele dessacraliza, ele
exalta, pois elege, escolhe essa obra dentre nosso
enorme banco de dados e a re-apresenta, a re-
significa.
Explicitando todas as regras, pondo a nu osistema, Duchamp colocou a arte em xeque e
acabou criando um novo paradigma. Mas todos os
pontos entravam em conflito com o regime
moderno, por isso sua aceitao e assimilao
foram lenta e inicialmente para poucos.
Duchamp participou de alguns movimentos
artsticos, como o dadasmo e algumas exposiessurrealistas. Alis, o surrealismo foi constitudo em sua maioria por antigos dadastas. Mas a
estrutura e as atitudes dos surrealistas eram bem diferentes dos dadastas. Entretanto
encontramos no surrealismo um tipo de apropriao bem similar ao readymade. O objeto
surrealista (fig. 9 e 10) era criado usando como procedimento o chamado objet trouv (fr.
19 Traduo da autora do ingls: One important characteristic was the short sentence which I occasionally inscribed on thereadymade. That sentence, instead of describing the object like a title, was meant to carry the mind of the spectator towardsothers regions more verbal. Marcel DUCHAMP. Apropos of Readymades, 1961. In: EVANS, David (org.).Appropriation,
2009: 40
8. Marcel Duchamp.L.H.O.O.Q., 1919
Readymade retificado: lpis sobre uma
reproduo daMona Lisa
19,7 x 12,4 cm
Philadelphia Museum of Art, Filadlfia
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objeto encontrado) que consistia num objeto encontrado ao acaso pelo artista e exposto
como obra de arte. Seguindo a frase de Lautramont20 que virou lema dos surrealistas: To
belo como o encontro ocasional, em uma mesa onde se pratica a dissecao, de uma mquina
de costura com um guarda-chuva 21, o objet trouv tinha como princpio um encontro
fortuito e aleatrio. Diferentemente do readymade, o objeto encontrado era escolhido por
sua singularidade, por qualidades estticas e simblicas, implicando num juzo de gosto. Eram
enfatizadas a aluso potica, os significados ocultos, a metfora, o fetichismo, o onrico e o
misterioso. Esses objetos seriam a encarnao do desejo. Apesar dessa diferena na escolha
do objeto, Andr Breton, idealizador do surrealismo, considerava o readymade o primeiro
objeto surrealista.22
9. Man Ray. O Enigma de Isidore Ducasse, 1920
Mquina de costura embrulhada
10. Meret Oppenheim,Minha ama-seca, 1936
sapatos de salto brancos com enfeites de papel,
apresentados em uma bandeja oval,
14 x 21 x 33 cm
Moderna Museet, Estocolmo
20 Pseudnimo de Isidore Ducasse (1846-1880)
21 apud DEMPSEY, 2003: 151
22
Cf. Andr BRETON e Paul LUARD. The Object, 1938. In.: EVANS, David (org,)Appropriation, 2009: 31
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1.2 Para alm doreadymade: anos 60 e 70
O conceito de readymade foi retomado por alguns movimentos artsticos somente aps
o fim da Segunda Guerra Mundial (momento em que o plo das artes era Nova Iorque e uma
onda de abstracionismo se espalhara pelo mundo). Essa retomada do readymade e da prtica
da apropriao, ligado a um retorno da figurao, teve incio em meados dos anos 50 e, j nos
anos 60 e 70, tomou conta das manifestaes artsticas. Por ter sido uma poca de
experimentaes, de grandes contestaes e de busca por maior liberdade, os artistas foram
ampliando cada vez mais o suporte e o limite da arte.
Um dos precursores dessa retomada da apropriao foi o artista norte-americano
Robert Rauschenberg (1925-2008). Situado na transio entre o expressionismo abstrato e apop art e aproximado do chamado neodad, o artista ficou conhecido pela tcnica
denominada por ele de combines23
A partir de 1962, Rauschenberg comeou a se apropriar tambm de imagens e as
incorporava em seus trabalhos atravs do processo de serigrafia. Outros artistas do mesmo
perodo compartilhavam este mesmo processo de produo. O mais famoso deles foi AndyWarhol (1928 1987). Em seus trabalhos, Warhol trabalhava com repeties de imagens
estereotipadas da cultura de massa que davam arte um carter de produto (fig.12), tanto que
batizou seu estdio de The Factory
(fig.11). Rauschenberg criou o termo em 1954 para se
referir a suas obras que combinavam elementos da pintura e da escultura. Num misto de
colagem, readymade, Merz e objet trouv, o artista mesclava objetos do cotidiano, elementos
encontrados e todo tipo de material descartado pela sociedade e, sobre tudo isso, adicionava
camadas de tinta numa pintura semelhante ao expressionismo abstrato. Rauschenberg tentava
recuperar um certo esprito dadasta mas tambm buscava um novo modo de levar adiante ainfluncia do expressionismo abstrato. Percebemos em suas obras um conflito na valorizao
do gesto criador. Ao mesmo tempo em que o artista aquele que escolhe, retira e combina
objetos do cotidiano, ele tambm cria, explora suas emoes numa pintura gestual. A autoria,
de certa forma, permanecia.
24
23 Se a obra se destinava a ser pendurada na parede era chamada de combine paintings.
. L, suas obras eram produzidas em srie utilizando
um procedimento mecanizado (serigrafia), no qual o artista no se valia mais do pincel e do
gestual.
24 A Fbrica
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11. Robert Rauschenberg.
Canyon, 1959
Combine Painting
219,7 x 179,1 x 57,8 cm
Sonnabend Gallery, Nova Iorque
12. Andy Warhol. Marilyn Monroe
(Marilyn), 1967
Silk-screen sobre papel
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Tanto Warhol quanto Rauschenberg esto integrados pop art.Neste movimento, os
artistas exploravam as imagens vinculadas comunicao de massa e sociedade de
consumo, que constituam um novo material iconogrfico. Eles reproduziam em larga escala
essas imagens apropriadas, retirando da obra seu carter de objeto nico e atestando a
efemeridade daquilo que produziam. Ao copiar essas imagens do cotidiano, falavam do
universo do espectador, de algo popular, mas banal, kitsch, trazendo tona crticas arte e
sociedade, ao mesmo tempo em que celebravam o american way of life. Era a alta arte
posando de baixa arte, ou seja, os artistas se apropriavam dos procedimentos de produo e
materiais, referencias icnicas, e modos de recepo do domnio da ento chamada baixa
cultura ou cultura de massa, e os introduziam no discurso da alta cultura.25
Na Frana surgiu um movimento com caractersticas similares ao neodad e pop art:o novo realismo. Fundado em 1960 por Pierre Restany (1930 - 2003), o Nouveau Ralisme26
era caracterizado por um novo aproximar-se perceptivo do real27. Seus artistas, apesar de
terem poticas individuais e estilos variados, tinham pontos em comum como a influncia do
dadasmo (readymade sem a indiferena esttica pregada por Duchamp) e do surrealismo
(descoberta do maravilhoso no cotidiano mais banal), e a tomada de conscincia de uma
natureza moderna, que a da fbrica e da cidade, da publicidade e dos mass media, da
cincia e da tcnica.28
No descobri o princpio da acumulao, foi ele que me descobriu.Sempre foi bvio que a sociedade alimenta sua sensao desegurana por meio de um instinto de camundongo aglomerador,
demonstrado em suas vitrines, em suas linhas de montagem e em suaspilhas de lixo. (ARMAN apud DEMPSEY, 2003: 210)
Dentre a variada produo dos artistas do novo realismo encontramoscolagens, instalaes, happenings, acumulaes, compresses, entre outros. Como exemplo,
podemos citar a obra de Arman (1928-2005) que trabalhava com apropriao e acumulao de
objetos (fig.13), geralmente detritos, num misto de readymade, objet trouv e merz. Sobre
essa sua tcnica, declarou:
25 Benjamin H. D. BUCHLOH. Parody and appropriation in Francis Picabia, Pop and Sigmar Polke, 1982. In: EVANS,David. (org.)Appropriation, 2009: 179
26Novo Realismo em francs
27 RESTANY, 1979: 29
28
Ibid., p. 24
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13. Arman.Acumulao de jarros, 1961
Jarros esmaltados em vitrine de plexigas
83 x 142 x 42 cm
Museum Ludwig, Colnia
A prpria cidade que provia material para a criao de suas obras. BOURRIAUD
(2009: 23-24) comenta que os novos realistas eram fascinados pelo ato de consumir e
apresentavam as relquias desse gesto, privilegiando mais o valor de uso das coisas,
diferentemente da pop artque era mais interessada no impulso visual que levava compra,
privilegiando o valor de troca. Ao recuperar objetos j usados, mostrando o fim do processo
de consumo realizado por outrem, os novos realistas inventaram uma espcie de ps-
produo ao quadrado, e foram os primeiros paisagistas do consumo, os autores das
primeiras naturezas-mortas da sociedade industrial 29
Diferentemente das vanguardas do incio do sc. XX, que eram essencialmente crticas
e contra a burguesia, esses movimentos do incio dos anos 60 acolhiam a classe burguesa eseu universo. Podemos perceber essa diferena de ideologia nos comentrios dos novos
realistas Yves Klein e Arman sobre o dadasmo:
.
Klein: Sim, porque no fundo Dad foi um movimento mais poltico doque artstico. Estamos de frias, no estamos em revolta. No estamos
fugindo.Arman: Durante uma conversa com Yves Klein, Rauschenbergrecolheu a frase: Para Dad, tratava-se mais de excluir, tratava-se, portanto, de um combate. Para ns, trata-se sobretudo de
incluir...30
Outra mudana significativa foi a da figura do artista. Se nas primeiras vanguardas do
sc. XX ele era aquele que vivia margem, no incio dos anos 60 ele foi associado ao
glamour e celebridade, como no caso de Warhol.
29 BOURRIAUD, Nicolas. Ps-produo: como a arte reprograma o mundo contemporneo,p. 24
30 Debate mediado por Sacha Sosnowsky em 1960 com Yves Klein, Arman e Martial Raysse. In: FERREIRA, Gloria;
COTRIM, Ceclia (orgs.). Escritos de artistas: anos 60/70, 2006: 57
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Porm, um movimento deste mesmo perodo seguiu no sentido contrrio e
compartilhou as ideologias utpicas das primeiras vanguardas. A Internacional Situacionista
(IS) nasceu em 1957, na Itlia, da fuso de outros movimentos como a Internacional Letrista
(do qual participava o cineasta e terico Guy Debord), o Movimento Internacional por uma
Bauhaus Imaginista (que inclua o artista ex-CoBrA Asger Jorn) e a Comisso
Psicogeogrfica de Londres (inventada no momento da criao da IS pelo artista ingls Ralph
Rumney). Os membros da IS acreditavam no carter essencialmente revolucionrio da arte e
buscavam romper com o ecletismo cultural e com o establishment artstico. No
consideravam seu movimento como mais um dos ismos, pois, para eles a noo de
situacionismo conectada com uma tentativa de recuperao para o mercado artstico das
produes dos membros do movimento (PERNIOLA, 2009: 16). Declaravam que nopoderia haver arte situacionista, apenas o uso situacionista da arte. Para eles, a Arte
estabelecida contrape-se vida porque imobiliza, materializa, reduz a existncia subjetiva do
indivduo mercadoria. Contra o espetculo reinante, pregavam a participao total, a
produo coletiva e annima e a renovao cultural e social. Para tanto criaram algumas
estratgias/propostas: o controle das novas tcnicas de condicionamento, a pintura industrial,
a psicogeografia, a urbanstica unitria, o jogo, a situao construda e o dtournement. Dentre
alguns projetos, havia a idia de infiltrar elementos situacionistas clandestinos nos pontosvitais do sistema capitalista (apropriando-se das tcnicas de condicionamento) ou de construir
situaes por meio da organizao coletiva de um ambiente unitrio e de um jogo de
acontecimentos. Mas a proposta que mais se relaciona com esta dissertao e a que
apresentaremos com mais detalhes a dtournement(fr. desvio), que pode ser descrita como
um uso poltico do readymade recproco de Duchamp (BORRIAUD, 2009: 36). Em seu
Guia prtico para o desvio, Guy Debord (1931-1994) e Gil Wolman (1929-1995)
propunham o uso da herana literria e artstica da humanidade para objetivospropagandsticos de guerrilha. Para eles, quaisquer elementos poderiam ser usados para fazer
novas combinaes, pois seu significado pode ser alterado em um novo contexto:
Est implcito que no h limite para corrigir uma obra ou paraintegrar diversos fragmentos de trabalhos obsoletos em um novo;
pode-se alterar o significado desses fragmentos de qualquer formaapropriada, deixando aos imbecis a sua escravido s referncias es "citaes".Tais mtodos parodsticos foram freqentemente usados para obterefeitos cmicos. Mas tal humor o resultado de contradies dentrode uma condio cuja existncia no posta em questo. (...) Torna-
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se necessrio conceber ento um estgio pardico-srio no qual aacumulao de elementos desviados, longe de procurar despertarindignao ou riso ao aludir a um trabalho original, expressar nossaindiferena em relao a um original insignificante e esquecido, e que
procura proporcionar uma espcie de sublimao.31
Apesar da proposta do desvio situacionista ter similaridades com as prticas de
apropriaes j citadas nesta pesquisa, a diferena fundamental est no fato de que, enquanto
o ponto de chegada das outras prticas uma obra que tem um valor autnomo ainda
artstico, o ponto de chegada do dtournement um produto que, mesmo podendo valer-se
de meios artsticos e, ainda, de obras de arte, revela-se imediatamente como a negao da arte,
sobretudo pelo carter de comunicao imediata que contm. (PERNIOLA, 2009: 28)
Dentre os suportes possveis para se aplicar o desvio estavam os quadrinhos (fig.14),
que tinham a vantagem de ser acompanhados de ilustraes cujas relaes com o texto no
so imediatamente bvias32
importante tambm destacar uma das normas de utilizao do desvio formuladas
pelos situacionistas que demonstram seu carter guerrilheiro e sua crtica expresso
subjetiva:
, e o cinema que, para eles, era onde o desvio alcanaria maior
eficcia. O desvio tambm foi aplicado na pintura (fig.15) pelo artista dinamarqus Asger
Jorn (1914-1973), que fazia alteraes em pinturas ruins, de segunda mo, compradas por
ele em brechs.
As distores introduzidas nos elementos desviados devem ser as maissimples possveis, j que o impacto de um desvio diretamente
proporcional memria consciente ou semiconsciente dos contextosoriginais dos elementos. Isto bem sabido. Permita-nos apenas notarque se esta dependncia da memria implica que deve-se determinaro pblico-alvo antes de planejar-se um desvio, isto apenas um caso
particular de uma norma geral que governa no s o desvio como
tambm outras formas de ao neste mundo. A idia da expressopura e absoluta est morta; ela sobrevive temporariamente em formade pardia apenas enquanto o nosso inimigo sobreviver.33
31 Guy DEBORD e Gil WOLMAN. Guia prtico para o desvio, 1956
32 Ibid.
33
Ibid.
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37
14. Raoul Vaneigem e Grard Joanns.
Internacional Situacionista, 1967
Comic desviado
Pster
37,5 x 55,5 cm
15. Asger Jorn. O Pato Inquietante, 1959
Pintura desviada
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A partir de 1962 a IS tomou outro rumo. Algumas divergncias internas levaram a
excluses e desistncias de alguns membros, na maioria artistas profissionais, mudando o
enfoque do movimento para um campo somente poltico, cujas idias serviram de base para a
revolta estudantil de 1968 em Paris.
Nos anos 60, outra rede internacional de artistas compartilhou das ideologias utpicas
e do experimentalismo das vanguardas: o Fluxus. O termo Fluxus foi criado por George
Maciunas (1931-1978) inicialmente para ser ttulo de uma revista, concretizando-se em
movimento em 1962. O grupo teve como primeiros seguidores membros do curso de
composio experimental, conduzido por John Cage (1912-1992) em 1958 naNew School for
Social Research, em Nova Iorque, como George Brecht (1926-2008), Dick Higgins (1938-
1998), Allan Kaprow (1927-2006), entre outros. Alm de compositores, fizeram parte doFluxus artistas de diversas reas e de diversos pases. Da enorme lista de participantes,
podemos citar: Yoko Ono (1933), Nam June Paik (1932-2006), Ben Vautier (1935), Joseph
Beuys (1921-1986), Wolf Vostell (1932-1998), entre outros.
Maciunas escreveu um manifesto (fig.16)
verificando no dicionrio as definies da palavra
fluxo e relacionando com estas os pontos principais
do movimento, que eram:Purgar
(...)
o mundo da doena burguesa,intelectual, cultura profissional ecomercializada, PURGAR o mundo daarte morta, imitao, arte artificial, arteabstrata, arte ilusionista, artematemtica, - PURGAR O MUNDO DOEUROPANISMO!
PROMOVER UMA ENCHENTE E UMA
MAR REVOLUCIONRIA NA ARTE.Promover arte viva, anti-arte, promoverREALIDADE NO ARTSTICA
(...)
a serentendida por todos, no somentecrticos, diletantes e profissionais.
FUNDIR as estruturas culturais, sociais erevolucionrias polticas para chegar emuma frente unida e ao. (MACIUNAS,1963)34
34
In: O que Fluxus? O que no ! O porqu., 2002: 94
16. George Maciunas. Fluxus Manifesto,
1963
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Percebemos neste manifesto um esprito crtico e revolucionrio, que contesta a arte
como instituio e prega a anti-arte e a unio de arte e vida. A maioria das obras criadas pelos
artistas do grupo envolvia a colaborao entre eles ou com o espectador e eram apresentadas
na forma de happenings ou performances, principalmente nos festivais, como os Festum
Fluxorum, realizados em cidades como Copenhague, Paris, Dsseldorf, Amsterd e Nice.
Esses happenings experimentais mesclavam as diversas linguagens como msica, dana,
teatro e artes visuais, e suas aes eram compostas por sons (rudos), movimentos e objetos
do cotidiano. So exemplos aDrip Music, Fluxversion 1 (1959) de George Brecht, cuja ao
era realizada por dois intrpretes: o primeiro intrprete, numa escada de mo alta, despeja
gua de um jarro bem lentamente dentro da campnula de uma trompa ou tuba, segurada na
posio para ser tocada por um segundo intrprete no nvel do cho35, ou a Mistery Food(1963) de Ben Vautier, na qual os intrpretes comem uma refeio que no pode ser
identificada por ningum36 (fig.17).
17. Ben Vautier.Mystery Food, 1963
Ben Vautier comendo Comida Misteriosa com Robert Bozzi e George Maciunas observando
Festival Fluxus em Nice, julho de 1963
35 Traduo da autora do ingls: First performer on a tall ladder pours water from a pitcher very slowly down into the bellof a French horn or a tuba held in the playing position by a second performer at floor level. In: The Fluxus PerformanceWorkbook, 2002: 22
36
Traduo da autora do ingls: Performers eat a meal that cannot be identified by anyone. Ibid., p. 103
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Alm das performances, produziram
filmes, publicaes variadas, arte postal,
instalaes e objetos - muitos dos quais
eram postos em valise (fig.18) semelhante
ao museu porttil de Duchamp sempre se
apropriando de elementos do cotidiano.
Para Maciunas, os objetos Fluxus deveriam
ser produzidos em massa e serem
radicalmente baratos, como folhetos de
propaganda. Afirmou que:
Fluxus definitivamente contraobjetos-de-arte como bens no-
funcionais a serem vendidospara sustentar o artista.Poderia ter a funo
pedaggica temporria deensinar s pessoas a falta denecessidade da arte incluindo aconseqente falta denecessidade de si. Portanto, no
deveria ser permanente. (MACIUNAS, 1964)37
Os elementos unificadores nas obras do Fluxus eram o estilo do design de Maciunas e
o conceito de concretismo aos quais estavam ligadas. Maciunas fala a respeito deste conceito
em seu ensaio/manifesto Neo-dada na msica, teatro, poesia, arte 38
Duchamp, junto com o Zen Budismo, foram o cerne dos ensinamentos de Cage e as
maiores influncias do Fluxus. Sobre o Zen Budismo, Danto comenta
de 1962. Comenta que,
em contraste com os ilusionistas e a abstrao, os concretistas preferem o mundo da realidade
e a unidade da forma e contedo. Quanto maior o grau de intensidade do concretismo, mais
prximo o artista chega da anti-arte ou niilismo da arte. O anti-artista dirigido
principalmente contra a arte como profisso, contra a separao artificial entre o artista e aplatia, ou criador e espectador, ou vida e arte.
39
37 Carta de George Macuinas para Tomas Schmit, janeiro de 1964. In: O que Fluxus? O que no ! O porqu., 2002., p. 163
que um seminrio
38 In: Ibid., p. 89-90
39
Cf. Arthur C. DANTO. O Mundo como Armazm: Fluxus e Filosofia.. In: Ibid., p. 28
18. George Maciunas. Seu nome soletrado com
objetos G E O R G E B R E C H T, 1976
The Gilbert and Lila Silverman Fluxus CollectionFoundation, Detroit
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sobre o tema, dado pelo Dr. Suzuki na Columbia University, foi um dos eventos culturais
mais influentes do final dos anos cinqenta em Nova Iorque, o que auxiliou na disseminao
dessa filosofia entre os vanguardistas americanos desta poca. Dela, assimilaram a crena de
que a conscincia mais elevada poderia ser alcanada mediante a mais comum das atividades.
Que o decurso da vida diria oferece todas as possibilidades exigidas por aqueles que
procuram uma vida espiritual. As apresentaes do Fluxus eram acontecimentos simples e
cotidianos, como o ato de comer, e, apesar de terem um fundo de expectativas teatrais, elas
eram escolhidas para terem um grau zero de emoes, assim como os readymades. Sobre isso,
MACIUNAS (apud DANTO, 2002: 28) comentou: Eu daria grande reconhecimento a
George Brecht por ter estendido a idia do ready-made ao domnio da ao. Uma ao
readymade deveria ser, assim como o objeto, de fcil execuo, que pudesse ser feita porqualquer pessoa e que no precisasse de nenhum tipo de habilidade especfica. Mas o prprio
BRECHT (apud DANTO, 2002: 27) aponta a diferena de suas aes e as de Duchamp: No
h diferena entre arte e vida cotidiana... eu pego uma cadeira e simplesmente a coloco numa
galeria. A diferena entre uma cadeira de Duchamp e uma das minhas cadeiras que a de
Duchamp est num pedestal enquanto a minha ainda pode ser usada.
A maior contribuio do Fluxus, segundo Danto, foi demonstrar que a arte pode
lembrar a realidade em qualquer grau desejado, que a questo no identificar o que pode seruma obra de arte e sim qual a nossa percepo de algo se o vemos como arte. Como
Maciunas colocou: Se o homem pudesse ter uma experincia do mundo, o mundo concreto
que o cerca (...) da mesma maneira que tem a experincia da arte, no haveria necessidade de
arte, artistas e de elementos igualmente no-produtivos.40
Outro importante movimento que ampliou o procedimento da apropriao foi a Arte
Conceitual. Henry Flynt (1940), integrante do Fluxus, criou o termo em 1961 num ensaio
chamado Concept Art, em que dizia:A arte conceitual antes de tudo uma arte na qual o material oconceito, assim como, por exemplo, o material da msica o som.Como os conceitos tm ntima ligao com a linguagem, a arteconceitual uma espcie de arte da qual o material a linguagem.(FLYNT, 1961 apud DEMPSEY, 2003: 240)
40 George MACIUNAS. Neo-dada na msica, teatro, poesia, arte, 1962. In: O que Fluxus? O que no ! O porqu., 2002:
90
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Apesar de o termo ter sido cunhado no comeo dos anos 60, os artistas s iniciaram
suas produes conceituais por volta de 1965. o caso da obra Uma e trs cadeiras (fig.19)
de Joseph Kosuth (1945). Nela, o artista exibe um objeto retirado do cotidiano (cadeira), uma
ampliao fotogrfica do mesmo objeto e uma definio encontrada em dicionrio do objeto
apropriado; chamando ateno para a relao entre o objeto fsico e suas diferentes
representaes e entre conceitos e aquilo a que se referem.
19. Joseph Kosuth, Uma e trs cadeiras,
1965
uma cadeira, uma foto sua e uma definio
de dicionrio impressa.
Em 1969, Kosuth escreveu o artigo A Arte depois da filosofia que, durante muito
tempo, foi a referncia para avaliao da arte conceitual. O artigo obteve larga repercusso na
mdia41
A definio mais pura da Arte Conceitual seria a de que se trata deuma investigao sobre os fundamentos do conceito arte, nosentido que ele acabou adquirindo.
e tornou-se espcie de manifesto. Nele, apontou as principais questes e
caractersticas da arte conceitual. Assim, a definiu:
42
Ao rever o conceito e a funo da arte, afirmou ser necessrio separar a esttica da
arte:
A relao da esttica com a arte no diferente da relao daesttica com a arquitetura, em que a arquitetura tem uma funo
41 O artigo foi traduzido e publicado no Brasil em 1975 na revistaMalasartes.
42 Joseph KOSUTH. A arte depois da filosofia, 1969. In: FERREIRA, Glria; COTRIM, Ceclia (orgs.). Escritos de artistas:
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muito especfica, e o valor de seu projeto, o quanto ele bom, estrelacionadoprimordialmente ao desempenho de sua funo. 43
Criticou a arte formalista por ser apenas puros exerccios no campo da esttica e por
no questionar a natureza da arte, aceitando como uma definio de arte algo que existe
somente com bases morfolgicas. Afirma que ser um artista agora significa questionar a
natureza da arte. (...) Se um artista aceita a pintura (ou escultura), ele est aceitando a tradio
que o acompanha.44
Deslocando a importncia do objeto para o conceito e para a natureza da arte, Kosuth
afirmou que uma obra de arte um tipo de proposio apresentada dentro do contexto da
arte, como um comentrio sobre a arte.
Apontou a importncia e o pioneirismo de Duchamp que, com seu
readymade, mudou a natureza da arte de uma questo de morfologia para uma questo de
funo. E complementou: Toda a arte (depois de Duchamp) conceitual (por natureza),
porque a arte s existe conceitualmente.
45
Um trabalho de arte uma tautologia, na medida em que umaapresentao da inteno do artista, ou seja, ele est dizendo que umtrabalho de arte em particular arte, o que significa: uma definioda arte. Portanto, o fato de ele ser arte uma verdade a priori.
Dessa forma, coloca a obra de arte como filosofia.
E continua:
46
Para o artista, a nica exigncia da arte com a arte.
Alm de Kosuth, outros artistas tambm escreveram suas concepes de arte
conceitual. o caso de Sol LeWitt (1928) que, em seus ensaios Pargrafos sobre Arte
Conceitual (1967) e Sentenas sobre Arte Conceitual (1969), apontou a importncia da idia
em detrimento do objeto ou da forma. Chegou a afirmar que a prpria idia, mesmo no caso
de no se tornar algo visvel, um trabalho de arte tanto quanto qualquer produto
terminado.
47
43 Ibid, p. 214-215
44 Ibid, p. 217
45 Ibid, p. 219
46 Ibid, p. 220
47
Sol LEWITT. Pargrafos sobre Arte Conceitual, 1967. In: Ibid, p.179
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44
Como percebemos, na arte conceitual, o artista podia se apropriar de qualquer coisa
para fazer seu trabalho. Desde objetos a espaos, palavras, materiais precrios ou efmeros,
tudo era vlido, pois o importante era o conceito da obra. O predomnio da idia sobre o
objeto provocava a negao da arte como mercadoria e a separao definitiva entre a esttica
e a atividade artstica. O trabalho era entendido como um condutor da mente do artista para
os observadores48. O palpvel perdia sua importncia. Muitas vezes, a idia do artista era
materializada em formas de documentos ou registros, tais como fotografias ou textos
impressos. Para eles, esse registro no o objeto de arte, pois o objeto de arte no um objeto
que pode ser diretamente percebido, o que levou Lucy Lippard a falar de uma
desmaterializao da obra de arte. Cristina Freire aponta para o fato de que, hoje, esse termo
anacrnico e reducionista, pois desconsidera o fato de que estamos falando de fotografias,textos, livros de artista, que, ao se afastarem da noo hegemnica da arte objetual, no se
desmaterializam, mas requerem outra aproximao.49
Os artistas conceituais norte-americanos e ingleses faziam, de certo modo, uma crtica
social que passava pelo filtro de uma crtica da instituio. Mas seus maiores questionamentos
eram sobre a prpria natureza da arte. J nos pases latino-americanos, a arte conceitual teveoutro foco, mais social e ideolgico, o que levou a muitos historiadores a repensar a definio
anglo-saxnica de arte conceitual e propor teses alargadas sobre ela.
Comenta que h certa inteno de
permanncia de algo que escapa e que essa presena ausente o que caracteriza a produo
dos anos 70.
50
Apesar de encontrarmos exemplos de apropriao desde a dcada de 10, este termo s
entrou de vez no vocabulrio artstico no final dos anos 70 e incio dos anos 80, para designar
as prticas de alguns artistas norte-americanos do chamado ps-modernismo. Em 1977,
Douglas Crimp organizou a exposio Pictures no Artists Space em Nova Iorque,
apresentando o trabalho de diversos artistas que se baseavam na possesso,
geralmente noautorizada, de imagens e artefatos de outros. Essa exposio acabou sendo a precursora de
uma corrente apropriacionista, que ficou associada a certas galerias comercias em Nova
Iorque, como a Metro Pictures e a Sonnabend Gallery, e a artistas como Sherrie Levine
48 IDEM. Sentenas sobre Arte Conceitual, 1969. In: Ibid, p. 206
49 Cristina FREIRE. O presente-ausente da arte dos anos 70. In:Anos 70: trajetrias, 2005: 148
50
Esse assunto ser retomado no terceiro captulo desta dissertao.
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(1947), Richard Prince (1949) e Jeff Koons (1955). Muitos desses artistas apropriadores
usavam a fotografia como recurso para saquear e re-usar. o caso de Sherrie Levine que, em
sua obra After Walker Evans (fig.20), (re)fotografou uma srie de fotografias (fig.21) de
Walker Evans (1903-1975) atravs de um catlogo de exposio. A artista apresentava sua
obra tal qual a imagem apropriada, sem adies, combinaes ou alteraes. Questionava a
natureza da arte e noes como originalidade, autenticidade e autonomia. Como CRIMP
(2005: 121) coloca, a apropriao de Levine reflete a estratgia da prpria apropriao pois
comenta da apropriao de Evans (e da fotografia em geral) pelas instituies de arte erudita e
comenta da fotografia como ferramenta de apropriao. Para enfrentar a crise que sofreram
nos anos 60 e 70, os museus e galerias passaram a reavaliar produtos at ento secundrios
(como fotografias e obras efmeras) e inseri-los no mercado. Levine criticava essainstitucionalizao da arte, mas ao mesmo tempo fazia parte disso. Percebemos que a artista
apenas problematizava a noo de autoria, sem a abolir, pois produzia uma obra mercadoria
com sua assinatura para garantia de mercado. Para BOURRIAUD (2009: 24), os artistas dos
anos 80 consideravam a obra de arte como uma mercadoria absoluta e a criao, como um
simples simulacro do ato de consumo. Esses artistas sentiam que tudo j havia sido criado e
que nada mais poderia ser original, restando a eles fazer novas combinaes e novas leituras.
Percebemos esse sentimento na declarao de Sherrie LEVINE (1982):O mundo est cheio ao ponto de sufocar-se. O homem marcou sua
presena em cada pedra. Cada palavra, cada imagem arrendada ouhipotecada. Sabemos que uma pintura seno um espao no qualuma variedade de imagens, nenhuma delas originais, misturam-se econfrontam-se. Uma pintura um tecido de citaes sadas dosinumerveis centros de cultura. Semelhante a Bouvard e Pcuchet,esses eternos copistas, ns apontamos o profundo ridculo que
precisamente a verdade da pintura. Ns podemos apenas imitar umgesto que sempre anterior, nunca original. Sucedendo o pintor, o
plagiador no possui mais em si paixes, humores, sentimentos,impresses, mas sim esta imensa enciclopdia de onde ele extrai. Oobservador o espao onde se inscrevem todas as citaes quecompem uma pintura, sem que nenhuma delas sejam perdidas. Osignificado de uma pintura situa-se no em sua origem, mas em seudestino. O nascimento do observador deve ser custa do pintor.51
Nesta declarao, Levine se apropria de trechos do texto A morte do autor de Roland
Barthes (1915-1980), cujas idias tiveram grande influncia sobre a gerao da artista.51
Traduo do ingls da autora. Sherrie LEVINE, Statement, 1982. In: EVANS, David (org.).Appropriation, 2009: 81
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20. Sherrie Levine, After Walker Evans: 4, 1981
fotografia
12.8 x 9.8 cm
The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque
21. Walker Evans,Allie Mae Burroughs, Hale
County, Alabama, 1936
fotografia
20,3 x 25,4 cm
The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque
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Em seus trabalhos, Levine fazia referncia a uma arte do passado, mas sem inteno
de super-la. Re-apresentava essas obras segundo princpios pessoais. Um de seus critrios de
seleo era a esttica, o que contraria o conceito de readymade. Mas essas obras exigiam um
leitor atento, seno colocaria abaixo toda funo crtica em detrimento de um puro deleite
esttico.
Anos mais tarde, o artista Michael Mandiberg (1977) problematizou ainda mais o
procedimento de Sherrie Levine ao escanear em alta resoluo (850 dpi) as mesmas fotos de
Walker Evans (fig. 22) e disponibiliz-las na internet para download.52
Conforme visto, o conceito de readymade foi sendo ampliado e modificado. Aspossibilidades de apropriao de coisas j prontas so infinitas. Mas se nos mantivermos
idia original de readymade cunhada por Duchamp, encontraremos algumas contradies em
sua continuidade. Como ressalta Maria Isabel Branco Ribeiro
Junto s fotos,
Mandiberg disponibiliza tambm um certificado de autenticidade de sua obra (fig. 23),
impedindo qualquer valorizao econmica e mercadolgica de seu trabalho.
53
Quem quer que procure dar continuidade estar, no mnimo,trabalhando dentro de uma categoria reconhecida nos termosapresentados por Marcel Duchamp, com referncias e associaesimediatas, ironicamente j identificadas como um padro de gosto e,
portanto, estar em direo oposta apontada. (1999: 56)
:
E ainda:
A aplicao do mtodo para a criao de um readymade cominteno de obter resultados semelhantes aos de Duchamp torna-seineficaz, pois implica sempre referncia e comentrio ao artista
francs, anulando o sentido de neutralidade, quando no diluindo aspropostas iniciais. (1999: 58)
A pureza dos readymades de Duchamp no pode mais ser alcanada, mas este
procedimento props rumos e tornou-se modelo da arte contempornea.
52 www.aftersherrielevine.com ou www.afterwalkerevans.com Acesso em: 19 out. 2009
53 Maria Isabel Branco RIBEIRO. Nelson Leirner. In: Por que Duchamp? Leituras duchampianas por artistas e crticosbrasileiros , 1999.p. 56-61
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22. Michael Mandiberg, Sem ttulo
(AfterSherrieLevine.com/2.jpg), 2001
Imagem digital em alta resoluo
3250px x 4250px (at 850dpi)
23. Michael Mandiberg, Certificado de
Autenticidade
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1.3 A questo da autoria
Uma das questes essenciais que a prtica artstica da apropriao provoca a
problematizao da autoria. Como vimos nos exemplos aqui citados, os artistas apropriadores,
de uma maneira ou de outra, passaram por esta questo. Alguns desses artistas deram maior
nfase a este ponto e teorizaram sobre o assunto, co
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