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6 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 18 a 24 de agosto de 2008

LUIZ SUGIMOTO

sugimoto@reitoria.unicamp.br

oi de medo, naturalmente,o primeiro sentimento daassistente social MariaJosé Eleutério diante doportão da Estação Gua-nabara, em fins de 2003,

quando chegou para levantar o perfil dagente que vivia no meio daqueles es-combros. Só Zezé teria cara e coragempara a tarefa, diziam na Unicamp, queprecisava convencer os invasores a libe-rar o espaço onde planejou implantar umcentro cultural e de inclusão social.

É verdade que Zezé não chegou de-samparada. Estava com mais três assis-tentes sociais, Sonia Maria dos Santos,Beila Verinaldi e Kely Cristina Barbo-sa, as quatro sob as asas do Santão –Antonio Benedito dos Santos, vigilan-te popular no campus pela simpatia epelos quatro metros quadrados de mús-culos. “Precisava de alguém de pesopara impor limites”.

Os punks dominavam boa parte dagare metálica, enquanto os demais cu-bículos, inclusive do segundo prédio –o Armazém do Café –, eram ocupadospor traficantes, prostitutas, viciados,andarilhos e outros de vida bandida, etambém por famílias inteiras. “Exata-mente aqui onde estamos [parte do ar-mazém transformado em espaço admi-nistrativo] morava o chefe do tráficolocal de drogas”.

Durante três meses, Zezé e as cole-gas levantaram o histórico das 70 pes-soas que sobreviviam naquele ambien-te degradado, abaixo da linha da misé-ria. “Era o fundo do poço. Contamos27 famílias constituídas, em grande par-te migrante de Minas Gerais, do Piauíe do Maranhão, que se deram mal naaventura por uma vida melhor”.

Universitários também se enfur-navam por lá para consumir drogas.Zezé, que fazia visitas domiciliares afamílias de alunos carentes ou proble-máticos, reconheceu um deles logo queentrou. “Ele tentou se esconder, masconhecendo seus pais, que estavam de-sesperados à sua procura, não ia deixarque se matasse. Vieram buscá-lo e hojeestá recuperado, graças a Deus”.

Difícil vencer o medo. Se muitos ti-nham bons olhos para Zezé – a espe-rança de sair do buraco –, outros lhedirigiam olhos tortos. “Os traficantes,obviamente, evitavam conversa, masnão impediam meu trabalho. Deixei cla-ro que vinha para o bem e que o pro-blema deles era com a polícia, não co-migo. Não sofri ameaças e, no fim, aca-bamos por inibir o tráfico de drogas aomenos aqui dentro”.

Havia outro tipo de tráfico, no en-tanto, e Zezé atentou de pronto para as

muitas crianças perambulando sem painem mãe. O raptor e sua amante, queas traziam de cidades do entorno paraprostituí-las em Campinas, acabarampresos. “O casal tinha duas filhas natu-rais, depois enviadas para adoção. Elasbrincavam catando pregos nas cinzas dafogueira da noite e, de tão sujas, pare-ciam sem cor. Na verdade, eram lindas,loiras de olhos azuis”.

Ainda hoje, quatro anos depois quetodos tomaram outro rumo, Zezé é pro-curada para um cafezinho, um desaba-fo. “Uma senhora esteve aqui anteon-tem, diz que sou seu anjo da guarda. Omarido, protestante, achava que Deuso colocou na estação para salvar os per-didos. Ela achava que o marido devia étrabalhar para que pudessem comer.Viviam nessa briga”.

Outro visitante assíduo é um catadorde lixo reciclável, que foi atropeladojunto com seu cavalo e ficou com umbraço paralisado. Mas Zezé gostaria desaber da enfermeira padrão que se apai-xonou por um paciente no hospital. “Elalargou filhos e casa própria para a-companhá-lo. Soube depois que o amanteera traficante, passando também a sedrogar e a beber. Largou as drogas, mascontinuou alcoólatra. Perdi contato”.

Boa formação não livra ninguém dapenumbra. Ali na Vila MacHardy, con-junto de casebres construídos para osantigos ferroviários, um ex-professoruniversitário procura refazer sua vida.“Por conta de desilusão amorosa, caiuna bebida e virou andarilho. Agora tra-balha num escritório e admite que, nãofossem as chapuletadas que demos, ain-da estaria na sarjeta”.

A Estação Guanabara daria umatese, diriam no jargão da academia.Zezé pensou nisso, mas não teria paci-ência para seguir as formalidadesexigidas na pesquisa, buscando teoriasque expliquem tudo o que tem visto naprática. “Penso, sim, em escrever essashistórias de vida. Os alunos do serviçosocial carecem de experiências reais,saem da faculdade imaginando ummundo cor-de-rosa”.

A reintegraçãoFeito o cadastramento, Zezé come-

çou a negociar a saída dos invasores. Opedido de reintegração de posse já es-tava correndo, mas o juiz não a conce-deria sem que se desse um destino àsfamílias. “Várias preferiram retornaraos seus estados e conseguimos as pas-sagens de ônibus com a Reitoria e aPrefeitura. Para outras, que tinham re-sidência na periferia, asseguramos oscaminhões para a mudança”.

Sobraram nove famílias, que rece-beram ajuda de custo da Unicamp paraque se mantivessem em outro local en-quanto era negociada a cessão de casaspela CDHU (Companhia de Desenvol-vimento Habitacional e Urbano) – este

processo levou dois anos e era Zezéquem levava o dinheiro todo mês. “Ospunks ainda resistiram, mas os três res-tantes no dia da reintegração, que foipacífica, também se foram”.

Entretanto, muitas famílias tambémocupavam o entorno da área assumidapela Unicamp – 9 mil do total de 113mil metros quadrados do complexo daEstação Guanabara, onde ainda estãobarracões bem maiores, a Vila MacHar-dy e terrenos baldios. Toda a área per-tencia à Companhia Paulista de Obrase Serviços (CPOS), que depois a ven-deu ao Instituto Paulista de Estudo ePesquisa (Ipep).

Na época em que Zezé chegou, erampoucas as invasões. Até que um opor-tunista teve a idéia de vender lotes ameros dois mil reais, em plena área cen-tral da cidade. “Acossado, ele se mu-dou para a Bahia. Na negociação com aCDHU conseguimos 49 casas na perife-ria: nove para as famílias que restaramna nossa área e 40 para as do entorno”.

O problema estaria resolvido, masmuitos se acharam no direito de reven-der as casas e lotes. Sem o cercado quea CPOS prometera providenciar, o en-torno foi de novo ocupado, agora por80 famílias. “Ficou um impasse que jánão cabia à Unicamp resolver. Fechamosa nossa área e colocamos vigilantes”.

Os escorpiõesEm meados de 2004, Zezé surpre-

endeu o pró-reitor e os colegas da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comu-nitários (Preac) ao anunciar que ia seinstalar nos escombros da EstaçãoGuanabara. “Pensei que, se não come-çássemos a ocupar o espaço, ele seriainvadido novamente. Além disso, denada adiantava ficar chorando sem olharo defunto, tinha que ver para sentir. Éra-mos eu e os escorpiões”.

Numa sala remediada, onde está atéhoje, Zezé acomodou-se com mesa, al-gumas cadeiras, telefone celular e ma-teriais de escritório, e passou a receberas famílias invasoras do entorno. No-vas histórias para escrever. Ali tambémeram feitas as reuniões do grupo de tra-balho encarregado de definir projetospara a Guanabara.

Zezé torcia o nariz diante de idéiascomo da criação de um museu e de um

A gente que perdeu o trem

A estação naprimeirametade doséculo 20 enos tempos dedegradação:exigências doCondepaccforamrespeitadas

teatro de mil lugares para apresentaçãoinclusive de óperas. Defendia que o es-paço abrigasse projetos para a comuni-dade. Foi na mudança de gestão naPreac que ficou decidida a criação doCentro Cultural de Inclusão e Inte-gração Social, onde são oferecidas ofi-cinas de capacitação profissional e ati-vidades de cultura e lazer desde 2006.

O entornoA área total da estação foi compra-

da em novembro de 2007 pelo Ipep, quepretende instalar duas escolas (de ensi-no fundamental e médio), uma facul-dade e imóveis para moradia e comér-cio. Os barracões antigos e cerca de vin-te casas da Vila MacHardy são tomba-dos pelo Conselho de Defesa doPatrimônio Artístico e Cultural de Cam-pinas (Condepacc), assim como asconstruções assumidas pela Unicamp,que teve preservado o contrato de

A assistente social Maria José Eleutério: histórico de70 pessoas que sobreviviam abaixo da linha da miséria

comodato feito com o governo estadual.Não era sua responsabilidade, mas

Zezé colaborou também na reintegra-ção da área reinvadida do entorno. De-pois de negociar prazos e caminhões como Ipep, Zezé passou dias recebendo asfamílias para agendar as mudanças, rea-lizadas em forma de mutirão. “Quandoda reintegração de fato, em janeiro des-se ano, não havia mais ninguém”.

Por força do hábito, Zezé chegou ainiciar o cadastramento também dosmoradores da Vila MacHardy, mas pen-sou melhor antes de cruzar novamenteo caminho dos traficantes, que para láse deslocaram. “Seria mexer em ves-peiro. Na vila ainda vivem 36 famíliasde ex-ferroviários, que em minha opi-nião têm direito a posse das casas ou aindenização. Ficaria feliz se o Ipepreurbanizasse o local e mantivesse es-ses moradores, que são a memória vivada Estação Guanabara”.

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Fotos: Antoninho Perri/Dário Crispim/Arquivo

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