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José Rodriguesdos Santos
O romancistaacidental
A Mão do Diabo é o decimo
romance do escritor que mais livros
vende em Portugal - ultrapassou um
milhão e meio de exemplares. E o sexto
em que entra Tomás de Noronha,
herói -historiador que tem por missão
revelar «as verdades fundamentais sobre
como funciona a nossa economia e
a nossa democracia». Palavras do autor
que começou a publicar ficção com
Maria do Rosário Pedreira. Um perfil.
Manhãfria de fim de novembro.
Depois de uma chuva bíblica,
o céu fica limpo. O encontro está
marcado para um hotel cm Sin-
tra. Aguardamos no exterior,
onde dois senhores falam sobre pilates, natação uma
ou duas vezes por semana, trabalho específico para os
abdominais. Uma senhora sai do hotel para a corrida
matinal, garrafa de água na mão. A entrada, um fun-
cionário de sobrecasaca e chapéu alto recolhe, com
uma pinça, as beatas depositadas no cinzeiro. E um
hotel de luxo. No átrio, os hóspedes falam baixo, os
receeionistas recebem-nos com sorrisos descartáveis:
«Vem para uma entrevista? Com certeza. E só um mo-
mento.» Cinco minutos após a hora marcada, chega
José Rodrigues dos Santos. Afável, não levanta qual-
quer objeção a que comecemos pelas fotografias. En-
tretanto, refere circunstancialmente que este hotel foi
considerado o melhor do mundo por uma publicação
internacional. Depois das fotografias, é hora de falar-
mos com o escritor que mais livros vende em Portugal,
mais de um milhão e meio, segundo os números da
editora (G radiva). A exceção do primeiro,^ Ilha das
Trevas, todos os seus romances ultrapassaram a barrei-
ra dos cem mil exemplares. Antes de ser romancista,
já era uma figura conhecida como jornalista c apresen-
tador do «Telejornal». Os livros deram-lhe outro tipo
de notoriedade. Recentemente foi eleito pelos leito-
res da Readers Digest como «escritor de confiança»,
à frente de José Saramago e de Miguel Sousa Tavares.
O seu décimo romance,^-í Mão do Diabo, lançado em
novembro, tem um tema bastante atual mas, de certa
forma, inesperado para um thriller. a crise económica.
É o regresso de Tomás de Noronha, historiador e pro-
tagonista dos seus romances de mistério, pronto a des-
vendar o segredo dos verdadeiros responsáveis pela cri-
se. Pelo meio, há perseguições a alta velocidade pelas
ruas de Lisboa e uma missa negra em Florença. Ain-
da que um romance possa não parecer a hipótese mais
óbvia para o efeito, este foi um livro pensado para es-
clarecer os portugueses sobre as origens da situação em
que vivem. A experiência do escritor diz-lhe que, em
Portugal e na Europa (na América, segundo ele, é di-
ferente), os leitores gostam de ver temas não-ficcionais
tratados pela ficção. «Achei que as pessoas estavam
confusas cm relação ao tema e utilizei este veículo,
o romance, para, procurando ser muito interessante na
história que burilei, expressar estas verdades fundamen-
tais sobre como funciona a nossa economia e a nossa
democracia.» E reafirma que, depois de lerem A Mão
do Diabo, os portugueses dificilmente se deixarão en-
ganar pelos políticos. Uma ideia caridosa, quando
o próprio defende que «nós não queremos ouvir a ver-
dade». Estaremos então preparados para ler a verdade
num romance? «Mas aí acho que é importante que
o romance a explique. Neste caso, dá uma explicação
para que as pessoas entendam os desafios que temos.»
O livro tempera a verdade crua com o sal e a pimenta
da ficção. Na nota final, o escritor refere os mais de 20
livros que leu para fundamentar as opiniões veiculadas
no romance. Apesar disso, acrescenta que há infor-
mações que não podem ser encontradas em nenhum
outro lado, como a explicação pormenorizada do que
se passa nos bastidores: «A forma como a políticaé exercida, como os negócios são feitos para beneficiar
os financiadores do partido em detrimento dos finan-
ciadores do pais, que são os contribuintes.»
Quer isto dizer que os jornalistas têm falhado na mis-
são de esclarecer os cidadãos? Falharam, sim, mas poruma boa razão: «Um jornalista, um historiador ou um
jurista pode saber que algo aconteceu mas se não tem
modo de o provar não o pode afirmar. Enquanto um ro-
mancista quando sabe que algo aconteceu usa a ficção.
Perguntam-lhe: "Mas qual é a prova?" Ele responde:
"Ah, mas isto é ficção." E possível usar a ficção para di-
zer grandes verdades. Por exemplo, Kafka, quando
escreveu O Processo, disse uma grande verdade sobre a
justiça. Nós lemos e intuímos que aquilo é verdadeiro.
É possível usar a ficção para expor a verdade de uma for-
ma que o discurso não-ficcional não consegue porque
está preso a um conjunto de convenções. Nesse sentido,
é verdade que os jornalistas fracassaram mas fracassa-
ram devido às reinas da sua profissão.»
Um romancista usa a ficção quando sabe
que algo aconteceu mas não o pode provar.Perguntam-lhe: «Qual é a prova?» Ele responde: «Ah,
mas isto é ficção.» E possível usar a ficção para expor
a verdade de uma forma que o discurso não ficcional
não consegue porque está preso a um conjunto de
convenções. Nesse sentido, os jornalistas fracassaram,
mas fracassaram devido às regras da sua profissão.
A Mão do Diabo é o sexto romance com Tomás de
Noronha. «Tenho dois tipos de romance: o histórico, que
obedece a regras mais canónicas, e o de mistério, em que
faço o jogo entre ficção e não-ficção que são os roman-
ces do Tomás de Noronha.» Regra geral, estes últimos
vendem melhor, apesar de os resultados das vendas, des-
de Fúria Divina, publicado em 2009, terem vindo a cair,
ainda que ligeiramente. A fórmula é simples: Rodrigues
dos Santos pega num tema e procura uma maneira de
o tornar interessante vestindo os factos com os fatos do
romance de mistério/policiaVde aventuras. A naciona-
lidade de Cristóvão Colombo, a existência de Deus, o
aquecimento global, o terrorismo islâmico e os segredos
do cristianismo foram submetidos ao mesmo tratamen-
to narrativo. <tA Fórmula de Deus é um romance sobre fí-
sica e matemática. A questão é como vamos pegar num
tema que pode ser mais seco e transformá-lo numa coi-
sa interessante. Esse c o desafio do escritor.» Só A Fór-
mula de Deus vendeu 187 mil exemplares em Portugal.
São estes números que lhe dão confiança para acreditar
que nem as longas passagens explicativas e didáticas de
A Mão do Diabo demoverão os leitores. Pelo contrário,
estão habituados a isso nos romances de Tomás de No-
ronha: «Ê um pouco como os romances da AgathaChristíe. No final, o Poirot junta os suspeitos.Têm aque-le formato.» Conta de seguida que um livreiro lhe disse
que estes são os únicos livros que vendem tão bem no
Dia do Pai como no Dia da Mãe, embora os homens
se interessem mais pelos diálogos - «a parte de ensaio
do romance» - e as mulheres passem à frente, à procurada parte romanesca. E se os leitores sabem que podem
contar com um determinado formato, sabem também
que podem contar com a fiabilidade da informação fac-
tual. Por muito que se esforce por tornar cativantes os
seus livros, Rodrigues dos Santos, ao contrário de Dan
Brown, com quem é frequentemente comparado, não
altera os factos: «Ele [Dan Brown\ faz o jogo da verda-
de-não verdade mas apenas ao nível da verosimilhança.
Ele altera os factos reais para se adaptarem à ficção e eu
faço o contrário: altero a ficção para que esta se adapte
aos factos reais. Não quer isto dizer que eu esteja imune
ao erro, mas quando digo uma coisa que não seja verda-
deira é por erro, não é intencional. » Uma ideia reforça-
da por Guilherme Valente, editor da Gradiva, quandodiz que «Carlos Rolhais e Jorge Dias de Deus, dois físi-
cos de inquestionável competência, afirmaram diante de
mim e publicamente não terem encontrado um único
erro científico» em A Fórmula de Deus. O escritor tam-
bém não considera que romancear ideias complexas e
teses muito debatidas corresponda a uma simplificação.
A propósito de O Último Segredo, que abordava temas
polémicos para o cristianismo, a virgindade de Maria
ou o facto de Jesus ser judeu, diz: «O livro tem mais
de 600 páginas, não simplifica assim tanto.»
No caso de José Rodrigues dos Santos, a resposta
ao desafio de tornar «interessante» um tema reside,
em grande parte, no trabalho de pesquisa. «Ê a pesquisa
que me vai ditar qual é o sentido da ficção que vou criar.
Por exemplo, quando estava a fazer a pesquisa paraA Fórmula de Dais cruzei-me com uma referenda a um
encontro que Einstein teve com Ben-Gurion {primei-ro-ministro de Israel] em 1951, em Princeton, em que fa-
laram sobre a existência de Deus, e pensei: "Eh pá! Este
é o ângulo que eu vou usar para a história ficcional."» Isto
terá a ver com a sua formação jornalística que, admite,é a principal influência no seu estilo de escrita. Admira-dor de SomersetMaugham, reconhece que somos in-fluenciados por todos os autores que lemos, mas a sua
bíblia estilística c o jornalismo. «As palavras não são umfim em si mesmo mas são um instrumento para contar
alguma coisa. O meu backgroundt o de jornalista. E os
jornalistas, como sabe, escrevem com duas funções: a de
serem compreendidos - se eu escrever uma frase e o lei-
tor não compreender, em princípio a culpa é minha — e
a de aquilo que escrevem ser interessante.» Outrosescritores falam da tortura que é o processo de escrita.
Rodrigues dos Santos desconhece essas dificuldades:
«Escrevo um texto e estou constantemente a limá-lo
c mesmo depois de o livro ser publicado há coisas queencontro que podiam ter sido mais bem trabalhadas,
mas é diferente da questão do prazer e da tortura que o
livro suscita. Para mim escrever é como respirar, faz par-te da minha vida. Enquanto um grande número de es-
critores menciona que é um período terrível, o fabrico
do livro para mim é puro prazer.»
0 ESCRITOR PREFERIDO
DA CLASSE MÉDIA
Por MIGUEL REAL
Hoje, século XXI, a literaturatambém se tornou reflexo de
uma sociedade anémica, apá-tica e individualista, pragmáticae tecnocrática, e o autor é enca-
rado mais como um ídolo social
(um star da literatura), um íco-
ne cultural, com grupo de «fãs»
no Facebook, do que como umintelectual lúcido, cuja obra e
palavra se assumiriam como
sismógrafos da realidade social
e moral da comunidade.
José Rodrigues dos Santos,com muito afinco e certamentemuita disciplina de escrita, con-
seguiu esse dificílimo estatuto de
«vedeta» da literatura construí-
do pelo mercado das grandes
superfícies das cadeias livrei-
ras internacionais. E o problemaé justamente esse, o mercado
muda, exige novas vedetas, ou-
tros tipos de romance (gótico,
pornográfico, BD, histórico...) edentro de 10 ou 20 anos, o queantes fora excelso repousaráeternamente no pó das estantes,
sem leitores. Para o mercado,o único tempo que conta é o pre-
sente, e José Rodrigues dos San-
tos é a nossa grande «vedeta» li-
terária do presente. Cada paístem a sua, como no passado ti-
vemos Ladislau Batalha, AbelBotelho com O Barão de Lavos,
Teixeira de Vasconcelos, Guerra
Junqueira com Os Simples, Fer-
reira de Castro com A Selva, Joa-
quim Paço d'Arcos com Ana
Paula, Campos Júnior com os
seus romances históricos. Ne-nhum destes autores, exclusiva-
mente pelos livros citados, tevedireito a entrar na História da
Literatura, justamente porqueo gosto erudito e histórico de
quem faz as histórias da literatu-
ra não se identifica nunca com o
gosto medíocre e infantilizado,
popularizado, da classe média.De facto, existe um público
desejoso de narrativas sentimen-
tais, catarticamente consolado-
ras de uma vida rotineira, cons-
tituído por uma classe média
urbana culta, enriquecida, masnão letrada, que busca no ro-mance (como na telenovela ou
na série televisiva) um efeito psi-
cológico de voyeur. uma aventu-
ra ou a felicidade que não viveu,
uma tragédia que não lhe acon-
teceu, a viagem a terras exóti-
cas que nunca fará, o amor ou o
sexo que nunca experimentou,a descrição da desgraça social
ou da doença individual de quenão foi acometido, a falência fi-
nanceira a que escapou ou re-
ceia ser acometido no futuro.Dito de outro modo, o roman-
ce de mercado destina-se a ser
usado (a expressão é esta: «usa-
do», não usufruído) pelo leitor
como mero entretenimento,extraindo dele, sobretudo, não
uma função estética (primeiro,último e eminente objetivo do
romance como arte), mas uma
função consolatória, identifican-
do os retratos dos personagenscom os dos seus vizinhos, os an-
tigos colegas da escola, os cole-
gas de escritório, de armazém,de fábrica, contabilizando o bem
e o mal que a vida lhes trouxecom a sua pessoal quantidadede bem ou mal social que indivi-
dualmente ganhou ou perdeu.Neste sentido, os romances
de José Rodrigues dos Santos
cruzam - com grande mestria,deve dizer-se -, duas estruturas
romanescas clássicas: uma boa
história de suspense, fundadaem enigmas atuais da existên-
cia, e elementos do maravilhoso,
pertinentes ao universo mentalde classe média atual, acrescidos
da consistência de personagens«reais», que todos nós podemosdetetar no nosso vizinho do lado.
Falta a José Rodrigues dos
Santos o desenho da universali-
dade intemporal dos sentimen-tos e das vivências e um estilo
próprio (uma maneira pessoal de
escrever a língua portuguesa)
para se tornar num grande ro-
mancista, como Agustina, Sara-
mago ou Lobo Antunes.
Foi por acaso que o jovem apresentador do noticiário
noturno da RTP se tomou uma celebridade. Em1991, quando começou a Primeira Guerra do Golfojosé
Rodrigues dos Santos, então com 26 anos, estava em di-reto. Desde esse dia, o «apresentador orelhudo» (ver pá-
gina 77 de A Mão do Diabo) é uma das figuras mais po-pulares da televisão portuguesa. A segunda vida, a de
romancista, também começou por acaso. As circuns-
tâncias da sua estreia não foram tão dramáticas, mas o
próprio ficou surpreendido quando José Manuel Men-des, presidente da Associação Portuguesa de Escrito-
res, depois de ler a sua tese de doutoramento (Crónicas
de Guerra, também publicada pela Gradiva) , lhe garan-tiu que estava ali um grande romancista em potência.«Eu olhei para ele e ri-me. Era a mesma coisa que ele
me dizer que eu era um astronauta em potência. Ri-me.Não fazia sentido. Acontece que ele manteve esta ideia
e tinha uma revista literária e pediu-me para escrever
um conto. Não tive lata de dizer que não. Então pegueinuma história que se passava em Timor, e que não ti-nha sido incluída na tese, e comecei a escrever um con-tozinho. Quando me apercebi, o conto já tinha 200 pá-ginas e acabei por publicar o meu primeiro romance,A Ilha das Trevas. E aí fiquei hooked, fiquei viciado.»
A Ilha das Trevas foi publicado pela Temas e Debates,numa coleção dirigida por Maria do Rosário Pedreira,
a editora mais conhecida do meio literário quando se
trata de descobrir novos talentos. «Um dia, o jornalista
da RTP Rui Lagartinho, meu amigo havia vários anos,
perguntou-me se não me importava de receber o José
Rodrigues dos Santos, pois ele estava a escrever um
livro que achava encaixar-se perfeitamente na [co/íção]
"FicçãoA^erdade". Disse-lhe que sim e marcámos uma
reunião em que soube quejosé Rodrigues dos Santos
adorava a coleção e, independentemente da relação
com a editora que publicava os seus outros livros
(e que, aliás, manteve), queria fazer um livro para a
"Ficção/Verdade". Falou-me do tema [a história de
Timor desde a anexação pela Indonésia em 1975 até a res-
tauração da independência em 2002] e da sua ideia de
misturar personagens fictícios aos reais, e fiquei bastan-
te entusiasmada, até porque ele me contou ter acom-
panhado como repórter vários momentos importantes
dessa história e isso me dar alguma segurança sobre o
rigor da crónica.» Maria do Rosário Pedreira pensou
que o livro se adequava à coleção que dirigia e pratica-
mente não fez alterações. A «prosa era fluente como
a de uma notícia, sem rodriguinhos nem floreados» e «o
tom era despretensioso, como o de uma reportagem».
O primeiro contacto de Guilherme Valente com a es-
crita de Rodrigues dos Santos foi mais intenso. Um dia,
ao chegar à editora, tinha em cima da secretária o origi-
nal de Crónicas de Guerra: «Pensei: "Mais um desses me-
diáticos a querer ser escritor. . ."Mas aconteceu um "mi-
lagre", isto é, o improvável: deu-me para começar logo a
ler o texto e li, sem parar, toda a parte referente à Guer-
ra Civil de Espanha.» Foi o começo de um sucesso avas-
salador que, já em 2012, atingiu o primeiro lugar do tof
de vendas da FNAC, em França, com a tradução de
A Fórmula de Deus, feito assinalável para um autor por-
tuguês. Ate na Bulgária o nome de Rodrigues dos San-
tos começa a ser conhecido. Daniela Atanasova, da Her-
mes Books, que publica autores como James Patterson
e Daniel Silva, revela que O Codex 632 e A Fórmula de
Deus - cuja tradução foi apoiada pela Direção-Geral do
Lívto e das Bibliotecas - tiveram uma excelente receção
quer por parte da crítica, quer por parte do público.
Para um autor publicado em mais de 20 países, com
mais de um milhão e meio de exemplares vendidos só
em Portugal, será que as críticas negativas são tidas em
conta ou subscreve a afirmação de Miguel Sousa Ta-
vares quando afirmou, em entrevista à LER (setembro
de 2009), que se encontrava confortavelmente senta-
do em cima de um milhão de livros vendidos? «Não
subscrevo nem dessubscrevo. Por uma questão: não te-
nho muitas críticas negativas. Você vai ler as críticas
agora em França, são espantosas. Também já tive crí-
ticas negativas no estrangeiro. São raras. Mas nas crí-
ticas negativas no estrangeiro o crítico não me conhe-
ce de parte nenhuma e portanto eu percebo que ele não
é malicioso, não é destrutivo. Ele diz que a obra tem
esta falha, eu analiso c posso dar-lhe razão. O que às
vezes acontece em Portugal é que há malícia porque as
pessoas já me conhecem.»
Vou explicar o
que são as PPPA colagem de sucessivos blocos
de informação num thrilkr que não respeita
os serviços mínimos (até o culto satânico
é despropositado) faz de A Mão do Diabo um
romance falhado. José Rodrigues dos Santos
recorre aos personagens para explicar em
pormenor - e em centenas de páginas - as
variáveis da crise. Ficamos esclarecidos.
yi Mão do Diabo é um livro didático, com muita informação
Al sobre a crise e, neste aspeto, é útil. É também um livro de
entretenimento, com uma história rebuscada repleta de per-
seguições, criptogramas, homicídios, seitas satânicas, envolvi-
mentos amorosos, etc. Enquanto literatura, mesmo a de cariz
mais popular ou comercial, falha porque esses dois blocos - o
de informação e o de entretenimento - nunca se entrelaçam
de um modo convincente. A informação sobre a crise é trans-
mitida ao leitor em intermináveis diálogos, melhor dizendo,
solilóquios em que os personagens falam não para o seu inter-
locutor ficcional (reduzido à função de ponto) mas para o leitor,
em passagens completamente despojadas de tensão dramáti-
ca. Os bons autores de thrillers e policiais recorrem a factos do
mundo real para emprestar plausibilidade à ficção. A ficção re-
tribui este empréstimo retirando a aridez aos factos e conferin-
do-lhes a força e o brilho próprios da ficção. Demasiados factos
e a ficção não se consegue autonomizar do mundo real, sendo
apenas uma forma mais irresponsável de transmitir informa-
ção; factos a menos e a ficção entra no domínio da fantasia des-
cabelada. Entrelaçar factos e ficção requer paciência e en-
genho. O mais fácil é cavar dois buracos: para um despejam-se
os factos, para o outro as invenções. É isso que acontece em
A Mão do Diabo (Gradiva). São várias as cenas em que a ação é
suspensa para ouvirmos as explicações dos personagens sobre
a crise. Da página 66 à 72, na Grécia, um turista alemão conve-
nientemente equipado com uma camisola da seleção alemã,
perora sobre a história económica da Grécia; da página 125
à 146, durante uma viagem de carro entre Lisboa e Coimbra,
o tema é a economia portuguesa, o investimento no setor não
transacionável e as PPP. Da 166 à 179, mais lições sobre o dé-
fice português. A partir da página 260, e depois de uma breve
explicação sobre a bolha imobiliária espanhola, as coisas aque-
cem: Tomás de Noronha, o herói dos livros de José Rodrigues
dos Santos (n. 1964), explica à agente espanhola da Interpol,
a curvilínea Raquel de Ia Concha, como foi cometido o crime do
século que deu origem à Segunda Grande Depressão. Começa
no crash da bolsa de 1929 e em 10 páginas trepidantes vai até
Alan Greenspan. A impaciente De Ia Concha, que confessa sen-
tir-se atraída por homens inteligentes, não aguenta de curiosi-
dade e exige que Noronha lhe conte imediatamente «o que
aconteceu depois de eles terem desreguladotudo em 1999», 0 versátil professor de História
leva mais 17 páginas a contar a emocionante
narrativa da crise. Em fuga dos vilões que os
perseguem, o português e a espanhola vão de
comboio para Barcelona. É a altura ideal paramais uma lição sobre a crise: esta tem ao todo
26 páginas. Segue-se outra viagem de comboio
de Barcelona para Florença. E o que é que acontece? Quinze pági-
nas didáticas e depois mais quinze. Eis alguns exemplos ilustrati-
vos do tom de um quinto do «romance»: «O valor da reforma dos
Gregos foi fixado em noventa e seis por cento do seu salário, mais
do dobro da proporção alemã»; «A verdade é que uma fatia cres-
cente das receitas e das despesas públicas foi colocada fora do
Orçamento do Estado»; «Claro que os bens não transacionáveis
são importantes»; «Vou explicar-lhe o que são as PPP». Isto são
os personagens a falar. Se lhes acrescentarmos mais algumas pá-
ginas em que a informação é devidamente inserida na narrativa
(a cena quase no final no TPI) estas cem páginas são tudo o quelivro tem para oferecer de verdadeiramente útil. O problema é
que isto é um romance e tem mais 400 páginas. De um thríller,
seja qual for o tema, espera-se que cumpra certos serviços míni-
mos: manter o leitor na expectativa do que vai acontecer a seguiré o mais importante. Isto consegue-se normalmente através de
um mistério (descobrir o assassino ou a revelação de um segre-do) que só é desvendado no final. Na tragédia grega chama-se
a esse momento anagnórise. Para o leitor atento, a anagnórise de
A Mão do Diabo acontece ainda nas primeiras cem páginas. O sus-
pense morre quase antes de nascer. Outra forma de manter o lei-
tor interessado no que vai acontecer a seguir é criar laços de em-
patia e de identificação com os personagens. Mas os personagensde Rodrigues dos Santos, que neste livro parecem existir apenas
para ouvir lições sobre a crise ou para elas próprias sinalizarem
os efeitos da crise, são tão mal construídos que o seu destino é
totalmente irrelevante para o leitor. Alexandre, um desempre-
gado que Noronha conhece na fila do Centro de Emprego e a
quem o professor dá boleia até Coimbra, desaparece depois de
cumprir a sua função de ouvir as longas explicações sobre a cri-
se. O arqueólogo grego, Markopolou, surge no início da tramamas os seus serviços são imediatamente dispensados. Raquel de
Ia Concha, a fogosa espanhola, tão depressa está a chorar pela
morte de um amigo íntimo como, poucos minutos depois, está
a seduzir Noronha, como qualquer/ewme/oío/e Não se cria o mí-
nimo de empatia com os personagens porque são inexistentes,
irreais, inverosímeis. O leitor aceita tacitamente que os heróis con-
sigam escapar das situações mais delicadas, que tenham uma in-
teligência acima da média, que sejam capazes de proezas físicas
inacreditáveis. Mas para que se aceite esse lado fantástico é ne-
cessário carregar alguns traços de humanidade que equilibrem a
representação. Foi isso que Stieg Larsson fez de forma notável na
sua trilogia Millennium, em que importantes assu ntos históricos,
sociais e económicos são abordados sem que tenhamos a sensa-
ção de nos estar a ser despejado para cima um camião de infor-
mação. Os protagonistas, Mikael Blomkvist e Lisbeth Salander,
que têm algumas qualidades extraordinárias e sobre-humanas,têm também qualidades e vulnerabilidades humanas, o que põe
o leitor naquela espécie de encantamento infantil a torcer pelo
sucesso deles contra os maus da fita. Em nenhum momento
Rodrigues dos Santos consegue libertar os seus personagense deixar que se aproximem dos leitores.
Nada no enredo está tão fora de sítio como o culto satânico in-
serido na trama de forma despropositada e gratuita. O leitor pode
pensar que o tal culto está relacionado com a crise mas a única
coisa em comum é que o vilão da história é líder da seita de ado-
radores de Satanás, como poderia ser, com igual impacto narra-
tivo, presidente do Rancho Folclórico da Barra Cheia. (Claro queos membros de um rancho não dariam uma sobrecapa tão su-
gestiva e é duvidoso que se envolvam em rituais de natureza se-
xual.) O desfecho chega a ser penoso na sua inverosimilhançae atinge o paroxismo quando o vilão, suspeito de ter ordenado
vários homicídios, rodeado de polícias, mantém com estes uma
conversa sem retirar o capuz de adorador do diabo, até ao mo-mento em que Tomás de Noronha revela a nada surpreendenteidentidade do mestre de cerimónias.
Esta inépcia na arquitetura narrativa e na construção dos per-
sonagens é tão evidente e censurável num livro deste género queas deficiências no estilo até merecem uma amnistia. Algumasnotas: utilizar a expressão «entranhas húmidas e sequiosas» na
descrição de uma cena de sexo não é uma boa opção; «as cha-
mas trémulas a bambolearem como serpentes hipnotizadas»;«candeeiros de época que bordejavam a serpenteante Prome-
nade des Anglais [...] os reflexos a cintilarem nas águas inquietas
[...] como chamas bamboleantes» (p. 11); ou «Os vários fios de
fumo suave erguiam-se como serpentes bamboleantes» (p. 109)revelam um considerável défice descritivo, embora a insistência
na fórmula tenha efeitos cómicos que o leitor agradece; as rimas,
sobretudo se vierem aos pares, revelam falta de cuidado: «A mãe
e a sua velhice não lhe pareciam o assunto mais empolgantepara discutir com uma mulher tão interessante e as circunstân-
cias tornavam desapropriada qualquer iniciativa mais arrojada»;a descrição de uma cena de sexo entre um português e uma
espanhola não devia ser um argumento contra o iberismo: «Ro-
laram pelo sofá até ao tapete, sôfregos, gulosos, na voracidade
do prazer, o calor de um a incendiar o outro, as línguas ardentes
a entaramelarem-se, a lutarem, a saborearem-se, melancolia
portuguesa e paixão espanhola, mar lusitano e fogo castelhano,veludo e ferro, sal e sangue, olá e hola» (p. 327).
É a sobreposição, em vez do cruzamento, de blocos de informa-
ção factual com ação estapafúrdia que faz de A Mão do Diabo um
romance falhado. Apresenta-se como romance mas parece um ar-
gumento de Indiana Jones escrito por Medina Carreira. Qualquercoisa menos literatura. Bruno Vieira Amaral
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