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As viagens dos arquitectos "O arquitecto não é um turista acidental" Os arquitectos não são viajantes como os outros. Mesmo quando não se deslocam em trabalho, o seu olhar sobre o mundo em volta é diferente, mais atento às casas, ao pequeno detalhe das construções e ao seu enquadramento na paisagem. A pretexto do ciclo Viagens, a decorrer no Porto, Sérgio C. Andrade questionou alguns arquitectos sobre o tema. E eles aceitaram partilhar memórias e mesmo alguns slides de algumas viagens inesquecíveis A viagem é uma componente essencial da vida e da profissão do arquitecto. Dizer isto é um lugar-comum que não precisa de demonstração. Mas como é que os arquitectos viajam, como organizam os seus percursos, como olham aquilo que vêem quando demandam lugares desconhecidos? Foi à procura deste testemunho que a Circo de Ideias, uma associação portuense fundada por quatro jovens arquitectos, decidiu lançar um ciclo de conferências e de edições sobre Viagens de arquitectos. "Partilhar as imagens e as histórias dos lugares que marcaram o seu percurso numa conferência e num livro de bolso" foi o desafio lançado pela associação a um primeiro grupo de convidados. A série começou em Outubro, com uma adesão inesperada, que fez transbordar pelos corredores o velho palacete Pinto Leite, no Porto, com uma plateia principalmente formada por jovens estudantes de arquitectura desejosos de ouvir os testemunhos de Álvaro Siza, Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez sobre a "viagem mítica" que estes e outros amigos realizaram a Marrocos, no Verão de 1967. Surpreendidos pela pequena multidão, Alves Costa e Fernandez - Siza não pôde comparecer, por razões familiares - viram-se na contingência de transformar o que tinham imaginado como "apenas uma reunião de amigos" numa partilha alargada dos slides e das impressões dessa viagem ao Norte de África, tantas vezes citada nos meios da arquitectura da Escola do Porto. A sessão, que, apesar de tudo, manteve o figurino informal, afectivo e memorialista, ficou também registada num livro de bolso, que é uma espécie de diaporama dessa viagem, e que documenta a experiência do olhar do arquitecto sobre o mundo de que vai à descoberta. Mesmo quando esse olhar deixa de lado o tom teórico e ensaístico e privilegia a vivência pessoal e afectiva. A referida viagem a Marrocos, realizada por um grupo de sete amigos com tendas de campismo acomodados num Renault 4L e num Fiat 850 (o primeiro carro de Álvaro Siza, que, a certa altura, fraquejou na subida do monte Atlas), foi recordada por Alexandre Alves Costa como "uma quase obsessiva procura de explicações

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As viagens dos arquitectos

"O arquitectonão é um turistaacidental"Os arquitectos não são viajantes como os outros.Mesmo quando não se deslocam em trabalho, oseu olhar sobre o mundo em volta é diferente,mais atento às casas, ao pequeno detalhe das

construções e ao seu enquadramento na paisagem.A pretexto do ciclo Viagens, a decorrer no Porto,Sérgio C. Andrade questionou alguns arquitectossobre o tema. E eles aceitaram partilhar memórias e

mesmo alguns slides de algumas viagens inesquecíveis

A viagem é uma componenteessencial da vida e da profissãodo arquitecto. Dizer isto é umlugar-comum que não precisade demonstração. Mas como é

que os arquitectos viajam, comoorganizam os seus percursos, comoolham aquilo que vêem quandodemandam lugares desconhecidos?

Foi à procura deste testemunho

que a Circo de Ideias, umaassociação portuense fundada porquatro jovens arquitectos, decidiulançar um ciclo de conferênciase de edições sobre Viagens de

arquitectos. "Partilhar as imagense as histórias dos lugares quemarcaram o seu percurso numaconferência e num livro debolso" foi o desafio lançado pelaassociação a um primeiro grupode convidados. A série começouem Outubro, com uma adesão

inesperada, que fez transbordarpelos corredores o velho palacetePinto Leite, no Porto, com umaplateia principalmente formada porjovens estudantes de arquitecturadesejosos de ouvir os testemunhosde Álvaro Siza, Alexandre AlvesCosta e Sérgio Fernandez sobre a

"viagem mítica" que estes e outrosamigos realizaram a Marrocos, noVerão de 1967.

Surpreendidos pela pequenamultidão, Alves Costa e Fernandez- Siza não pôde comparecer, porrazões familiares - viram-se nacontingência de transformar o quetinham imaginado como "apenasuma reunião de amigos" numapartilha alargada dos slides e das

impressões dessa viagem ao Nortede África, tantas vezes citada nosmeios da arquitectura da Escola doPorto.

A sessão, que, apesar de tudo,manteve o figurino informal,afectivo e memorialista, ficoutambém registada num livrode bolso, que é uma espécie de

diaporama dessa viagem, e quedocumenta a experiência do olhardo arquitecto sobre o mundode que vai à descoberta. Mesmoquando esse olhar deixa de lado otom teórico e ensaístico e privilegiaa vivência pessoal e afectiva.

A referida viagem a Marrocos,realizada por um grupo de sete

amigos com tendas de campismoacomodados num Renault 4L enum Fiat 850 (o primeiro carro deÁlvaro Siza, que, a certa altura,fraquejou na subida do monteAtlas), foi recordada por AlexandreAlves Costa como "uma quaseobsessiva procura de explicações

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sobre o verdadeiro sentido dos

homens, das mulheres, dosmeninos, das arquitecturas". JáÁlvaro Siza preferiu realçar "aideia mítica de felicidade", vividanestes tempos em que os jovensarquitectos não conheciam aindaa ansiedade, e podiam olharcalmamente as praias de pedrinhasnegras e areias "cor de Gauguin".

Pelo ciclo Viagens passaramjá também Jorge Figueira, arecordar a ida a Macau, este ano,na companhia do realizadorJosé Maçãs de Carvalho, para a

realização de um documentáriosobre a exposição Manuel Vicente:

Trama e Emoção. E Paula Santos,que evocou igualmente uma viagemde grupo, em 1991, a Chandigarh, a

cidade projectada por Le Corbusierno noroeste da índia.

Ainda por agendar está otestemunho de Eduardo Souto deMoura sobre a viagem que realizouno ano passado ao Irão, onde foirecolher informação/inspiraçãopara o desenvolvimento dumprojecto para um concurso quetinha ganho num país árabe.

A tradiçãoáoGrandTourVoltemos ao princípio. Por que é

que as viagens são importantespara os arquitectos, e como é queeles viajam?

À margem deste ciclo, inquirimosdirectamente alguns destes eoutros arquitectos sobre as suas

experiências pessoais. Marta Pedro,a vencedora da última edição doPrémio Távora (precisamentededicado ao tema da viagem),diz que ela é "um instrumentobasilar na formação do arquitecto",porque lhe dá "bagagem histórica,cultural e até emocional".

Alexandre Alves Costa notaque, mesmo podendo "ser apenasum olhar da nossa janela sobrea cidade", a viagem "acrescentamemórias e leituras", que o

arquitecto irá utilizar, mais cedo oumais tarde, no seu trabalho.

Já Álvaro Siza regressa à

experiência das suas primeirasviagens. Por exemplo, a quefez, ainda estudante, a Paris,no final dos anos 50. "Fomosver a exposição do Picasso e a

arquitectura da cidade". E recordao papel histórico de FernandoTávora nessa época. "Quando eleia, era sempre o guia. Ensinava-noso que estávamos a ver, e isso erafundamental", diz.

Fernando Távora integrou, deresto, a prática da viagem comoparte da didáctica própria daEscola do Porto. "A viagem foialiada ao exercício do desenhocomo instrumento analítico própriodos arquitectos, uma especificidadedo nosso ensino. Acredito, noentanto, que abrindo portas maisnaturalmente à aquisição de umacultura arquitectónica mais práticae menos literária, ela não é marcaexclusiva da sua arquitectura", dizAlexandre Alves Costa.

Domingos Tavares, ex-presidente da Faculdade deArquitectura da Universidadedo Porto, admite que as viagensrealizadas pelos arquitectosportuenses proporcionaram umaabertura ao mundo, que se tornou

especialmente importante perante"a forte marca identitária dacidade, um pouco fechada nos seus

próprios valores".Todos os "viajantes" inquiridos

pela Fugas relembram a tradiçãoda viagem desde os temposdo chamado Grand Tour, queos arquitectos (e não só) dosséculos XVIII-XIX faziam aos

lugares da Antiguidade grega eromana. "Esta longa viagem de

cartografia definida determinavaa visita a monumentos e lugaresda antiguidade clássica, do

renascimento, do barroco, paraos estudar em absoluto detalhe,apreendendo espaços, lugares e

paisagens, reinterpretando-os",diz Marta Pedro. Esta arquitectaresponde a partir de Tóquio, cidadeonde está radicada desde 2005, nopaís onde concretizou o projectoque lhe valeria a bolsa do Prémio

Távora 2011. A Song to Heaven ouo Japão Sublime em Frank LloydWright: Da viagem de 1905 ao legadona arquitectura moderna japonesaé o título do trabalho-viagemrealizado pela jovem arquitectade Coimbra, que foi no encalçoda aventura oriental do grandearquitecto norte-americano.

Referindo-se também ao GrandTour, Eduardo Souto de Mouranota que ele se fazia normalmentedo Norte para o Sul. "A arquitecturamoderna nasce praticamentedo percurso crónico desses

arquitectos, que ficaram marcadospelo Sul." E cita [Ame] Jacobsen,Alvar Aalto, Le Corbusier... Mas nãodeixa de ser curioso - acrescentao Prémio Pritzker 2011 e repetetambém Marta Pedro - que muitosarquitectos portugueses devedoresda lição do modernismo tenhamido depois beber essas influênciasdo Sul às obras dos arquitectosdo Norte, que a certa alturadescobriram - como nos descreve,por exemplo, a experiência daviagem de Domingos Tavares aoNorte da Europa (ver caixa).

É bem conhecida, a propósito, ainfluência que Álvaro Siza recebeudo finlandês Alvar Aalto... Mas,observa Souto de Moura, a obrado primeiro Pritzker portuguêsacabaria também por ser devedorada sua própria experiência do Sul."Lembro-me do entusiasmo dele,quando eu estava lá no escritório;chegava das suas viagens e dizia-nos: 'É fundamental ir ao Egipto- onde ele tinha ido com o Távora

-, porque é a partir dali, e não daGrécia, que tudo se explica'".

Souto de Moura, de resto, realçaque Távora fizera o seu Grand Tour"ao contrário": "Ele não foi só

para a Grécia, para Roma e Paris,como faziam os mestres. Foi parao Japão e para os Estados Unidos,e pressentiu que o futuro passavamais por aí...".

Talvez também por isso, o autorda Casa das Histórias Paula Regodecidiu fazer, este ano, uma viagemao Irão, para perceber melhor a

arquitectura árabe.

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Regressoao OrienteE Manuel Graça Dias e JorgeFigueira regressaram ao Oriente,entre Macau e o Maputo, ambostendo Manuel Vicente comodenominador comum. Figueiraesteve este ano no ex-territórioportuguês na China, para trabalharnum documentário, com José

Maçãs de Carvalho, sobre a obra do

arquitecto que projectou o HotelMandarim e o edifício do Governoe da Televisão de Macau. "Foi umaviagem sempre em espanto comMacau antigo e pós-moderno",escreve Jorge Figueira no livrodo ciclo Viagens, onde lê com ummisto de distância e de fascínio a

"sucata de luxo" que faz o contrasteentre as "gaiolas" suburbanas davelha Macau e os hotéis do século

XXI, na nova "Cotai Strip", que jáultrapassaram Las Vegas, à mesmavelocidade com que a China pareceestar a passar a América.

"O arquitecto não é um turistaacidental", diz Jorge Figueira."Estamos sempre em acção; temosalgo de cientistas loucos, sempre aolhar para cima, para as cornijas,para as coberturas... Às vezes,tropeçamos e caímos. Mas nadareduz este nosso apetite pelo olhar- é uma trabalheira", acrescentao professor da Universidade deCoimbra.

Manuel Graça Dias diz que o

arquitecto viaja sempre disponívelpara a surpresa, e desloca-se na"quarta dimensão", que se dizser indispensável à arquitectura- o tempo. "É o tempo que nos

é necessário para percorrer os

espaços, subir, descer, ver maisde perto e assim entender umpormenor específico que só umadeterminada espacialidade nos

pode produzir", diz Graça Dias,mesmo na véspera da sua partidapara Maputo. ¦»

arquitectosà voltado MundoAlguns dos nomes maiores daEscola do Porto e arquitectos deoutras gerações respondem a duas

perguntas da Fugas.1. Qual foi a viagem da sua vida,

do ponto de vista profissional?2. Qual é o sítio, ou o projecto/

edifício arquitectónico que lhefalta, e que quer muito conhecer?

AlexandreAlves Costa(n. Porto, 1939)1. Todas as viagens tiveramimportância. Mas não tenho dúvidas

que aquelas que me marcarammais do ponto de vista profissional,como docente e como arquitectoprojectista, foram as que realizei emPortugal, com o objectivo de recolherelementos para uma "reinventada"História da Arquitectura Portuguesa,que, durante muitos anos, ministreina Escola. Foram viagens de estudo,no verdadeiro sentido da palavra,acompanhadas de um desejo duplode conhecer e reconhecer Portugale a sua identidade própria. Percebi asua utilidade prática, no meu próprioexercício projectual, quando fui,como sempre é necessário, obrigadoa interpretar a realidade antes de atransformar.

2. Todos os que ainda nãovisitei constituirão indispensáveiscontributos para o enriquecimentoda minha cultura arquitectónica. E,além disso, quero também revisitartodos os que visitei. Existirão semprenovas leituras. Leremos sempreos mesmos romances, os mesmos

poemas e reveremos sempre osmesmos filmes.

Álvaro Siza(n. Matosinhos, 1933)1. Do ponto de vista afectivo, a

viagem que fizemos a Marrocos, em1967, é aquela que mais recordo.Foi quase uma viagem mítica - e

isso vê-se no livro [editado pelaCirco de Ideias]. Foi uma maravilha,que nunca mais passa. Mas elafoi também importantíssima [naperspectiva da arquitectura] parapercebermos as relações entreo Norte de África e a PenínsulaIbérica. E também o Corbusier. Fiz

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muitas outras viagens importantes:à Grécia, com o [Fernando] Távorae o Alexandre [Alves Costa]. Umadas primeiras viagens que fiz foi aParis, ainda no tempo da Escola [deBelas Artes do Porto], com o apoioda Gulbenkian. Outra importantefoi à Finlândia, à descoberta da

importância do Alvar Aalto paraa arquitectura contemporânea.Além disso [as viagens], davam

origem a contactos que ficavam,com gente dos vários países. Foi-seestabelecendo uma rede, não só deinfluências mas também de amizade.

2. Faltam-me muitas. Eu queriair a todos os sítios. Lembro-me logode um colega que sofria muito enão parava de viajar. Ele dizia: "Omundo é enorme e nós não podemosperder tempo; temos de aproveitartudo". Eu não tenho essa pretensão,mas falta-me ver muita coisa. Não

conheço África. Estive uma vez emAngola, uns dias, em Luanda e emBenguela. Mas não conheço nada.E tenho muita pena de não ter idoainda a Chandigarh [na índia]. OSouto de Moura já lá foi duas vezes,e eu estava convidado para ir,também. Mas é uma viagem muitodura, e eu tive medo, por causa dosmeus problemas na coluna. Já fizuma viagem fantástica à índia: Goa,Damão, Div e Deli. Nessa viagem,queríamos ir a Chandigarh. Masestava em guerra, e não pudemosir. Sinto isso como uma falta. Mashá outros sítios que me faltam.Nunca fui a Brasília - e isto é quaseridículo; além do mais, acho quetenho a obrigação de ir. Quando fuiao Brasil, havia sempre uma obraou um seminário, e acabava por não

conseguir ir lá.

E há outros sítios: o Monte Athos,na Grécia - uma viagem que marcoumuito o Corbusier; ele fez muitosdesenhos lá. Quando fomos à Grécia,queríamos lá ir, mas as mulheres nãopodiam entrar. Tentámos negociarcom as nossas mulheres, dando-lhescomo alternativa uma praia quehavia ali perto. Mas a votação foinegativa: "Ou vamos todos, ou nãovai ninguém".

Domingos Tavares(n. Ovar, 1939)1. Há uma espécie de viagem de vício:é a primeira que fiz à Finlândia,em 1972, em cima da notícia da

importância dos arquitectos nórdicoscomo uma referência da arquitecturamoderna, numa perspectiva comque a gente simpatizava. Estava aacabar o curso, a confrontar-mecom a sugestão dos colegas maisvelhos sobre o que estava a dar. Essa

viagem levou-me à descoberta. E o

que foi particularmente interessantefoi ter-se tratado de uma viagem enão da ida a um sítio. O objectivoera a Finlândia e o Alvar Aalto.Mas, pelo caminho, descobri o[Willem] Dudok, em Amesterdão, e

o Pieter Oud, em Roterdão. Fiqueisurpreendido, porque não era aquiloque eu ia ver. Mas foi aquilo que se

me acrescentou. A mesma coisa

aconteceu, depois, na Dinamarca.Não só pelo contacto com as coisas

que para nós eram desconhecidas,ao tempo, mas pelo ambiente geralda construção das cidades, que

eram modeladas por um desenho

que nós reconhecemos, hoje, comoo desenho nórdico. Esta viagem, se

calhar por ter sido a primeira, teve

essa dupla dimensão: conheceralguma coisa de concreto, massimultaneamente ter descobertocoisas muito para além daquilo queimaginávamos. 2. É o palácio de

Potala, o grande convento no Tibetechinês, aquela construção brancasobre a rocha. Há aqui também algode mítico: a imagem dos castelos, areferência ao Porto, por exemplo,quando nos confrontamos com oedifício do bispo sobre a Ribeira. Estemodelo de encarar a transformaçãodo território através de uma formapesadíssima, brutal, e que depoisse mostra estimulante. Vemos nosfilmes, em fotografias, uma coisa

com aquele poder extraordinário. Ehá a componente exótica - ser algodo outro lado do mundo, e onde

provavelmente não é possível ir.

EduardoSouto de Moura(n. Porto, 1952)1. 0 sítio que mais me marcou? Talvezo Machu Picchu [no Peru]. Primeiro

que tudo, é o próprio sítio que é

mágico. Há o plano, a distribuiçãoda cidade com o alinhamento deseixos sagrados, a topografia. Depois,a própria arquitectura e o detalhe.É tudo bom! É uma espécie de

esgotamento: das possibilidades do

território, da relação com o cosmos,com os montes e os vales sagrados,até ao detalhe de uma pedra torta,que é aproveitada pelo arquitecto. É

o exemplo mais coerente e que maisme marcou.

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[No ciclo Viagens] vou falar sobreo Irão, porque ganhei um concursonum país do Médio Oriente, antesdesta crise árabe, e, como tinha quedesenvolver o projecto, precisava de

aprofundar bastante a arquitecturaárabe, que só conhecia mais oumenos: ajordânia, a Síria... Mas

percebi que a base da arquitecturaeuropeia vem da Pérsia. Percebilá a base das mesquitas: no Verão,porque é muito quente, eles vão parabaixo, e as estruturas são góticas.E li - não sei se é verdade - queo [Filippo] Brunelleschi, quandoestava aflito para fechar a cúpula dacatedral de Florença, recorreu aos

persas.2. Estou curioso por ver um

edifício do Mies [van der Rohe] emToronto. É praticamente a única obradele que me falta ver - um edifício deescritórios e habitação. E vou fazeruma viagem à Turquia, na Páscoa.Não de trabalho, mas para ver o queos gregos fizeram lá. E estou tambémcurioso por ir a Copenhaga ver umarquitecto de que gosto muito, o

Jacobsen, e também o Jorn Utzon,que fez a Ópera de Sydney.

Jorge Figueira(n. Vila Real, 1965)1. A viagem que mais me marcouprofissionalmente foi a que fiz a Los

Angeles e a Chicago, em 2004. Foiuma espécie de "Route 66", mas deavião. A América tem sempre esta

questão de, ao mesmo tempo estarmuito presente no nosso quotidianoe ser muito estranha, com muitaopacidade, algo que é difícil de

compreender. Foi fantástico,em Los Angeles, descobrir que é

possível, mesmo em Hollywood,em Sunset Boulevard e em SantaMonica, ter arquitectura modernistamuitíssimo interessante. É ir paraum sítio que é conhecido comosendo o território áofake, do

plástico, do artificial, e descobrir

arquitecturas feitas pelos Charles e

Ray Eames, pelo Rudolph Schindler,pelo Richard Neutra e tambémpelo Frank Lloyd Wright, além dasnovas gerações, o Frank Gehry, oatelier Morphosis... E redescobrirLos Angeles, também, como umsítio de arquitectura erudita e não

apenas da Disneylândia. E, depois,o contraponto que é Chicago,uma cidade erudita, amada pelosarquitectos, que tem, no final doséculo XIX, o episódio conhecido

que é a Escola de Chicago, depois doincêndio de 1871 - a reconstruçãodo centro histórico por arquitectose engenheiros, rapidamente, coma invenção do arranha-céus. É

uma cidade muito amada. 0 FrankLloyd Wright trabalha aí, e o Miestambém aparece aí, longamente. Foifascinante conhecer estes dois pólos:uma América mais comercial, Los

Angeles, e uma América mais eruditae europeizada, Chicago, que mepermitiram compreender e alargarmuito a minha visão do mundo.

2. Talvez pudesse dizer Tóquio.Nós, arquitectos, gostamos muitode urbanidade e densidade, decruzamento de transportes.E Tóquio, pelas imagens quevemos, é o grande cruzamentodessa urbanidade. Mas também

gostava de voltar à Grécia. Estivena Acrópole, no meu primeiro anode Arquitectura, em 1986, com umamigo. É quase como se lá tivesseestado noutra vida. Gostava muitode voltar a Atenas e de visitar aAcrópole. O sítio onde eu maisgostaria agora de ir é um sítio onde

já fui, mas de que guardo umamemória muito distanciada.

ManuelGraça Dias

(n. Lisboa, 1953)1. A viagem mais importante daminha vida foi, talvez, a que fiz a

Macau, em Janeiro de 1978, com o

[arquitecto] Manuel Vicente. Foiuma escolha: fui de propósito paratrabalhar com o Manuel Vicente,para completar a minha formaçãocom ele. Tinha acabado o cursonesse ano. Estive lá seis meses, numaprimeira fase. Depois, regresseiem 1979, e estive lá mais de umano. Era a viagem para um lugarexótico. O Manuel Vicente teve tantaimportância como o sítio. Foi comele que aprendi a ver o sítio. Masacho que também lhe devolvi o meuolhar. Foi uma experiência muitoformativa.

2. Eu gostaria de rever muita

coisa. Mas não sinto grande lacunade nenhum sítio em especial. Se

me dessem a escolher, escolheriacertamente visitar Machu Picchu. Até

porque os meus amigos, o EduardoSouto de Moura e o Carrilho da

Graça, por exemplo, disseram-me

que os impressionou. Mas, para asemana [segunda de Dezembro], vouregressar a Maputo, em trabalho.Vivi lá dez anos (1960-70), e nãovoltei desde então. Ao longo deste

tempo todo, fui acumulando acuriosidade de lá voltar. Até porque,dizem, a cidade não sofreu grandesalterações, como aconteceu emLuanda. É, por isso, uma viagem queeu sempre fantasiei, mas nunca sobuma perspectiva turística.

MartaNavarro Pedro(n. Coimbra, 1980)

1. Tenho tido a oportunidade de fazerviagens extraordinárias no Japão.No entanto, é justamente a viagemque fiz este ano, no âmbito doPrémio Távora, a mais signifícante.Este percurso, no trilho da viageminiciática que Frank Lloyd Wrightfez ao Japão em 1905, percorreuos lugares mais significativos da

arquitectura tradicional japonesa,visitados pelo arquitecto americanoe documentados por ele numálbum de fotografias - objectoinstigador da minha proposta de

viagem: a obra por ele construída e

preservada, como a magnífica Casa

Yamamura, em Kobe, e ainda o seu

legado na arquitectura moderna

japonesa. Nela confirmaram-sevalores fundamentais e conceitos

espaciais onde está sempre presenteo Belo como condição imperativa.A esta viagem não esteve alheiaa descoberta de outros lugares.Foi o caso do détour magníficoàs ilhas do mar interior do Japão,nomeadamente Naoshima e

Teshima, onde verdadeiramente a

arte e a arquitectura se fundem e

parecem conspirar com a natureza.É este o palco de manifestações dearte e arquitectura mais improváveis,onde a topografia é desafiada e adescoberta do espaço se faz emregistos puramente sensoriais e, porisso, absolutamente perturbadores.

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No bom sentido. A recente bolha debetão do Museu de Arte de Teshimado arquitecto Ryu Nishizawa, quealberga a quase esotérica instalaçãode Rei Naito, com gotas de águaque rolam pelo chão e onde oselementos naturais são convocadosa participar através de duas enormesaberturas rasgadas na superfície,cria uma experiência de fragilidadedesarmante. A sinceridade detodos estes elementos provoca umavertigem na alma, e é então que se

percebe que se atingiu uma formamuito elevada de arquitectura.

2. Muitos, imensos mesmo.No entanto, no actual contextosociocultural, económico e de

tremenda aceleração do tempo,tenho uma profundíssima vontadede conhecer melhor a China. Apesarde já ter visitado cidades comoXangai, Hong Kong ou Macau, sinto anecessidade premente de apreenderas diversas culturas do país no seucontexto histórico e observar inloco as mutações profundas queatravessa. O mundo está a ser

açambarcado pelo elevadíssimo

poder económico da China, e isso

reflecte-se na prática construtiva e

arquitectónica. Cidades de milhõesde habitantes são planeadas em

poucos meses e construídas empouquíssimo tempo sem referênciasculturais locais. Há um crescimento

desenfreado e uma velocidade emarquitectura como nunca se viu nahistória. Interessa-me perceber ouconhecer alguns desses mecanismos,o que está concretamente a ser feito e

as reais necessidades e adequação demeios. (...) O tema da velocidade emarquitectura é um dos meus pólos deinteresse. E, na Ásia, tudo acontecede forma acelerada. Apetece-mecontinuar o meu Grana Tour pelaÁsia.

Os depoimentos de Alexandre AlvesCosta e Marta Navarro Pedro foramfeitos por escrito, os restantes foramgravados.

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1. Obra de Alvar Aalto, foto deDomingos Tavares. 2. SantoAndré, Beja, foto de AlexandreAlves Costa. 3. Machu Picchu,uma das viagens de Souto deMoura. 4. Biblioteca do TemploChion-in em Tóquio, foto deMarta Pedro, 2011. 5. ManuelGraça Dias (3.° da dir.) comManuel Vicente (I.° da dir.)em Macau, 1981. 6. Chicago,foto de Jorge Figueira, 2011. 7

Marrocos, 1967, a viagem deSiza e amigos

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Da esquerda para a direita:Alexandre Alves Costa,Sérgio Fernandez, JoséGrade, Alcino Soutinho,Fernando Távora e ÁlvaroSiza em visita à Acrópolede Atenas, 1976

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