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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
ESTUDOS DA SUBJETIVIDADE
LAURA LAMAS MARTINS GONALVES BENEVIDES
A FUNO DE PUBLICIZAO DO ACOMPANHAMENTOTERAPUTICO NA CLNICA:O contexto, o texto e o foratexto do AT
Mestrado em Psicologia
Orientadora: Prof. Dra. REGINA DUARTE BENEVIDES DE BARROS
Niteri2007
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LAURA LAMAS MARTINS GONALVES BENEVIDES
A FUNO DE PUBLICIZAO DO ACOMPANHAMENTO TERAPUTICO NACLNICA:
O contexto, o texto e o foratexto do AT
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao emPsicologia do Departamento de Psicologia da UniversidadeFederal Fluminense, como requisito parcial para a obtenodo ttulo de Mestre em Psicologia.
Orientadora: Prof. Dra. REGINA DUARTE BENEVIDES DE BARROS
Niteri2007
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LAURA LAMAS MARTINS GONALVES BENEVIDES
A FUNO DE PUBLICIZAO DO ACOMPANHAMENTO TERAPUTICO NACLNICA:
O contexto, o texto e o foratexto do AT
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao emPsicologia do Departamento de Psicologia da UniversidadeFederal Fluminense, como requisito parcial para a obtenodo ttulo de Mestre em Psicologia.
Aprovada em agosto de 2007.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________Profa. Dra. REGINA BENEVIDES DE BARROS - Orientadora
UFF
____________________________________________________Prof. Dr. EDUARDO PASSOS
UFF
_____________________________________________________Profa. Dra. HELIANA DE BARROS CONDE RODRIGUES
UERJ
_____________________________________________________Profa. Dra. ANALICE DE LIMA PALOMBINI
UFRGS
Niteri2007
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AGRADECIMENTOS
Ao Programa de Mestrado, pelo exerccio coletivo de construo do conhecimento e peloempenho em garantir uma Universidade de fato pblica e de qualidade.
A Regina Benevides de Barros, pela cumplicidade, cuidado e carinho no processo depesquisa, e por ter me recebido sempre de braos abertos, desde a minha insero no grupo doProjeto de Acompanhamento Teraputico na UFF.
A Analice Palombini, professora e amiga, pela sinceridade, simplicidade e propriedadecom que vem ensinando a fazer da produo de sade e de conhecimento um processo clnico-tico-poltico.
Ao professor Eduardo Passos, pelas intervenes crtico-clnicas sempre precisas e portudo que, junto com Regina, tem ensinado sobre a prtica clnica.
A professora Heliana Conde, pela generosidade e preciso na qualificao desta pesquisa.Ao professor Luis Antnio Baptista, pela acolhida na UFF antes mesmo de meu ingresso
no Programa de Mestrado e por todas as provocaes ao pensamento.Aos colegas, principalmente Selma do Rosrio, Andr Rossi, Jlio Csar Pinto e Fabiana
Lopes da Cunha, pela amizade e parceria.A Rita, funcionria do Programa, pela ajuda com as burocracias do processo.A Capes (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior), pela bolsa.Aos ats do projeto UFF, que me acolheram com carinho e alegria, em especial a Isabela
Coutrinho, hoje uma grande amiga, colega e supervisora de AT.Aos integrantes do Projeto AT da UFRGS, em especial A Krol Veiga Cabral e Mrcio
Belloc.A todos aqueles que responderam aos meus contatos por email e que toparam conversar
sobre suas experincias de AT, em especial a Maurcio Porto e Deborah Sereno.A Mariana Raymundo, minha amiga de f e irm camarada, pela fora para que eu
escrevesse um projeto de Mestrado e por todo carinho e parceria nos mais de 10 anos de amizade.A Fernanda Bocco, pelo incentivo para que eu conhecesse o Programa de Mestrado da
Psicologia da UFF e por compartilhar as experincias sempre com tanta doura.A Ana Guedes e Ana Clara, amigas e cmplices de momentos de descontrao e
musicalidade ao longo do processo de escrita.A Eliana Reis, por me ajudar a consistir nos meus desejos e a descomplicar a vida.Aos meus pais, por todo amor e apoio que tm sempre me dado e pelos caminhos que tm
me ensinado.Ao meu tio Marcelo Lamas, pelo computador, sem qual tudo teria sido infinitamente mais
difcil.E principalmente a Tadeu de Paula Souza, pelo incentivo, carinho, pacincia e
cumplicidade, sendo muitas vezes, meu co-orientador informal!.
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A funo de publicizao do Acompanhamento Teraputico na clnica:O contexto, o texto e o foratexto do AT
RESUMO
Esta pesquisa investiga o Acompanhamento Teraputico (AT) como dispositivo clnico-poltico esuas implicaes na ateno sade mental no contexto da Reforma Psiquitrica no Brasil.Construmos o trabalho em trs momentos: num primeiro traamos o contexto em que tem sedado as experincias de AT; num segundo trouxemos cena os textos sobre AT e, num terceiro,inclumos o foratexto, ou seja, problematizamos e fizemos interceder no texto e no contexto asfunes que tal dispositivo faz funcionar. O AT surgiu num movimento de desinstitucionalizaoda loucura, tomando a cidade como campo de experimentao e inserindo-se para alm dosestabelecimentos de sade. Realiza uma clnica sem muros, problematizando a um s tempo adoena mental e sua relao com os espaos urbanos e interrogando radicalmente as prticasmanicomiais. Paradoxalmente, h uma tendncia no campo do AT de institucionalizao eprivatizao da clnica, fazendo do mesmo um especialismo. Acompanhando o dispositivo emsuas variaes e em sua articulao com a rede de sade mental brasileira, atentamos aosagenciamentos que estabelece com a Psiquiatria, com a Psicanlise, com as Universidades e coma cidade e os efeitos polticos que tais agenciamentos produzem. As relaes que se estabelecementre os vetores que compem o plano de experimentao clnica do AT, do visibilidade aalgumas funes que o dispositivo AT opera: funo micropoltica, funo de transversalizao,funo rizomtica, funo deslocalizadora e analisadora da clnica, funo de resistncia aosmodelos centrpetos e analisadora do Movimento da Reforma Psiquitrica brasileira, funo deterritorializao, funo inclusiva e funo de publicizao, ou de gerao de um plano comumna clnica. O AT comparece como um mobilizador de foras capazes de consolidar um estatutopblico para a clnica.
PALAVRAS-CHAVE
acompanhamento teraputico reforma psiquitrica - sade pblica
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The publicizing function of the Therapeutic Accompaniment in the clinic:The context, the text and the out-text of the TA.
ABSTRACT
This research investigates the Therapeutic Accompaniment (AT) as a clinical-political device andits implications in the mental health attention in the context of the Psychiatric Reform in Brazil.We constructed the dissertation in three moments: in the first one, we outlined the context inwhich experiences of AT have been happening; in a second moment, we brought to the scene thetexts on AT, and in a third moment, we included the out-text, that is, we problematized and madeintercede in the text and in the context the functions that such a device sets at work. AT aroseduring a movement of deinstitutionalization of madness, taking the city as its field ofexperimentation and inserting itself beyond the very health establishments. It does a clinicwithout walls, problematizing at the same time the mental disease and its relations with urbanspaces and radically interrogating manicomial practices. Paradoxally, there is a tendency in thefield of AT to institutionalize and privatize the clinic, making of it a specialism. Accompanyingthe device in its variations and in its articulation with the network of brazilian mental health, wetook into consideration the agenciations that it establishes with Psychiatry, with Psychoanalysis,with the Universities and with the city and the political effects that such agenciations produce.The relations that are established between the vectors that compose the plan of the clinicalexperimentation of AT give visibility to some functions that the AT device operates:micropolitical function, transversalization function, rhizomatic function, delocalizer and analyzerfunction of the clinic, function of resistance to the centripetal models and analyzer of theBrazilian Psychiatric Reform Movement, function of territorialization, inclusive function andfunction of publicization, or of generation of a common plan in the clinic. AT affirms itself as amobilizer of forces capable of consolidating a public status for the clinic.
KEYWORDS
therapeutic accompaniment psychiatric reform public health
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SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................................008
CAIXA DE FERRAMENTAS E METODOLOGIA ...............................................................016
1. CONTEXTO MAPA: PUXANDO ALGUNS FIOS QUE TECEMO CAMPO DO AT ................................................................................................................033
1.1 Mapa 1: Nosso ponto de partida Brasil e Amrica Latina ............................................... 0331.2 Mapa 2: Histria(s) do AT .................................................................................................. 0361.3 Mapa 3: Histria(s) do AT na rede pblica de sade brasileira ...........................................0541.3.1 No Rio Grande do Sul .......................................................................................................0581.3.2 No Rio de Janeiro ..............................................................................................................0651.3.3 Em So Paulo ....................................................................................................................0691.3.4 Em Minas Gerais ...............................................................................................................0741.3.5 No Esprito Santo, em Pernambuco e em Santa Catarina ..................................................0761.4 Embates e alianas: articulaes polticas no processo de institucionalizao do AT .........077
2. TEXTO ALGUNS VETORES QUE COMPEM O DISPOSITIVO AT ..........................087
2.1 O Vetor Psiquiatria ................................................................................................................0882.2 O Vetor Psicanlise ...............................................................................................................0962.3 O Vetor Universidade ...........................................................................................................1022.4 O Vetor Cidade ......................................................................................................................106
3. FORATEXTO FUNES QUE O DISPOSITIVO AT ATUALIZA ................................116
3.1 Funo micropoltica ou de converso da menoridade em devir minoritrio .......................1173.2 Funo de articulao da clnica com o no clnico: operao de transversalizao ............1203.3 Funo deslocalizadora: o AT como analisador da clnica ...................................................1233.4 Funo rizomtica ou limiar: operao em rede.....................................................................1253.5 Funo de resistncia aos modelos centrpetos: o AT como um analisador da Reforma ......1303.6 Funo de passagem das intensidades: operao de criao de territrios existenciais ........1343.7 Funo inclusiva: produo de autonomia ............................................................................1403.8 Funo de publicizao: gerao de um plano comum .........................................................142
CONSIDERAES FINAIS ......................................................................................................150
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................................155
ANEXOS .....................................................................................................................................169ANEXO1. CARTA PARA INSTITUIES DA AMRICA LATINA ....................................170ANEXO 2. CARTA PARA INSTITUIES DA AMRICA LATINA (verso emespanhol)...................................................................................................................................... 172ANEXO 3. SITES E EMAILS ....................................................................................................174
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INTRODUO
Esse trabalho foi construdo a partir de inquietaes e questionamentos formulados ao
longo de nosso percurso como profissional da sade e principalmente a partir de nossa
experincia em Acompanhamento Teraputico (AT1). Nessa trajetria questionamo-nos sobre
o que vem sendo produzido no campo da sade, mais especificamente da sade mental no
contexto da Reforma Psiquitrica. Fomos ento delineando um problema e ao mesmo tempo
construindo uma poltica da pesquisa, de tal modo que pudemos perceber que no AT, tal como
no trabalho do cartgrafo2, o fazer, o pensar, o transformar e o conhecer no se dissociam.
Convidamos, ento, o leitor a passear conosco pelo plano do acompanhamento e a
atentar para o quanto o caminhar um vetor da prpria prtica clnica. Trazemos
inicialmente ento um breve relato de nossas andanas, entendendo-as como a singularizao
de uma experincia sempre coletiva.
Nossa primeira experincia como at foi em 1998, durante o estgio curricular do curso
de Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), vinculado pesquisa
sobre Espao e Tempo na Psicose, em que acompanhamos usurios de um Caps do municpio
de Porto Alegre. No ano seguinte, demos continuidade a tal pesquisa e participamos do
Programa de Extenso e Pesquisa em Acompanhamento Teraputico da mesma universidade,
sob coordenao da professora Analice Palombini. Tal experincia foi, em muitos sentidos,
inaugural em nossa formao enquanto profissional de sade. Nesse perodo tivemos o
primeiro contato com a rede de servios pblicos de sade sob a perspectiva de estudante
(aspirante a profissional de sade, acompanhante), em contraponto com a viso do usurio
dessa rede. Alm disso, pudemos conhecer um pouco do modo de funcionamento de um
servio substitutivo ao manicmio e o modo como ele se insere na rede de servios do
Sistema nico de Sade (SUS). Visitamos pela primeira vez, o Hospital Psiquitrico So
Pedro, referncia para internaes no estado gacho e comeamos a entender porque a
loucura tomada como questo de sade pblica.
As reverberaes desse trabalho se fizeram presentes no desejo de prosseguir a
formao em sade ingressando na Residncia Integrada em Sade, da Escola de Sade
Pblica do Rio Grande do Sul, no mesmo Hospital Psiquitrico So Pedro. A proposta de
1 Ao longo do texto, utilizaremos AT, para designar Acompanhamento Teraputico e at, para acompanhanteteraputico. Tal abreviao foi inicialmente adotada por Kleber Duarte Barreto no livro A tica e a tcnica noAcompanhamento Teraputico (2000).2 A seguir apresentaremos um pouco do trabalho do cartgrafo e na Caixa de Ferramentas apresentaremos acartografia como metodologia.
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formao era fundamentada nos princpios do SUS e constituiu-se como importante
oportunidade de nos vincularmos com mais vigor ao debate do campo da sade pblica, e de
desenvolvermos aprendizagens para a ateno integral sade. Localizados agora em outros
pontos da rede as unidades de internao psiquitrica breve e de longa permanncia, em
ambulatrios de sade mental e em parceria com Unidades Bsicas de Sade e Programas de
Sade da Famlia fomos percebendo que os cuidados se faziam no apenas a partir de
diferentes espaos, mas, sobretudo, a partir de diferentes modos de cuidar. Experimentamos o
horror e a dor de um funcionamento manicomial, o que imps uma insistente reflexo sobre
nossa prtica. Percebemos tambm que os microfascismos no mais podiam ser localizados
apenas no funcionamento do hospital, mas nos atravessavam a todos e precisavam ser
conjurados cotidianamente.
Na Residncia tivemos novamente a oportunidade de fazer AT, desta vez com alguns
moradores do hospital, acompanhando a passagem para as residncias teraputicas que
estavam sendo construdas. Vivenciamos a intensidade de encontros que colocavam em
cheque nosso saber, convocando-nos a experimentar nossos limites. Reconhecemos a
importncia de um cuidado que precisava ser feito de fato no apenas atravs da rede de
servios de sade e de outros setores, mas numa operao necessariamente feita em rede.
Ao fim da Residncia, a vinda para terras cariocas, o reencontro com a professora
Analice Palombini e o acolhimento dos integrantes do Projeto de Acompanhamento
Teraputico da Universidade Federal Fluminense3, possibilitaram que novamente nos
inclussemos no campo de problematizaes da sade mental. Fomos construindo, ento, um
certo contorno para as nossas inquietaes clnico-existenciais, em torno de um projeto de
pesquisa de mestrado.
Como todo traado de/em rede, no sabamos, de princpio, aonde chegaramos.
Experimentvamos algumas tenses no campo sade pblica e do Acompanhamento
Teraputico e nos propusemos ento a percorrer algumas linhas soltas, tomando-as como
pistas, como pontos pulsantes da rede.
Tais pontos so o que chamamos de pontos de partida e de modo algum foram
tomados como origem, mas sim como um corte no fluxo4. Escolhemos ento como um ponto
3 Sob a coordenao dos professores Eduardo Passos e Regina Benevides.4 Uma mquina se define como um sistema de cortes. No se trata absolutamente do corte considerado comoseparao da realidade; os cortes operam em dimenses variveis, conforme o carter considerado. Todamquina, em primeiro lugar, est relacionada com um fluxo material contnuo (hyl) que ela corta. (...) Ao invsde opor-se continuidade, o corte a condiciona, implica ou define o que ele corta como uma continuidade ideal. que, j vimos isso, toda mquina mquina de mquina. A mquina s produz um corte de fluxo porque estligada a uma mquina que se supe produzir o fluxo. E, sem dvida, esta outra mquina tambm, por sua vez,
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de partida pesquisar o AT no Brasil e na Amrica Latina, j que esse foi o contexto em que se
deram as experincias que foram nos engajando na construo de polticas pblicas de sade.
Assim como no trabalho de AT, durante a pesquisa fomos acompanhando um coletivo de
foras, de intensidades, ou ainda poderamos dizer de variaes intensivas das foras.
Percorremos/ construmos caminhos que foram nos indicando diferentes pontos de chegada,
possveis de se constiturem em novas partidas.
Para tal percurso, buscamos suporte no trabalho de Lourau (1988) em que ele analisa
dirios de pesquisadores, na dcada de 80, buscando o que parecia uma estranha e inquietante
intimidade. Passos e Benevides de Barros5 nos alertam de que no se tratava de pesquisar o
mais ntimo e interior da vida de algum, mas sim da busca da estrangeiridade prpria da
criao, fazendo aparecer o que se encontrava separado dos textos oficiais escritos pelos
diaristas. Isto lhe permitiu ultrapassar o que ainda comparecia como autoral nesses escritos,
trazendo para a cena os vetores constituintes do ato de criao, despessoalizando, trazendo o
Fora como o mais ntimo. Lourau problematizou, assim, o sagrado e o profano, colocando em
questo a pretensa assepsia e neutralidade dos textos cientficos e da prpria academia. No
trabalho analtico dos dirios, incluiu o que estava fora do texto, o hors texte, ou como
preferem Passos e Benevides de Barros6, o foratexto. Mostrou que a relao entre texto e
foratexto sempre varivel, imprevisvel, sem regras a priori sendo estas regras e metas ,
construdas na experincia.
Influenciados pelo movimento de Lourau, construmos nossa pesquisa em trs
momentos: num primeiro momento traamos o contexto em que tem se do experincias de
Acompanhamento Teraputico; num segundo momento trouxemos cena os textos, ou seja,
os artigos, documentos eletrnicos, dissertaes, livros e publicaes sobre Acompanhamento
Teraputico e, num terceiro momento, inclumos o foratexto. Propusemos transversalisar
contexto, texto e foratexto, rompendo as barreiras dentro e fora, relacionando o que, em
princpio, no tem relao. Indicamos as relaes entre contexto e textos, fazendo aparecer o
foratexto do Acompanhamento Teraputico, o plano do poder. Ora, sabemos a partir da leitura
que Deleuze (2005) faz de Foucault, que o poder coloca em relao o que no tem relao. O
poder precisamente o elemento informal que passa entre as formas do saber, ou por baixo
na verdade, corte. (...) Resumindo, toda mquina corte de fluxo em relao quela a que est ligada, mas fluxoem relao quela que a ela est ligada. Esta a lei de produo de produo. Eis porque, no limite das conexestransversais ou transfinitas, o objeto parcial e o fluxo contnuo, o corte e a conexo se confundem numa coisa s em toda parte cortes-fluxos de onde brota o desejo, e que so sua produtividade, operando sempre o enxerto doproduzir sobre o produto (DELEUZE E GUATTARI, 1976, p. 54-55).5 Anotaes de aula, da disciplina Subjetividade e Clnica no mestrado de Psicologia/UFF no ano de 2005,ministrada pelos professores Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros.6 Idem nota 5.
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delas. Por isso ele dito microfsico. Ele fora e relao de foras, no forma (DELEUZE,
1992, p. 122).
As relaes de saber-poder contemporneas produzem novos dispositivos de
interveno. No campo da sade, j no se trata de exilar os loucos nos hospitais
psiquitricos, mas de incorpor-lo de outra maneira vida da cidade. Num esforo de
desestabilizao do modo de relao com a loucura, o movimento de desinstitucionalizao
marcou um processo no apenas de construo de novas polticas de sade mental e de
servios substitutivos ao manicmio, mas um processo tambm de desnaturalizao das
lgicas manicomiais presentes em diversos espaos de cuidado, em diferentes paradigmas, nas
muitas formas de interveno clnica e mesmo nas relaes sociais mais insuspeitas
(BAPTISTA apud CABRAL, 2005).
Uma vez que as prticas sociais produzem os diferentes objetos, saberes e sujeitos,
constituindo, em nosso trabalho cotidiano, poderoso instrumento de reproduo e/ou criao
de mundos, faz-se necessria, portanto, uma anlise das implicaes, assinalando o que nos
atravessa, nos constitui e nos produz, e o que constitumos e produzimos com essas mesmas
prticas (COIMBRA E NASCIMENTO, 2003). Ou seja, faz-se necessria a anlise do
sistema de lugares que ocupamos, que buscamos e que nos so designados a ocupar com os
riscos que isto implica (BENEVIDES DE BARROS, 1994). Tal anlise no diz respeito a
engajamentos pessoais, mas aponta para um campo de foras dito implicacional, aqum e
alm das pessoas.
Passos e Benevides de Barros (2004) chamam a ateno justamente para a importncia
de colocarmos a prpria clnica em anlise, no bastando dizer que ela est comprometida
com a indissociabilidade entre a macro e a micropoltica. Afinal, a clnica pode tanto legitimar
as polticas de poder e de controle quanto ser uma abertura da potncia criativa e suas
diferenas. Portanto, trata-se de problematizar a clnica ela mesma, fazendo aparecer suas
foras instituintes, ou seja, fazendo emergir o prprio plano de produo da clnica: o plano
do coletivo.
Por isso mesmo, consideramos fundamental que nos interroguemos sobre os diversos
sentidos cristalizados na clnica do AT. Um dos sentidos a ser interrogado o do AT como
uma tcnica a mais, ou seja, como mero objeto a ser consumido, incorporado como mais uma
prtica mdica ou psicolgica, sendo consumido tal como um remdio e mesmo uma
internao. Quando definimos a clnica articulada com a dimenso micropoltica de produo
de subjetividade, somos convocados a nos arriscar numa experincia de anlise crtica da
prpria clnica, o que nos compromete politicamente.
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Ao assumirmos a dimenso poltica da clnica apostamos na fora de interveno
sobre a realidade e, portanto, nos processos de produo de si e do mundo (PASSOS E
BENEVIDES DE BARROS, 2001). Por isso nossa ateno com as polticas e com os efeitos-
subjetividade que a clnica do AT instaura. Problematizamos o AT, ento, na sua interface
entre a clnica e a poltica, entendendo que as polticas de sade, de subjetividade e de
pesquisa formam-se num mesmo plano.
Tendo como referncia nossa experincia como acompanhantes teraputicos,
problematizamos as conexes de fluxos que esto sendo produzidas pelo AT e que efeitos
clnico-polticos produzem. Atentamos para a relao entre o campo, domnio da realidade
constituda, e o plano de constituio dessa realidade. O campo da sade, da Reforma
Psiquitrica e do AT constituem-se enquanto campo de batalhas entre foras. Entendendo que
o Movimento da Reforma Psiquitrica aberto s contradies, perguntamo-nos sobre como
possibilitarmos sadas para os processos de singularizao no plano da clnica sem
reproduzirmos nos novos dispositivos de sade os modos de subjetivao dominantes.
Numa interlocuo com a tica e com a poltica, somos convocados a um
enfrentamento clnico-poltico do que est posto na atual conjuno do Acompanhamento
Teraputico. Problematizamos, ento, a relao do dispositivo AT com a dimenso pblica da
clnica. Para tanto, os conceitos de rede e de pblico foram postos em anlise, pois ambos
referem-se dimenso das relaes produtoras de realidade.
Realizamos uma pesquisa cartogrfica, acompanhando o dispositivo em suas variaes
e em sua articulao com a rede de sade mental brasileira, atentando ao que se evidencia
quando ele posto em anlise: quais textos so escritos, quais contextos produzem ou
reproduzem o AT, e que funes cumpre a partir desse contexto? De controle? De tutela? De
auxiliar? Essa clnica implica em que polticas? Quais campos de saber e de poder atravessam
essa prtica na sua mltipla composio? De que maneira tal prtica se alia na inveno de
possibilidades de tratamento num contexto de luta contra a manicomializao?
Fez-se necessrio, ento, que no prprio ato de acompanhar o dispositivo, pudssemos
suscitar e acolher crticas ao seu prprio movimento.
No h, portanto, nenhum oculto a ser revelado, h incises a serem feitasnos estratos, para que o invisvel, j-presente, se torne visvel. Blocos deinvisveis buscam passagem e, ao faz-lo, produzem rachaduras. O que hpara ser feito investir nas rachaduras mais do que nas configuraes
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homogneas com que uma realidade se apresenta (BENEVIDES DEBARROS, 1994, p. 258)7.
No primeiro captulo, que trata do contexto do AT, traamos alguns mapas, puxando
fios que tecem o campo do AT no Brasil e na Amrica Latina. Apresentamos algumas
histrias do surgimento do AT percorrendo algumas condies para essa emergncia. A partir
das leituras dos diferentes textos, em sua maioria brasileiros e argentinos, um denominador
pareceu ser comum a todos: o AT surgiu em meio a diversos e diferentes movimentos, entre
eles, o movimento da Reforma Psiquitrica.
Assim, tambm construmos um mapa de como esse dispositivo foi se compondo com
a rede pblica de sade no Brasil. Escolhemos contar as histrias do AT na rede pblica
apenas brasileira, pois na busca de dados e no estabelecimento de contatos, o que foi
emergindo foi traando um mapa, um certo mapa-efeito destes prprios movimentos. Nossa
metodologia de pesquisa indicou o Brasil como uma direo e por isso no construmos um
mapa dos outros pases da Amrica Latina. Buscamos inicialmente textos que nos contassem
os percursos do AT na rede pblica de sade dos diferentes pases, mas mesmo no caso
brasileiro foram poucas as publicaes encontradas.
Influenciados pela afirmao de Rolnik (1989) de que os procedimentos do cartgrafo
so inventados em funo daquilo que pede o contexto em que se encontra, recorremos ao uso
de uma lista de emails pessoais para obtermos as notcias do trabalho de AT na rede pblica
de servios. Segundo a autora
(...) o cartgrafo absorve matrias de qualquer procedncia. No tem omenor racismo de freqncia, linguagem ou estilo. Tudo o que der lnguapara os movimentos do desejo, tudo o que servir material, semitica e socialpara cunhar matria de expresso e criar sentido, para ele bem vindo.Todas as entradas so boas, desde que as sadas sejam mltiplas. Por isso ocartgrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes no sescritas e nem s tericas. Seus operadores conceituais podem surgir tantode um filme quanto de uma conversa ou de um tratado de filosofia. Ocartgrafo um verdadeiro antropfago: vive de expropriar, se apropriar,devorar e desovar, transvalorando. Est sempre buscandoelementos/alimentos para compor suas cartografias. Este o critrio de suasescolhas: descobrir que matrias de expresso, misturadas a quais outras,que composies de linguagem favorecem a passagem das intensidades quepercorrem seu corpo no encontro com os corpos que pretende entender.Alis, entender para o cartgrafo, no tem nada a ver com explicar e muitomenos com revelar. Para ele no h nada em cima cus da transcendncia , nem embaixo brumas da essncia. O que h em cima, embaixo e por
7 As citaes foram retiradas da Tese de Doutorado da autora, recentemente publicada em livro: Grupo Aafirmao de um simulacro.
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todos os lados so intensidades buscando expresso (ROLNIK, 1989, p. 66-67).
Nosso interesse em acompanhar o dispositivo em suas variaes no campo da rede
pblica de sade no foi fortuito. Embora haja uma insero consideravelmente maior do AT
na rede privada em todos os pases em que pesquisamos, propomos investigar qual poltica tal
clnica implementa, especialmente quando incorporada ao contexto da rede pblica de sade
brasileira. Nossa aposta nesse dispositivo e num sistema pblico de sade fez com que nos
perguntssemos sobre os efeitos que esse sistema produz. Acompanhamos, portanto, a
articulao do mesmo com a rede pblica de sade de alguns estados brasileiros.
Ao traarmos o contexto do AT, percebemos um movimento tendencial de
institucionalizao, principalmente atravs de associaes de profissionais. Entendemos que
tal processo tem a pretenso de delimitar o campo, definindo o que , o que pode e o que deve
ser feito em nome de tal prtica, constituindo-se numa operao que faz do AT mais um
especialismo entre tantos que j conhecemos. Tomamos como analisadores de tal movimento
alguns eventos, acompanhando articulaes polticas atravs de embates e de alianas no
campo do AT.
No nosso segundo captulo apresentamos alguns vetores que compem o AT,
constituindo o que chamamos de texto. So eles: a Psiquiatria, a Psicanlise, a Universidade e
a cidade. Mas a distino dos diferentes vetores no rgida: eles encontram-se entrelaados,
tecendo uma espcie de emaranhado que compe as definies e as prticas do AT.
Mostramos como a institucionalizao do AT comparece nos agenciamentos com os
diferentes vetores e quais questes so, assim, colocadas para a clnica.
A partir do trabalho realizado com os textos, trouxemos no nosso terceiro captulo o
foratexto do AT. O foratexto aparece no como mero efeito de um contexto, tampouco como
aquilo que est nos textos, mas como um Fora que se faz numa tenso entre contexto e texto.
Colocando em anlise o dispositivo AT, pudemos perceber diferentes funes que ele
atualiza: funo micropoltica, funo de transversalizao, funo rizomtica, funo
deslocalizadora e analisadora da clnica, funo de resistncia aos modelos centrpetos e
analisadora do Movimento da Reforma Psiquitrica brasileira, funo de territorializao,
funo inclusiva e funo de publicizao da clnica.
Foi numa inspirao tico-esttica que tivemos a referncia do nosso trabalho.
Segundo Guattari (2001) a proposta de uma nova lgica: lgica das intensidades ou eco-
lgica, a qual leva em conta o movimento, a intensidade. Trata-se de prxis ecolgicas que se
esforam por detectar os vetores potenciais de subjetivao e de singularizao e que se
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abrem a outras intensidades para composio de novas configuraes existenciais. nesse
sentido que convidamos o leitor a percorrer conosco esse percurso, acompanhando os
movimentos que tal dispositivo traa. Nossa proposta coloc-lo em anlise de modo a
acompanharmos os movimentos e os efeitos que vem produzindo e que reverberam no prprio
contexto em que este se insere, diferenciando-o.
Para tal tarefa nos inspiramos tambm nos trabalhos de Gilles Deleuze, Flix Guattari,
Michael Foucault, alm de textos sobre AT. Utilizamos conceitos-ferramenta assim como,
dispositivo, poder, saber, processos de subjetivao, devir, cartografia, analisador, territrio,
rede, pblico, e outros, no intuito de intervir nas questes acima propostas.
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CAIXA DE FERRAMENTAS E METODOLOGIA
Antes de seguirmos em nosso percurso, apresentaremos alguns dos conceitos-
ferramenta que nos possibilitam a problematizao do campo do Acompanhamento
Teraputico. Apresentaremos tambm a metodologia que os mesmos nos possibilitam operar.
Segundo Muylaert (2006), ao tomarmos o AT como dispositivo clnico-poltico, no
estamos reduzindo-o a uma tcnica, nem a um referencial terico-prtico, mas estamos
interessados em distinguir, como nos indicou Deleuze entre o que somos (o que j no somos
mais) e o que estamos a caminho de nos tornar: a parte da histria, e a parte do atual. A
histria o arquivo, o desenho disto que somos e que deixamos de ser, enquanto o atual o
esboo do que nos tornamos (DELEUZE, 1991, p. 86).
Esse o paradoxo do tempo que, no presente, no pra de passar, sendo a ums tempo o que foi e o que ser. Nesse sentido, o contemporneo guarda essarelao complexa com a histria, dela se distinguindo, intempestivamente(Nietzsche, 1988/1874) e quebrando todas as cadeias causais que conferemimportncia ao passado (fascnio pelas origens, explicaes deterministas),mas sobre ela retornando produzindo diferena, fazendo-a desviar de si. Defato, na experincia do contemporneo, no podemos e no reivindicamos olivrar-se da histria, supondo o seu fim. Diferentemente, buscamos na histriaaquela fora propulsora que nos permite dela desviar (PASSOS EBENEVIDES DE BARROS, 2001, p. 90).
Deleuze (2005), em seu livro sobre Foucault, distingue o que Foucault chama de
mquina abstrata e mquina concreta. O diagrama, ou mquina abstrata o mapa das
relaes de fora, mapa de densidade, de intensidade, que procede por ligaes primrias no-
localizveis e que passa a cada instante por todos os pontos, ou melhor, em toda relao de
um ponto a outro (DELEUZE, 2005, p. 46). a exposio das relaes de foras que
constituem o poder; a repartio dos poderes de afetar e dos poderes de ser afetado; a
mistura das puras formaes no-formalizadas e das puras matrias no-formadas. A
mquina abstrata como a causa dos agenciamentos concretos que efetuam suas relaes; e
essas relaes de foras passam, no por cima, mas pelo prprio tecido dos agenciamentos
que produzem (Idem, p. 46).
E, de um diagrama a outro, novos mapas so traados. Por isso no existediagrama que no comporte, ao lado dos pontos que conecta, pontosrelativamente livres ou desligados, pontos de criatividade, de mutao, deresistncia; e deles, talvez, que ser preciso partir para se compreender oconjunto. a partir das lutas de cada poca, do estilo das lutas, que se
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pode compreender a sucesso de diagramas ou seu re-encadeamento porsobre as descontinuidades (DELEUZE, p.53).
O diagrama nunca age para representar um mundo preexistente, ele produz um novo
tipo de realidade, um novo modelo de verdade.
No sujeito da histria nem a supera. Faz a histria desfazendo asrealidades e as significaes anteriores, formando um nmero equivalentede pontos de emergncia ou de criatividade, de conjunes inesperadas, deimprovveis continuuns. Ele duplica a histria com um devir. Todasociedade tem o seu ou os seus diagramas (Idem, p. 45).
Cada diagrama produz certos dispositivos ao mesmo tempo em que por eles
diferenciado. Dessa forma, no se pode pens-los como independentes um do outro
(BENEVIDES DE BARROS, 1994). Os dispositivos, ou agenciamentos concretos, por sua
vez, efetuam as relaes de foras dos diagramas em maior ou menor grau. Eles so uma
montagem ou um artifcio produzido que mistura o visvel e o enuncivel. Para Foucault
(2001) o dispositivo como um conjunto heterogneo que engloba discursos, instituies,
organizaes arquitetnicas, decises regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados cientficos, proposies filosficas, morais, filantrpicas (FOUCAULT, 2001, p.
244). Ele a rede que se pode estabelecer entre esses elementos (Idem, idem).
O dispositivo ento um conjunto multilinear, composto por diferentes naturezas.
Essas linhas traam processos que esto sempre em desequilbrio, e que ora se aproximam ora
se afastam uma das outras (linhas que se movimentam), de modo que qualquer linha est
sujeita a variaes de direo e est submetida a derivaes. H linhas de sedimentao, diz
Foucault, mas tambm h linhas de fissura, de fratura. Desenredar as linhas de um dispositivo
construir um mapa, cartografar (DELEUZE, 1996).
O dispositivo constitudo por linhas de saber, de poder e de subjetivao, sendo essas
ltimas, o limite extremo do dispositivo (Deleuze, 2005). As linhas se entrecruzam e se
misturam, acabando por dar uma nas outras, ou suscitar outras, por meio de variaes ou
mesmo mutaes de agenciamento. E se todas as linhas so linhas de variao, que no tm
sequer coordenadas constantes, uma das conseqncias filosficas do dispositivo, diz Deleuze
(1996) o repdio dos universais. A outra que todo o dispositivo se define pelo que detm
em novidade e criatividade, e que ao mesmo tempo marca a sua capacidade de se transformar.
novidade de um dispositivo em relao aos que o precedem chamamos atualidade do
dispositivo. O atual no o que somos, mas aquilo em que nos tornamos, aquilo que somos
em devir, nosso devir-outro (Idem). E devir , a partir de uma forma inicial, extrair partculas
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as mais prximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e atravs das quais nos
tornamos. nesse sentido que o devir o processo do desejo (DELEUZE E GUATTARI,
1997, p. 64). Como dissemos anteriormente, em todo dispositivo necessrio distinguir o que
somos (o que no seremos mais), e aquilo que somos em devir; a parte da histria e a parte do
atual (DELEUZE, 1996).
Na clnica traamos os mapas ou os diagramas que operam no plano das intensidades
(plano no estratificado ou inextenso), no plano do poder. Para Foucault (2001) o poder algo
que se exerce, no um objeto, mas uma relao: ele luta, relao de fora8. Fora e foras
so duas faces da mesma moeda. Fora se refere ao domnio das foras (FOUCAULT apud
PELBART, 1989).
O que uma fora? relao com outra fora. Uma fora no tem realidadeem si, sua realidade ntima sua diferena em relao s demais foras, queconstituem seu exterior. Cada fora se define pela distncia que a separa dasoutras foras, a tal ponto que qualquer fora s poder ser pensada no contextode uma pluralidade de foras. O Fora, que o exterior da fora, tambm suaintimidade, pois aquilo pelo que ela existe e se define (PELBART, 1989, p.121).
Para Foucault, segundo Deleuze (2005), o poder relao de foras sobre foras, que
se definem por sua capacidade de afetar e serem afetadas. Incitar, limitar, desviar e dificultar
so algumas de suas aes. Essas foras se articulam em uma rede sempre mvel, transversal,
instvel, que engendra as formas que compem o real. O poder faz ver e faz falar, ou seja,
produz saber. O saber, atravs de seu duplo registro forma discursiva e no-discursiva,
forma do visvel e do enuncivel a atualizao das virtualidades, das intensidades do
campo do poder. Saber e poder se articulam, numa pressuposio recproca, compondo uma
trama inextricvel, ainda que estejamos falando de duas dimenses: relaes de formas e
relaes de foras.
As foras operam num plano que no o das formas, como no saber, de modo que um
devir das foras no se confunde com a histria das formas. O saber diz respeito a matrias
formadas e funes formalizadas, ele estratificado, arquivado, dotado de uma
8 Foucault indicou que os poderes se exercem em nveis variados e em pontos diferentes da rede social e nestecomplexo os micro-poderes existem integrados ou no ao Estado (MACHADO, 2001, p. XII)8. Ou seja,Foucault explicitou relaes de poder que se diferenciavam do Estado e seus aparelhos, concluindo que o poderno est localizado em nenhum ponto especfico, mas funciona em rede. O poder existe apenas enquantoprticas, enquanto relao. O que significa dizer que o poder algo que se exerce, que se efetua, que funciona(idem, p. XIV). A fora no est nunca no singular, ela tem como caracterstica essencial estar em relao comoutras foras, de forma que toda fora j relao, isto , poder: a fora no tem objeto ou sujeito a no ser afora. O poder no uma forma, mas uma relao de foras, ou melhor, toda relao de foras uma relaode poder. Ele no fala e no v, mas faz ver e falar. As relaes de foras no esto fora dos estratos, mas so oseu lado de fora (DELEUZE, 2005).
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segmentaridade relativamente rgida. O poder, ao contrrio, diagramtico: mobiliza matrias
e funes no estratificadas, e procede atravs de uma segmentaridade bastante flexvel
(Idem, p. 81). Ele no passa por formas, mas por pontos que marcam a aplicao de uma
fora, a ao ou reao de uma fora em relao s outras. As relaes de poder no so
localizveis numa instncia ou noutra, pois no emanam de um ponto central, mas vo a cada
instante de um ponto a outro no interior de um campo de foras, marcando inflexes,
retrocessos, retornos, giros, mudanas de direo, resistncias (Idem, idem). Elas so
estratgias. O Fora, plano em que essas foras operam, onde a relao uma no-relao,
o lugar um no-lugar, a histria um devir (Idem, p. 93). O Fora infinitamente mais
longnquo que qualquer exterior (e talvez por isso mais prximo que qualquer um deles) o
no estratificado, o sem-forma, o reino do devir e das foras, aquele espao anterior de onde
surgem os prprios diagramas (PELBART, 1989, p. 133). O Fora situado num espao entre
o visvel e o dizvel, mais alm dos diagramas e por isso preserva uma capacidade de afetar os
diagramas e os agenciamentos concretos e de resistir ao poder9.
O dispositivo composto por histria e por devires, que dizem respeito aos
movimentos internos ao dispositivo. Mais do que preocupados em traar a dimenso histrica
do AT, queremos destacar alguns dos movimentos que foram (e vm) compondo o prprio
dispositivo. Para tanto nos propomos a cartografar, ou seja, acompanhar a variao intensiva
de um coletivo de foras referentes ao dispositivo AT. Acompanhamos no o que o
dispositivo do AT, mas o modo como opera, ou seja, suas transformaes, seus movimentos
de variao, entendendo que na encruzilhada de questes clnicas e polticas que o AT
interferido (e interfere) por outras prticas coexistentes (mdicas, psicolgicas, educacionais,
artsticas, filosficas, etc).
9 sempre do lado de fora que uma fora afetada por outras ou afetas outras. Poder de afetar ou de serafetado, o poder preenchido de maneira varivel, conforme as foras em relao. O diagrama, enquantodeterminao de um conjunto de relaes de foras, jamais esgota a fora, que pode entrar em outras relaes edentro de outras composies. O diagrama vem de fora, mas o lado de fora no se confunde com nenhumdiagrama, no cessando de fazer novos lances. Assim, o lado de fora sempre abertura a um futuro, com o qualnada acaba, pois nada nunca comeou tudo apenas se metamorfoseia. A fora, nesse sentido, dispe de umpotencial em relao ao diagrama no qual est presa, ou de um terceiro poder que se apresenta como capacidadede resistncia. Com efeito, um diagrama de foras apresenta, ao lado das (ou antes, face s) singularidades depoder que correspondem s suas relaes, singularidades de resistncia, os pontos, ns, focos que se efetuampor sua vez sobre os estratos, mas de maneira a tornar possvel a mudana. Alm disso, a ltima palavra do poder que a resistncia tem o primado, na medida em que as relaes de poder se conservam por inteiro no diagrama,enquanto as resistncias esto necessariamente numa relao direta com o lado de fora, de onde os diagramasvieram. De forma que um campo social mais resiste do que cria estratgias, e o pensamento do lado de fora umpensamento da resistncia (DELEUZE, 2005, p. 96).
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Propomos pensar o dispositivo AT como sendo constitudo pelo cruzamento de
diferentes vetores, num plano de imanncia10. Esses vetores compem os contextos em que
ele vai se montando. A psiquiatria, a psicanlise e a universidade so alguns dos vetores que
compem o dispositivo do AT e dizem respeito s linhas de saber. O saber sempre posto em
relao com alguma prtica, e o poder que o coloca em relao. Por isso, o poder s existe
num fazer, numa experincia prtica. Esses saberes, quando se pem a funcionar, so tambm
expresses do poder. Portanto, toda relao de poder constitui um campo de saber e todo
saber constitui novas relaes de poder11. Segundo Deleuze (2005), Foucault nomeia de
diagrama o agenciamento entre duas formas heterogneas de saber feito pelo poder (estratos
do saber e diagramas do poder).
Se o saber consiste em entrelaar o visvel e o enuncivel, o poder suacausa pressuposta, mas, inversamente, o poder implica o saber como abifurcao, a diferenciao sem a qual ele no passaria ao ato. [...] Todosaber vai de um visvel a um enuncivel, e inversamente; todavia no hforma comum totalizante, nem mesmo de conformidade ou correspondnciabiunvoca. H apenas uma relao de foras que age transversalmente e queencontra na dualidade das formas a condio para sua prpria ao, para suaprpria atualizao (Idem, p.48).
No so apenas as linhas de saber que compem o dispositivo AT. Ele tambm
atravessado pela Reforma Psiquitrica brasileira, pelos Centros de Ateno Psicossocial
(Caps), pelos hospitais-dia e pelas tenses das polticas de sade brasileira e argentina. No
caso especfico do Brasil podemos afirmar que a Reforma brasileira um vetor constituinte
do AT, porque altera, produz, incentiva, abre portas do AT, e tambm por ele constituda.
Mas ela tambm contexto onde a experincia do AT se (re) inventa e em nosso trabalho a
tomaremos mais nessa sua dimenso de contexto do que como vetor. Destacamos tambm a
cidade como um vetor fundamental do AT, pois ela se constitui como linha de subjetivao,
como vetor de existencializao.
Como sabemos, Foucault destaca trs dimenses de um dispositivo: o Saber ou as
relaes formadas, formalizadas sobre os estratos; o Poder ou as relaes de fora ao nvel do
diagrama; e o Pensamento, que seria a relao com o lado de Fora, uma relao que tambm
10 Segundo Deleuze e Guattari, 1991, o plano de imanncia no um conceito, nem um mtodo, um plano quecompreende todos os conceitos. uma mesa, uma bandeja, uma taa (p. 51).11 [...] todo saber assegura um exerccio de poder. Cada vez mais se impe a necessidade do poder se tornarcompetente. Vivemos cada vez mais sob o domnio do perito: [...] o saber enquanto tal que se encontradotado estatutariamente, institucionalmente, de determinado poder. O saber funciona na sociedade dotado depoder. enquanto saber que tem poder (MACHADO, 2001, p. XXII).
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no relao. O Fora no um limite fixo, mas uma matria mvel, cujas dobras constituem
um lado de dentro do lado de Fora (DELEUZE, 2005).
Dentro como operao do fora: em toda sua obra, um tema parece perseguirFoucault o tema de um dentro que seria apenas a prega do fora, como se onavio fosse uma dobra do mar. A respeito do louco lanado em sua nau, naRenascena, Foucault dizia: ele colocado no interior do exterior, einversamente [...], prisioneiro no meio mais livre, da mais aberta das estradas,solidamente acorrentado infinita encruzilhada, ele o Passageiro porexcelncia, isto , o prisioneiro da passagem (Idem, p. 104).
A linha de subjetivao se constitui ento quando a linha de fora, em vez de entrar
em relao linear com uma outra fora, volta-se para si, afetando ela mesma. como se as
relaes do lado de Fora se dobrassem, formando uma relao consigo mesmas, um poder de
afetar a si mesmo. Enquanto processo, produo, ela est para se fazer, na medida em que o
dispositivo permita ou torne possvel. Ela uma linha de fuga, no nem saber, nem poder12,
que escapa tanto s foras estabelecidas quanto aos saberes constitudos (DELEUZE, 1996).
A subjetividade ento definida por Foucault como uma modalidade de inflexo das foras
do Fora, uma dobra do Fora, relao da fora consigo mesma, de tal forma que o processo de
subjetivao tambm ponto de resistncia s relaes de poder e saber das quais deriva. Ela
essencialmente social e assumida e vivida por indivduos em suas existncias particulares.
Os processos de subjetivao so coletivos, entendendo que o coletivo diz respeito
multiplicidade, e a impessoalidade. A subjetividade deixa de se situar no plano transcendental
ou na profundidade do eu e passa a ser tomada na experincia, nas prticas cotidianas.
Foucault no emprega a palavra sujeito como pessoa ou forma de identidade, mas o termo
subjetivao que diz de um processo, de uma relao da fora consigo, de um campo
magntico: uma individuao operando por intensidades (DELEUZE, 1992).
Passos e Benevides de Barros (2004), seguindo as pistas de Marx como fizeram
Deleuze e Guattari, afirmam a produo como ponto de partida, e avanam na direo de que
a produo, sendo primeira, apresenta-se como processo de produo ininterrupto: processo
de gerao constante do novo. A produo ento tomada como processo de produo, como
um plano de constituio, plano de engendramento, fazendo-se permanente. Essa dimenso de
produo desnaturaliza as dicotomias constitutivas da realidade (como entre sujeito e objeto)
e assume a imanncia da produo no produto: tanto sujeito quanto objeto, portanto, passam a
12 A idia fundamental de Foucault a de uma dimenso da subjetividade que deriva do poder e do saber, masque no depende deles (DELEUZE, 2005, p. 109).
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ser entendidos como efeito de um processo de produo: processo de subjetivao, plano de
subjetivao ou de criao do si e processo de objetivao.
O rompimento com a dicotomia pblico/privado, sujeito/objeto, indivduo/sociedade,
estrutura psquica/estrutura social, implica na constituio de planos onde, ao mesmo tempo,
sujeitos-objetos adviriam (BENEVIDES DE BARROS, 1994). importante que fique claro
que no estamos opondo um plano individual e um plano coletivo, mas sim estamos
pressupondo um plano de imanncia que gera ambos os planos. No h, portanto, separao
entre individual e coletivo, mas constante imbricao. O plano individual uma espcie de
invaginao do plano do coletivo e o plano do coletivo, por sua vez, como uma
exteriorizao do plano individual, sendo ambos expresso do plano de imanncia da vida
(DELEUZE, 2005).
Ao tomarmos a clnica como dispositivo, afirmamos sua potncia de produzir efeitos
de sentidos variados (BENEVIDES DE BARROS, 2002). O AT ento entendido como uma
forma de fazer a clnica, um dispositivo, mas tambm como funo da clnica entendendo que
o dispositivo um engendramento de linhas que faz funcionar, que dispara movimentos e
modos de subjetivao. Nossa proposta colocarmos em anlise o AT enquanto dispositivo e
enquanto funo.
A funo AT foi ento uma importante questo metodolgica com a qual nos
deparamos ao longo de nossa pesquisa. Na medida em que AT apresenta-se no s como um
modo de fazer a clnica, mas como uma funo da clnica, a mesma comparece nas prticas de
muitos profissionais da sade. No trabalho dos agentes comunitrios, por exemplo, ela
costuma comparecer de modo mais evidente do que nas prticas de outros atores de sade,
embora muitos atualizem tal funo. Uma distino, portanto, precisa ser feita: o at como
cargo oficialmente institudo, como foi o caso o municpio de Viamo, no Rio Grande do Sul,
que realizou concurso pblico; o at assim nomeado, como aquele que toma a seu encargo a
funo de acompanhar e o AT como uma funo. Certamente essa tenso entre os
denominados acompanhantes teraputicos e aqueles que tambm exercem essa funo merece
nosso cuidado e ateno. Entretanto, esses outros dispositivos nos quais a funo AT se
atualiza, no esto sendo includos em nosso mapa, porque isso estenderia em muito os
limites do nosso objeto de estudo.
O modo como nosso trabalho foi ento se desenhando certamente efeito de nossa
escolha metodolgica. O contexto foi sendo construdo atravs de um certo contorno dos
textos e foi assim, na borda dos textos, que alguns mapas foram sendo traados. Mas o que
estamos entendendo por mapas?
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O que chamamos um mapa, ou mesmo um diagrama, um conjunto delinhas diversas funcionando ao mesmo tempo (as linhas da mo formam ummapa). [...] Acreditamos que as linhas so os elementos constitutivos dascoisas e acontecimentos. por isso que cada coisa tem sua geografia, suacartografia, seu diagrama (DELEUZE13 apud DESCAMPS, ERIBON eMAGGIORI, 1991, p. 124).
Esses mapas no se pretendem verdadeiros14, tampouco fixos. No so a representao
de um todo esttico, e sim so sempre circunstanciais, vivos. Fazem-se ao mesmo tempo em
que acompanham movimentos de transformao. Por isso mesmo que chamamos de histrias
do AT e no a histria do AT, pois sabemos que apresentamos um dos possveis recortes
sobre como esse dispositivo vem sendo montado.
[...] cada momento analisado na luta histrica instrumento nas lutas dopresente. Instrumento, neste caso, no para validar uma Filosofia da Histriapreviamente definida - por um partido, um intelectual universal, umavanguarda dirigente, um autor onisciente... - como "libertadora", masnecessariamente instrumento, porque toda histria perspectiva afirmada. Otermo perspectiva, conforme o estamos utilizando, diverge da concepo quesupe olhares diversos sobre uma mesmidade sempre idntica a si prpria, queseria A Histria, com maiscula. Nenhuma histria inocente. Toda histria marcada por sua paixo, seja histria, aqui, o objeto ou o discurso sobre oobjeto (RODRIGUES, 1998, p. 49).
Buscamos em nossa pesquisa o que escapa histria devir para Deleuze,
acontecimento para Foucault e nos coloca em movimento, desestabiliza os regimes de
saber-poder, os dispositivos, e inventa o novo (SANTOS, 2003). Para Foucault a histria:
no diz o que somos, mas aquilo de que estamos em vias de nos diferir; no estabelece nossa
identidade, mas a dissipa em proveito do outro que somos 15 (DELEUZE, 1992, p. 119).
Eis o que diz Foucault uma entrevista concedida a Gerard Raulet nos anos 80:
Por isso, esta designao ou descrio do real jamais tem um valor prescritivodo tipo "porque assim, assim ser". tambm por isso que, em minha
13 Mil plats no formam uma montanha... Debate com G. Deleuze, C. Descamps, Didier Eribon e RobertMaggiori.14 Foucault (1994) j nos ensinava que acreditava por demais na verdade para no supor a existncia dediferentes verdades e diferentes modos de diz-la. Alm disso, Foucault nos aponta uma dimenso ficcional dahistria: [...] nunca escrevi nada alm de fices. Com isso no quero dizer que elas estejam fora da verdade.Parece-me plausvel fazer um trabalho de fico dentro da verdade, introduzir efeitos de verdade dentro de umdiscurso ficcional e, de algum modo, fazer com que o discurso permita surgir, fabrique algo que ainda no existe,portanto ficcione algo. Ficciona-se a histria partindo de uma realidade poltica que a torna verdadeira; ficciona-se uma poltica que ainda no existe partindo de uma verdade histrica (FOUCAULT apud RODRIGUES,1998, p. 66).15 A histria, genealogicamente dirigida, no tem por fim reencontrar as razes de nossa identidade, mas aocontrrio, se obstinar em dissip-la; ela no pretende demarcar o territrio nico de onde ns viemos, essaprimeira ptria qual os metafsicos prometem que retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas asdescontinuidades que nos atravessam (FOUCAULT, 2001, p. 35).
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opinio, o recurso histria [...] significativo, na medida em que a histriaserve para mostrar como aquilo-que- nem sempre foi, isto , que as coisasque nos parecem mais evidentes so sempre formadas na confluncia deencontros e acasos, no curso de uma histria precria e frgil [...]. O que asdiferentes formas de racionalidade oferecem como seu ser necessrio podeperfeitamente ser historicizado e a rede de contingncias da qual emerge podeser traada [...]. Se estas coisas foram feitas, podem ser desfeitas, sesoubermos como foram feitas (RAULET16 apud RODRIGUES, 1998, p. 37).
Para Foucault, segundo Rodrigues (1998), s se faz histria, ento, derivando pela
fratura crtica do presente, contingenciando o presente mediante a construo de uma histria
rigorosa do precrio e do frgil (Idem, p. 38).
Aquilo que Foucault afirma dos poderes, poderamos dizer da histria: ela seexerce, um como, e no um quem, um para que ou um por que totalizantes.Caso queiramos indagar do por que, ou seja, perguntar de onde vem atransformao das prticas, teremos que nos defrontar com um vazio, isto ,com insuspeitadas conexes entre prticas, que nossa razo tranqila nosupe a princpio. Cada evento, em histria, uma raridade, um bibel depoca. Vale, por conseguinte, acontecimentaliz-lo; quer dizer, desconstru-lo como evidncia ou natureza, produzindo-o na qualidade de diferenairredutvel a qualquer espcie de "mesmo" (mecanismo econmico, estruturaantropolgica, processo demogrfico, etc... etc...) (Idem, p. 52).
Talvez pudssemos chamar de geografias do AT, j que o nosso trabalho foi o de
puxar alguns fios que tecem o campo do AT para fazer aparecer mil planos, mil plats, que
guardam entre si uma relao de justa posio. E esses fios (ou linhas) so fios de
movimento, so movimentos tendenciais, devires. O traado desses fios, o modo como se
fazem as conexes entre eles, nos diz do modo como funciona o dispositivo AT e o que ele
pe a funcionar. Propomos-nos a acompanhar as conexes de fluxos que esto sendo
produzidas, pois acompanhando as linhas que acessamos os movimentos (e por isso nossa
aposta no puxar de fios). Alm disso, fundamental que fique claro que no identificamos
movimentos tendenciais com qualquer pessoalidade: estamos implicados no domnio da
expressividade.
Apostando na clnica como plano de foras e no como um campo das formas, Passos
e Benevides de Barros (2000) trazem ento cena a idia de pesquisa interveno proposta
pela Anlise Institucional Socioanaltica (60/70). A interveno, para os analistas
institucionais, no significa o restabelecimento de uma ordem, garantindo a manuteno de
territrios j constitudos, mas sim se pem como intercessora17, procurando conectar-se s
16 Raulet, G. Structuralism and post-structuralism: an interview with Michel Foucault, mimeo.17 Conceito formulado por Deleuze (1992) que diz da relao de interveno e interferncia que desestabiliza, e,ao mesmo tempo, possibilita a criao.
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composies de fluxos que ainda no se atualizaram (BENEVIDES DE BARROS, 1994). Ela
visa interrogar os diversos sentidos cristalizados nas instituies: trata-se de produzir
evidncias que tornem visvel o jogo de interesses e de poder encontrados no campo de
investigao. Tal metodologia trata de desmanchar os territrios constitudos e convocar a
criao de outras instituies num processo de desnaturalizao permanente das instituies,
incluindo a prpria instituio da anlise e da pesquisa (Idem, p.165).
Segundo Passos e Benevides de Barros (2000), a interveno foi ento associada
construo e/ou utilizao de analisadores, conceito-ferramenta utilizado por Guattari, no
contexto da Psicoterapia Institucional. Segundo Lourau (2004), para a Anlise Institucional
o analisador que realiza a anlise. a transformao de uma palavra teraputica em uma
palavra poltica, liberada e liberadora, dos analisadores que faz a anlise. Passa-se da noo de
anlise de analisador. Os analisadores so as manifestaes de no-conformidade com o
institudo, so reveladoras da natureza do institudo. Chama-se analisador, em uma instituio
de cura, aos lugares onde se exerce a palavra, bem como a certos dispositivos que trazem luz
os elementos que constituem um determinado conjunto. Uma situao qualquer pode servir de
analisador desde que seu movimento seja o de catalisar vetores e abrir o plano de anlise que
estava bloqueado. Daremos o nome de analisador quilo que permite revelar a estrutura da
organizao, provoc-la, for-la a falar (LOURAU, 1975).
Analisador: aquilo que produz anlise. Apesar de bastante sinttica, estadefinio, tomada ao p da letra nos parece precisa: falas, atos, fatos que seinsurgem no campo de interveno, produzindo desmanchamento daquilo queat ento aparecia como natural. Os scio-analistas diferenciam osanalisadores naturais ou histricos aqueles que vm inesperadamente aoencontro da situao, condensando foras dispersas at ento-, dosanalisadores construdos aqueles introduzidos pelos analistas na situao deinterveno (BENEVIDES DE BARROS, 1994, pg.19018).
Os analisadores produzem ruptura num campo possibilitando a emergncia de um
plano; eles assinalam as mltiplas relaes que compem o campo tanto em seu nvel de
interveno quanto em seu nvel de anlise (PASSOS E BENEVIDES DE BARROS, 2000).
Todas as situaes de anlise e de interveno esto baseadas no manejo de analisadores
atualizados com o objetivo de fazer emergir um material analisvel (LOURAU, 2004). Na
pesquisa interveno, tanto pesquisador quanto pesquisado, ou seja, tanto o sujeito quanto o
objeto do conhecimento se constituem no mesmo momento, no mesmo processo,
evidenciando a indissociabilidade entre as gneses terica e social. H uma recusa da
18 Nota de Regina Benevides de Barros, da tese de doutorado Grupo: Afirmao de um Simulacro.
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neutralidade do analista/pesquisador, rompendo as barreiras entre sujeito que conhece e objeto
a ser conhecido e entendendo que sujeito e objeto, pesquisador e campo de pesquisa, se
criam ao mesmo tempo (BENEVIDES DE BARROS, 1994, p.165). O momento da pesquisa
e o momento da produo terica coincidem, no havendo mais sujeito e objeto, mas
processos de subjetivao e de objetivao, criao de planos que ao mesmo tempo criam
sujeitos/objetos. a dimenso de produo que abala a dicotomia sujeito-objeto e teoria-
prtica e tambm a prpria noo de campo, pois se espera do campo uma identidade que
reflita aquela de seu objeto. A despessoalizao, portanto, torna a tarefa da interveno o
acesso ao plano impessoal, plano do coletivo, que no entendido como fenmeno social,
grupo ou instituio, mas como experincia no limite do socius e no limite das formas, isto ,
uma experincia limiar.
A ampliao do campo de anlise se faz tambm com o conceito de transversalidade,
proposto por Guattari (1981), em 1964, como um coeficiente que diz respeito a graus
diferentes de abertura e de composio de diferentes vetores. Tal conceito implica uma quebra
das dimenses horizontais e verticais, possibilitando a incluso, no campo de anlise, da
prpria instituio da anlise e de seus dispositivos. uma dimenso que pretende superar os
dois impasses, o de uma pura verticalidade e o de uma simples horizontalidade; ela tende a se
realizar quando uma comunicao mxima se efetua entre os diferentes nveis e, sobretudo
nos diferentes sentidos (Idem, p.96). Ela diz respeito a uma abertura no plano da clnica
atravs de prticas de atravessamento e conexes: a transversalidade seria uma espcie de
nomadismo de fronteiras, desmanchamento incessante dos territrios cristalizados
(BENEVIDES DE BARROS, p. 198).
A transversalidade pressupe uma operao crtico-clnica de desestabilizao dos
binarismos (o que distinto no separado) e a prpria desestabilizao do caso da clnica.
Ela desestabiliza o que o caso clnico tem de limite identitrio e ele aparece como um
quantum de transversalizao. No movimento de desestabilizao desses limites identitrios
surge uma regio hbrida, um estranho espao que um espao no espacializado, o espao do
entre ou outro tipo de espao que no esse que se faz por uma operao de separao, sendo
preciso forjar uma outra maneira de operar, de trabalhar que permita habitar esse entre. Tal
conceito subverte a oposio entre os que pensam e os que fazem. preciso transformar para
conhecer: o ato de interveno que inaugura a possibilidade de conhecer: o conhecer fazer.
H um primado do fazer, de modo que a aposta no num conhecer para fazer, mas num
fazer para conhecer. Nesse sentido o sujeito suposto desse saber (aquele quem sabe)
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colocado em questo na medida em que entramos ento em contato com a dimenso de
movimento da prpria clnica (PASSOS E BENEVIDES DE BARROS)19.
Quando as identidades do sujeito que conhece e do objeto conhecido so postas em
questo, os limites entre as disciplinas so perturbados e a relao que se estabelece entre as
disciplinas de intercesso, ou seja, de interferncia, de interveno atravs da
desestabilizao de um domnio qualquer sobre o outro. O conceito de transdisciplinaridade
surge ento no mesmo movimento de ruptura das dicotomias sujeito-objeto, indivduo-
sociedade, entendendo que a relao entre esses termos primeira e deles constituinte (Idem).
Assim, ao longo do traado dos mapas, na medida em que puxamos os fios que
traam esse percurso, deparamo-nos com ns, pontos de tenso, questes que nos
obrigavam a uma certa pausa para que pudessem ganhar passagem e visibilidade ao longo do
trabalho. Esses pontos serviram de guias na trajetria de construo de uma cartografia. Na
verdade, estranhos guias, pois produziam desvios em nossa escrita, abrindo outros tantos
caminhos possveis de serem percorridos.
Essas linhas que puxamos dizem de uma viso reticular e rizomtica da realidade,
composta por linhas, sem princpio, nem fim. So tendncias, fragmentos, que no se referem
aos pedaos incompletos de uma unidade, e sim desmancham cenas identitrias, abrindo
passagem para a inveno de novos e inusitados desenhos. So linhas, portanto, disparadoras
de anlise.
Deleuze e Guattari (1995) propem o conceito de rizoma, descrevendo operaes em
rede. Diferente dos diagramas arborescentes que procedem por hierarquias sucessivas, a partir
de um ponto central em relao ao qual remonta cada elemento local, os sistemas em rizoma
ou em trelia podem derivar infinitamente, estabelecer conexes transversais sem que se
possa centr-los ou cerc-los (GUATTARI E ROLNIK, 1986). Segundo Deleuze (apud
DESCAMPS, ERIBON e MAGGIORI, 1991) a cartografia a anlise dessas linhas, dos
espaos, dos devires e nela pode-se apenas marcar os caminhos e os movimentos com
coeficientes de chance e de perigo (Idem, p.125). Parece que ao mesmo tempo muito
prximo e muito diferente dos problemas da histria (Idem, idem). Podemos perceber,
portanto, que em nosso mtodo cartogrfico, a histria uma geo-histria, pois ao
cartografar, construmos uma abordagem territorial em dois momentos: acompanhamos a
constituio dos territrios e seu potencial de fuga, ou diramos de desterritorializao.
19 Anotaes de aula, da disciplina Subjetividade e Clnica no mestrado de Psicologia/UFF no ano de 2005,ministrada pelos professores Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros. Anotaes tambm da fala doprofessor na mesa de abertura do I Congresso Internacional, II Congresso Ibero-Americano, I CongressoBrasileiro de Acompanhamento Teraputico, no dia 07 de setembro de 2006.
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As linhas esto sempre imbricadas umas nas outras: as de segmentao duraque cortam por dicotomizao, as flexveis que traam pequenasmodificaes, que se desviam dos cdigos totalizadores das primeiras e as defuga que nos conectam com o imprevisvel, com uma espcie de destinodesconhecido, tortuoso e veloz. Fazer uma cartografia, uma esquizoanliseseria traar as linhas que esto compondo um determinado territrio, as queesto dele escapando produzindo desterritorializaes, as que esto serecompondo produzindo reterritorializaes (BENEVIDES DE BARROS,1994, p. 150).
Segundo Deleuze e Guattari (1976) o territrio nasce do caos e possui um movimento
de constituio que vai do indiferenciado ao estabelecimento de um centro, mesmo que frgil.
Desse centro a uma posse e dessa posse a um outro territrio, garantindo que a vida no seja
vivida de modo turbulento, catico. A constituio do territrio a partir do caos uma criao
autnoma que constitui um frgil centro como um mnimo de organizao e de estabilidade
para se expandir. Essa criao no parte de nenhum outro lugar seno desse prprio esboo
que cria. Um criacionismo sem criador, ou uma criao em que criador e criatura se
confundem em sua emergncia.
O territrio sempre se compe de trs tipos de linhas: duras (rgidas, formas,
estruturas); flexveis (se movem, deixar passar o fora) e de fuga (ou nmades que escapam do
territrio, entram e saem, pressionam para a criao), no podendo haver predominncia
excessiva de nenhuma das trs linhas. Ele formado dessas linhas, compostas por encontros
de fluxos, ns. Sempre se faz por agenciamentos, encontros, conexes. No seio de cada
agenciamento, de cada conexo que se faz h uma multiplicidade de dimenses, linhas e
direes, cabendo acompanhar os movimentos de montagem/desmontagem e remontagem de
territrios: o territrio pode se engendrar em linhas nmades ou de fuga ou pode se
sedentarizar. Ou seja, pode se abrir para a criao, para a inveno de sadas ou pode
cristalizar certas linhas, levando ao isolamento e dificuldade de conexes, ou ao fenmeno
do tudo sempre igual, repetio identificada a um mesmo que paralisa (BENEVIDES
DE BARROS, 1994). Trata-se de acompanharmos os movimentos, os caminhos percorridos
pelas linhas que compem os territrios (BENEVIDES DE BARROS, 2002).
Para Deleuze e Guattari a existncia se d na coexistncia de dois planos: o plano
extensivo ou molar e o plano intensivo ou molecular. na coexistncia desses planos que se
do os modos de subjetivao, no havendo determinao de um sobre o outro. No plano
extensivo predominam as linhas duras de composio de territrios que implicam certos
dispositivos de saber e poder e uma sobrecodificao dos fluxos de tal forma que um ponto d
sentido e se torna referncia para os demais (plano do visvel, do estado de coisas e
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enunciados). O plano intensivo ou molecular, por sua vez, tem a predominncia de linhas
flexveis, de fluxos e devir que buscam desviar-se da sobrecodificao totalizadora das linhas
duras (plano do invisvel, da intensidade e das mutaes maqunicas). O decisivo nesse plano
so as intensidades20. No plano intensivo, essas linhas flexveis, atravs de seus
agenciamentos, operam pequenas modificaes perceptivas, sensitivas e do desejo (Neves,
2002).
O plano do qual estamos falando feito de fluxos. No h aqui umaextremidade onde se possa determinar o incio ou o fim de algo. Quandopensamos os fluxos s vemos o meio, o entre, pois s temos acesso ao efeitodo encontro dos corpos, s conexes que os fluxos estabelecem entre si.Estamos, pois, num plano em que o engendramento permanente. No h, a,um eu-sujeito pr-determinado nem um outro-objeto pr-existente, mas eusinformes e mltiplos que se constituem em pontos-signos e irrompem noplano da atualidade. A binarizao que vnhamos apontando deixa de existirporque no poderemos falar mais de sujeito ou objeto, mas de processos,seqncias de operaes que levam sempre a outras seqncias. Se noestamos frente a relaes onde um dos termos determinado pelo outro, o quetemos uma rede de conexes que no pra de se fazer. O acesso que temos aela se d atravs dos recortes que fazemos. O que podemos, ento, nosperguntar, no mais de onde vem ou o que causa ou qual seu fundamento,mas como est se operando a produo dessas conexes (BENEVIDES DEBARROS, 1994, p. 142).
Os modos de subjetivao e objetivao se fazem em meio ao que Deleuze e Guattari
(1995) chamaram de multiplicidade substantiva. O rizoma o modo, o mtodo de
funcionamento dessa multiplicidade, dessas linhas, e nele qualquer ponto pode ser conectado
com qualquer outro. No h centro, nem incio, nem fim, apenas entre, meio. O rizoma opera
no plano do contgio.
Um rizoma est sempre entre, no meio, tem como tecido as conjunes e...e... A rvore tem filiaes, comea e termina em algum ponto. O entre no algo localizvel no espao, um movimento transversal, um fluxoincessante, um devir. Como tal, no pode ser definido a no serfragmentria e provisoriamente, na relao, podendo sempre ser outracoisa, outro signo, outro som, outro animal, outro vegetal, etc. O rizoma uma rede de devires, processos maqunicos, transformaes noestratificadas. O devir aquilo que sem ser um, sem ser identidade, sem
20 Os planos molar (realidades constitudas) e molecular (processos de constituio) so composies de linhas:duras ou sedentrias, nmades ou flexveis e de fuga. Em ambos existiriam os trs tipos de linha, mas em cadaum haveria dominncia de um dos tipos. O plano molar seria predominantemente habitado por linhas duras,enquanto que no molecular a predominncia seria de linhas flexveis e de fuga. As linhas duras so aquelas queesto subordinadas a um ponto que se torna referncia, que significa os demais. Formam um sistemaarborescente, em que sempre h uma forte unidade principal tomada como referncia primeira, enquanto que asoutras duas linhas formam um rizoma (BENEVIDES DE BARROS, 1994, p. 146).
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ser indivduo. O devir est no plano do incorporal, do invisvel, dasvirtualidades. aquilo que se insinua entre as dicotomias afirmando-secomo um dos modos do ser (BENEVIDES DE BARROS, 1994, p. 146,grifos nossos).
No sistema rizomtico as conexes se fazem em qualquer ponto. No h princpio nem
fim, h um meio. Um rizoma, portanto, traa mapas abertos, desmontveis e conectveis em
todas as direes: qualquer ponto pode ser conectado a qualquer outro ponto e deve s-lo
(princpio de conexo e de heterogeneidade). No sistema de redes no se tem a idia de
fundamento, nem de origem, nem evoluo, nem continuidade. No h causalidade,
linearidade, finalismo. O que existem so processos, conexes, relaes que no se montam
por horizontalidades e verticalidades, mas por transversalidades.
Outra caracterstica do rizoma o princpio de multiplicidade. A multiplicidade no
trata da idia de uma rede que alinhava os pontos que ela contm, no uma rede protetora
(que captura), mas uma rede criadora de tenses e, portanto, trata-se da multiplicidade de
possveis:
Uma multiplicidade no tem nem sujeito nem objeto, mas somentedeterminaes, grandezas, dimenses que no podem crescer sem que mudede natureza [...]. Um agenciamento precisamente este crescimento dasdimenses numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza medida que ela aumenta suas conexes. No existem pontos ou posies numrizoma como se encontra numa estrutura, numa rvore, numa raiz. Existemsomente linhas. (DELEUZE E GUATTARRI, 1995, p. 16-17, grifos nossos).
Desse modo, a escolha do mtodo rizomtico cartogrfico implica, na construo de
mapas que vo sendo montados ao longo da pesquisa, numa experincia do acompanhamento
do traado de alguns pontos, de como essas redes se traam. A rede uma experincia de
emergncia, de conexo, uma experincia desse plano impessoal das foras. Quando tomada
em seu aspecto conectivo, ela constituda sem centro, indicando um modo de relao que
no mais de uma rede de pontos que se ligam, mas uma rede que, no momento mesmo em
que se atualiza, cria esses pontos. A rede entendida como planos de onde os pontos
emergem, rede de conexo. No tomamos as redes como dados, nem os traados como
pontos. Os pontos so pontos de emergncia e a experincia de conexo, de modo que a
transversalidade a operao constituidora do mtodo cartogrfico, do acompanhamento
desse traado, ou de como essas redes se traam. Por isso no acompanhamos o que , mas o
que est se transformando.
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No mtodo rizomtico cartogrfico a meta se constri no prprio processo de
acompanhar os movimentos. O mtodo ento no de construo de um percurso que garanta
um encaminhamento para a verdade ou para uma meta previamente definida. A metodologia
clnica que o dispositivo do AT evidencia, tal como a cartografia, diferente daquele
entendimento tradicional de metodologia como um caminho para a verdade. Ou seja, um
percurso em que se garante a adequao do caminho com um fim a ser alcanado. Nesse
sentido, o mtodo um caminho submetido a uma meta e a experincia clnica do AT
subverte justamente esse sentido quando aposta numa indefinio do percurso.
A subverso que constatamos na clnica do/no movimento a que nos obriga apensar o avesso deste sentido tradicional de mtodo, de tal forma a considerardoravante uma meta que se constri no prprio caminhar, no um mtodo,mas uma hodos-meta. Assim, sem um a priori que confere ao mais alm ovalor de fim a ser alcanado, o caminho torna-se, ento, um ato de produode si na ao gerndica do caminhando21.
Ainda que sem metas predefinidas, a clnica e a pesquisa tm uma direo e essa se d
a partir de uma postura tica. A implicao de ambas num processo de produo de
subjetividade, como resistncia s formas de assujeitamento, faz com que no se separem do
campo social, da histria, da poltica, da esttica e da tica. Isso significa que, na pesquisa,
assim como na clnica, no assumimos uma posio de julgamento, uma posio moralista a
partir de um conjunto de regras coercitivas que definem a priori o que certo e o que errado.
Por outro lado, em hiptese alguma nossa atitude (ethos) ser de omisso ou submisso.
Temos um comprometimento tico, entendido enquanto criao de um conjunto de regras
facultativas que avalia o que fazemos, o que dizemos, em funo do modo de existncia que
isso implica (DELEUZE, 1992, p. 125-126). O mtodo, portanto, nos implica politicamente.
Como parte do mtodo genealgico, Foucault prope um ethos filosfico,
caracterizando-o como atitude-limite que deve conduzir a uma dimenso experimental:
(...) uma atitude indagadora, prudente, experimental, necessria; a cada momento, a cada
passo, devemos confrontar o que estamos pensando e dizendo com o que estamos fazendo,
com o que estamos sendo (FOUCAULT22 apud RODRIGUES, 1998, p. 42).
21 Anotaes da aula, da disciplina Subjetividade e Clnica no mestrado de Psicologia/UFF no ano de 2005,ministrada pelos professores Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros e anotaes da fala de EduardoPassos na mesa de abertura do I Congresso Internacional, II Congresso Ibero-Americano, I Congresso Brasileirode Acompanhamento Teraputico, no dia 07 de setembro de 2006.22 Foucault. M. Politics and ethics, entrevista de 1983, includa em Rabinow, P. (ed) Foucault reader. NewYork: Pantheon Books, 1984, p. 374.
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[...] este trabalho, feito nos limites de ns mesmos, deve, por um lado, abrir umcampo de investigao histrica e, por outro, submeter-se ao teste de realidade, derealidade contempornea, tanto para identificar os pontos onde a mudana possvel e desejvel quanto para determinar a forma precisa que esta mudana devetomar. Isto significa que a ontologia histrica de ns mesmos deve afastar-se detodos os projetos que clamam ser globais ou radicais (Idem, 1998, p. 41).
A aposta no limite de ns mesmos tambm uma aposta na experincia de crise: no
pactuamos com a atitude confortvel do consenso, da unificao, da totalizao. Valorizamos
o dissenso, colocando em anlise nossas posies e as instituies que nos atravessam. Nossa
postura, portanto, no a de naturalizao do mandato social que nos cabe enquanto
psiclogos, clnicos, acompanhantes teraputicos, pesquisadores. Pelo contrrio, colocamos
em anlise os institudos de modo desestabiliz-los, fazendo aparecer as foras histricas do
processo de institucionalizao e salvaguardando os movimentos instituintes.
Tornando-nos atores parciais, especficos, mltiplos , e no autores de umpresente radioso e solene , Foucault nos obriga a refletir sobre a correlaonecessria entre anlise histrica e prtica cotidiana. Por um lado, a investigaohistrica nos abre a um ns-enquanto-presente e favorece o teste experimental datransgresso, do que se pode e se quer trans-formar. Por outro, so exatamente taisfissuras, tais rupturas, tais revoltas parciais e transitrios espaos de liberdade aquelas que permitem que, no limite do ns-mesmos-enquanto-elementos,contingenciemos aquilo-que-, aquilo que somos, pensamos, agimos e dizemos,historicizando-os (RODRIGUES, 1998, p. 41).
Nesse sentido, nosso mtodo se faz partindo da experincia e a ela retornando, de
modo que o que vai ganhando relevo, mais do que ela prpria, o que ela possibilita
experimentar. Ao realizarmos o mapeamento fomos, ento, construindo um plano
problemtico e, tal como na clnica, nos propusemos a construir mais problematizaes do
que solues.
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1. CONTEXTO MAPA: PUXANDO ALGUNS FIOS QUE TECEM O CAMPO DO
AT23.
1.1 Mapa 1: Nosso ponto de partida Brasil e Amrica Latina
Iniciamos nossa busca em duas grandes frentes: procuramos por textos produzidos
sobre Acompanhamento Teraputico no Brasil e em todos os outros pases na Amrica Latina.
Alm do Brasil, os pases em que encontramos material publicado sobre o tema, foram: Peru,
Mxico, Uruguai e Argentina, com especial destaque para este ltimo, pas de origem da
maioria das publicaes no brasileiras. Nossa busca se deu no sentido de encontrarmos todas
as publicaes sobre AT de janeiro de 1980 a junho de 2006, com especial ateno para
aquelas que estivessem voltadas para a relao do AT com a rede pblica de sade.
Entretanto, essas foram justamente as mais difceis de serem encontradas, e por isso
precisamos fazer um desvio metodolgico e pesquisar essas experincias a partir de contatos
telefnicos, e-mails, conversas e entrevistas informais com atores implicados diretamente na
construo do AT como dispositivo de sade no Brasil.
Fez parte tambm de nossa pesquisa, a busca por sites especficos sobre o tema do AT
e por sites oficiais do Ministrio da Sade de cada pas. Quando nenhum desses foi
encontrado, procuramos sites oficiais dos governos desses pases. Entramos em contato por e-
mail com os ministrios da sade de quase todos os pases da Amrica Latina24, sempre com
uma carta25 padro de apresentao do tema e do nosso problema de pesquisa, solicitando
contatos com instituies e pessoas que trabalham no campo da sade mental que pudessem
estar interessados em nossas experincias e em contar-nos sobre o trabalho que vm tambm
desenvolvendo no mbito do AT.
Dos pases da Amrica Latina, alguns dos endereos de e-mail foram conseguidos em
pesquisa atravs de pginas da Internet, tanto nos sites oficiais dos governos quanto em
pginas afins com nosso tema. Outros contatos so frutos da construo, ao longo da
pesquisa, de uma rede de relaes com trabalhadores de diferentes instituies de sade.
23 Ao final de nossa pesquisa, encontramos livros (19 livros), artigos (em torno de 100, incluindo aqui osdocumentos da Internet), Dissertaes de Mestrado (13) e uma Tese de Doutorado. A primeira publicao datade 1987 e a ltima de 2006, exceo da Tese da Analice Palombini de maro de 2007, constituindo-se como asegunda Tese includa em nossa pesquisa. No inclumos aqui Trabalhos de Concluso de Curso sobre AT.24 Nem todos os pases possuem um Ministrio especfico da Sade e nem todos possuem contato de e-mail.25 Ver ANEXO 1.
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Em nossa busca, constatamos que dos 2226 pases que constituem a Amrica Latina 10
no possuem sites oficiais de seus governos. Quanto aos e-mails enviados para endereos
eletrnicos conseguidos na prpria rede obtivemos resposta apenas do Chile. Apesar dos
poucos retornos que obtivemos de nossos contatos na Amrica Latina (mais ou menos 5%),
no podemos, com isso, concluir que no haja prtica do AT nos pases com os quais no
conseguimos estabelecer um contato efetivo. Como no tivemos noticias de AT nesses pases
por nenhum de nossos mecanismos de buscas, supomos que se houver AT nesses pases, a
prtica ainda pouco divulgada. Mesmo nos pases em que tivemos notcias de trabalhos de
AT ou de uma proposta parecida, ainda so poucos os registros encontrados.
Na busca de contatos no Mxico vistamos um site oficial e enviamos 14 mensagens de
e-mail, das quais no obtivemos resposta. Na Argentina tambm visitamos um site oficial e
enviamos 19 e-mails, sem resposta. Na Bolvia visitamos um site oficial e no conseguimos
nenhum endereo de mensagem eletrnica. No Chile visitamos dois sites oficiais e enviamos
mensagem eletrnica para 109 endereos, dos quais quatro responderam. Na Colmbia
visitamos um site oficial e enviamos dois e-mails, sendo um respondido. No Equador
visitamos trs sites oficiais e enviamos um e-mail, sem resposta. Na Guiana, Paraguai e
Venezuela conseguimos apenas visitar um site oficial e nenhum endereo de e-mail. No Peru
visitamos quatro sites oficiais e fizemos contato atravs de cinco endereos de e-mail, sem
resposta. No Uruguai visitamos dois sites e enviamos uma mensagem, sem resposta. Da
Argentina, Colmbia, Peru, e Mxico responderam a nossa carta pessoas para as quais nos
apresentamos a partir da indicao-referncia de profissionais do campo do AT no Brasil.
No Brasil, a dificuldade encontrada no estabelecimento de contato virtual no foi
diferente. Visitamos o site oficial do Ministrio da Sade e entramos em contato por e-mail
com todas as secretarias estaduais do pas e com todas as coordenaes de sade mental das
capitais dos estados, apresentando a mesma carta enviada para os pases da Amrica Latina.
Duas coordenadorias responderam ao contato. Uma delas foi a do Estado do Rio de Janeiro,
atravs da coordenadoria de sade mental do estado, na pessoa de Claudia Tallemberg, que
integrou o projeto de AT da Universidade Federal Fluminense em parceria com um Caps do
Municpio do Rio de Janeiro e com um Caps do Municpio de Itabora. A outra respos
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