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LITERATURA E HISTÓRIA: UM “CASO” SECULAR
CARVALHO, Aécio Flávio
De início, façamos uma reflexão metódica sobre um aspecto fundamental da criação
artística em geral e, assim, da arte literária também. Não existe a criação ex nihilo; esta
afirmação constitui-se num lugar comum, subentendida no entendimento de que o pressuposto
da obra literária é uma consciência poética pessoal. Esta consciência se sedimenta desde o
nascimento e soma múltiplas informações, vivências, sentimentos, lembranças. Em suma, tal
consciência pessoal que leva ao ato criador emerge de um mundo latente no inconsciente,
configurado em tempos e formas imprecisáveis, certamentea variável de indivíduo para
indivíduo, e que se manifesta como uma expressão artística.
Não é preciso raciocinar muito para concluir, então, que existem aspectos de
comunhão, mais ou menos profunda conforme o autor e conforme a obra, da literatura com a
história, história pessoal do indivíduo e história cultural da sociedade. Ou seja: será
frequentemente possível identificar no ato da criação literária uma inspiração nascida da
realidade histórica, seja esta distante ou contemporânea do escritor (ou, no mínimo, aduzir
conjecturas plausíveis a respeito); aliás, mutatis mutandis, será possível refletir, igualmente,
até que ponto a elaboração do relato histórico se constrói sem a isenção absoluta de uma
interferência subjetiva do relator, isto é, do historiador. Entretanto, por atraente que sejam,
estas considerações são apenas o ponto de partida, e depois o ponto de apoio, para evocar
criações literárias que, exemplificando a propriedade destas considerações teóricas, se
reafirmem como documentos incontestes da literatura inspirada na narrativa histórica,
causando estranheza no tempo e espaço da sua gênese, e ainda com revérberos mais ou menos
marcantes em nossa contemporaneidade.
Importa dizer, então, que reiteramos uma trilha temática que busca fixar a validade do
ontem para a construção do hoje, justificando, ainda, a validade da fórmula surgida no séc.
XII e atribuída ao neoplatônico Bernard de Chartres, invocada por Antoine Compagnon
(1996, p. 18): Nanus positus super humeros gigantis: somos como anões nos ombros de
gigantes.
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Metaforicamente, a fórmula implica num dos paradoxos sobre os quais Compagnon reflete na
obra citada; nos ombros de um gigante, qualquer um de nós enxergará mais longe; daí que esta visão
mais alongada não é necessariamente, mérito; deve, antes, ser reconhecimento de uma carência; não
fossem os ombros do gigante, nosso olhar seria mais chão e mais próximo. É esta uma idéia
importante para o embasamento das nossas reflexões iniciais e, aqui, tem um pressuposto especial.
Porque quando tomamos a história como ponto referencial da arte literária nós a pensamos como uma
tomada à distância (tal como o fotógrafo ou cineasta que se afasta para um foco mais amplo, uma
perspectiva mais abrangente). Tentando maior clareza na explicação: a visão histórica pressupõe o
distanciamento do fato; a história é sempre do passado. E é este distanciamento do passado que lhe dá
foros de isenção, como se o tempo escoimasse o fato das relatividades e defeitos da apreciação
contemporânea imediata. Esse pressuposto é a condição natural da elaboração do relato histórico e,
entretanto, o indicador da sua maior fragilidade, visto que o historiador – mesmo na posse de maior
quantidade de elementos documentais reunidos através do tempo – sempre será o intérprete subjetivo
dos dados que vai compulsar.
Ao dar relevância a uma afirmação desta natureza, não se pode perder a consciência das
questões que implica, de que é preciso reconhecer limites para tal interpretação, controversa até entre
teóricos de nomeada quando refletem sobre o assunto, tal como o fazem, por exemplo, Paul Ricoeur
(1955), Emile Benveniste( 1959), Roland Barthes (1967), Adam Schaft (1970), Hayden White (1973)
– todos citados por Jacques Le Goff em sua obra História e Memória, no capítulo intitulado “História
e Memória: generalizações e singularidades da história” (1990, p. 25-38) Como diria o historiador Guy
José Paulo de Hollanda, “a fonte é um motivo de felicidade e de infelicidade para o historiador” (in
Barbosa, 1999, p. 3), constantemente condicionado pela sua própria subjetividade, às vezes resvalando
perigosamente para uma criatividade limite da ficção, e, portanto, da literatura.
São, pois, tênues e difusos os limites entre a história e a literatura.
Já a primeira expressão literária do Ocidente, a Ilíada, pode ser tomada como prova
documental desta intimidade entre a literatura e a história. Como se sabe, a Ilíada narra um episódio
de uma guerra, conhecida como a guerra de Tróia. Teria havido realmente a guerra ou seria um evento
lendário, como tantos outros mitos concebidos pelos gregos? O historiador Tucídides, reconhecido
por seu espírito crítico, ainda no século IV a.C, considerava-a um evento real, conquanto criticasse
exageros da narrativa. Séculos mais tarde, em 1874, Heinrich Schliemann, um um comerciante alemão
que se arvorou a arqueólogo, apaixonado pelas obras de Homero, busca e encontra(com resultados
felizes para a história e para a arte), na Turquia, um sítio arqueológico revelando sucessivas
construções urbanas, uma das quais, chamada a Tróia VII, trai indícios da famosa guerra.
Constribuiram para dar foros de veracidade ao trabalho de Schiliemann outras descobertas dele em
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Micenas, entre as quais o túmulo de Agamenon, o comandante geral das hostes gregas no sítio de
Tróia.
Outro documento dos tempos clássicos que deixa evidente a interação da arte literária com a
história é a Eneida, epopéia latina elaborada por Virgílio. É fato conhecido que o poeta concebeu sua
obra atendendo ao pedido do imperador Otávio Augusto, desejoso de ver seu poder e glória
eternizados pela arte poética, já reconhecida na época, de Virgílio. Sem descambar para a bajulação, o
poeta soube construir um poema extraoridnário, compondo a Eneida como um monumento às glórias
romanas, sim, muito mais pela genialidade no trato da tradição mitológica da fundação de Roma e dos
fundadores da Urbs, assimilando da arte homérica o que convinha ao seu estro poético. E os grandes
vultos da história da formação do poder romano, até o auge da consolidação histórica do imperio “urbi
et orbi” estão ali, no texto do poema. Bayet, afirma que El interés dramático de La Eneida se
incrementa con su contenido histórico. (Bayer, 1966, p. 236). E, mais, relembra alguns episódios da
epopéia que evocam, simbolicamente, eventos históricos da criação de Roma e do Império Romano:
. . . la atracción, y luego la ruptura, entre Dido y Eneas prefigura la rivalidad entre Roma y Cartago; la alianza de Eneas con los etruscos evoca el largo período de civilización etrusco-latina; la conjuración de Italia contra las ciudades del Tiber (...) recordaba la guerra social (. . .) Así Virgilio había sabido ligar a Homero una prehistoria nacional refundida (...) (Bayet, op. cit., p. 237).
Resumindo todas as opiniões a respeito, citemos Cardoso, que se expressou assim:
“. . . a Eneida é, a um tempo, um poema mitológico e histórico. A lenda narrada no correr do texto - a história da acidentada viagem de Enéias, príncipe troiano salvo da guerra para fundar a nova Tróia, e das duras lutas que travou no Lácio - é mero pretexto para a exaltação de Roma e de Augusto, para a valorização do romano e de seus feitos...” (Cardoso, 1989, p.20).
Na trilha dessas construções monumentais que são a Iliada e a Eneida situa-se também a
Farsália, a obra que passa a ser objeto de consideração particular agora, nos termos da proposta deste
trabalho.
Farsália é o título pelo qual é conhecido um poema de características épicas, composto por
Lucano, poeta latino que viveu em Roma no séc. I d.C., nos tempos de Nero. O título original da obra
é Bellum Civile. Já nos primeiros versos do poema ficam esclarecidos tanto os objetivos do poeta
quanto a vinculação da obra com a história, por que o poeta é explícito e declara: Bella (...) plus quam
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ciuilia, iusque datum sceleri canimus (I, 1-2): Cantamos guerras mais que civis . . . e o direito
outorgado ao crime.1
Cabe esclarecer que o poeta se refere à segunda guerra civil da República de Roma; foi um
conflito travado entre 49 a.C. e o 45 a.C., resultado de um confronto de interesses político-pessoais de
Júlio César com a facção tradicionalista e conservadora do senado, liderada militarmente por Pompeu
Magno; a guerra terminou com a derrota da facção dos pompeanos e a ascensão definitiva de César ao
poder absoluto como ditador romano.
Dos versos citados já é plausível uma conclusão: o assunto é a guerra civil, assunto histórico;
mas o tema não é a guerra pela guerra; já se prenuncia uma tese: a guerra é um crime. Ou seja, o fato
histórico não interessa em si mesmo, interessa é o sentido que o poeta lhe dá.
Desde logo, também, se delineia uma diferença em relação à perspectiva triunfalista
presente na Eneida de Virgílio: à celebração da pax augusta concebida na epopéia virgiliana,
Lucano vai opor um poema de lamentação pela desgraça comum – commune nefas –
vivenciada pelos romanos em conseqüência da guerra civil. Virgílio se baseia no mito e na
história para celebrar o triunfo da Urbs; Lucano desdenha o mito e fixa o fato histórico como
matéria base de sua poética: criativativamente, ficcionaliza a realidade apresentada como
verdadeira pelos historiadores e lamuria o início sentido poético da Farsália; abaixo, três
excertos do poema centrados nos protagonistas da guerra civil, para comprovar a afirmação
em destaque.
A sequência do longo texto (8.060 versos) nos colocará em contato com os promotores da
guerra fratricida: César e Pompeu. São personagens históricos, que a arte de Lucano sublimará como
símbolos de ideais e arquétipos do comportamento humano. Em Pompeu, Lucano vê a postura de um
homem confiante nas glórias do passado e o compara a uma velha árvore:
qual um carvalho majestoso em terra fértil, (cuja galhada arqueia) trazendo consigo os despojos de um velho povo e as dádivas sagradas dos chefes; já não está fixo por raízes fortes, está assentado pelo próprio peso; estendendo pelo ar os ramos desfolhados, faz sombra com o tronco, não com a fronde.
Em César, o poeta vê uma força arrogante e furiosa e o compara a um raio:
É tal como um raio que, arrebatado dentre a nuvens pelos ventos,
1 Todos os excertos em latim são extraídos do texto proposto por A. Bourgery, na edição francesa indicada nas referências; as traduções correspondentes são minhas, bem como excertos apresentados em português.
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ao estrondo do ar descomprimido e com o fragor do mundo, rasga o céu e apavora o povo amedrontado, deslumbrante pela chama luminosa em ziguezague; e se enfurece em seus domínios sacros e sem que nada o impeça, cadente ou ascendente, provoca uma grande ruína agregando focos de incêndio esparsos num vasto espaço.
Aos personagens fautores da guerra, Lucano vai acrescer a figura de Catão, avultando-
lhe o papel arquetípico. Na verdade, dos três personagens principais, Catão é o que menos tem
vinculação com as raízes do conflito; entretanto, um poema intencionado à narração das lutas
civis após a morte de Crasso, teria que lhe abrir espaço, justificável pelo seu desempenho após
a morte de Pompeu. Então, criativa e poeticamente, Lucano vê o espírito de Pompeu instalar-
se no coração intemerato de Catão: inuicti posuit se mente Catonis (Pharsali a, IX, 18):
Ele (Catão), enquanto os eventos estavam indefinidos, havendo dúvida sobre quem traria a guerra civil ao mundo, mostrara aversão até a Pompeu,embora o acompanhasse no exército,levado pelo senso do dever com a pátria e a exemplodo senado. Mas, depois das desgraças na Tessália, era, de todo o coração, pompeano. Tomou a si, como um tutor, a pátria carente; reanimou as forças titubeantes do exército, repôs nas mãos pusilânimes as espadas abandonadas; gerenciou a guerra civil sem a cupidez do governo e sem o temor de servir. Em armas, nada fez em benefício próprio; após a morte de Pompeu,seu único partido era o da liberdade.
A presença de Catão na obra é mais que uma exigência do enredo histórico. Sempre é
bom lembrar que o poema ganha características inovadoras justamente pelo embasamento na
realidade (e não no mito); mas que, sublimando a realidade, o poeta sabe transmitir
mensagens outras, num plano mais elevado que o factual, o que empresta inegável
literariedade ao poema.
Os fatos, estes Lucano os relata com objetividade suficiente para os detratores da sua
capacidade artística se acharem na razão de o considerarem historiador, não um artista; mas,
na verdade, ele escreveu também com inegável vivacidade retórica, bem como com
incontestável estro poético que marca artisticamente toda a narrativa, revelando um poeta
capaz de arroubos extraordinários que justificam a admiração posterior de grandes gênios da
arte, tais como Dante Montaigne, Corneille, Goethe. Lembrando somente eventos mais
conhecidos, estão no poema os relatos das maquinações do Senado, da histórica passagem de
César transpondo o Rubicão, da fuga de Pompeu para a Grécia, do assédio à Marselha, do
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sangrento combate em Farsália, da busca de refúgio do general vencido no Egito e da traição
de que é vítima, do relato da trama sedutora de Cleópatra, do incêndio em Alexandria. Como
se vê, é possível, sim, cotejar o relato de Lucano com o de historiadores.
Entretanto, como já vimos insinuando acima, Lucano reserva um papel especial,
independente da cadeia dos fatos da guerra, a cada um dos seus personagens.
Um estudo desapaixonado do texto concluirá, pelo estudo de conteúdo do texto, que a
Farsália realiza a função épica. Ou seja: que emerge desse estudo a condição de se
identificarem os elementos que permitem a afirmação de que o autor desejou,
conscientemente, fazer poesia e poesia épica; e de que programou a elaboração do seu poema
“jogando”, de propósito, com os dados da tradição do gênero, por um lado, e com os dados da
história real, por outro. Aliás, é preciso deixar claro que Lucano tinha plena consciência do
seu valor do poeta e, portanto, da arte literária. Neste sentido, exalte-se a felicidade de
expressão dos famosos versos: O sacer et magnus uatum labor, omnia fato eripis et populis
donas mortalibus aeuum (IX, 980-81); Ó magnífico e sagrado labor dos poetas que tudo
arrebatas do destino e dás aos mortais a eternidade.
Há, efetivamente comprovada pelo discurso narrativo, uma vontade de verdade,
apoiada sobre um suporte factual. Não há dúvida que, balizado pela presença real de César, de
Pompeu e de Catão, o poeta construiu uma história de intensa aparência de objetividade.
Ainda mais que, na história real, são tais figuras, objetivamente individualizáveis, que
provocam o fluxo dos acontecimentos e das idéias. Mas, é uma história que, como tal, de per
se, não garantiria substância ao poema. Entretanto, também há, com maior força, impondo-se
eficazmente à inteligência e à emoção do leitor, igualmente comprovável pela forma
expressiva da linguagem poética, uma vontade de beleza, um sentido estético que não é
honesto negar; e, ademais, há um leque de mensagens conscientemente trabalhadas a partir da
sublimação de cada personagem, cada um numa célula narrativa peculiar, segmentável na
análise do texto,cada um representando, uma idéia-força do comportamento humano; e todos,
integrando-se as células no todo narrativo do poema, inteirando, em linguagem poética, uma
mensagem de dimensão filosófica. Lucano pratica, assim, na concretude da sua epopéia, a
definição aristotélica que distingue a poesia da história: a poesia é algo de mais filosófico e
mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular.
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Da forma como recebemos o texto da Farsália e de como tentamos expandir a
releitura do poema de Lucano, os considerandos até aqui expostos permitem uma
aproximação às narrativas que, hoje, são rotuladas, genericamente, como romances históricos.
Para a moderna crítica literária em geral, esse tipo ou espécie narrativa só surgiu no
início do século XIX; caracteriza-se pela sublimação de dados tidos como verídicos no
processo histórico (personagens, ações, ideias, instituições, costumes) de tal modo que
atinjam a dimensão da ficção.
Citam-se como sendo marcos primordiais do romance histórico da literatura universal
os romances considerados sob o título Waverley Novels a partir de 1814, produzidos por Sir
Walter Scott; trata-se de uma série de romances que, na Inglaterra e nas edições traduzidas
para a maioria das línguas européias, fixou-se como um verdadeira mania, por cerca de meio
século. Vasconcelos (2008), sobre o momento da formação intelectual de Scott, informa que
se fez à luz direta ou indireta do pensamento de filósofos da história como David Hume,
Adam Ferguson e William Robertson; e que
“a investigação teórica a respeito do processo histórico foi especialmente importante para moldar a atitude de Scott, pois chamava a atenção para os câmbios históricos, para as crises e para os modos pelos quais o passado deságua no presente ". (Vasconcelos, 2008, 18)
Podemos aplicar, perfeitamente, a consideração de Vasconcelos ao poeta latino
Lucano, no que se refere ao aproveitamento da história para pano de fundo do conteúdo
narrativo: aliás, já foi dito antes, é justamente o viés histórico da Farsália que mais chama a
atenção, desde o tempo dos seus críticos contemporâneos. É claro que são distintas, pela
forma textual, a narrativa épica de Lucano e as narrativas românticas de Scott. Claro, também,
que se a fórmula de um e de outro tem em comum o tangenciamento genérico do conteúdo
histórico-factual, tem, por outro lado, os distanciamentos derivados da conjuntura sócio-
cultural em que as obras de um e de outro foram produzidas, conjuntura que, aliás, é
compreensível que condicione diferentemente a subjetividade criativa de cada um dos artistas.
A reflexão acima não autoriza a conclusão de que está se propondo uma ligação de
causa e efeito entre a epopéia e o romance; mas deve servir à comprovação de estamos
sempre falando de manifestações de um único gênero, o narrativo, do qual epopéia e romance
são expressões mais significativas, a primeira num passado que, de muitos modos, “deságua
no presente”; e que narrativas de fundo histórico, no passado ou no presente, beberam da
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mesma fonte, constituindo-se, ontem ou hoje, episódios eventuais dos arrufos do caso secular
entre a literatura e a história.
O mesmo Lukacs que a quem se deve a vulgarização da definição do romance como
epopeia burguesa, já estudava a presença dessa espécie de narrativa com características
históricas numa monografia específica publicada precisamente com o título O Romance
Histórico (1937), onde conforme comentário de Rinaldo Fernandes (2005) doutrinava que
“houve romances que exploraram a temática histórica — mas sem uma representação artística que penetrasse na essência de um período histórico concreto. Seriam precursores do romance histórico as narrativas da história antiga, os mitos da Idade Média; antigos relatos chineses e indianos”.
Ao longo dos séculos, romances aos quais a crítica exalta como singulares
documentos da modalidade romance histórico são muitos. Elegemos, considerando o papel
modelar que a história e a crítica lhes emprestam, a simples menção de Ivanhoé (1819), de
Walter Scott, Os Três Mosqueteiros (1844) de Alexandre Dumas, Os noivos (1842), de
Alessandro Manzoni, Guerra e Paz (1869), de Leon Tolstoi, Eurico, o Presbítero (1844), de
Alexandre Herculano. Dos autores mais recentes, lembremos O nome da Rosa (1986?), de
Umberto Ecco e Memorial do Convento (1982), de José Saramago.
Entre nós, as manifestações do romance histórico, no séc. XIX, traem as preocupações
dos tempos de afirmação da nossa independência política recente; e, a par da busca de uma
identificação com o modelo europeu onde nasce o romantismo - e nele a espécie narrativa
romance histórico - há também a preocupação diferenciada, por isso mesmo notável, da
busca de raízes de uma identidade nacional e da sua expresão autônoma. Por outras palavras,
busca-se – a par da independEncia política - também a independência cultural. Os
historiadores da nossa literatura vêem como casos exemplares primordiais da realização do
romance histórico entre nós as obras de José de Alencar O Guarani e Iracema. Da primeira,
Candido diz que “realiza talvez com maior eficiência a literatura nacional, americana”
(Candido, 2000, p. 200); da segunda, que “brota, no limite da poesia, como o exemplar mais
perfeito da prosa poética na ficção romântica – realizando o ideal tão acariciado de integrar a
expressão literária numa ordem mais plena de evocação plástica e musical” (idem, ibidem).
Alencar mesmo, enquanto demonstra consciência do momento histórico de indepentização
que o Brasil viveu em analogia com outras nações americanas, afirma que “essa aproximação
vem da históaia, é fatal.”
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Com certeza há muitas variáveis na inspiração das obras que podem ser lembradas
como representativas de um romance histórico, ou seja, narrativas motivadas por uma leitura
pessoal de eventos históricos ou presumidamente históricos, confirmando as intrigas desse
caso eterno entre a realidade factual e a ficção. Algumas tem uma vinculação mais nítida com
a fonte; e o purismo crítico-literário nem as refere como obras da literatura; neste caso lembro
A retirada da Laguna, de Alfredo D’Escragnole Taunay, de 1971 e Os Sertões, de Euclides da
Cunha, 1902, contribuições mais que interessantes à simbolização de momentos e
vicissitudes da nossa história, elaboradas numa forma artística de inegável valor. Sobre outras
obras, aproveito a síntese e a apreciação da Profa. Dra. Vera Follain de Figueiredo, que
transcrevo na íntegra:
No Brasil, apesar de o modernismo, na década de 20, ter sido um pioneiro, no subcontinente, na crítica à visão de história gestada pelo Ocidente moderno, através, principalmente, da obra de Oswald de Andrade e do romance Macunaíma, de Mário de Andrade, a revisão do passado com propósitos descolonizadores não fertilizou de maneira mais significativa a ficção posterior. Algumas obras, como Quarup, de Antônio Callado, Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro e A casca da serpente, de J.J. Veiga, procuraram apresentar releituras do passado, fazendo a crítica da modernização excludente de que fomos vítimas e relativizando certezas do racionalismo ocidental. Entretanto, em nosso país, cresce, nas três últimas décadas, o número de narrativas de ficção histórica, mas apresentando características distintas daquelas apontadas nos romances de resistência. Obras como Galvez, o Imperador do Acre, de Márcio Souza, O Boca do Inferno, de Ana Miranda, O Chalaça, de José Roberto Torero, Agosto, de Rubem Fonseca, e outras constituem um novo tipo de romances históricos (op. cit.).
Não obstante serem sintéticas, as considerações que aqui se finalizam, fincadas nas
raízes do passado, pretendem servir, minimamente, para o (re) conhecimento e resgate dos
méritos do poeta latino Lucano e da sua obra, a Farsália, que mesmo trabalhando conteúdos
de natureza histórica - com uma primazia de séculos – prepararam o caminho à revolução da
fórmula narrativa, enfim consagrada como romance, particularmente ao que se convencionou
chamar romance histórico. Por outro lado, servem estas considerações para o enaltecimento
de outros tantos artistas da literatura que, com serem mais factualmente identificáveis as suas
fontes de inspiração, caem no índex de uma depreciação crítica, que, talvez, se
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Referências:
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Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, Ano XII, n. 18, 2008.
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