10
1 LITERATURA E HISTÓRIA: UM “CASO” SECULAR CARVALHO, Aécio Flávio De início, façamos uma reflexão metódica sobre um aspecto fundamental da criação artística em geral e, assim, da arte literária também. Não existe a criação ex nihilo; esta afirmação constitui-se num lugar comum, subentendida no entendimento de que o pressuposto da obra literária é uma consciência poética pessoal. Esta consciência se sedimenta desde o nascimento e soma múltiplas informações, vivências, sentimentos, lembranças. Em suma, tal consciência pessoal que leva ao ato criador emerge de um mundo latente no inconsciente, configurado em tempos e formas imprecisáveis, certamentea variável de indivíduo para indivíduo, e que se manifesta como uma expressão artística. Não é preciso raciocinar muito para concluir, então, que existem aspectos de comunhão, mais ou menos profunda conforme o autor e conforme a obra, da literatura com a história, história pessoal do indivíduo e história cultural da sociedade. Ou seja: será frequentemente possível identificar no ato da criação literária uma inspiração nascida da realidade histórica, seja esta distante ou contemporânea do escritor (ou, no mínimo, aduzir conjecturas plausíveis a respeito); aliás, mutatis mutandis, será possível refletir, igualmente, até que ponto a elaboração do relato histórico se constrói sem a isenção absoluta de uma interferência subjetiva do relator, isto é, do historiador. Entretanto, por atraente que sejam, estas considerações são apenas o ponto de partida, e depois o ponto de apoio, para evocar criações literárias que, exemplificando a propriedade destas considerações teóricas, se reafirmem como documentos incontestes da literatura inspirada na narrativa histórica, causando estranheza no tempo e espaço da sua gênese, e ainda com revérberos mais ou menos marcantes em nossa contemporaneidade. Importa dizer, então, que reiteramos uma trilha temática que busca fixar a validade do ontem para a construção do hoje, justificando, ainda, a validade da fórmula surgida no séc. XII e atribuída ao neoplatônico Bernard de Chartres, invocada por Antoine Compagnon (1996, p. 18): Nanus positus super humeros gigantis: somos como anões nos ombros de gigantes.

LITERATURA E HISTÓRIA: UM “CASO” SECULAR · 3 Micenas, entre as quais o túmulo de Agamenon, o comandante geral das hostes gregas no sítio de Tróia. Outro documento dos tempos

  • Upload
    vonga

  • View
    213

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: LITERATURA E HISTÓRIA: UM “CASO” SECULAR · 3 Micenas, entre as quais o túmulo de Agamenon, o comandante geral das hostes gregas no sítio de Tróia. Outro documento dos tempos

1

LITERATURA E HISTÓRIA: UM “CASO” SECULAR

CARVALHO, Aécio Flávio

De início, façamos uma reflexão metódica sobre um aspecto fundamental da criação

artística em geral e, assim, da arte literária também. Não existe a criação ex nihilo; esta

afirmação constitui-se num lugar comum, subentendida no entendimento de que o pressuposto

da obra literária é uma consciência poética pessoal. Esta consciência se sedimenta desde o

nascimento e soma múltiplas informações, vivências, sentimentos, lembranças. Em suma, tal

consciência pessoal que leva ao ato criador emerge de um mundo latente no inconsciente,

configurado em tempos e formas imprecisáveis, certamentea variável de indivíduo para

indivíduo, e que se manifesta como uma expressão artística.

Não é preciso raciocinar muito para concluir, então, que existem aspectos de

comunhão, mais ou menos profunda conforme o autor e conforme a obra, da literatura com a

história, história pessoal do indivíduo e história cultural da sociedade. Ou seja: será

frequentemente possível identificar no ato da criação literária uma inspiração nascida da

realidade histórica, seja esta distante ou contemporânea do escritor (ou, no mínimo, aduzir

conjecturas plausíveis a respeito); aliás, mutatis mutandis, será possível refletir, igualmente,

até que ponto a elaboração do relato histórico se constrói sem a isenção absoluta de uma

interferência subjetiva do relator, isto é, do historiador. Entretanto, por atraente que sejam,

estas considerações são apenas o ponto de partida, e depois o ponto de apoio, para evocar

criações literárias que, exemplificando a propriedade destas considerações teóricas, se

reafirmem como documentos incontestes da literatura inspirada na narrativa histórica,

causando estranheza no tempo e espaço da sua gênese, e ainda com revérberos mais ou menos

marcantes em nossa contemporaneidade.

Importa dizer, então, que reiteramos uma trilha temática que busca fixar a validade do

ontem para a construção do hoje, justificando, ainda, a validade da fórmula surgida no séc.

XII e atribuída ao neoplatônico Bernard de Chartres, invocada por Antoine Compagnon

(1996, p. 18): Nanus positus super humeros gigantis: somos como anões nos ombros de

gigantes.

Page 2: LITERATURA E HISTÓRIA: UM “CASO” SECULAR · 3 Micenas, entre as quais o túmulo de Agamenon, o comandante geral das hostes gregas no sítio de Tróia. Outro documento dos tempos

2

Metaforicamente, a fórmula implica num dos paradoxos sobre os quais Compagnon reflete na

obra citada; nos ombros de um gigante, qualquer um de nós enxergará mais longe; daí que esta visão

mais alongada não é necessariamente, mérito; deve, antes, ser reconhecimento de uma carência; não

fossem os ombros do gigante, nosso olhar seria mais chão e mais próximo. É esta uma idéia

importante para o embasamento das nossas reflexões iniciais e, aqui, tem um pressuposto especial.

Porque quando tomamos a história como ponto referencial da arte literária nós a pensamos como uma

tomada à distância (tal como o fotógrafo ou cineasta que se afasta para um foco mais amplo, uma

perspectiva mais abrangente). Tentando maior clareza na explicação: a visão histórica pressupõe o

distanciamento do fato; a história é sempre do passado. E é este distanciamento do passado que lhe dá

foros de isenção, como se o tempo escoimasse o fato das relatividades e defeitos da apreciação

contemporânea imediata. Esse pressuposto é a condição natural da elaboração do relato histórico e,

entretanto, o indicador da sua maior fragilidade, visto que o historiador – mesmo na posse de maior

quantidade de elementos documentais reunidos através do tempo – sempre será o intérprete subjetivo

dos dados que vai compulsar.

Ao dar relevância a uma afirmação desta natureza, não se pode perder a consciência das

questões que implica, de que é preciso reconhecer limites para tal interpretação, controversa até entre

teóricos de nomeada quando refletem sobre o assunto, tal como o fazem, por exemplo, Paul Ricoeur

(1955), Emile Benveniste( 1959), Roland Barthes (1967), Adam Schaft (1970), Hayden White (1973)

– todos citados por Jacques Le Goff em sua obra História e Memória, no capítulo intitulado “História

e Memória: generalizações e singularidades da história” (1990, p. 25-38) Como diria o historiador Guy

José Paulo de Hollanda, “a fonte é um motivo de felicidade e de infelicidade para o historiador” (in

Barbosa, 1999, p. 3), constantemente condicionado pela sua própria subjetividade, às vezes resvalando

perigosamente para uma criatividade limite da ficção, e, portanto, da literatura.

São, pois, tênues e difusos os limites entre a história e a literatura.

Já a primeira expressão literária do Ocidente, a Ilíada, pode ser tomada como prova

documental desta intimidade entre a literatura e a história. Como se sabe, a Ilíada narra um episódio

de uma guerra, conhecida como a guerra de Tróia. Teria havido realmente a guerra ou seria um evento

lendário, como tantos outros mitos concebidos pelos gregos? O historiador Tucídides, reconhecido

por seu espírito crítico, ainda no século IV a.C, considerava-a um evento real, conquanto criticasse

exageros da narrativa. Séculos mais tarde, em 1874, Heinrich Schliemann, um um comerciante alemão

que se arvorou a arqueólogo, apaixonado pelas obras de Homero, busca e encontra(com resultados

felizes para a história e para a arte), na Turquia, um sítio arqueológico revelando sucessivas

construções urbanas, uma das quais, chamada a Tróia VII, trai indícios da famosa guerra.

Constribuiram para dar foros de veracidade ao trabalho de Schiliemann outras descobertas dele em

Page 3: LITERATURA E HISTÓRIA: UM “CASO” SECULAR · 3 Micenas, entre as quais o túmulo de Agamenon, o comandante geral das hostes gregas no sítio de Tróia. Outro documento dos tempos

3

Micenas, entre as quais o túmulo de Agamenon, o comandante geral das hostes gregas no sítio de

Tróia.

Outro documento dos tempos clássicos que deixa evidente a interação da arte literária com a

história é a Eneida, epopéia latina elaborada por Virgílio. É fato conhecido que o poeta concebeu sua

obra atendendo ao pedido do imperador Otávio Augusto, desejoso de ver seu poder e glória

eternizados pela arte poética, já reconhecida na época, de Virgílio. Sem descambar para a bajulação, o

poeta soube construir um poema extraoridnário, compondo a Eneida como um monumento às glórias

romanas, sim, muito mais pela genialidade no trato da tradição mitológica da fundação de Roma e dos

fundadores da Urbs, assimilando da arte homérica o que convinha ao seu estro poético. E os grandes

vultos da história da formação do poder romano, até o auge da consolidação histórica do imperio “urbi

et orbi” estão ali, no texto do poema. Bayet, afirma que El interés dramático de La Eneida se

incrementa con su contenido histórico. (Bayer, 1966, p. 236). E, mais, relembra alguns episódios da

epopéia que evocam, simbolicamente, eventos históricos da criação de Roma e do Império Romano:

. . . la atracción, y luego la ruptura, entre Dido y Eneas prefigura la rivalidad entre Roma y Cartago; la alianza de Eneas con los etruscos evoca el largo período de civilización etrusco-latina; la conjuración de Italia contra las ciudades del Tiber (...) recordaba la guerra social (. . .) Así Virgilio había sabido ligar a Homero una prehistoria nacional refundida (...) (Bayet, op. cit., p. 237).

Resumindo todas as opiniões a respeito, citemos Cardoso, que se expressou assim:

“. . . a Eneida é, a um tempo, um poema mitológico e histórico. A lenda narrada no correr do texto - a história da acidentada viagem de Enéias, príncipe troiano salvo da guerra para fundar a nova Tróia, e das duras lutas que travou no Lácio - é mero pretexto para a exaltação de Roma e de Augusto, para a valorização do romano e de seus feitos...” (Cardoso, 1989, p.20).

Na trilha dessas construções monumentais que são a Iliada e a Eneida situa-se também a

Farsália, a obra que passa a ser objeto de consideração particular agora, nos termos da proposta deste

trabalho.

Farsália é o título pelo qual é conhecido um poema de características épicas, composto por

Lucano, poeta latino que viveu em Roma no séc. I d.C., nos tempos de Nero. O título original da obra

é Bellum Civile. Já nos primeiros versos do poema ficam esclarecidos tanto os objetivos do poeta

quanto a vinculação da obra com a história, por que o poeta é explícito e declara: Bella (...) plus quam

Page 4: LITERATURA E HISTÓRIA: UM “CASO” SECULAR · 3 Micenas, entre as quais o túmulo de Agamenon, o comandante geral das hostes gregas no sítio de Tróia. Outro documento dos tempos

4

ciuilia, iusque datum sceleri canimus (I, 1-2): Cantamos guerras mais que civis . . . e o direito

outorgado ao crime.1

Cabe esclarecer que o poeta se refere à segunda guerra civil da República de Roma; foi um

conflito travado entre 49 a.C. e o 45 a.C., resultado de um confronto de interesses político-pessoais de

Júlio César com a facção tradicionalista e conservadora do senado, liderada militarmente por Pompeu

Magno; a guerra terminou com a derrota da facção dos pompeanos e a ascensão definitiva de César ao

poder absoluto como ditador romano.

Dos versos citados já é plausível uma conclusão: o assunto é a guerra civil, assunto histórico;

mas o tema não é a guerra pela guerra; já se prenuncia uma tese: a guerra é um crime. Ou seja, o fato

histórico não interessa em si mesmo, interessa é o sentido que o poeta lhe dá.

Desde logo, também, se delineia uma diferença em relação à perspectiva triunfalista

presente na Eneida de Virgílio: à celebração da pax augusta concebida na epopéia virgiliana,

Lucano vai opor um poema de lamentação pela desgraça comum – commune nefas –

vivenciada pelos romanos em conseqüência da guerra civil. Virgílio se baseia no mito e na

história para celebrar o triunfo da Urbs; Lucano desdenha o mito e fixa o fato histórico como

matéria base de sua poética: criativativamente, ficcionaliza a realidade apresentada como

verdadeira pelos historiadores e lamuria o início sentido poético da Farsália; abaixo, três

excertos do poema centrados nos protagonistas da guerra civil, para comprovar a afirmação

em destaque.

A sequência do longo texto (8.060 versos) nos colocará em contato com os promotores da

guerra fratricida: César e Pompeu. São personagens históricos, que a arte de Lucano sublimará como

símbolos de ideais e arquétipos do comportamento humano. Em Pompeu, Lucano vê a postura de um

homem confiante nas glórias do passado e o compara a uma velha árvore:

qual um carvalho majestoso em terra fértil, (cuja galhada arqueia) trazendo consigo os despojos de um velho povo e as dádivas sagradas dos chefes; já não está fixo por raízes fortes, está assentado pelo próprio peso; estendendo pelo ar os ramos desfolhados, faz sombra com o tronco, não com a fronde.

Em César, o poeta vê uma força arrogante e furiosa e o compara a um raio:

É tal como um raio que, arrebatado dentre a nuvens pelos ventos,

1 Todos os excertos em latim são extraídos do texto proposto por A. Bourgery, na edição francesa indicada nas referências; as traduções correspondentes são minhas, bem como excertos apresentados em português.

Page 5: LITERATURA E HISTÓRIA: UM “CASO” SECULAR · 3 Micenas, entre as quais o túmulo de Agamenon, o comandante geral das hostes gregas no sítio de Tróia. Outro documento dos tempos

5

ao estrondo do ar descomprimido e com o fragor do mundo, rasga o céu e apavora o povo amedrontado, deslumbrante pela chama luminosa em ziguezague; e se enfurece em seus domínios sacros e sem que nada o impeça, cadente ou ascendente, provoca uma grande ruína agregando focos de incêndio esparsos num vasto espaço.

Aos personagens fautores da guerra, Lucano vai acrescer a figura de Catão, avultando-

lhe o papel arquetípico. Na verdade, dos três personagens principais, Catão é o que menos tem

vinculação com as raízes do conflito; entretanto, um poema intencionado à narração das lutas

civis após a morte de Crasso, teria que lhe abrir espaço, justificável pelo seu desempenho após

a morte de Pompeu. Então, criativa e poeticamente, Lucano vê o espírito de Pompeu instalar-

se no coração intemerato de Catão: inuicti posuit se mente Catonis (Pharsali a, IX, 18):

Ele (Catão), enquanto os eventos estavam indefinidos, havendo dúvida sobre quem traria a guerra civil ao mundo, mostrara aversão até a Pompeu,embora o acompanhasse no exército,levado pelo senso do dever com a pátria e a exemplodo senado. Mas, depois das desgraças na Tessália, era, de todo o coração, pompeano. Tomou a si, como um tutor, a pátria carente; reanimou as forças titubeantes do exército, repôs nas mãos pusilânimes as espadas abandonadas; gerenciou a guerra civil sem a cupidez do governo e sem o temor de servir. Em armas, nada fez em benefício próprio; após a morte de Pompeu,seu único partido era o da liberdade.

A presença de Catão na obra é mais que uma exigência do enredo histórico. Sempre é

bom lembrar que o poema ganha características inovadoras justamente pelo embasamento na

realidade (e não no mito); mas que, sublimando a realidade, o poeta sabe transmitir

mensagens outras, num plano mais elevado que o factual, o que empresta inegável

literariedade ao poema.

Os fatos, estes Lucano os relata com objetividade suficiente para os detratores da sua

capacidade artística se acharem na razão de o considerarem historiador, não um artista; mas,

na verdade, ele escreveu também com inegável vivacidade retórica, bem como com

incontestável estro poético que marca artisticamente toda a narrativa, revelando um poeta

capaz de arroubos extraordinários que justificam a admiração posterior de grandes gênios da

arte, tais como Dante Montaigne, Corneille, Goethe. Lembrando somente eventos mais

conhecidos, estão no poema os relatos das maquinações do Senado, da histórica passagem de

César transpondo o Rubicão, da fuga de Pompeu para a Grécia, do assédio à Marselha, do

Page 6: LITERATURA E HISTÓRIA: UM “CASO” SECULAR · 3 Micenas, entre as quais o túmulo de Agamenon, o comandante geral das hostes gregas no sítio de Tróia. Outro documento dos tempos

6

sangrento combate em Farsália, da busca de refúgio do general vencido no Egito e da traição

de que é vítima, do relato da trama sedutora de Cleópatra, do incêndio em Alexandria. Como

se vê, é possível, sim, cotejar o relato de Lucano com o de historiadores.

Entretanto, como já vimos insinuando acima, Lucano reserva um papel especial,

independente da cadeia dos fatos da guerra, a cada um dos seus personagens.

Um estudo desapaixonado do texto concluirá, pelo estudo de conteúdo do texto, que a

Farsália realiza a função épica. Ou seja: que emerge desse estudo a condição de se

identificarem os elementos que permitem a afirmação de que o autor desejou,

conscientemente, fazer poesia e poesia épica; e de que programou a elaboração do seu poema

“jogando”, de propósito, com os dados da tradição do gênero, por um lado, e com os dados da

história real, por outro. Aliás, é preciso deixar claro que Lucano tinha plena consciência do

seu valor do poeta e, portanto, da arte literária. Neste sentido, exalte-se a felicidade de

expressão dos famosos versos: O sacer et magnus uatum labor, omnia fato eripis et populis

donas mortalibus aeuum (IX, 980-81); Ó magnífico e sagrado labor dos poetas que tudo

arrebatas do destino e dás aos mortais a eternidade.

Há, efetivamente comprovada pelo discurso narrativo, uma vontade de verdade,

apoiada sobre um suporte factual. Não há dúvida que, balizado pela presença real de César, de

Pompeu e de Catão, o poeta construiu uma história de intensa aparência de objetividade.

Ainda mais que, na história real, são tais figuras, objetivamente individualizáveis, que

provocam o fluxo dos acontecimentos e das idéias. Mas, é uma história que, como tal, de per

se, não garantiria substância ao poema. Entretanto, também há, com maior força, impondo-se

eficazmente à inteligência e à emoção do leitor, igualmente comprovável pela forma

expressiva da linguagem poética, uma vontade de beleza, um sentido estético que não é

honesto negar; e, ademais, há um leque de mensagens conscientemente trabalhadas a partir da

sublimação de cada personagem, cada um numa célula narrativa peculiar, segmentável na

análise do texto,cada um representando, uma idéia-força do comportamento humano; e todos,

integrando-se as células no todo narrativo do poema, inteirando, em linguagem poética, uma

mensagem de dimensão filosófica. Lucano pratica, assim, na concretude da sua epopéia, a

definição aristotélica que distingue a poesia da história: a poesia é algo de mais filosófico e

mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular.

Page 7: LITERATURA E HISTÓRIA: UM “CASO” SECULAR · 3 Micenas, entre as quais o túmulo de Agamenon, o comandante geral das hostes gregas no sítio de Tróia. Outro documento dos tempos

7

Da forma como recebemos o texto da Farsália e de como tentamos expandir a

releitura do poema de Lucano, os considerandos até aqui expostos permitem uma

aproximação às narrativas que, hoje, são rotuladas, genericamente, como romances históricos.

Para a moderna crítica literária em geral, esse tipo ou espécie narrativa só surgiu no

início do século XIX; caracteriza-se pela sublimação de dados tidos como verídicos no

processo histórico (personagens, ações, ideias, instituições, costumes) de tal modo que

atinjam a dimensão da ficção.

Citam-se como sendo marcos primordiais do romance histórico da literatura universal

os romances considerados sob o título Waverley Novels a partir de 1814, produzidos por Sir

Walter Scott; trata-se de uma série de romances que, na Inglaterra e nas edições traduzidas

para a maioria das línguas européias, fixou-se como um verdadeira mania, por cerca de meio

século. Vasconcelos (2008), sobre o momento da formação intelectual de Scott, informa que

se fez à luz direta ou indireta do pensamento de filósofos da história como David Hume,

Adam Ferguson e William Robertson; e que

“a investigação teórica a respeito do processo histórico foi especialmente importante para moldar a atitude de Scott, pois chamava a atenção para os câmbios históricos, para as crises e para os modos pelos quais o passado deságua no presente ". (Vasconcelos, 2008, 18)

Podemos aplicar, perfeitamente, a consideração de Vasconcelos ao poeta latino

Lucano, no que se refere ao aproveitamento da história para pano de fundo do conteúdo

narrativo: aliás, já foi dito antes, é justamente o viés histórico da Farsália que mais chama a

atenção, desde o tempo dos seus críticos contemporâneos. É claro que são distintas, pela

forma textual, a narrativa épica de Lucano e as narrativas românticas de Scott. Claro, também,

que se a fórmula de um e de outro tem em comum o tangenciamento genérico do conteúdo

histórico-factual, tem, por outro lado, os distanciamentos derivados da conjuntura sócio-

cultural em que as obras de um e de outro foram produzidas, conjuntura que, aliás, é

compreensível que condicione diferentemente a subjetividade criativa de cada um dos artistas.

A reflexão acima não autoriza a conclusão de que está se propondo uma ligação de

causa e efeito entre a epopéia e o romance; mas deve servir à comprovação de estamos

sempre falando de manifestações de um único gênero, o narrativo, do qual epopéia e romance

são expressões mais significativas, a primeira num passado que, de muitos modos, “deságua

no presente”; e que narrativas de fundo histórico, no passado ou no presente, beberam da

Page 8: LITERATURA E HISTÓRIA: UM “CASO” SECULAR · 3 Micenas, entre as quais o túmulo de Agamenon, o comandante geral das hostes gregas no sítio de Tróia. Outro documento dos tempos

8

mesma fonte, constituindo-se, ontem ou hoje, episódios eventuais dos arrufos do caso secular

entre a literatura e a história.

O mesmo Lukacs que a quem se deve a vulgarização da definição do romance como

epopeia burguesa, já estudava a presença dessa espécie de narrativa com características

históricas numa monografia específica publicada precisamente com o título O Romance

Histórico (1937), onde conforme comentário de Rinaldo Fernandes (2005) doutrinava que

“houve romances que exploraram a temática histórica — mas sem uma representação artística que penetrasse na essência de um período histórico concreto. Seriam precursores do romance histórico as narrativas da história antiga, os mitos da Idade Média; antigos relatos chineses e indianos”.

Ao longo dos séculos, romances aos quais a crítica exalta como singulares

documentos da modalidade romance histórico são muitos. Elegemos, considerando o papel

modelar que a história e a crítica lhes emprestam, a simples menção de Ivanhoé (1819), de

Walter Scott, Os Três Mosqueteiros (1844) de Alexandre Dumas, Os noivos (1842), de

Alessandro Manzoni, Guerra e Paz (1869), de Leon Tolstoi, Eurico, o Presbítero (1844), de

Alexandre Herculano. Dos autores mais recentes, lembremos O nome da Rosa (1986?), de

Umberto Ecco e Memorial do Convento (1982), de José Saramago.

Entre nós, as manifestações do romance histórico, no séc. XIX, traem as preocupações

dos tempos de afirmação da nossa independência política recente; e, a par da busca de uma

identificação com o modelo europeu onde nasce o romantismo - e nele a espécie narrativa

romance histórico - há também a preocupação diferenciada, por isso mesmo notável, da

busca de raízes de uma identidade nacional e da sua expresão autônoma. Por outras palavras,

busca-se – a par da independEncia política - também a independência cultural. Os

historiadores da nossa literatura vêem como casos exemplares primordiais da realização do

romance histórico entre nós as obras de José de Alencar O Guarani e Iracema. Da primeira,

Candido diz que “realiza talvez com maior eficiência a literatura nacional, americana”

(Candido, 2000, p. 200); da segunda, que “brota, no limite da poesia, como o exemplar mais

perfeito da prosa poética na ficção romântica – realizando o ideal tão acariciado de integrar a

expressão literária numa ordem mais plena de evocação plástica e musical” (idem, ibidem).

Alencar mesmo, enquanto demonstra consciência do momento histórico de indepentização

que o Brasil viveu em analogia com outras nações americanas, afirma que “essa aproximação

vem da históaia, é fatal.”

Page 9: LITERATURA E HISTÓRIA: UM “CASO” SECULAR · 3 Micenas, entre as quais o túmulo de Agamenon, o comandante geral das hostes gregas no sítio de Tróia. Outro documento dos tempos

9

Com certeza há muitas variáveis na inspiração das obras que podem ser lembradas

como representativas de um romance histórico, ou seja, narrativas motivadas por uma leitura

pessoal de eventos históricos ou presumidamente históricos, confirmando as intrigas desse

caso eterno entre a realidade factual e a ficção. Algumas tem uma vinculação mais nítida com

a fonte; e o purismo crítico-literário nem as refere como obras da literatura; neste caso lembro

A retirada da Laguna, de Alfredo D’Escragnole Taunay, de 1971 e Os Sertões, de Euclides da

Cunha, 1902, contribuições mais que interessantes à simbolização de momentos e

vicissitudes da nossa história, elaboradas numa forma artística de inegável valor. Sobre outras

obras, aproveito a síntese e a apreciação da Profa. Dra. Vera Follain de Figueiredo, que

transcrevo na íntegra:

No Brasil, apesar de o modernismo, na década de 20, ter sido um pioneiro, no subcontinente, na crítica à visão de história gestada pelo Ocidente moderno, através, principalmente, da obra de Oswald de Andrade e do romance Macunaíma, de Mário de Andrade, a revisão do passado com propósitos descolonizadores não fertilizou de maneira mais significativa a ficção posterior. Algumas obras, como Quarup, de Antônio Callado, Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro e A casca da serpente, de J.J. Veiga, procuraram apresentar releituras do passado, fazendo a crítica da modernização excludente de que fomos vítimas e relativizando certezas do racionalismo ocidental. Entretanto, em nosso país, cresce, nas três últimas décadas, o número de narrativas de ficção histórica, mas apresentando características distintas daquelas apontadas nos romances de resistência. Obras como Galvez, o Imperador do Acre, de Márcio Souza, O Boca do Inferno, de Ana Miranda, O Chalaça, de José Roberto Torero, Agosto, de Rubem Fonseca, e outras constituem um novo tipo de romances históricos (op. cit.).

Não obstante serem sintéticas, as considerações que aqui se finalizam, fincadas nas

raízes do passado, pretendem servir, minimamente, para o (re) conhecimento e resgate dos

méritos do poeta latino Lucano e da sua obra, a Farsália, que mesmo trabalhando conteúdos

de natureza histórica - com uma primazia de séculos – prepararam o caminho à revolução da

fórmula narrativa, enfim consagrada como romance, particularmente ao que se convencionou

chamar romance histórico. Por outro lado, servem estas considerações para o enaltecimento

de outros tantos artistas da literatura que, com serem mais factualmente identificáveis as suas

fontes de inspiração, caem no índex de uma depreciação crítica, que, talvez, se

Page 10: LITERATURA E HISTÓRIA: UM “CASO” SECULAR · 3 Micenas, entre as quais o túmulo de Agamenon, o comandante geral das hostes gregas no sítio de Tróia. Outro documento dos tempos

10

Referências:

ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro Souza. São Paulo: Ars Poetica, 1992.

BARBOSA, Wilson do Nascimento. O historiador e o fato histórico: um dialógo através da

fonte. Montes Claros: Revista de História da Universidade Unimontes, julho / 1999. Também

on-line em http://nepheusp.googlepages.com/Ohistoriadoreofatohistorico.pdf. Último acesso

em 17/07/2010.

BAYET, Jean. Literatura Latina. Traduccion del francés y del latin por Andrés Spinosa

Alarcón. Barcelona: Ediciones Ariel, 1966.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte:

Editora Itatiaia, 2000.

CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989.

CARVALHO, Aécio Flavio. Uma releeitura da Farsália de Lucano: os conjuntos narrativos

essenciais.Tese apresentada ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP, sob

orientação da Profa. Dra. Zélia L.V. de Almeida Cardoso, em 1999.

COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Trad. de Cleonice P. Mourã

o, Consuelo F. Santiago e Eunice D. Galéry. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996

FERNADES, Rinaldo. O herói do meio: uma abordagem da teoria do romance histórico de

Georg Lukács. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Também disponível em:

http://www.adufpb.org.br/publica/conceitos/09/art_13.pdf.

FIGUEIREDO,Vera Follain de. O romance histórico contemporâneo na América Latina.

Disponível em http://lfilipe.tripod.com/Vera.html#5. Último acesso: 16/07/2010

LE GOFF, Jacques. História e Memória: generalizações e singularidades da história. In

“História e Memória”, 1990. Disponível on-line http://www.scribd.com/doc/3082350.

Último acesso em 17/07/2010.

LUCAIN. La guerre civile (La Pharsale), tomes I e II, texte établi et traduit par A. Bourgery.

Paris: Les Belles Lettres, 1976.

PICCHIO, Luciana Stegagno. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Aguilar, 1997.

VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeiraa. Figurações do passado: O romance histórico

em Walter Scott e José de Alencar. In “Terceira Margem –Literatura e História”, Revista do

Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, Ano XII, n. 18, 2008.