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MAGHALY
Copyright © 2017 L P Baçan
Todos os direitos reservados.
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido ou
usado de qualquer outra forma nem divulgado sem a
expressa autorização do autor, exceto o uso de partes
para referência ou comentários.
ISBN 978-1-387-16146-1
Lulu Press, Inc.
3101 Hillsborough St, Raleigh, NC 27607
L P B Edições
Londrina – PR
2017
Maghaly
Abertura
Diário da Maghaly.
Maghaly com a sílaba tônica no “gha”, não no
“ly”.
Algumas amigas me chamam de Maga Ly, mas
eu não gosto.
É Magháli.
10 de janeiro, quarta-feira!
7 horas da manhã!
Hoje é o meu aniversário. Estou muito ansiosa
porque minhas amigas estão preparando uma
festa surpresa para mim. Elas acham que eu nem
desconfio disso, mas a Anita, minha melhor
amiga, deixou escapar uma pista, quando
conversamos ontem à noite, sobre o Flávio, um
garoto que quer ficar comigo no baile do Havaí,
depois do concurso de Rainha do Baile. Minha
mãe não quer que eu participe, mas todo mundo
insistiu demais para que eu me inscrevesse. Há
seis meses eu nem pensaria nisso, mas meu corpo
mudou tanto nesse tempo que fico até confusa
com tantas mudanças. Agora sim eu me sinto
mulher de verdade, com seios, nádegas e coxas de
fazer inveja a minhas colegas. Estou ficando
mais vaidosa, inclusive. Malho diariamente para
perder minha barriguinha. Minha mãe comprou
um creme redutor e estou usando. No dia do
baile, vou usar bastante para ficar com o corpo
perfeito.
Depois que comecei a ler mais, tudo por causa
do professor Rui, que leciona português e
literatura, comecei a escrever melhor. Ando até
inspirada a fazer uns poemas ou uns contos. Só
para dar para ele ler... Quando ele declama um
poema na sala, fico até sem fala. Ele tem uma
voz gostosa, que me faz arrepiar... Estou com
saudade das aulas!!!
14 de janeiro, domingo!
4 horas da manhã!
Estou morrendo de sono, mas não conseguiria
dormir se não registrasse tudo o que me
aconteceu durante o Baile. Foi fantástico! Um
sonho! Deslumbrante! Acho que estou me
sentindo como aquelas pessoas que aparecem na
televisão e ganham um prêmio de surpresa. Para
começar, eu ganhei o concurso de Rainha do
Baile. Ainda estou vestindo a faixa e usando a
coroa. O cetro está ali, sobre a cama. É só eu
fechar os olhos e me lembrar de tudo novamente.
A Marina escondeu meu biquíni, na hora do
desfile. Quase fiquei louca. Pensei que não ia
poder participar. Aí a Dyana me emprestou um
que havia trazido de reserva. Era um número
menor que o meu. O tiro saiu pela culatra. A
Marina ficou doida da vida, pois com aquele
biquíni e algumas coisinhas de fora, eu arrasei!
Eu simplesmente a-r-r-a-s-e-i! Os rapazes
aplaudiram e assobiaram todo o tempo que fiquei
na passarela. Os jurados ficaram impressionados
com a minha audácia e, por que não dizer, com o
meu corpo. Eu era a mais bonita de todas e
ninguém pode negar isso. Não fiquei com o
Flávio. Não deu tempo. Dei entrevistas, fui
fotografada. Uma coisa de cinema mesmo! Um
dos jurados é o Cléber Souza, caçador de talento
de uma agência de modelos. Anotou meu
telefone. Disse que vai me ligar...
1 de fevereiro, quinta feita!
8 horas da noite!
Eu pensei que o Cléber Souza tinha esquecido
de mim, mas hoje, aí pelas seis horas da tarde, ele
me telefonou. Eu me lembrei logo dele. Agora
adivinhe a surpresa! Vamos ver se você sabe o
que ele queria de mim... Adivinhou? Claro que
não! Ele me pediu para fazer um book. Se você
não sabe, diário, um book é um livro de fotos que
as modelos mandam fazer para mostrar para as
agências e pessoas ligadas à área. Na hora, eu
esfriei. Um book custa caro. Meu pai está
desempregado e estamos vivendo com o que
sobrou do fundo de garantia dele e uns bicos que
ele faz. Minha mãe está ajudando. Faz
salgadinhos para festas. Com que cara eu iria
pedir para eles gastarem um dinheirão numa
fantasia? Mas aí vem o melhor! O Cléber me deu
o endereço de um fotógrafo aqui mesmo na
cidade. Eu só preciso ir até lá e o fotógrafo
cuidará de tudo. E, o que é melhor ainda, não
preciso pagar nada! Não sou uma menina de
sorte mesmo? Na mesma hora eu liguei para lá e
falei com o fotógrafo. O nome dele é Mario Sato e
é um dos melhores da cidade. Marcou uma
entrevista comigo para amanhã à tarde, depois
do almoço. Disse que eu não preciso levar nada.
Tudo o que for preciso estará a minha disposição.
Mal dá para acreditar numa coisa dessas... É
demais!!!
2 de janeiro, sexta-feira!
6 horas da tarde!
Eu não acredito! Foi um sonho! Preciso me
beliscar mais uma vez para ver se é mesmo
verdade. Estou olhando para cinco fotografias
minhas, encostadas no espelho da cômoda. São
fotos grandes, como eu jamais vi ou tive antes.
Três são de rosto e as outras duas são de corpo
inteiro. As de rosto foram tiradas uma de cada
lado do rosto e outra de frente. Só que não são
fotos comuns. Para escolher essas três, ele deve
ter gastado uns cinco rolos de filme, fotografando
como um louco, enquanto me dizia que pose ou
movimento fazer e que expressão adotar. De
meu corpo ele deve ter tirado outros cinco rolos.
Usava três ou quatro máquinas diferentes. Às
vezes parava, dava ordens a uma menina que o
ajudava, ela vinha, mexia no meu cabelo, me
dava outra roupa, uma loucura! Depois que tirou
as fotos, e isso demorou umas duas horas, ele me
pediu que esperasse e foi revelar. Voltou com os
copiões dos filmes que tirara e as cinco fotos
ainda molhadas. Disse que estava impressionado
comigo, pois eu me comportara como uma
profissional. Falou que iria analisar todas as
fotos dos copiões para definir que tipo de
trabalho faria para compor o meu book. Eu
quase caí das pernas! Tudo aquilo era só um
ensaio. O book será feito num outro dia! Até
agora não acredito...
27 de fevereiro, terça-feira de carnaval!
8 horas da noite!
Estou morta de cansaço, acabada! A Anita me
ligou, convidando para o último baile do
carnaval, mas não sei se vou agüentar! Passei a
segunda e a terça-feira inteiras, de manhã até à
noite, em sessões de fotos. O Mário marcou esses
dois dias porque parou com tudo que estava
fazendo para se dedicar ao meu book. Não pensei
que fosse tão difícil. Dessa vez, ele deve ter
tirado uns vinte filmes. Fiquei até preocupada,
mas intrigada também. Se o Cléber se dispôs a
gastar tanto comigo, é porque vê algum futuro
em mim. O que será que ele pretende? Que
trabalho pode estar arrumando para mim? Estou
morrendo de curiosidade...
Meia-noite em ponto!
Acabei de voltar do baile de carnaval. Não
agüentei! Estou muito cansada mesmo. O Flávio
estava lá, fantasiado de pirata. Estava ridículo
com um tapa-olho. Dancei uma meia hora com
ele, depois pedi para parar. Fomos tomar um
suco, porque eu não agüentava mais de sede. Ele
é um carinha bom, legal, bom papo, mas não
pinta um clima quando estou com ele. Sinto que
ele gosta de mim. Mas gosta muito mesmo,
porque dá para ler isso nos olhos dele, na
maneira como me olha, como me segura, como
me toca...
31 de março, sábado!
9 horas da manhã!
Passei quase quinze dias sem escrever nada no
meu diário. Não tive tempo. Não tive tempo
mesmo, diário! Aconteceu! Aconteceu comigo o
que muitas garotas sonham acontecer. E eu nem
esperava isso. Há dois meses, meu pai estava
desempregado, eu era apenas uma estudante
adolescente sem maiores preocupações. Hoje
estou a um passo de me tornar uma top-model.
Nem sei ao certo o que significa isso. Meu pai é
meu empresário. Assinou um contrato de
exclusividade com a Glass, simplesmente uma
das maiores agências de modelos do Brasil. Vou
desfilar em maio. Até lá, tenho que fazer alguns
cursos em São Paulo, acompanhar alguns desfiles
e fazer alguns exames. Não sei como vou fazer
com a escola, mas o dinheiro que vou ganhar
pode me tornar milionária antes dos vinte anos.
Quem precisa de escola, afinal? Todo mundo
estuda para ter uma profissão. Eu já tenho uma
profissão. E meu pai tem um emprego. Ele era
gerente de banco, agora vai gerenciar a minha
carreira. Recebemos um adiantamento. Eu não
entendo isso, mas meu pai está de boca aberta
até agora. Nem acredita que sua filhinha esteja
a caminho do sucesso. Agora preciso dormir.
Acabei de voltar de São Paulo. Quando acordar,
vou ver minhas amigas...
15 de abril, domingo!
Quatro horas da tarde!
Acabei de fazer as malas. Vamos pegar o avião
às seis, direto para São Paulo. Vou continuar
minha preparação. Marcaram uma ponta para
mim num desfile importante do lançamento de
uma coleção de inverno. Não é meu lançamento
ainda, mas parte da preparação. Estou ansiosa.
Quero entrar naquela passarela e arrasar. Só
estou preocupada com meu peso. Na Sexta-Feira
Santa minha mãe fez uma bacalhoada
caprichada. Exagerei. Estava bom demais e eu já
não suportava mais as saladas e grelhados que
ando comendo para manter a linha. Engordei
mais de meio quilo. A Sandra, minha gerente,
quando olhar para mim vai perceber que
engordei. Aquela mulher tem um olho incrível!
Amanhã cedo vou malhar. E vou usar o creme
redutor. Preciso pôr um esparadrapo na boca
para valer, principalmente agora que estou
chegando perto do meu primeiro desfile de
verdade. O problema é que, quanto mais
trabalho, mais faminta eu fico. Estou levando
uns biscoitos na mala, mas acho que vou jogar
fora, quando chegar ao hotel. E vou usar aquele
remedinho que a Sandra me deu. Controlam a
fome, segundo ela. Eu pensei que nunca
precisaria disso. Acho que a ansiedade está me
deixando assim. Pudera! Toda a minha vida e o
conforto de minha família dependem de mim
agora...
12 de maio, sábado!
11 horas da noite!
Sucesso! Só sucesso! Maravilha! Deslumbrante!
Não sei o que dizer! Meu pai e minha mãe
acabaram de sair para comemorar. Foram a
uma boate. Estou no hotel, ainda atordoada com
o que me aconteceu. Meu desfile foi o máximo! Eu
não só arrasei como deixei todos de boca aberta.
Era o desfile de uma coleção de inverno, mas eu,
de propósito, deixei o meu corpo o mais exposto
possível. Sei que os homens gostam disso. E
homens têm lojas. As mulheres sonham em ser
ousadas e em imitar as modelos para agradar
seus homens. Eu criei um padrão. Sei disso.
Sandra sempre me falou que toda modelo, para
chegar ao sucesso, precisava criar um padrão.
Eu fiz isso. Como naquela noite, no Baile do
Havaí, quando usei um biquíni num tamanho
menor. Meu pai disse que o dono da agência
havia marcado mais quatro desfiles naquela
mesma noite. Alguns estilistas me viram e me
querem em seus desfiles. Um homem de uma
agência de propagandas quer porque quer que eu
seja a imagem de uma marca de iogurte. Uma
desenhista de maiôs quer exclusividade minha
para seus produtos. Uma fábrica de calçados
quer que eu seja a imagem de sua nova sandália.
E vai por aí. Meu pai está rindo sozinho. Eu
estou deslumbrada. Estou no topo do mundo, no
centro do universo!
20 de maio, domingo!
10 horas da manhã!
Acabei de voltar da sauna do hotel. Está frio
em São Paulo hoje, mas a sauna estava deliciosa.
Eu precisava me recuperar da noite passada. Fiz
uma coisa boba, mas fiz por gosto e estou
contente por ter feito. Afinal de contas, não gosto
que me tratem como criança. Não fiz todos esses
sacrifícios à toa. Sou uma modelo iniciante, mas
talhada para o sucesso. A Janelyn, que nome
mais besta para uma modelo, se acha a maior.
Quis me esnobar ontem à noite, na recepção que
teve depois do desfile de uma joalheria. Falando
nisso, ganhei um anel e uma gargantilha
incríveis! Mas, voltando à Janelyn, ela é uma
modelo que está na praça há uns cinco anos.
Deve ter uns vinte e dois ou vinte e três anos,
mas nunca ganhou fama nem se destacou. Só tem
mais experiência do que eu. Quando foi na hora
de abrir o desfile, o Cléber decidiu que eu faria a
abertura e seria a primeira a desfilar. Seria a
glória para mim. Acontece que, segundo as
meninas comentam, a Janelyn teve ou tem um
caso com o Cléber que morre de medo dela. Não
sei o motivo, porque ele manda e desmanda. Ali,
na cara dela, eu perguntei ao Cléber quem é que
mandava, se era ele ou se era ela. Ele olhou para
mim, depois para ela e me mandou fazer a
abertura. A Janelyn pediu para morrer...
21 de maio, segunda-feira!
Meio-dia!
Acabei de voltar da agência. O Cléber pediu
para falar comigo. Disse que eu tinha muita
coragem para enfrentar a Janelyn. Aproveitei
para perguntar o que ele tinha com ela. Ele disse
que se sentia em débito com ela porque, no
começo da carreira dela, ele quase a prejudicou.
Ele teve mesmo um caso com ela e, por um
descuido, ela ficou grávida. Assustados, os dois
resolveram que ela deveria fazer um aborto. Ele
arrumou o dinheiro, mas houve uma
complicação e ela quase morreu. Por um triz que
não acabou também com a carreira. Só que ficou
com um defeito na barriga. Eu nunca raparei,
mas sei que ela nunca desfila com calcinha ou
biquíni. Vou reparar nisso. Segundo me disse o
Cléber, eles terminaram o caso, mas ela faz
chantagem emocional. Fica pior quando vê uma
modelo jovem e promissora como eu. Deve
lamentar a carreira que comprometeu com sua
irresponsabilidade. Eu não tenho nada com isso
nem tenho medo dela. A Sandra me disse que era
para eu tomar cuidado com ela. Outras meninas
disseram o mesmo. Não estou nem aí. Ela que
tente alguma coisa contra mim. Vai ver só com
quem está mexendo. Estamos em níveis
diferentes. Eu estou em começo de carreira e ela
está terminando a dela. Que se dane!
15 de junho, sexta-feira!
10 horas da manhã!
Acabei de levantar. Esse feriado de Corpus
Christi é massa. Eu estava precisando de um
descanso desses. Estou em casa. Pelo menos por
enquanto ela vai ser nossa casa. Meu pai está
fechando negócio com um apartamento no
Morumbi, em São Paulo. Vamos ter que mudar
para lá, principalmente agora que vou fazer a
campanha da fábrica de sandálias. Quando
fechou o contrato, meu pai chegou no hotel dando
risadas. Mesmo para ele, que fora um gerente de
banco toda a sua vida, o valor do contrato o
surpreendeu. Não conseguia entender como uma
pessoa, apenas pela sua imagem, podia valer
tanto. Nem como havia gente capaz de pagar
para unir essa imagem ao seu produto. É como
funciona a coisa. Dá muito dinheiro, mas exige
muito. Morar em hotéis é uma tentação.
Levantar cedo e ver aquelas mesas de café da
manhã, sem poder se esbaldar, é um martírio.
Quando não se pode comer bem, parece que a
vontade é maior. Tenho usado um expediente que
uma das meninas me ensinou. Quando não
agüentar mais de vontade de comer alguma
coisa, a gente deve ir e comer tudo que puder.
Depois é só esperar um pouco, depois ir ao
banheiro e enfiar o dedo na garganta.
Experimentei. Não é muito agradável, mas
resolve...
16 de junho, sábado!
7 horas da manhã!
... e não consigo dormir. Continuo pensando.
Nem sei explicar nem entender o que aconteceu.
Sei apenas que aconteceu e não me sinto nem
melhor nem pior quando penso nisso. Só continuo
pensando e tentando entender se não foi uma
maldade o que fiz. Estava descansando e o Flávio
me ligou, convidando-me para sair. Estava tão
delicado e tão amoroso que, por instantes, quase
aceitei o convite. Depois pensei melhor. O Flávio
é um pobretão. O pai dele é contador de uma
firma da cidade. Anda de carro velho. Suas
roupas são cafonas e conservadoras. Ele todo é
careta. É uma pessoa agradável, mas que futuro
pode haver para nós dois? Eu já tenho muitos
amigos, não preciso de mais ninguém.
Principalmente um que vem todo meloso, me
pegando, me tocando, me rodeando, me
sufocando. Disse a ele que não estava muito
cansada e que ia sair. Tinha que viajar no dia
seguinte, fazer as malas, essas coisas. Depois
disso, a Anita me ligou de um barzinho, dizendo
que o professor Ruy estava lá e sozinho. Me deu
um estalo. Troquei de roupa, peguei a jog e fui
para lá. Acabei na mesa do professor,
conversando com ele. Então chegou o Flávio,
olhou para mim e abaixou os olhos... Doeu! Não
sei dizer porque, mas alguma coisa doeu fundo
dentro de mim! E nem gosto dele!
29 de julho, domingo.
3 horas da tarde!
Está frio! Muito frio! Não consigo sair da
cama. Não me habituei ainda ao nosso novo
apartamento. Estou atordoada. Está tudo muito
confuso na minha cabeça. Não sei o que está
acontecendo comigo. Às vezes penso que deixei
essa coisa de sucesso me subir à cabeça. Depois
penso que tenho direito a isso, que fiz por
merecer, que não tenho culpa pelas misérias do
país nem pela fome do mundo. Tenho ficado
assim freqüentemente, principalmente depois que
a Sandra me deu aquele moderador de apetite.
Não tenho fome, mas não tenho ânimo nenhum
para nada. A Gina, uma modelo mais velha, me
deu umas pílulas. Disse que era para tomar,
quando me sentisse deprimida. Estou ali, em
minha bolsa. Acho que vou tomar uma. Não
agüento essa sensação de angústia que me
oprime o peito. Parece que, quando fecho os olhos,
vejo o olhar do Flávio, naquela noite, lá no
barzinho. Não era um olhar de recriminação, de
braveza ou de agressividade. Era um olhar de
piedade. Ele parecia estar vendo alguma coisa
em mim que eu não conseguia ver... Quando
penso naquele olhar me dá uma coisa aqui
dentro que...
... não agüentei. Tomei uma daquelas pílulas.
Sabe o que penso agora? O Flávio que se dane! s-e
d-a-n-e! Sou mais eu! Sou Maghály!!!
6 de agosto, segunda-feira!
8 horas da noite!
Dizem que agosto é mês de cachorro louco e é
verdade. Hoje eu estava nos cascos. Não estava
para levar desaforo para casa. Estávamos na
cantina da agência, o Cléber e eu, discutindo
como seria o contrato com a fábrica de sandálias.
A gente estava ali, na maior amizade, sem
maldade nenhuma. Aí chegou a Janelyn, com um
hambúrguer na mão. Ela me ofereceu, só de
pirraça. Eu recusei. Ela deu risada e perguntou
se eu estava com a barriga cheia de
comprimidos. Fiquei doida! Não sei, nesses
últimos dias ando assim, nos cascos. É o mês de
agosto. Avancei para cima da Janelyn e se o
Cléber não me segurasse, eu tinha sentado a mão
na cara dela. Aí eu falei: ou ela ou eu. Se ela
continuasse na agência, eu saía. Falei mesmo. E
falei sério. O Cléber ficou sem jeito, quis pôr
panos quentes, mas eu fiquei firme. Ele olhou
para mim, depois olhou para a Janelyn, pensou
um pouco, depois mandou que ela passasse no
caixa e acertasse as contas. Ela ameaçou
processar a agência, porque ela tinha um
contrato e essas coisas, mas o Cléber nem ligou.
Bem feito! Ele sabe que, só com esse contrato da
fábrica de sandálias, vai ganhar mais do que já
ganhou com a Janelyn em toda a sua carreira.
Ganhei respeito. As meninas me olham com
respeito agora!
12 de agosto, domingo!
5 horas da tarde!
Acabei de acordar e estou tonta ainda! Está
tudo girando e meu estômago está embrulhado.
Minha cabeça dói. Meu corpo dói. Parece que
estou acordando de um pesadelo ou vi um filme
cujas partes me vêm à mente de uma forma toda
embaralhada. Minha mãe já não estranha mais,
quando durmo até tão tarde. Nem fica brava.
Meu pai não fala nada. E falaria o quê? Este
apartamento, tudo que tem nele, a comida na
geladeira, tudo sai de mim. Meu pai é meu
empresário, mas isso não quer dizer nada. Na
verdade, ele trabalha para mim. Eu pago o
salário dele. Esse carro novo que ele comprou,
saiu do meu dinheiro. E ele não me deixa dirigir.
Cléber me deixa dirigir sua máquina
importada... Mas... Do que eu estava falando
mesmo? Vou parar e ler o que escrevi... Ah, sim!
... Oh, não! Não... Não foi comigo! Eu jamais faria
uma coisa dessas! Mas... Estou dolorida...
Intimamente dolorida... Assada! Sim, é isso
mesmo! Estou assada! Oh, Deus! O que foi que eu
fiz?
Meia noite!
Três horas na banheira... Minha mãe me
trouxe uma salada e um suco. Fui lembrando
devagar. Ainda não acredito, mas ainda arde...
E eu não senti nada... Não me lembro de nada!
Oh, Deus, o que foi que eu fiz? O que fizeram
comigo?
13 de agosto, segunda-feira!
8 horas da noite!
Juntei todas as partes e o que aconteceu me
parece mais claro agora. Aconteceu comigo. Foi
comigo mesmo. Meu corpo é prova disso. Perdi
minha virgindade. E nem senti. Nem vi. Foi uma
loucura! Foi uma violência incrível. E eu nem sei
com quem. Foram tantos... Eu me lembro, dava
risadas, enquanto recolhia as embalagens vazias
de camisinhas, no chão do quarto. Foram sete.
Guardei-as em minha bolsa. Sete homens me
usaram numa noite e eu nem vi nem senti nada.
Hoje o Cléber me elogiou e disse que o diretor da
fábrica de sandálias estava comigo cem por
cento e que eu iria ganhar muito dinheiro. Eu me
lembro dele. Eu conversei com ele na recepção,
depois da gravação do comercial. Era um homem
distinto, trinta e poucos anos, charmoso. Ele me
lembrou o professor Ruy. Elogiou meu trabalho.
Me deu uma pulseira de presente. Caríssima.
Diamantes puros! Ele foi o primeiro... Sim, eu sei
que ele foi o primeiro. Foi quem me deu o
champanhe. Eu nunca tinha bebido. Eu jamais
bebi em minha vida. A Sandra me avisou para
não misturar bebida com aqueles comprimidos.
Mas eu estava com os pés inchados, macilentos.
Como poderia fazer o comercial? Três dias
tomando aquela porcaria. Meus pés estavam
divinos, mas eu estava imprestável...
Que dia é hoje mesmo? (Risos!)
Que horas são?
Você nunca me viu assim, diário? Sou eu, sua
amiga e confidente, aquela que lhe conta tudo,
mesmo as coisas mais sórdidas que faz...E você
pergunta o que uma menina pura, de dezesseis
anos, pode fazer de sórdido? Eu sou a sordidez
em pessoa, diário! Eu sou uma coisa... Eu sou
uma... Eu nem sei o que sou! Sabia? Eu me perdi
em algum lugar do caminho! Eu sou a Rainha do
Baile do Havaí, mas cadê eu? Onde estou? Estou
tentando chorar, mas estou com tanta raiva de
mim mesma que não consigo. Acabei me
lembrando de tudo o que aconteceu naquela
noite... Tudo mesmo! E não me sinto orgulhosa do
que fiz, por isso aproveitei que meus pais saíram
para ir até o barzinho do papai e provar um
pouco do seu uísque. É uma bebida forte, difícil
de engolir. Só que, depois do primeiro gole,
quando passou a ardência na garganta e o gosto
ruim da boca, tudo ficou bem. O segundo gole foi
mais fácil. O terceiro desceu lisinho e gosto. O
quarto foi uma loucura! Fiquei tontinha,
tontinha! Como naquela noite... Como naquela
maldita noite... Vou ter que escrever aquilo,
diário. Vou ter que registrar, mas não agora, não
hoje. Preciso me habituar com a idéia.
Principalmente depois que o Cléber disse que o
diretor da fábrica quer que eu vá a sua cidade
buscar a taça...
Qualquer dia, qualquer hora, entre a página
anterior e a próxima!
Hoje eu não vou colocar nem data nem hora.
Estou escrevendo apenas para deixar registrado
o que houve naquela noite. Vou ter que tomar
ainda mais cuidado com você, diário. Se a minha
mãe achar você e ler isso, vai ser o fim do
mundo. Eu tomei aqueles comprimidos para
desinchar os pés. E tomei as pílulas para tirar o
apetite. Não comi nada na véspera nem no dia
da gravação do comercial. Trabalhei o dia todo.
Tomei um suco de laranja, mesmo assim com
muito gelo. Estava tonta de fome, quando fui
para a recepção. Meus pais ficaram em casa. O
Cléber me levou. Eu dirigi seu carro. Foi legal.
No hotel dos diretores da fábrica de sandálias,
havia do bom e do melhor. Ele me ofereceu
champanhe. Eu recusei. Nunca bebi e isso seria
péssimo para meu corpo e para a minha pele. Ele
insistiu. Estava feliz com o comercial. Não tive
como recusar. Parece que tudo contribuiu para
aquilo acontecer. A taça era especial. Você pode
não acreditar, mas a taça onde ele me serviu
champanhe era de ouro. Linda! Linda mesmo! E
pesada. Eu nunca vi alguma coisa como aquela!
Bebi! A bebida me fez cócegas na boca. Era doce
e borbulhante. Fiquei tonta na hora. Ele me fez
beber umas quatro ou cinco taças... Fiquei
grogue... Ele me levou para o quarto... Tirou
minha roupa... Sete embalagens de camisinha...
Sete... Meu Deus! Eu sou apenas uma menina!
7 de setembro, sexta-feira!
6 horas da manhã!
Acabei de chegar... Estou assim, entende? Legal!
Estou sem sono. A festa acabou, mas eu
continuaria o dia todo... Não sei o que foi aquilo
que eles me deram, mas confesso que foi bom...
Barato total! (Risos!) Deixe eu explicar isso:
quando escrevo risos entre parentes... Não,
parêntis... Não, caramba... Parênteses... Isso,
parênteses... O que que eu estava falando mesmo?
Ah, não estou nem aí... Acho que vou ver se tem
uísque no bar do meu pai... Uísque, não. Vodca.
Vodca é legal... Com gelo... E suco de frutas, que é
saudável... (Risos!) Isso que pingou aí é baba...
Estou babando no meu diário... (Rezas... não,
cacete! Risos!) Babando no diário... Não... Não
estou babando! Estou chorando! Meu Deus, estou
chorando! Cadê meu pai? Quero a minha mãe!
Flávio, não me olhe assim. Anita, minha amiga,
vou ligar para você... Cadê meu celular... Você,
minha amiga, me entende... Sempre soube me
compreender... Cadê o número... Caraca! Não
tenho o número da Anita no meu celular...
Anita... A minha amiga de infância... O que que
eu fiz? Onde está aquela porcaria que pode me
levar ao paraíso? Mais uma dose! Uma... Só
uma... E tudo estará bem... A noite foi ótima...
Sou mais eu, sou Maghály e estou no centro do
universo... No topo do mundo... Mais! Preciso
mais!
2 de novembro, sexta-feira!
6 horas da tarde!
Meu Deus, que alegria! Meu pai veio, minha
mãe me trouxe flores. A Anita esteve aqui, junto
com todas as minhas amigas. Nunca me senti tão
feliz. No começo elas estavam arredias, depois
foram se soltando. Afinal, estavam diante de
uma personalidade internacional, uma top-
model. Começaram a falar. Lembraram coisas de
nossa infância. Riram muito. Fiquei muito alegre
com isso. Aquelas flores me fizeram um bem
enorme. Quando elas foram embora, fiquei
sozinha. Então chegou o Flávio. Fiquei meio
assim, porque ele não falou mais comigo depois
daquela noite, no bar, quando me viu com o
professor Ruy. Falando nisso, o professor não
veio me ver. Ingrato. Não ligo. Mas eu estava
falando do Flávio. Ele veio, se sentou aqui, do
meu lado. Ficou parado uma porção de tempo. Vi
lágrimas escorrerem dos olhos dele. Eu sempre
soube que ele me amava. Me amava de verdade.
Eu nunca lhe dei chance. E ele confirmou isso.
Disse que era a última vez que ficava comigo.
Depois daquele dia, nunca mais ele voltaria a me
ver. Eu tentei falar, tentei argumentar com ele,
dizendo que aceitava a atenção dele, que
gostaria de ficar com ele, mas ele acendeu um
maço de velas no pé do meu túmulo, soprou um
beijo no meu retrato e me deixou para sempre
com a minha solidão.
Fim
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