meninos de rua

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historia de tres meninos que ninguem conhece ou conhece mas nao sabe o nome

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naquele dia

ele acordou suando

com medo

no meio da noite

sonhou que estava

passando na frente

de um mundo de gente

muitas viaturas

muita polícia

muitos colegas seus

perguntou o que era

se já estava

resolvido

responderam

que sim

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no meio das pessoas

alguém dizia

que tinha sido

um assalto

de mais um

ou melhor

menos um

destes pivetes de rua

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então ele viu

o menino deitado

no rosto

um pedaço

de pano sujo

sujo de sangue

um tiro acertou

bem na cabeça

uns sete ou oito

ou dez anos

o pano não cobria

o corpo todo

ele viu

que a camisa

que o pivete usava

era a mesma

que de noite

seu filho estava usando

pra dormir

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ele viu

a camisa do pivete

deitado morto

sem ver o rosto

acordou assim

suando

com medo

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levantou da cama devagar

para não acordar a mulher

foi ver o filho

o outro também

e a filha

todos dormindo

voltou pra cama

ainda acordado

lembrou que

o filho dele perguntava

se de noite

o tigre da camisa

também dormia

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moravam na entrada da favela

o Juca

já morava ali

antes de ser favela

quando era só

fim de mundo

final do bairro

desde criança

brincava

com os outros meninos

filhos dos ricos

como ele dizia

jogavam bola

na frente da casa dele

que era um fim de rua

e não tinha asfalto

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era o campo

não passava nem ônibus

que na época

chamava lotação

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ficou assim

acordado

o resto da noite

lembrando de quando

era criança

muita gente

chamava ele de pivete

porque vivia sujo

de brincar na terra

mas ele nem ligava

sua mãe

era lavadeira

e das boas

então ele tinha

até coisas

que os filhos dos ricos

seus amigos

não tinham

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seu pai nunca apareceu

mas o Juca

não reclamava

o irmão

bem maior

era da polícia

e não deixava

ninguém bater nele

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quando amanheceu

ele não sabia

o que fazer

com aquele sonho

pesadelo

nem com o que tinha

lembrado da infância

não entendia

onde foi que uns meninos

viraram pivetes

e outros

continuaram meninos

crianças

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mesmo sem saber

ele acordou

o tigre da camisa do filho

o filho

o outro filho

e a filha

tomou café com a família

colocou o uniforme

e saiu de casa

pra trabalhar

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contou o sonho

pro seu companheiro de trabalho

o cabo Oliveira

nome de polícia

que era boa pessoa

ficou também impressionado

até aconselhou o sargento Da Silva

o Juca

a procurar vidente

que sabe de sonho

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mas ele não queria saber

de quem sabia de sonho

ele queria saber

era a diferença

entre menino e pivete

de porque

quando ele era criança

todo mundo era menino

e mesmo quando

chamavam ele de pivete

era só quando não conheciam

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pronto

foi falando isto

para o Oliveira ou Chico

que ele entendeu

que a gente

só chama de pivete

quem a gente

não conhece

então ele pensou e viu

que para os pivetes

virarem meninos de novo

eles tinham que ser

conhecidos

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e o Oliveira

entendeu também

lembrou dele menino

morando no interior

brincando

com todo mundo

lá não tinha pivete

mas quando ele veio

morar na cidade

foi pra favela

todo mundo

falava pra ele

não se misturar

com os pivetes

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mas um dia

ele estava andando na rua

e viu um bando de pivetes

e já ia correr de medo

mas aí ele viu

que no meio deles

tinha um colega

da escola

que na hora do recreio

dividiu com ele

um pão com molho

e lá na escola

este menino

não era pivete

era colega

era menino

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o Oliveira só achou difícil

foi como fazer pra conhecer

tanto menino de rua

o Juca

sargento Da Silva

que não era de desanimar

resolveu então conhecer os meninos

da região que eles trabalhavam

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depois de uma semana

só procurando

contando quantos eram

o Juca pensou

que se só ali naquele bairro

tinha tanto menino

imagina na cidade toda

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mas foi aí que o Oliveira

descobriu que não

ele fazia uns serviços de segurança

uns bicos

em outros bairros da cidade

e começou a ver uns meninos

que eles já tinham visto

então aquele tanto de menino

na verdade eram poucos

eles só não ficavam no mesmo lugar

ficavam é andando pelas ruas da cidade

eles começaram a fazer

outra coisa com os meninos

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mais do que só contar

começaram a conversar com eles

começaram a fazer perguntas

a conhecer

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perguntavam tudo pra eles

mas os meninos tinham muito medo deles

porque eles eram da polícia

E não respondiam nada direito

inventava muitas mentiras

choravam muito

mas o mais estranho

é que a única coisa

que eles sempre falavam

era que não queriam voltar pra casa

isto quando tinham casa

ou pros orfanatos ou creches

eles preferiam ficar ali na rua

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o sargento Da Silva

o menino Juca

lembrou de novo da infância dele

da rua dele

que era o melhor lugar do mundo pra ele

só ia em casa pra comer

dormir

que da escola

mesmo gostando um pouco de estudar

porque seu irmão falava que era bom

a coisa que ele gostava mesmo

era de voltar pra casa

tirar o uniforme

e ir pra rua encontrar os amigos

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lembrou também que um dia

eles fizeram uma cabana de papelão

assaram salsicha na fogueira

e quase a turma toda dormiu lá fora de casa

na rua

feito pivete

e aquele dia foi o melhor dia da vida

de muito menino ali

por muito tempo

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o Juca entendeu tudo de novo

que a rua é mesmo uma delícia

que de tanto gostar da rua

ele resolveu ser polícia

mesmo o irmão não sendo mais

e falando pro Juca estudar

ser advogado

o Juca resolveu ser o sargento Da Silva

porque a rua era o melhor lugar

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na rua

ele conhecia as pessoas

encontrava os amigos

não quis nem saber de ser promovido

quando era soldado

e ir trabalhar em delegacia

porque gostava mesmo

é de ficar na rua

até hoje quando chegava em casa

ele ainda fazia igual

tirava o uniforme

corria com a família toda

pra porta de casa

sexta feira ele fazia galinhada

vinha muito vizinho

tinha pelada dos meninos e tudo

Ficavam até tarde da noite

na rua

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foi assim

que o sargento Da Silva

parou de querer tira r os meninos da rua

e começou a conhecer cada um

a cumprimentar

a chamar pelo nome cada pivete

agora menino

que ele encontrava

ele viu que só dele e do Oliveira

começarem a fazer isto

a chamar pelo nome

aconteceu uma coisa

três meninos pequenos

um de nove

outro de sete

e um de cinco

foram ficando

por ali naquele bairro

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de vez em quando sumiam uns dias

o Da Silva e o Oliveira

ficavam preocupados

mas aí eles voltavam

foram ficando cada vez mais perto

falando mais

perdendo o medo

porque agora

eles viam no Juca

e no Chico

pessoas

e não apenas

policiais

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o Tavinho

apelido de Gustavo

tinha casa e família

mas saiu de casa com seis anos

porque o homem

que vivia lá com sua mãe

batia muito nele e na mãe dele

e ele não queria mais ver aquilo

saiu de casa

num dia que sua mãe

teve que ser internada no hospital

porque o tal homem bateu muito nela

e ele com medo de ficar ali sozinho

e apanhar muito

foi embora

quando o Tavinho saiu de casa

ele foi com um menino

que ele conhecia

que já morava na rua

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Lalau

era assim que todo mundo

chamava este menino porque ele sabia roubar

coisa da casa dos outros

e das lojas

roubava comida

coisa pra vender

ou que dava pra brincar

ou vender

eles foram pra uma turma de meninos

pivetes

lá nesta turma

havia umas meninas maiores

que alguns chamavam de mãe ou mãezinha

algumas eram mães de verdade

a Fátima era

era mãe do Toco

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ela gostou muito do Tavinho

porque ele se parecia com o irmão dela

que morreu numa vez que a polícia

trocou tiros com uns bandidos da favela

onde ela morava

foi por isto que ela foi morar na rua

sua mãe começou a beber

o pai arrumou outra mulher

foi embora

a Fátima depois disso

começou a pedir esmola na rua

depois começou a roubar

e acabou não voltando mais pra casa

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um dia eles encontraram

o Tavinho encontrou

numa rua escura

que às vezes eles dormiam

um menino chorando de noite

sem roupa

todo machucado

ele não falava nada

nem o nome dele

o Tavinho deu uma camisa pra ele

que ficou muito grande

e mesmo sem mais nenhuma roupa

ele ficou assim

parecia uma camisola

o Tavinho escolheu um nome pra ele

Ederley

porque queria

que ele tivesse nome de gente importante

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mas como era difícil de falar

todo mundo acabou chamando de Lelé

tinha gente que falava

que era lelé da cuca

porque ele não falava direito

era meio doidinho

mas quem falasse isto perto do Tavinho

estava era comprando briga

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assim nascia o Ederley

A Fátima dava de mamar

porque naquela época

ela tinha um neném também

Gabriel

nome de anjo

mas todo mundo chamava de Meleca

porque vivia com o nariz sujo e escorrendo

então ela

junto com o Tavinho e o Toco

criaram o Leley

depois de algum tempo

a Fátima ficou doente

foi pro hospital com o Gabriel

ninguém mais viu os dois

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assim

quando o sargento Da Silva

e o cabo Oliveira

ficaram conhecendo eles

eram o Tavinho

o Leley

e o Toco

que depois eles descobriram

que era Francisco

xará do Chico

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um dia quando o Chico e o Juca

estavam chegando na padaria

onde eles tomavam café

uma média com pão e manteiga

ou às vezes só um pingado

porque não dava tempo

os meninos chamaram

e mostraram a testa do Toco

cortada e fundo

por causa de uma pedrada

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o café com leite

o pão passado na chapa

já estavam prontos

seu Hermes

dono da padaria

ainda gritou pra eles

que eles deviam tomar o café

pra depois levarem

aqueles pivetes pro hospital

ou então que deviam deixar

machucados mesmo

falou já pegando os pratos do balcão

ao ouvir aquilo o Oliveira

quase voltou pra brigar

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mas o Da Silva já foi logo falando

que aqueles meninos não eram pivetes

e que ele podia aumentar o lanche

que na volta todo mundo ia tomar junto

foi assim que seu Hermes

passou a servir café pra cinco

toda manhã

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no pronto-socorro

eles deram ponto

doze pontos

fizeram curativo

no joelho do Tavinho também

que caiu enquanto corriam

das pedradas de uns meninos grandes

que queriam expulsar eles

do sinal onde pediam trocado

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quando o Juca contou toda a historia

desde o sonho até o pronto-socorro

pra mulher dele

que era professora

ela só falou

enquanto colocava o jantar na mesa

que aqueles meninos

tinham é que estar na escola

e não pedindo dinheiro na rua

o Juca entendeu mais uma coisa

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de manhã

depois do pão de sal na padaria

foi com o Oliveira

falar com a diretora do grupo escolar

que eles já conheciam

porque na hora da saída da escola

eles ficavam ali na porta

controlando o trânsito

não deixando menino pequeno

ir embora sozinho

a idéia do sargento Da Silva

era colocar os meninos

estudando na escola de manhã

mas Dona Rosa a diretora

falou que precisava

da assinatura da mãe

e o Da Silva viu que ia ser difícil

não sabia muita coisa dos meninos

mas ia procurar saber

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enquanto isto

ele mesmo assinava todos os papeis

e se responsabilizava por eles

a Dona Rosa

impressionada

falou que aceitava

na segunda-feira

os meninos

para alguns colegas

ainda pivetes

começaram a estudar

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foi muito difícil no primeiro dia

e quando eles saíram da escola

e viram os dois policiais lá fora esperando

foi alívio dos grandes

falavam sem parar

numa mistura de medo de voltar

vergonha de ser pivete

e vontade de chorar

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depois de ouvir tudo

o Oliveira deu um tapa com força

no capô do carro

e disse pra deixar com ele

os meninos e o Da Silva

espantados

não falaram nada

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no dia seguinte

na hora de começar a aula

o Toco ainda com o pão quente

do seu Hermes na mão

o Oliveira entrou

com os três meninos na escola

foi de sala em sala

apresentando cada um pra todo mundo

inclusive para as professoras

que ainda estavam de cara feia

para aqueles pivetes de rua

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ele falava umas historias

da vida dos meninos

que eram legais

coisa que eles viviam na rua

alguns colegas

na hora do recreio

já quiseram saber de mais coisa

quando foram brincar de pega-pega

todo mundo ficou impressionado

porque menino de rua

sabe correr e escapar

até de gente grande

e nem os meninos maiores

conseguiam pegar o Lelé

ou Leley

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não é que um dia

enquanto eles estavam saindo da padaria

para ir pra escola

tocou o radio da viatura

chamando os dois policiais

que iam ter que correr

pra atender um chamado urgente ali perto

e não daria pra levar os meninos na escola

o Tavinho falou que não tinha problema

que eles iam sozinho

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mas antes dele acabar de falar

lá de dentro do balcão da padaria

veio o seu Hermes gritando

e colocando o paletó

pode deixar comigo

que eu levo os meninos

de mão dada com o Toco

pra atravessar a rua

foi andando

segurando debaixo do bigode

um quase sorriso

na hora do almoço

às vezes buscava o Da Silva e o Oliveira

e agora também o seu Hermes

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foi num dia

que o Da Silva foi buscar sozinho

porque o Oliveira teve folga

que a diretora chamou pra conversar

o Tavinho tinha arrumado briga

com um menino

e tinha fugido

os meninos contaram o que houve

ele acreditou e a diretora também

o Tavinho brigou

porque uns meninos começaram a falar

que eles eram sujos e fedidos

isto por que o Tavinho

tinha ganhado deles no futebol

ele bateu forte em um colega

quando viu que o Lelé começou a chorar

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este menino chamou a professora

que brigou com o Tavinho

e até chamou ele de pivete

quando ele falou

que não ia ficar de castigo

se o outro menino

também não ficasse

ele fugiu pulando o muro

porque ninguém ia acreditar nele

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o Da Silva viu então

que o meninos estavam mesmo

meio sujos e rasgados

saiu da sala da Dona Rosa

prometendo dar um jeito em tudo

no outro dia

os três meninos voltaram pro colégio

com umas roupas bem boas

que eles ganharam

de umas clientes do seu Hermes

que já conheciam os meninos

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o Tavinho foi lá e pediu desculpas

pro menino que ele tinha batido

e falou com a professora

que hoje ele ia ficar de castigo

depois da aula se ela quisesse

ninguém esperava isto dele

e na hora do recreio

a tal professora foi falar com ele

pediu desculpas e deu um beijo nele

ele chorou muito

porque já não lembrava mais

de quando tinha sido a ultima vez

que tinha ganhado um beijo

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na saída da escola

viram umas formiguinhas

aquelas moças que varrem as ruas

trocando de roupa

e guardando numas caixas

grandes de ferro com cadeado

o Lelé

que não tinha nada de lelé

falou pro Oliveira

que devia ser muito legal

trocar de roupa

e ter um armário

pra guardar as coisas

de tarde os dois policiais

conversaram com as moças

e combinaram dos meninos

guardarem suas roupas ali

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a cada dia que passava

o Tavinho

o Gustavo

o Lelé

o Ederley

o Toco

o Francisco

ficavam mais conhecidos

ali no bairro

como eles não tinham família nem casa

as pessoas viviam pedindo pra eles

fazerem alguma coisa

coisas que os filhos fazem

lavar carro

passear com o cachorro

carregar compra de mercearia

ajudar a cuidar do jardim

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coisa que o Toco gostava muito de fazer

porque ele falava que sua mãe

a Fátima

gostava sempre de pegar uma flor

nos canteiros da rua

e dar pra ele

em troca desta ajuda

eles ganhavam roupa

comida gostosa

às vezes algum dinheirinho

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no último dia do ano

na festa de final de ano da escola

todo mundo deu os parabéns pros meninos

professora

diretora

e até o Oliveira choraram

a mulher e os filhos do Juca foram

a padaria não funcionou

e teve até bilhete pregado na porta

avisando o motivo

no meio da festa

eles colocaram os meninos

em cima de uma mesa

e o Tadeu

aquele que brigou com o Tavinho

veio trazendo nas mãos

um presente

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deu pro Tavinho

mas foi o Lelé

que rasgou o papel de embrulho

era uma agenda

destas de anotar as coisas

pra se fazer durante o dia

mas era diferente

nela só havia alguns meses

os meses das férias

em quase todos os dias

já estava escrito alguma coisa

o Tavinho que sabia ler melhor

começou a ler

mas não entendeu direito

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em cada dia das férias

estava escrito

na frente dos nomes

de cada um dos meninos

o nome de um colega da escola

a Diretora então explicou pra todo mundo

que aquilo era uma surpresa

que a escola fez para os meninos

durante as férias

eles iriam passar o dia

na casa de um colega

cada aluno tinha pedido pra mãe

e escolhido um dia

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pra brincar

comer

estudar um pouco

fazer dever de casa

junto com os meninos

que agora

com o coração batendo forte

e muito choro

ninguém mais

chamava de pivete

meninosderua

marciogibram mgibram@ig.com.br meninosderua.blogspot.com

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