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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS INSTITUTO GOIANO DE PRÉ-HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA
Bacharelado em Arqueologia
ANÁLISE TECNOLÓGICA E DA GESTÃO DE MATÉRIA-PRIMA NO SÍTIO PRÉ-HISTÓRICO MORRO FURADO (BA-RC-28) BAHIA,
BRASIL UMA PROPOSTA DE RE-ANÁLISE
SADY PEREIRA DO CARMO JÚNIOR
GOIÂNIA 2009
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SADY PEREIRA DO CARMO JÚNIOR
ANÁLISE TECNOLÓGICA E DA GESTÃO DE MATÉRIA-PRIMA NO
SÍTIO PRÉ-HISTÓRICO MORRO FURADO (BA-RC-28) BAHIA,
BRASIL
UMA PROPOSTA DE RE-ANÁLISE
Monografia realizada no 7º período do curso de Arqueologia na disciplina Monografia do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia com a finalidade de avaliação de N2. Orientador: Profª. Drª. Sibeli Aparecida Viana
GOIÂNIA
2009
3
SADY PEREIRA DO CARMO JÚNIOR
ANÁLISE TECNOLÓGICA E DA GESTÃO DE MATÉRIA-PRIMA NO SÍTIO PRÉ-
HISTÓRICO MORRO FURADO (BA-RC-28) BAHIA, BRASIL.
UMA PROPOSTA DE RE-ANÁLISE.
Monografia aprovada como requisito final para obtenção do grau de bacharel em
Arqueologia pela Universidade Católica de Goiás, pela banca constituída pelos professores:
______________________________________, __________________, ______________
Prof.ª Dr. Sibeli Aparecida Viana IGPA Nota
______________________________________, __________________, ______________
Prof.º Dr. Paulo Jobim de Campos Mello UFS Nota
______________________________________, __________________, ______________
Prof.ª Ms. Ludimília Justino de Melo Vaz UFG/UCG Nota
4
Especialmente aos meus pais, Sady e
Valda e minha irmã Rafaella, simplesmente
por tudo, a quem devo tudo, sem comentários.
Aos meus avôs e avó, seu Odilon, Otavio
(em memória) e Dona Noêmia por mostrarem
o que é afeto e o que é a vida, no melhor
sentido.
5
AGRADECIMENTOS
À Dra. Sibeli Aparecida Viana, por aceitar a orientar este projeto, pela imensa
atenção, dedicação, sugestões, re-leituras, idéias e correções, mesmo que sem tempo, pela
ajuda com a bibliografia, muito obrigado.
Dr. Paulo Jobim de Campos Mello, por me mostrar e ensinar do que se trata a
Arqueologia (á sua maneira, é claro), pelo estímulo, pelas risadas, por me aceitar como
estagiário logo no primeiro semestre, pelas oportunidades de bolsa de iniciação cientifica e
trabalhos de campo. Especial gratidão, meus eternos agradecimentos.
Dr. Emilio Fogaça e Antoine Lourdeau, pelas duvidas tiradas e apoio, durante a
passagem pelo laboratório.
Especial agradecimento a Alessandra Teixeira Fontes, por agüentar a barra sempre (e
que barra!!!), pela digitação das lascas no DBase, leitura, sugestões, carinho, atenção e
preocupação durante a execução do trabalho. Minha companheira, uma pessoa que devo
muito, muito mesmo!!! Obrigado gatona.
Á Diego Teixeira Mendes, brother, pelas incessantes ajudas, estudos e papos jogados
fora, um cara que sempre me apoiou, essencialmente um corinthiano chato.
Ao João Carlos Moreno e Isis Ribeiro pela ajuda com os desenhos, uma ajuda
incomensurável.
A Socorro Barbosa, pela incrível disposição em ajudar no que fosse possível
(catálogos corretos).
Aos colegas e amigos do curso e de laboratório, seja pelas discussões teórico-
metodológicas ou pelas farras brutas, em especial, André “Haw” Esteves, Carolina Torres
Borges, Dioguera e Olivia Bini, Eric Lemos, Hélio Braz, Marco (En)Túlio, Loriza, Milena
Beatriz Primavera Moreira Leitão, Sergio Daher e Fernanda de Oliveira, Viviane e
6
Alexandrina, Wendel Barbosa Bastos, e aqueles que não recordo neste momento. Sem dúvida,
foram momentos gloriosos e outros nem tanto.
A todos os professores do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, pela
formação e criação do nosso senso crítico, em especial a Profª Mariza de Oliveira Barbosa,
sempre atenciosa e de bom humor.
A toda a minha família, tias, tios e primos, de ambos os lados, agradeço o apoio e
carinho dado, durante essa jornada, especialmente a minha vódrasta, “Maria”, pela acolhida
em sua casa a partir do dia 11 de fevereiro de 2006 e ao Marcus Polo, pelo seu apoio e
correções, muito grato.
Agradeço a todos os colegas que trabalham ou trabalharam no Laboratório de
Arqueologia IGPA/UCG, sim vocês também foram presentes.
7
“Não há emoção; há paz. Não há ignorância; há conhecimento. Não há paixão; há serenidade. Não há caos; há harmonia. Não há morte; há a Força.”
Grande Mestre Yoda - Filosofia Jedi
8
RESUMO
Esta pesquisa consiste em uma re-análise do material lítico de um sítio nomeado de BA-RC-28, localizado no estado da Bahia, na Bacia Hidrográfica do São Francisco, escavado nos anos de 1981 a 1985, durante o Projeto Serra Geral, projeto este, que fazia parte do abrangente Programa Arqueológico de Goiás, esta re-análise versa em uma abordagem visando às etapas de aquisição, produção, utilização e descarte dos instrumentos líticos lascados. Esta abordagem tecnológica se faz necessária, pois a análise realizada pelo projeto era engajada em preceitos meramente morfológicos. Sobretudo, esta pesquisa visa também como ocorre a gestão da matéria-prima nos horizontes de ocupação e por fim comparar os próprios horizontes sob as características técnicas empregadas.
Palavras Chave: Pré-história; Cadeia-Operátoria; Tecnologia; Matéria-Prima; Material lítico.
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ABSTRACT
This research consists of a re-analysis of lithic material from a site named for BA-RC-28, located in the state of Bahia, in the San Francisco Watershed, excavated in the years 1981 to 1985, during the Serra Geral Project, project this, which was part of the comprehensive Program of Archaeological Goiás, this re-analysis is an approach to the stages of acquisition, production, use and discard of stone tools sliced. This technological approach is necessary because the analysis for the project was engaged in purely morphological principles. Above all, this research also aims to like the management of raw material in the horizons of occupation and finally compare their own horizons in the technical work. Keywords: Pre-history; Chain-operative, technology, raw materials, lithic material.
10
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: cadeia operatória de instrumentos líticos lascados ................................................... 38
Figura 2: sistemas de debitagem, subconjunto 1 ...................................................................... 41
Figura 3: Sistema de debitage D, Fonte: Viana, 2006 .............................................................. 42
Figura 4: Debitagem E e F, modificada de http://www.iesribalta.net ...................................... 42
Figura 5: O instrumento como entidade mista.......................................................................... 45
Figura 6: Diferentes partes de um instrumento e suas respectivas UTF’s................................ 47
Figura 7: Planos de bico e de corte ........................................................................................... 47
11
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: tabela de datações do sitio BA-RC-28, modificado de Schmitz et al. 1996. ........... 31
Quadro 2: Forma das lascas no Horizonte 1 ............................................................................. 57
Quadro 3: Perfil das lascas no Horizonte 1 .............................................................................. 57
Quadro 4: Tipo de Talão das lascas no Horizonte 1 ................................................................. 57
Quadro 5: Nervuras das lascas no Horizonte 1......................................................................... 57
Quadro 6: Forma das lascas no Horizonte 2 ............................................................................. 58
Quadro 7: Perfil das lascas no Horizonte 2 .............................................................................. 58
Quadro 8: Tipo de Talão das lascas no Horizonte 2 ................................................................. 58
Quadro 9: Nervuras das lascas no Horizonte 2......................................................................... 58
Quadro 10: Forma das lascas no Horizonte 3 ........................................................................... 58
Quadro 11: Perfil das lascas no Horizonte 3 ............................................................................ 59
Quadro 12: Tipo de Talão das lascas no Horizonte 3 ............................................................... 59
Quadro 13: Nervuras das lascas no Horizonte 3....................................................................... 59
12
LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: quantidade de lascas por horizonte e matéria-prima ............................................... 51
Gráfico 2: Porcentagens das lascas no Horizonte 1. ................................................................. 52
Gráfico 3: Porcentagens das lascas no horizonte 2................................................................... 52
13
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15
1. A OCUPAÇÃO NA PRÉ-HISTÓRIA ................................................................................ 1
1.1 As ocupações no Planalto Central .................................................................................. 18
1.1.1 O Paleo-indio (12000 – 9000 BP) ........................................................................... 20
1.1.2 O Arcaico (9000-2000 BP) ...................................................................................... 21
1.1.3 O Formativo (a partir de 3000 BP) .......................................................................... 22
1.2 A ocupação na Serra Geral – Um breve histórico .......................................................... 22
1.2.1 Caracterização Ambiental........................................................................................ 23
1.2.2 Sítios da vertente goiana .......................................................................................... 25
1.2.3 Os sítios do Subsistema dos Gerais ......................................................................... 25
1.2.4. Os sítios do Subsistema da Caatinga ...................................................................... 26
2. O SÍTIO, O BA-RC-28 ....................................................................................................... 28
2.1 A escavação .................................................................................................................... 28
2.2 Perfil estratigráfico e vestígios associados ..................................................................... 29
2.3 Outras características e outros vestígios associados ....................................................... 32
3. TIPOLOGIA E TÉKHNE .................................................................................................. 34
3.1 Tipos, Tipologia ............................................................................................................. 34
3.1.1 Considerações aos estudos tipológicos .................................................................... 35
3.2 O Estudo e as características da técnica; seus conceitos ................................................ 36
3.2.1 A cadeia operatória .................................................................................................. 37
3.2.2 Gestão de Matéria Prima ......................................................................................... 39
3.2.3 Sistemas de Debitage .............................................................................................. 40
3.2.4 Sistemas de Façonnage ........................................................................................... 43
3.2.5 Retoques .................................................................................................................. 44
3.2.6 A observação da ação através dos instrumentos ...................................................... 45
4. ANÁLISE DOS DADOS ...................................................................................................... 1
4.1 Gestão de Matéria Prima ................................................................................................ 48
4.1.1 Distribuição no Ambiente ........................................................................................ 48
4.1.2 O que foi selecionado? Quais os critérios de seleção? ............................................ 49
4.2 Estratégias de debitage, a produção ou não de suportes................................................. 50
4.2.1 O núcleo ................................................................................................................... 51
4.3 As lascas ......................................................................................................................... 51
14
4.3.1 Lascas-suporte/blocos suportes ............................................................................... 53
4.3.2 Lascas de façonnage e lascas de retoque ................................................................. 53
4.4 Os instrumentos .............................................................................................................. 59
4.4.1 Instrumentos sobre lascas de calcário ...................................................................... 60
4.4.2 Instrumentos sobre plaquetas/blocos de calcário..................................................... 61
4.4.3 Instrumentos sobre lasca de sílex ............................................................................ 62
4.4.4 Instrumentos sobre outros suportes de sílex. ........................................................... 64
4.4.5 Instrumentos sobre arenito. ..................................................................................... 65
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 66
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 70
ANEXOS ................................................................................................................................. 73
15
INTRODUÇÃO
Na década de 1960 foi implantado no Brasil um projeto arqueológico nomeado
PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas), podem ser considerados os
pioneiros na arqueologia brasileira, onde em sua maioria os trabalhos eram realizados no
litoral brasileiro. Sendo assim, o interior ficou desfalcado de pesquisa e conhecimento a cerca
da pré-história regional.
Em 1972, no estado de Goiás foi criada uma parceria entre o Instituto Goiano de Pré-
história e Antropologia (IGPA) da Universidade Católica de Goiás (UCG) e o Instituto
Anchietano de Pesquisas (IAP)/UNISINOS, e baseado nos preceitos do PRONAPA,
implantaram o Programa Arqueológico de Goiás com o intuito de explorar em termos
arqueológicos a região central do Brasil.
Tais programas, apoiados na corrente teórica histórico-culturalista, visavam criar um
quadro crono-espacial da ocupação pré-histórica, descrevendo exaustivamente a sua área de
estudo, assim como a cultura material, em especial a cerâmica.
Para realizar as pesquisas foram escolhidas regiões no estado, locais nas regiões, sítios
dentro dos locais e amostras dentro de cada sitio (SCHMITZ et al. 1982). Os Projetos eram:
Projeto Paranaíba, Alto Araguaia, Complementar Centro-Sul, Alto Tocantins, Serra Geral,
Médio Tocantins, Ilha do Bananal e Extremo Norte, que abrangiam áreas que variavam de
35.000 a 70.000 km². Enquanto o Projeto Extremo Norte, por exemplo, nem foi iniciado, o
Paranaíba contou com inúmeras etapas de campo. (ver anexos I).
Os sítios eram encontrados através de prospecções oportunísticas.
As escavações não foram sistemáticas, eram realizadas sondagens no sitio (em sua
maioria 1mx1m) sem ter uma preocupação com a distribuição espacial do material
arqueológico no interior dos sítios arqueológicos.
Área bastante significativa foi aquela onde se desenvolveu o Projeto Serra Geral, que
abrange a porção sudeste da Bahia (municípios de Correntina, Coribe, Santa Maria da Vitória
e Santana dos Brejos, principalmente as bacias dos rios Correntina, Patrudão e Corrente),
além de uma pequena porção do leste de Goiás, onde foram realizados trabalhos de campo
entre 1981 e 1985, e um relatório final publicado em 1996 (SCHMITZ et al, 1996), onde
foram identificados em toda a área 40 sítios arqueológicos, entre sítios de caçador-coletores e
horticultores-ceramistas, tanto a céu aberto como em abrigos sob-rocha.
16
O projeto Serra Geral foi estabelecido como elemento complementar para responder
questionamentos sobre a arqueologia da bacia do São Francisco.
As analises dos materiais foram realizadas sob uma perspectiva tipológica, onde os
artefatos eram classificados em tipos sob critérios meramente morfológicos, O problema
dessa abordagem para nós é cair no erro de classificar dois grupos distintos etnicamente, que
produziram artefatos morfologicamente semelhantes, mas com processos de produção,
tecnologia, utilização e descarte distintos, em uma mesma fase ou tradição. No período atual
das ciências humanas, a maioria das correntes teóricas está concerto em refletir que a
abordagem da cultura e dos sistemas sociais não se pode fazer sem o estudo das técnicas
(PLOUX E KARLIN, 1994).
A importância do presente trabalho se dá ao fato que o planalto central brasileiro é
altamente desfalcado de pesquisas arqueológicas, principalmente em comportamentos
técnicos na pré-história se comparado ao resto do Brasil, recentemente que o assunto tem sido
tratado no Planalto Central, com Fogaça (2001), Mello (2005), Viana (2005).
Para contribuir com o conhecimento da pré-história regional, nosso objetivo é tratar de
um sítio denominado Morro Furado (BA-RC-28), e a analise do material lítico lascado com
base no estudo da cadeia operatória de produção dos artefatos líticos lascados, enfatizando as
operações de debitagem e da gestão de matéria-prima.
O BA-RC-28, localizado no município de Coribe, Bahia, é um abrigo sob rocha
formado pela queda de blocos, seu comprimento máximo do sítio é de 64 m, e se encontra a
10m da entrada de um córrego subterrâneo. Neste sítio foram realizados por Schmitz e sua
equipe, em meados dos anos de 1980, três cortes estratigráficos, encontrando uma grande
quantidade de material lítico, além da cerâmica Una e vestígios biológicos.
Optamos por trabalhar somente com o corte III, pois é o único que apresenta
documentação completa de perfis estratigráficos e de plantas detalhadas das bases de cada
nível (ver anexos), o que contribui também é o fato do corte III ser a maior área escavada do
sítio e com quantidade representativa de material arqueológico.
O presente trabalho iniciou-se como uma parte dos estudos do projeto “Análise das indústrias
líticas encontradas no Projeto Serra Geral (1981-1985)”, coordenado pelo Profº Dr. Paulo
Jobim de Campos Mello, em 2005, que visava re-analisar o material com outra perspectiva
teórica, a abordagem tecnológica.
O trabalho é dividido em cinco capítulos. No primeiro capítulo faremos uma breve
discussão sobre as ocupações pretéritas no Planalto Central brasileiro, em seguida sobre o que
17
é proposto por (SCHMITZ et al. 1996) sobre a ocupação pré-histórica da região da Serra
Geral e suas caracterizações ambientais e geológicas, além dos sítios encontrados . O segundo
capítulo trata especificadamente sobre o sítio BA-RC-28, na qual é descrito como foi a
metodologia da escavação, os vestígios e a analise dos perfis estratigráficos. No terceiro
capítulo apresentaremos o referencial teórico, onde apresenta uma revisão sobre tipologia,
antropologia das técnicas e tecnologia lítica. O quarto capítulo é destinado a descrição das
análises e a metodologia. Temos por último as considerações finais, onde será apresentado os
resultados e a possível interpretação dos dados.
18
1. A OCUPAÇÃO NA PRÉ-HISTÓRIA
O início da ocupação no Brasil é ainda incerta, pois as datações antigas não
conjuminam com o modelo proposto para a ocupação da América, que consiste na chegada do
homem pela Sibéria através do estreito de Bering por volta dos 15 mil anos durante o final da
glaciação de Würm quando teria se espalhando pelo continente americano em três migrações,
logo este modelo não compreende as datações antigas que temos na América do Sul que
chegam a quase 50.000 B.P. para os sítios da região nordeste do Brasil.
No Brasil temos cronologias bem definidas, seguindo o modelo tradicional proposto
por Schmitz (1999) temos o primeiro momento caracterizado pelo Paleoíndio com materiais
bem elaborados, depois destacamos o Arcaico com um material pouco trabalhado, mas dotado
de técnicas apuradas e “por fim” existe o Formativo, caracterizado pela cerâmica, formação
de grandes aldeias e a grande diversificação étnica.
Esta cronologia definida possui alguns encalços e problemas, na qual boa parte do
material foi estudado sob questões tipológicas, sob escavações simplistas e amostrais, gerando
assim dados que podem ser refutáveis.
Estes dados vão ser melhor discutidos no decorrer do capitulo.
1.1 As ocupações no Planalto Central
O Planalto Central brasileiro é a designação do grande platô geográfico que abrange
todo o estado do Goiás e parcialmente, o Tocantins, Minas Gerais, Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul. É caracterizado por um relevo regular, raramente ultrapassando cotas de 1000
metros de altitude, com duas estações bem marcadas, seca e chuva. Encontramos dentro do
Planalto Central os biomas da Amazônia, Cerrado e Caatinga. É conhecido também como
berço das águas, pois as nascentes das principais bacias do território brasileiro estão neste
planalto.
No Planalto Central há uma seqüência arqueológica bem definida, mas a sua
explicação em termos de dinâmicas de povoamento não está ainda clara (LOURDEAU,
2006). Os períodos são constituídos dentro de uma perspectiva tipológica dos vestígios,
19
baseados muitas vezes em fósseis-guias definidos como “marcadores culturais” que
determinam uma tradição arqueológica.
Não colocaremos em questão as datações mais antigas para o Planalto Central, pois
por falta de dados seguros, não são (por enquanto), encaixadas em uma cronologia coerente.
Vale a pena citar o abrigo de Santa Elina - MT, com datações que ultrapassam os 20.000 anos
B.P. escavado pelo casal Vialou (VILHENA-VIALOU et al. 2005) e o Abrigo do Sol,
também no Mato Grosso, pesquisado por Miller(1987) que apresenta uma data de 19.400 +-
1.000 anos BP, ambos em ambiente de Cerrado. O presente sítio Morro Furado com datações
por C14 que chegam á 21.000 B.P. e o sítio do Boqueirão da Pedra Furada com 48.000 B.P.
(GUIDON, 1994 e PARENTI,1993) ambos estão localizados em ambiente de caatinga.
As datações do Morro Furado são questionáveis, seja pelas técnicas utilizadas nas
escavações ou à falta de um controle estratigráfico detalhado. Não iremos aprofundar neste
assunto polemico nesta pesquisa, pois não convém com o desígnio da mesma. Iremos tratar
apenas do que ainda é avaliado como ponderado, uma data por volta de 12000 anos antes do
presente.
Sobre o material lítico encontrados em datações antigas, Fogaça e Lourdeau
pronunciam:
“O material arqueológico anterior a 12.000 BP não apresentam, á primeira vista, nenhuma característica comum que permita propor relações culturais. Os instrumentos são considerados pouco elaborados, resultantes de sistemas de produção igualmente pouco elaborados, sejam eles baseados no façonnage ou na debitagem.” (FOGAÇA, LOURDEAU, 2006: p.02)
As escavações arqueológicas realizadas no Planalto Central pelo Programa
Arqueológico de Goiás priorizavam os abrigos, fizeram dessa região uma das mais conhecidas
do Brasil com relação ao período pré-cerâmico (SCHMITZ et al., 1985, 2000). Boa parte
deste conhecimento provém dos sítios encontrados na região de Serranópolis, no sudoeste de
Goiás estudada entre 1975 e 1999, onde quarenta abrigos foram encontrados, cuja cultura
material é muito rica, apresentando uma grande densidade de material. Foi formada uma
seqüência cultural lógica e coerente que serve como material de referência para o Planalto
Central inteiro.
Através dos projetos citados e na seqüência de Serranópolis, podemos traçar em linhas
gerais, como ocorreu a ocupação no Planalto Central brasileiro. Não pretendemos mostrar um
20
histórico minucioso da ocupação regional, apenas apresentar algumas das características da
seqüência cultural estabelecida.
1.1.1 O Paleo-indio (12000 – 9000 BP)
Como estamos tratando de Planalto Central, temos a tradição Itaparica cuja expansão
vai além dos limites do Planalto, corresponde à primeira ocupação conhecida nesta vasta
região datada por volta dos 10.000 B.P., no final do Pleistoceno e inicio do Holoceno, com
uma temperatura um pouco mais fria e um clima mais seco, devido a influência da última
glaciação. A temperatura na transição começa a elevar-se ate chegar ao que conhecemos hoje.
O cerrado ocupou extensões maiores. (SCHMITZ, 1981a apud MELLO 2005).
É nesta faixa cronológica que boa parte dos sítios antigos de caçadores-coletores ocorre como
pode ser visto nos projetos do Alto Tocantins, Serra Geral e Serranópolis (SCHMITZ, 1989),
em Minas Gerais (PROUS, 1992) e no Mato Grosso (VILHENA-VIALOU E VIALOU 1989,
1994).
A tradição Itaparica foi dividida em fases, sendo a mais antiga denominada por
Schmitz, de Paranaíba, caracterizada por uma indústria lítica bastante peculiar, apresentando
como marcadores culturais, os unifaces “lesmas”, artefatos plano-convexos, de grande
qualidade tecnológica. Pesquisas recentes desenvolvidas por Fogaça e Lourdeau (2006) e
Lourdeau (2006), concluem que são suportes unifaciais, matrizes que podem ser organizadas
em diferentes instrumentos. São instrumentos elaborados sobre lascas espessas e grandes onde
o trabalho de concepção volumétrica ocorre em detrimento da face superior da lasca, com
retiradas por toda a periferia da peça (LOURDEAU, 2006).
Segundo Fogaça (1990), os suportes das lesmas são lascas espessas e por vezes
corticais embora não tenha sido localizados núcleos, supõe-se que tais suportes seriam
provenientes de grandes matrizes, com técnica de percussão direta, com percutor duro. Os
retoques destas peças são em suma maioria unifaciais e diretos.
Temos ainda dentro da tradição Itaparica a pouca quantidade de pontas de projétil
(outro marcador crono-cultural), e outros instrumentos ainda pouco tratado nas pesquisas mais
recentes como bicos, picões, raspadores e a faca unilateral que tem como suporte, laminas,
lembrando que as primeiras análises foram calcadas em tipologias, logo, podem estar
associando a forma do objeto final a uma função.
21
Os vestígios alimentares são muito variados, fazendo-nos crer em uma caça
generalizada de mamíferos, répteis, peixes e moluscos terrestres. (ROSA, 2004 apud
LOURDEAU 2006). A coleta é verificada em alguns restos vegetais de leguminosas e
palmáceas (SCHMITZ, 2002).
1.1.2 O Arcaico (9000-2000 BP)
O arcaico no Planalto Central é marcado por mudanças técnicas e climáticas.
Por volta dos 9.000 BP em diante, o clima se apresenta como uma transição entre uma
fase mais quente e seca para uma fase mais fria e úmida, cuja intensidade foi aumentando em
direção ao optimum climático.
O optimum climático é o ápice de um processo de mudança climática, alcançando as
temperaturas mais elevadas entre 7.000 e 4.000 BP, já no Holoceno. Nesse período a
vegetação se modificou, o cerrado aumentou em direção à caatinga. (SCHMITZ, 1981a apud
MELLO 2005).
Acerca da tecnologia, numa visão mais tradicional, temos uma ruptura brutal, o
material padronizado da tradição Itaparica dá lugar a um material grosseiro, sobre lascas
irregulares, onde muitas vezes apenas o gume é regularizado (FOGAÇA 1990). Em estudos
mais recentes, vemos que o material, apesar de realmente não apresentar certa padronização,
“não se pode negar que não haja uma lógica na confecção desses instrumentos, e que essa
lógica encontra-se dentro de um determinado sistema técnico.” (MELLO, 2005 pg. 282), na
qual vemos que o material não pode ser caracterizado como expedito ou oportunístico como
se pensava.
Na alimentação, a caça generalizada continua, mas a presença de moluscos terrestre
nos sítios aumenta, passando a ocupar um papel mais importante na alimentação, mas estes
dados inferidos podem ser duvidosos, pois com o aumento da umidade, principalmente
tratando-se de abrigos, a população de moluscos tende a aumentar naturalmente.
Trata-se então de um período sem padronização no material lítico e que essa mudança
na confecção dos artefatos pode estar ligada a uma adaptação à mudança no ambiente
(MELLO, 2005) ou a uma mudança biológica, onde populações negróides (Luzia - fóssil de
11.000 anos encontrado em Lagoa Santa, MG) estariam dando espaço a uma migração de
grupos mongolóides, que são os índios atuais. (NEVES et al.2004).
22
1.1.3 O Formativo (a partir de 3000 BP)
O período ceramista/horticultor/agricultor tem como tradição mais antiga a Una,
ocupando preferencialmente abrigos, com bastante material lítico em seus sítios, temos para o
Planalto Central mais três tradições a Aratu, Tupiguarani e Uru.
O modelo de ocupação para os grupos ceramistas do Planalto Central está ligado á
uma rede de assentamentos, na qual existe uma grande aldeia base e considerada de habitat
mais prolongado interligada a varias outras pequenas aldeias de atividades limitadas.
A partir de uma visão tradicionalista considera-se com exceção da tradição Una, a
pouquíssima quantidade de material lítico que, por vezes apresentando precário trabalho de
modificação do suporte, o material na maioria das vezes considerados como casual ou
expedito, no entanto segundo Viana (2005), a partir do estudo das industrias líticas de sítios
de agricultores/horticultores estudados no estado do Mato Grosso demonstra a partir de uma
análise tecno-funcional um conhecimento tecnológico mais casual nestes instrumentos,
verificados tanto em quesitos de produção de suportes (debitagens complexas como discóide e
piramidal), como em relação a organização tecnológica dos instrumentos, fazendo-nos pensar
que o instrumental lítico não é expedito, como pensava-se na visão mais tradicional.
1.2 A ocupação na Serra Geral – Um breve histórico
O complexo da Serra Geral é um espaço muito extenso, onde temos uma grande
variedade ambiental, essa variedade mudou no passar dos tempos, abrigando diversos grupos
que utilizavam deste meio variado para viver.
Schmitz et al. (1996) Propõe em breves palavras com se deu a ocupação destes grupos
na Serra Geral: Os sítios arqueológicos mais antigos são de populações caçadoras-coletoras, com assentamentos a céu aberto, em grutas e abrigos. Os horticultores, que os sucedem, são classificados dentro de duas grandes tradições tecnológicas de cerâmica: a tradição Una (fase Jaborandi) e a Tradição Tupi-guarani (fase Itapicuru e fase São domingos). (SCHMITZ,1996: p.180)1
1 Os dados aqui apresentados são dados por Schmitz et al. (1996 pg. 9-13)
23
Os sítios foram divididos de acordo com o ambiente onde estão alojados, - sistema da
Serra Geral e o Sistema do Corrente - que foi subdividido em Gerais e Caatinga. (ver anexo
II)
Vale então ressaltar neste ponto as características ambientais da área estudada, para
então contextualizarmos os sítios ali localizados.
1.2.1 Caracterização Ambiental
O projeto Serra geral abrangeu o sudoeste da Bahia e parte do leste goiano, limitada a
oeste pela coordenada de 46°30', a leste pelo rio São Francisco, ao norte e ao sul pelas
latitudes de 13°00' e 14°30', respectivamente. (ver anexo III)
Como as dimensões da área em estudo eram muito vastas, com variações ambientais
relevantes, a coordenação do projeto optou por dividir a região a partir de suas características
fisiográficas, subdividindo a área em dois sistemas, o sistema da Serra Geral e o Sistema do
Corrente.
O sistema da Serra Geral compreende o limite dos estados de Goiás e Bahia, também
conhecida como a Serra Geral de Goiás, existe na área uma predominância de rochas do
Grupo Bambuí, de Formação Pré-Cambriana e concebida por calcários dolomiticos, siltitos e
folhelhos, compostos por seqüências de predominância carbonáticas.
Este pacote geológico permite a formação de graúdas grutas, abrigos e cavernas
associadas à dissolução dos calcários sotopostos aos quartzitos, muitas vezes com rios
subterrâneos. Estas grutas alcançam grandes dimensões, mas devido à umidade e a falta de
iluminação se tornam impróprias para ocupação humana, como é o caso de Terra Ronca com
quase 2 km de extensão.
O relevo apresenta-se acidentado, com cotas que variam de 600 m a 1000 m,
assemelha-se com uma Cuesta. Os rios nascem próximo ás encostas, dirigindo-se para oeste
em direção da Bacia do Paranã, apresentando sedimentação quaternária nas margens e a
vegetação predominante é o cerrado, desenvolvido sobre o latossolo Vermelho-Amarelo além
do cerradão, localizado onde existe uma maior qualidade do solo ou maior porosidade.
O complexo do Corrente foi subdividido em duas partes, uma leste e outra oeste,
subsistema dos Gerais e subsistema da Caatinga, respectivamente.
24
O subsistema dos Gerais limita-se a oeste pelo sistema da Serra Geral, caracterizado
por uma ampla área onde afloram arenitos da Formação Urucuia, datados do Cretáceo,
sobrepondo sedimentos do grupo Bambuí, ótima fonte de matéria-prima para grupos
pretéritos fabricarem instrumentos líticos.
A topografia passa a ser uniforme como uma superfície relativamente plana, com cotas
de 1000m a oeste passando a 800m nas proximidades do rio Formoso onde se limita com o
subsistema da Caatinga.
A drenagem fluvial na área é composta por rios encaixados em leitos profundos e
bastante paralelos, correndo em direção leste-oeste, onde raramente se observa áreas de
deposição recente.
Sua vegetação apresenta campos no oeste com ocorrência de matas de galeria
passando gradativamente para o cerrado em direção leste, ambas as vegetações desenvolvem-
se em um solo arenoso.
No subsistema da Caatinga, encontramos a Serra do Ramalho, com a formação Lagoa
do Jacaré, Subgrupo Paraopeba, Grupo Bambuí. Compreendendo uma seqüência de calcários
pretos e cinzas, com intercalações de pelitos e margas. Sobrepostos aos sedimentos da
Formação da Lagoa do Jacaré, em pequenos e isolados pontos, temos arenitos da Formação
Urucuia.
Os calcários são compactos, microcristalinos, finamente laminados e intensamente
fraturados, onde as fraturas são preenchidas por calcita bastante cristalizada.
A Serra do Ramalho é caracterizada por feições geomorfológicas como do tipo
patamares de chapadão (projeto RadamBrasil – folha Brasília SD-23) intercalados com
modelados de dissolução com feições cársticas.
Na área são comuns grutas, lapiés, caneluras e corredores com paredões tipo canyons
que se desenvolveram pela queda de blocos e dissolução do calcário, além de sumidouros e
pequenos abrigos.
A vegetação apresenta caatinga arbórea com variações locais, onde receberam o nome
de Floresta Montana estacional semi-decidual e Floresta Montana estacional decidual.
25
1.2.2 Sítios da vertente goiana
Esta região foi percorrida primeiramente pelo arqueólogo Alfredo Mendonça de
Souza, pelo Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás, no Projeto Bacia do
Paranã (Bacia do Maranhão-Tocantins) em 1977. Seu trabalho tinha como objetivo:
“[...], o reconhecimento, cadastramento e o estudo de sítios arqueológicos, com a determinação das suas potencialidades e estado de preservação, a escavação sistemática de sítios selecionados; a documentação exaustiva da arte rupestre; a definição dos contextos ecológicos em que se inserem; a atualização técnica e metodológica; a expansão dos recursos e registros fotográficos disponíveis; e a organização de coleções-tipo com registros detalhados. (MENDONÇA DE SOUZA et al. 1977 pg. 15-16).
O trabalho acima citado foi caracterizado por prospecções assistemáticas e poucos
sítios foram escavados, mas deste modo foi definida a fase Paranã, que representa grupos
caçadores-coletores adaptados a economia do cerrado, abrigando-se principalmente em
abrigos calcários, utilizando como fontes de matérias-primas os filitos e os seixos rolados
(MENDONÇA DE SOUZA et al. 1977 p.196).
O trabalho no projeto Serra Geral, consistiu em prospecções assistemáticas e
oportunísticas, assim sendo nem todos os locais foram trabalhados ou examinados, além de
que alguns abrigos foram apenas inspecionados, sem qualquer trabalho arqueológico.
Foram encontrados dois sítios em abrigos com pinturas rupestres (GO-PA-65 e GO-
PA-66), um sítio da Tradição Aratu onde foi recolhido 169 cacos cerâmicos (GO-PA-82), e
dois sítios da tradição Tupiguarani (GO-PA-64 e GO-PA-67), no sítio GO-PA-64 foram
encontrados três sepultamentos, sendo um com três indivíduos jovens, por isso foi
considerado como um sítio cemitério. O GO-PA-67 foi considerado como uma típica aldeia
Tupiguarani, apesar de ter sido realizada apenas coletas ocasionais, não sistemáticas.
1.2.3 Os sítios do Subsistema dos Gerais
Nesta região os trabalhos concentraram em prospecções de duas áreas localizadas no
município de Correntina - Alto-médio Correntina onde foram encontrados 11 sítios e outra no
Pratudão - rio Formoso com nove sítios. “Os dois locais oferecem conjuntos de sítios líticos,
26
representados por locais de exploração e preparo de matéria-prima, ou de sítios mais
permanentes, na borda do rio, onde podem vir acompanhados de petroglifos em lajedos planos
horizontais”. (SCHMITZ, 1996: p. 24.)
Em suma maioria, os sítios prevalece a coleta de matéria-prima e produção dos objetos
líticos, junto ao afloramento de nódulos, blocos ou lages de arenitos silicificados e sílex.
A região, segundo os autores, é enfatizada como um local “extremamente” bom para
se viver, com água, caça, pesca, frutos e matéria-prima de alta qualidade e em abundância; os
acampamentos estão sempre nas proximidades dos rios e, aparentemente, não existem sítios
nos interflúvios.
Sobre o período de ocupação desta área Schmitz nos diz que: “a cronologia de
ocupação desta área não está clara, as lesmas e artefatos parecidos, que são bastante comuns,
poderiam ligar o primeiro horizonte de ocupação à tradição Itaparica”. (SCHMITZ et al.,
1996: p. 69.) O autor ainda supõe que a exploração do ambiente por grupos caçadores-
coletores não teria sido interrompida em nenhum momento, até a chegada dos colonizadores
europeus. Os sítios com fragmentos cerâmicos, da Tradição Una, sem fixação em aldeias,
sustentariam esta hipótese.
1.2.4. Os sítios do Subsistema da Caatinga
No Subsistema da Caatinga foram exploradas três áreas com potencial arqueológico: o
baixo Correntina onde percorreram diversos paredões próximos ao rio, uma parte do rio
Corrente onde os sítios se encontram predominantemente em grutas e abrigos e na Serra do
Ramalho com uma divisão entre os sítios localizados no interior e na porção externa do
canyon. No total foram registrados 18 sítios.
No Rio corrente temos diversos sítios como os BA-RC-33, BA-RC-43 e o BA-RC-44,
que são sítios bastante característicos, com grandes dimensões.
Na Serra do Ramalho onde se localiza o canyon, existe uma gama de abrigos e grutas
calcárias, com ocupações bastante antigas (cerca de 9.000B.P) perdurando até os horticultores
da Tradição Una.
Os sítios encontram-se no interior ou ao redor de um grande canyon, onde corre um rio
subterrâneo, que por vezes aparece em superfície ou em pequenos acessos. Os sítios na porção
externa do canyon são o BA-RC-51, BA-RC-52 e BA-RC-53.
27
No seu interior, na borda do canyon, foi registrado o abrigo do sítio BA-RC-28,
seguidas por diversas pequenas grutas e abrigos, com ou sem presença humana (foi
inspecionado apenas quatro quilômetros do canyon) que permeam o córrego subterrâneo.
Nesta região foram registrados sítios como o BA-RC-49, BA-RC-54 e o BA-RC-28, o mais
documentado dentre todos do projeto.
Além do material arqueológico relacionado com os caçadores-coletores localizados
nos substratos profundos, temos a cerâmica nas camadas mais superficiais, pertencentes a
Tradição Una, segundo Schmitz et al. (1996), em todos os abrigos foi verificado a presença de
cerâmica nas camadas superficiais, sugerindo que houve uma ocupação horticultor-ceramista
sobrepondo a ocupação pré-cerâmica, ou ao menos um contato entre os mesmos. No entanto
não houve uma ocupação veemente nos abrigos nem mesmo nos períodos horticultores-
ceramistas.
Quanto ao material lítico em geral, tratando dos sítios do interior do abrigo, temos a
utilização do calcário como matéria-prima principal e nas camadas superiores, ele é
gradativamente substituído por sílex e arenito silicificado. Como há uma pequeníssima
quantidade de lesmas as hipóteses do material desta região pertencer a Tradição Itaparica são
refutadas por Schmitz et al. (1996). Estes primeiros dados não são baseados nos momentos
da produção e uso das ferramentas, que é o nosso principal objetivo.
Os restos alimentares mostram uma caça generalizada com consumo também de
gastrópodes terrícolas.
Todas as representações rupestres estão vinculadas a Tradição São Francisco, ligadas à
ocupação pré-cerâmica.
28
2. O SÍTIO, O BA-RC-28
Este sítio foi um dos mais bem documentados de todo o projeto, ele foi trabalhado em
três etapas, a primeira em julho de 1981, onde foi realizado um reconhecimento geral da área
do sítio, realizada também uma coleta de material em superfície e a abertura do corte I; em
julho de 1983 foi feito o corte II e a documentação da arte rupestre; e, por fim a de julho de
1984 quando realizaram o prolongamento do corte II (o IIb) e a abertura do corte III.
O sítio é um abrigo rochoso de calcário, com abertura para direção norte, ficando
ensolarado por quase todo o dia, seu comprimento máximo é de 64 m. A parte mais aplainada
do abrigo (centro-esquerda) mede, aproximadamente, 32 m de comprimento por 10 m de
profundidade e estaria ligada, segundo os autores (SCHMITZ, 1996)2, às funções básicas do
assentamento. Já o lado direito é mais alto e formado por grandes blocos onde aparece um
pequeno sumidouro. (ver anexo V)
Descendo um pequeno talude, a 10 metros, chega-se a entrada do córrego subterrâneo,
onde se dispõe de água por todo o ano, inclusive em épocas secas. Segundo Schmitz et al.
(1996: p.126) “o ambiente em geral seria convidativo para uma ocupação repetitiva e mais
duradoura, o que é raro na área.”
Optamos por trabalhar somente com o corte III, pois é o único que apresenta desenhos
completos de perfis estratigráficos (ver anexos VI e VII) e plantas detalhadas das bases de
cada nível, o que contribui também é o fato do corte III ser a maior área escavada do sítio.
2.1 A escavação
As escavações ocorreram na época acima citadas e cada corte foi escavado com
diferentes dimensões e atingindo quase 200 cm de profundidade.
O corte I possui dimensões de 150 x 100 cm e chegou a uma profundidade de 190 cm;
o corte II, com dimensões de 2 x 2 m, depois foi ampliado (IIB) para melhor entendimento da
estratigrafia do abrigo e devido a grandes blocos caídos com uma profundidade de 170
2 Os dados apresentados neste capitulo são dados por Schmitz et al. (1996: p.125 a 144)
29
centímetros; o corte III, apresentando dimensões de 3 x 3m, chegou a uma profundidade de
180 cm, totalizando 14,5 m² escavados.
Os cortes foram escavados por níveis artificiais de 10 em 10 cm, e peneirados com
malhas que variam de 0,1 a 0,4 cm.
A documentação de campo, os desenhos do abrigo e dos cortes II e III, são da geóloga
Maira Barberi Ribeiro.
2.2 Perfil estratigráfico e vestígios associados
As descrições das camadas foram efetuadas através do perfil do corte III onde
podemos observar cinco camadas (ver anexos VI e VII):
A camada I, de cor castanha acinzentado apresenta uma granulação silto argilosa bem
selecionada. Com áreas de concentrações de cinzas vegetais. Ocorrem raramente pequenos
blocos angulosos de calcário, com dimensões que não ultrapassam os 10 cm. A inclinação da
camada está direcionada na parede do abrigo. Está camada está relacionada a um período de
ocupação intensa onde os 20 cm primeiros devem corresponder a grupos horticultores,
registrando fogueiras com carvão, fossas com detritos diversos (ossos, líticos, sementes,
caramujos, folhas, fragmentos de cabaça, cordas de algodão, fragmentos de bolsas, fezes e
fragmentos de cerâmica e fibras diversas), material lítico, folhas secas, cerâmica e material
malacológico. O clima deveria ser parecido com o atual.
A segunda camada com espessura aproximada de 20 cm corresponde a um
emaranhado de blocos calcários dispostos deitados e acomodados como se tivessem caídos
uns sobre os outros. Próximo ao vértice D (corte III), associados a pequenos blocos, seixos e
folhas, como se o “sedimento tivesse sido lavado, sendo muito pequena a presença de uma
matriz silto-argilosa que seria esperado numa sedimentação normal, tratando-se de calcário”
(SCHMITZ et al. 1996: p. 132). Esta camada foi associada a um período mais úmido, que
fraturava o calcário provocando a queda dos blocos. “A espessura atual deve corresponder a
muitos milhares de anos, pois a camada foi intensamente erodida no seu topo, aglomerando
mais blocos” Schmitz et al. (1996: p. 132). Observa-se que tais blocos aparecem intercalados
à camada inferior, sugerindo que estes devem ter começado a cair em um período anterior.
Comparada a camada 1 essa parece ter tido uma ocupação menor e aproveitando os blocos
30
ocorreram algumas fogueiras, predominantemente em seu topo. As datas sugerem que seja
anterior ao optimum climático.
A camada 3 com uma espessura de até 50 cm é constituída por material silto argiloso
de cor castanho alaranjado, indicando um período mais seco, oxidante, passando a areia fina
mal selecionada, com alguns blocos dispersos toda a espessura da camada. Esta camada foi
associada ao inicio do Holoceno, onde o clima era mais quente e seco intercalado com
períodos quentes e menos áridos. Apresenta uma inclinação para o interior do abrigo. Quanto
à ocupação, parece ser mais escassa. Não há sinais de fogueiras e, tão pouco, fossas com
material recente. O material arqueológico se torna ralo e os restos de sepultamento humano
são de origem incerta.
A camada 4 possui uma espessura que varia de 40 a 50 cm, constituída de blocos
ângulos de calcário que variam até 40 cm, onde os mesmos são acomodados de quaisquer
forma, apresentando-se bastante frágeis, fraturando-se com facilidade. Não há grande
quantidade de sedimento acomodando os blocos, as cinzas ocorrem por toda a camada,
sugerindo ausência de um período chuvoso intenso para lavá-las ou disolvê-las.
Esta camada apresentou datas pleistocênicas (cerca de 15.000 anos BP), sobre carvões
esparsos por toda a camada, possivelmente em vários níveis estratigráficos. Apesar de não
muito confiáveis, estas datações confirmaram as datas também pleistocênicas conseguidas no
corte II. O material arqueológico é muito escasso, composto por material lítico elaborado
apenas em calcário, conchas de gastrópodes e pequenos fragmentos ósseos.
Quanto à última camada (05) que possui uma cor castanha alaranjado, é constituída
por sedimento silto argiloso com muitas concreções silicificadas. Nesta camada não ocorre
material arqueológico, apenas blocos calcários naturais e conchas de gastrópodes fossilizadas.
Foram recolhidas no total, além do material orgânico e cerâmico, mais de 2.700 peças
líticas entre lascas, instrumentos brutos ou retocados, núcleos, fragmentos, cúpulas térmicas e
estilhas, proveniente principalmente de matérias-prima como o calcário, sílex e arenito.
Quanto às datações, foram obtidas por métodos de radiocarbono (C14) onde
foram coletados carvões e caramujos em vários pontos em todos os cortes. Segundo Schmitz
em comunicação pessoal (2009), tais datações não são confiáveis, principalmente as
pleistocênicas, logo não vamos nos ater as mesmas. Algumas destas datas não estão em níveis
com material arqueológico, mas existem datações pleistocênicas associadas a vestígios
arqueológicos.
31
Data ( C14) Laboratório Camada Nível Corte
955+-85 SI-6291 1? 30-40 cm I
1.985+-85 SI-6290 1 10-20 cm IIb
6.805+-90 SI-6746 2 40-50 cm III
7.707+-115 SI-6467 3 60-70 cm III
8.860+-115 SI-5565 3? 80-90 cm I
9.110+-100 SI-6748 Transição Camada 3 e 4 80-100 cm III
16.200+-290 SI-6752 4 140-160 cm III
18.570+-130 SI-6751 4 120-140 cm III
21.090+-420 SI-6750 5 100-120 cm III
26.600+-620 SI-6292 4a 130-140 cm IIb
26.970+-570 SI-6293 4a 140-150 cm IIb
>43.000 SI-6294 5 base da escavação 190 cm IIb
Quadro 1: tabela de datações do sitio BA-RC-28, modificado de Schmitz et al. 1996.
Segundo a publicação original do projeto, de acordo com a quantidade e qualidade da
matéria prima, teríamos dois períodos pré-cerâmicos, sendo o primeiro momento mais antigo,
com pouca densidade de material, conseqüentemente de ocupação, material trabalhado apenas
em calcário que seria a rocha do próprio abrigo, que corresponde aos níveis de 100 a 160 cm e
a segunda ocupação teria ocorrido por volta dos 9000 BP, com uma ocupação crescente, mas
32
não muito intensa, na qual, já existem matérias primas exógenas. É o período com uma maior
densidade de material.
É valido mencionar que como se trata de um abrigo de calcário friável no qual blocos
despencam naturalmente, é possível que lascas sejam produzidas acidentalmente e como o
material não é padronizado, é complexo distinguir uma lasca antrópica de uma lasca natural,
logo preferimos atribuir valor cultural as possíveis lascas naturais com a possibilidade de, no
decorrer das pesquisas, possamos distingui-las.
2.3 Outras características e outros vestígios associados
A cerâmica é atribuída a Tradição Una, foram coletados 382 fragmentos, divididos em
três tipos: na “variedade A”, a técnica de manufatura é por acordelado, com antiplástico de
areia ou caco moído e queima oxidante incompleta. Na “variedade B” temos os vasilhames
elaborados sobre roletes com antiplástico de pó de calcário de textura muito densa e queima
oxidante incompleta. “A variedade C” é caracterizada por dois fragmentos do mesmo
vasilhame sobre roletes, com tempero de cinzas e carvão e queima não definida.
A decoração da cerâmica ocorre apenas por um caco da “variedade A” que apresenta
uma macha de tinta vermelha e sobre alguns fragmentos da “variedade B” que apresentam
engobo branco.
Na superfície foram encontrados dois cachimbos angulares de cerâmica com
antiplástico de areia fina, foram bem cozidos e apresentam um bom acabamento; e um
cachimbo tubular com restos de resina e cera em uma das extremidades.
Quanto às pinturas, toda a parede do fundo estava coberta de pinturas monocrômicas
(vermelho, amarelo, preto ou branco) e policrômicas até em alturas atingíveis atualmente
apenas por escadas, são predominantemente geométricas, mas existem também zoomorfas e
antropomórficas. Foram encontradas ligadas as pinturas, uma lasca de hematita com os bordos
fortemente gastos, um pequeno seixo com depressão de uso e estrias vermelhas e um pequeno
seixo com estrias em amarelo. As pinturas estariam ligadas à tradição São Francisco.
Os restos biológicos são muitos, a quantidade de moluscos é impressionante, mas não
se pode afirmar que eram utilizados como alimentos, porque não foi verificado evidencia de
queima, especialmente nos estratos pleistocênicos, recorrência essa necessária para atestar tal
hipótese.
33
Restos de peixes aparecem apenas uma vez que, segundo Schmitz e al. (1996), isso
decorre do fato dos rios de porte serem distantes, explicando a ausência de peixes como
vestígio arqueologico. Répteis aparecem apenas nos níveis mais recentes, com exceção da
serpente que aparece desde os níveis mais profundos, mas não se pode afirmar que seriam
restos alimentares. As aves aparecem por todos os níveis. Mamíferos estão representados em
todos os níveis, ossos queimados estão presentes em todos os níveis arqueológicos. Os
vestígios faunísticos crescem em quantidade da mesma forma que o material lítico, a partir do
nono milênio antes do presente.
Restos vegetais aparecem também em grande quantidade, mas apenas superficialmente
e no interior de fossas, é composto por caroços diversos e casca de umbu, de pequi, cocos
quebrados de guariroba, cascas de frutos de jatobá, caroços de pitomba, sementes variadas,
palhas e sabugos de milho.
Foram recolhidos restos de madeira, três tipos de ponta de projétil, pedaços de
madeiras cortados em uma extremidade e queimados na outra, aparentemente de palmeiras.
Com todas as superfícies trabalhadas e alisadas.
Foram ainda recuperados 10 pedaços de cordões feitos em fibras, pedaço de
braçadeira, três partes de uma bolsa, dois embaraçados de fibra vegetal não trabalhada e
chumaços de algodão, além de fezes humanas e fibras que aparentam fezes animais.
Temos ainda um machado picoteado e polido em calcário, bastante abrupto (gasto),
com negativos em apenas uma das faces, partindo do gume e um grande negativo (65mm de
comprimento e 95mm de largura) saindo do bordo direito, apresenta também uma marca do
encabamento, na porção proximal. Suas dimensões: 138x82x50 mm (comprimento X largura
X espessura, respectivamente). Este machado, possivelmente serviu após seu descarte como
um núcleo, para retirada de um suporte, colocando dentro da linhagem evolutiva, diríamos
que se trata de um tipo B (ver adiante no capitulo 4), que aproveita a convexidade do bloco.
Existe uma lasca de hematita que possui marcas de abrasão por todo o bordo esquerdo
e porção distal, este gume é oposto a um dorso. O plano de bico e de corte (ver adiante no
capitulo 4) possui ambos 40°, suas dimensões são 20x25x10mm.
O último objeto é uma lasca larga e robusta, onde de sua face externa na porção distal,
próximo ao bordo direito, foi realizada uma grande retirada arrancando a porção distal, na
porção distal deste grande negativo, serviu como plano de debitagge para retirada de uma
pequena lasca triangular. O artefato não apresenta retoques, nem uma recorrência e coerência
de retiradas ou mesmo uma preparação.
34
3. TIPOLOGIA E TÉKHNE
Iniciamos a discussão a cerca de algumas considerações (ou questões) sobre as
abordagens teóricas a serem apresentadas e utilizadas em nossa pesquisa. Fogaça (2001:
p.120) levanta uma questão quanto à tipologia e a tecnologia:
“diferenciam-se apenas como opções metodológicas distintas para o tratamento uma mesma categoria de testemunho ou tratam-se de opções que implicam na concepção de distintas categorias de testemunhos, ainda que os objetos permaneçam os mesmos.”
Segundo Fogaça (op. cit.) tais métodos são apenas aparelhos criados para responder
uma necessidade de compreensão, uma resposta a uma necessidade, logo, a utilização de uma
das abordagens, não impossibilita a utilização da outra.
Os arqueólogos têm considerado os vestígios arqueológicos como remanescentes
históricos com o uso da tipologia, em vez de reconstruir as atividades humanas que os
fabricaram com os estudos tecnológicos (SIGAUT 1993 apud MELLO, 2005)
Neste capitulo, iremos tratar sobre as abordagens tipológicas e tecnológicas.
3.1 Tipos, Tipologia
A criação de tipos vem da natureza do raciocínio humano, temos a intenção de
classificar os nossos objetos. Como exemplo, separamos na gaveta, as colheres, as facas e os
garfos em lugares distintos. Por que essa separação ocorre?
Criar tipos é uma maneira de organizar os objetos, para termos um gasto menor na
procura de certos “dados”, é apenas uma separação, uma organização que cada pessoa faz de
acordo com as características que julga como importantes, seja ela consciente ou não. A partir
de características específicas os objetos são organizados em tipos, podendo ser facilmente
comparados.
Tipologia significa o estudo sistemático de tipos e podendo ser aplicado a diversas
disciplinas, inclusive na arqueologia, onde foi usada nas primeiras pesquisas e ainda é
utilizada.
35
Na arqueologia, a tipologia, graças à facilidade em organizar os dados arqueológicos
em partes comparáveis, nos proporciona um instrumento de descrição, “podendo sintetizar os
dados em uma escala regional e oferecer métodos para investigar áreas desconhecidas”
(MELLO, 2005 p. 36).
3.1.1 Considerações aos estudos tipológicos
Os estudos tipológicos são alvos de varias criticas, um objeto visto como um tipo,
contem informações que não são do objeto em si, mas da relação avaliada para determiná-lo.
(MELLO, 2005)
Esta relação, analogia, identidade, atribuída ao objeto, vem da própria experiência
pessoal do pesquisador, logo, os critérios e as características escolhidas para definir um tipo,
refletem mais a idéia do observador/pesquisador do que o objeto realmente possa representar.
(SIGAUT, 1993 apud MELLO, 2005)
Perlès (1987) apresenta uma critica à tipologia: é uma abordagem reducionista, onde
se considera apenas o instrumento finalizado, onde grande parte das informações são
perdidas, como a escolha da matéria-prima, do suporte, as modalidades de retoques, enfim,
toda atividade ligada à produção dos instrumentos. Ainda segundo a autora, se faz necessário
a verificação das diferenças funcionais, pois a as diferenças tipológicas não fazem sentido no
âmbito da interpretação em termos culturais. As listas tipológicas faltam coerência interna. A
abordagem tipológica, levando em conta, apenas o objeto finalizado, é incapaz de verificar os
conhecimentos dos processos de produção para se chegar ao objeto.
Como exemplo dos limites das abordagens tipológicas, temos como exemplo, a ponta
levallois, que pode ser produzida por diversos esquemas operacionais, e não pode ser
classificada apenas como um produto triangular com uma nervura em Y invertido. (BOËDA,
1995a, 1995b, apud MELLO 2005). Logo, nos faz necessário o uso de tipologias a partir de
uma abordagem tecnológica dos objetos técnicos, entender como o objeto foi produzido e sua
relação com o artesão e com o meio sistêmico e social.
36
3.2 O Estudo e as características da técnica; seus conceitos
O etnólogo francês Marcel Mauss (1935), propôs que técnica está presente nas
atividades das pessoas, seus modos de agir, de pescar, de cultivar, de se vestir, de caçar, de
dirigir, ou seja, todos os hábitos musculares socialmente adquiridos, e esses hábitos
musculares são transmitidos de geração em geração. Esse autor completa que, uma habilidade
manual só se aprende vagarosamente. Cada sociedade tem seus próprios hábitos corporais,
suas próprias técnicas.
A técnica supõe o contato direto do homem com a natureza, com a matéria. Através
dos preceitos dados por Mauss, utilizamos o conceito de técnica dado por Haudricourt (1987),
onde técnica é o conhecimento dos atos necessários para obtenção do resultado procurado; e
considera como a “atividade mais racional do homem e a mais característica, ela não é
biologicamente adquirida no nascimento, mas socialmente apreendida e socialmente
transmitida.” Haudricourt (1987, p. 332)
Este autor coloca quatro elementos para as atividades técnicas, a evolutiva, a
geográfica, a funcional e a dinâmica. O ponto de vista evolutivo é quando as sociedades são
classificadas por seu nível técnico. A geográfica trata-se da adaptação do homem, as técnicas
que ele utiliza, ao clima, a vegetação, etc. O funcional examina como o homem satisfaz suas
diferentes necessidades, qual a função para uma determinada conduta e a visão dinâmica é o
estudo do comportamento humano livre do meio natural e das necessidades do homem.
A visão dinâmica observa o objeto como resultante de certos movimentos e os
instrumentos como modificadores de instrumentos.
Warnier, (1999), propõe que quando aprendemos uma técnica, a utilizamos de maneira
maquinal, automática, formando um só corpo. Não pensando mais nos atos ou ações para
fazer funcioná-la. O objeto passa a ser uma extensão do corpo, é uma dinâmica interiorizada
através do controle que o sujeito exerce sobre o objeto, gerando atos padronizados com a
maior economia de meios possível.
Segundo Leroi-Gourhan (1985 p. 117) “técnica é simultaneamente o gesto e o
utensílio, organizados em cadeia para uma verdadeira sintaxe que dá às séries operatórias a
sua fixidez e sutileza”. E considera ainda que por meio do instrumento, a técnica está em
continuidade em relação à evolução natural.
37
As técnicas são as primeiras evidencias de relação entre o homem e o ambiente,
marcando a ruptura do natural com o social, do instinto e da inteligência (LEROI-
GOURHAN, 1985a). Já Lemonier (2002 apud VIANA, 2005) enfatiza que as técnicas são as
primeiras e principais produções sociais, merecendo uma abordagem social.
3.2.1 A cadeia operatória
Mauss foi o primeiro a considerar as ações do corpo humano enquanto técnica,
mostrando a necessidade de pesquisas mais aprofundadas sobre os métodos de fabricação dos
objetos, depois temos Maget (1953 apud MELLO, 2005) que iniciou a noção de “cadeia de
operação” ou “de fabricação”, mas Leroi-Gourhan foi pioneiro em trazer e aplicar este
conceito às interpretações pré-históricas.
As cadeias operatórias do comportamento humano são obtidas em três níveis
propostos por Leroi-Gourhan (1985), uma ligada ao plano psicológico do inconsciente, o
comportamento biológico, relativo aos comportamentos automáticos de natureza biológica. O
segundo do subconsciente, é o comportamento operatório maquinal, referente a cadeia
operatória adquirida pela experiência e pela educação, inscritas no âmbito da linguagem e do
comportamento gestual. O ultimo é o comportamento lúcido, quando há uma ruptura no
comportamento maquinal, algo que faça sair do regular, do previsto, no desenrolar da
operação, podendo gerar novas cadeias operatórias.
Podemos ainda detalhar este conceito com Balfet (1991) que considera cadeia
operatória como o encadeamento de operações mentais e dos gestos técnicos necessários para
atender uma necessidade, é uma serie de operações que transformam uma matéria-prima
natural para um estado produzido, quer seja ele (o objeto) para consumo ou instrumento.
Refere-se aos estágios técnicos da “vida” de um determinado objeto, desde a escolha e
coleta da matéria-prima, produção (debitage, façonnage, retoques), uso (função e
funcionamento), re-usos e, por fim, o descarte, incluindo os processos de transformação,
utilização e os gestos aplicados (figura 01), “também integra um nível conceitual e, assim, não
pode ser entendida sem referência ao conhecimento técnico do grupo” (MELLO, 2005: p.
59).
38
Figura 1: cadeia operatória de instrumentos líticos lascados
A cada etapa da cadeia operatória, o lascador deverá tomar decisões de como conduzir
seu trabalho, estas decisões são, em sua maioria, tomadas de acordo com a tradição técnica do
seu grupo. Logo o arqueólogo, baseado em estudos técnicos e experimentações, tentará
identificar qual é a tradição técnica do grupo estudado, quais são os padrões encontrados nos
vestígios líticos, ou seja, realizar o caminho inverso que o material fez ao chegar a suas mãos.
O objetivo do arqueólogo é identificar essas etapas através dos vestígios
arqueológicos. Segundo Boëda (1990 apud MELLO 2005) a cadeia operatória pode ser
percebida de duas formas, a partir do tecno-psicológico e do tecno-econômico. Na analise
tecno-psicológica podemos determinar os conhecimentos no sistema de produção lítica, ou
seja, a memória técnica. A abordagem tecno-econômica propõe-se analisar, sob o ângulo
econômico, o comportamento dos homens pré-históricos.
Nesta pesquisa é nosso propósito verificar como de desenvolveu a cadeia operatória de
produção de instrumentos líticos lascados, enfatizando as operações iniciais de aquisição de
matéria-prima e os sistemas de debitagem ligados as diferentes matérias-primas, depois a
façonnage, retoques e utilização.
39
3.2.2 Gestão de Matéria Prima
As operações técnicas aplicadas na produção de instrumentos líticos pré-históricos são
resultados de uma complexa reunião de estratégias de explorações/gestão de matéria-prima,
pelos sistemas de produção do suporte (debitage) e produção do instrumento (façonnage).
A escolha da matéria-prima não depende apenas de sua qualidade efetiva para o
lascamento, depende também de escolhas culturais e das determinações da área a ser ocupada.
Perlès (1993) nos fornece duas abordagens para examinar a relação entre o artesão e a matéria
a ser trabalhada: uma é a abordagem determinista e a outra que prioriza a variabilidade
individual.
A abordagem determinista propõe que os fatores exógenos são mais importantes que
as escolhas grupais, individuais e/ou culturais, ou seja, fatores como o ambiente, a mobilidade
grupal, a sazonalidade de recursos, o clima, a geomorfologia e a natureza em si, determinam o
resultado que o artesão irá alcançar. Logo estes fatores são colocados em primeira instância
para averiguar as características técnicas das indústrias líticas e/ou entre indústrias líticas.
A segunda abordagem, da variabilidade individual, preza pelas escolhas culturais e/ou
individuais, contradizendo a abordagem anterior. Nesta abordagem o individuo é considerado
como ator consciente sobre a produção de seu instrumental (VIANA, 2005), mediante seu
conhecimento técnico disponível, de sua habilidade e, principalmente, de sua pretensão
quanto à matéria-prima a ser trabalhada.
Segundo Perlès (1992) toda atividade técnica está ligada um pensamento abstrato, um
esquema conceitual, que direciona todas e quaisquer decisões na produção dos instrumentos
líticos, esse processo interfere e exige a aplicação de estratégias que permitem que soluções
sejam tomadas.
Ainda, de acordo com a autora, estas estratégias são absorvidas ao comportamento do
grupo, afetando diretamente na economia de tempo e de material, ou seja, aquisição versus
trabalho. Perlès (1992) nos diz ainda que haja uma carência entre qualidade, abundancia e
facilidade de aquisição de matéria-prima, o que exige fazer escolhas e de elaborar estratégias
de aquisição especificas, já que a propriedade física do material interfere nas realizações
possíveis.
Conclui-se que para produzir pedra lascada combinam-se diversos elementos. Cabe
aos pré-historiadores analisar as estratégias e suas variações, equiparados de parâmetros como
matéria-prima local e exógena, necessidade funcional e a necessidade de manutenção da
40
mesma. Lembrando que nem sempre o local apresenta matéria-prima apropriada para as
necessidades e que elas apresentam-se de forma abstrata no ambiente. Perlès (1987: p. 09) nos
mostra variáveis a serem observadas ou inferidas quanto à aquisição da matéria-prima:
1. Abundancia de matérias-primas localmente disponíveis. (observação).
2. Qualidade do lascamento das matérias-primas localmente disponíveis. (observação).
3. Necessidade técnica e limitações funcionais. (observação e traceologia).
4. Qualidade funcional das matérias-primas localmente disponíveis. (observação e
traceologia).
5. Tempo gasto e disponível para a aquisição da matéria-prima. (inferência).
6. Conhecimento das fontes distantes. (observação).
7. Contexto socioeconômico. (inferência).
8. Custo para aquisição de matéria-prima. (observação).
9. Tradição do grupo. (inferência).
O estudo da gestão de matéria-prima recobre toda a forma de exploração da matéria-
prima em um dado sítio. Ela põe, com efeito, as seguintes questões: quais foram as diferentes
matérias-primas utilizadas? De onde elas provêm? Sob que formas elas eram introduzidas nos
sítios? Com que fins elas eram levadas e para onde?
Trata-se, pois, de interpretar as diferentes estratégias utilizadas na exploração de
matérias-primas variadas em função de dificuldades de aprovisionamento, de sua qualidade de
lascamento e de utilização ao qual se destinava.
3.2.3 Sistemas de Debitage
Sistema de debitage é a exploração de uma matriz, com o objetivo de retirar, a partir
de diferentes métodos, um suporte que será utilizado como instrumento, passando
posteriormente (não necessariamente) por etapas de façonnage e retoques. “A debitagem
consiste em produzir retiradas, em detrimento de um bloco, que servirão imediatamente como
instrumentos ou que será o objeto, num segundo momento, de uma transformação em
instrumento.” (BOËDA E FOGAÇA, 2006: p. 675 e 676).
41
Boëda e Fogaça (2006) criaram uma escala que explica seis níveis dos sistemas de
debitage, agregando dos níveis mais simples aos mais estruturados e complexos, sendo
agrupadas em dois subconjuntos:
O primeiro subconjunto reúne os sistemas técnicos de produção que só necessitam de
uma parte do bloco, sendo que o restante não desempenha nenhuma função técnica. As
características tecno-funcionais procuradas são limitadas à uma parte dos suportes retirados.
- Sistema A: trata-se da produção de um gume, não importando outras características
das lascas.
- Sistema B: trata-se da adoção da noção de repetição de retiradas consecutivas,
permitindo aumentar as características próprias ao gume: regularidade, delineação específica
(figura 02).
-Sistema C: trata-se da exploração das características de convexidade presentes
naturalmente sobre uma parte do bloco e uma noção de pré-determinação, permitindo
produzir suporte com um gume, mas também, pela primeira vez, uma pequena série de
retiradas com certo controle. O bloco representado pelo núcleo de debitagem C pode estar
muito explorado, mas pode-se observar que as seqüências de exploração são independentes,
as seqüências não estão em sinergia, elas são independentes entre si (VIANA, 2005) (Figura
02).
Figura 2: Sistemas de debitagem, subconjunto 1
42
O segundo subconjunto reúne os sistemas técnicos de produção que necessitam do
bloco totalmente configurado para alcançar seus objetivos. As características tecno-funcionais
dos instrumentos são em grande parte obtidas durante a debitage, ou seja, os suportes
produzidos são cada vez mais próximos dos futuros instrumentos.
- Sistema D: é uma noção de recorrência de retiradas arranjadas de modo que deixa
características de convexidade capazes de produzir os gumes buscados, contudo “permite
produzir não apenas um gume, mas, também, um conjunto de características técnicas mais
diversificadas e um primórdio de normalização da produção” (BOËDA E FOGAÇA, 2006: p.
676-677). O bloco é explorado por séries de retiradas consecutivas idênticas umas às outras,
produzindo excepcionalmente a mesma gama de retiradas, correndo o risco de perder a
característica pré-determinada das retiradas (figura 03).
Figura 3: Sistema de debitage D, Fonte: Viana, 2006
- Sistema E e F: trata-se da organização da integralidade do bloco para lhe dar uma
forma e características técnicas particulares, de certo modo que determinarão, precisamente, a
morfologia e as características técnicas do que está sendo retirado do bloco. Trata-se do
máximo de predeterminação (figura 04).
Figura 4: Debitagem E e F, modificada de http://www.iesribalta.net
43
Para as indústrias líticas do Planalto Central estudos de abordagem tecno-funcional
recentes identificaram os níveis A, B, C e D (MELLO, 2005; VIANA, 2005).
Quanto a esta sucessão de níveis, poderíamos tratar como uma linha evolutiva segundo
Simondon (1969 apud VIANA, 2005), onde os objetos técnicos partem do abstrato para o
concreto, um processo de simplificação, com restrições baseadas na economia, quantidade de
matéria-prima, de trabalho e ao custo de consumo de energia, mas o objeto deve-se manter em
funcionamento o maior tempo possível, ou seja, é uma questão de melhor aproveitamento
sobre o custo X beneficio.
Esta evolução tecnológica é uma linha contínua, os objetos técnicos seguem de
maneira continua ou em patamares. Para citar um exemplo, é como os motores dos
automóveis, que em mais de 30 anos, vem se aperfeiçoando, empregando materiais mais
adaptados às condições de utilização. (SIMONDON 1969 apud VIANA 2005).
Então temos um objeto primitivo do objeto técnico, um objeto abstrato, que seus
elementos não estão em sinergia, o objeto abstrato tente ao objeto concreto, que atua com
elementos em sinergia e suas características de função e forma resulta de uma interação do
objeto técnico (VIANA, 2005).
Mas essa evolução não é via de regra, pois existe uma gama de objetos que não
possuem uma pré-forma ou um “objeto abstrato anterior”, como é o caso de uma ponta de
projétil lascada, ou ela funciona como uma ponta de flecha concreta ou ela não é uma ponta
de flecha.
3.2.4 Sistemas de Façonnage
O façonnage é uma etapa da produção dos instrumentos, onde o objetivo é esculpir,
moldar e conduzir o artefato ao volume pretendido. “O façonnage consiste na redução por
etapas sucessivas de um bloco de matéria prima tendo em vista conseguir um instrumento ou
uma matriz cujas bordas serão, num segundo momento, arranjadas para a obtenção de vários
instrumentos” (BOËDA E FOGAÇA, 2006, p. 676).
Segundo Inizan et al. (1995) a façonnage é um método para alcançar uma morfologia
especifica, seja ela a ponta de projétil ou uma lamina de machado.
44
De acordo com Boëda e Fogaça (2006: p. 667) a façonnage compõe uma “maneira
extremamente original de realizar uma forma específica de instrumento”
Ainda com os autores, podemos pensar a façonnage dentro dos moldes de sistemas D
e E da debitage, ou seja, a façonnage é um sistema de lascamento que opera com um alto grau
de predeterminação das lascas, assim, dentro de uma linhagem dos objetos técnicos, o sistema
de façonnage estaria em um grau de concretização avançado.
Boëda e Fogaça separam a façonnage em três estágios evolutivos de acordo com o
grau de predeterminação e configuração da matriz.
− Estágio 1: temos dois momentos, o primeiro consiste em observar as morfologias
naturais da matriz que possuem o maior número de características procuradas. Em um
segundo momento, há a organização do gume.
− Estágio 2: neste estágio a produção de uma matriz pode ser apresentar uma ou de
várias unidades tecno-funcionais transformativas associadas a uma unidade tecno-
funcional preensiva, existe a preocupação em criar um bordo capaz de abarcar um ou
vários instrumentos.
− Estágio 3: “consiste na organização de uma matriz capaz de, a qualquer momento,
responder a uma demanda específica de aguçamento e reaguçamento.” (BOËDA E
FOGAÇA, 2006: p. 678)
O lascador quando executa a etapa de façonnage, visa à obtenção de um volume, não
apenas de uma forma, mas sim de uma série de características técnicas agregadas, não que o
lascador pense em uma lasca com perfil côncavo e nervura em T, mas o seu projeto mental e
seu saber fazer “indicam” o que ele necessita, um volume “X”.
3.2.5 Retoques
Os retoques são retiradas a fim de aguçar, modificar e/ou afiar um bordo de uma
ferramenta, segundo Inizan et al. (1995 pg. 83), «Le terme “retouche” caractérise lês
enlèvements obtenus par percussion ou pression dans lê but de réalise, d’achever ou d’affûter
dês outils. ».
Os retoques são analisados de acordo com Inizan et al. (op. Cit.) observando-se
algumas das características morfológicas destes aspectos técnicos:
45
1. Posição,
2. Localização,
3. Repartição,
4. Extensão,
5. Inclinação,
6. Morfologia,
7. Delineação,
3.2.6 A observação da ação através dos instrumentos
Vemos as concepções teóricas que permeiam as etapas de produção dos instrumentos
líticos lascados, mas para o objeto técnico ser considerado um instrumento, não o reduzindo
apenas ao artefato, se faz necessário enxergá-lo como uma entidade mista, ou seja, é preciso
defini-lo de maneira que o instrumento passe a ser uma entidade composta que compreende
aspecto do artefato producional e outro sobre os esquemas de utilização. (RABARDEL 1995
apud MELLO 2005).
Para Rabardel (1995 apud MELO 2007: p. 122) as atividades dos instrumentos estão
ligadas em um esquema com três pólos em interação mutua: o sujeito (utilizados do
instrumento), o objeto e a matéria a ser transformada (figura 05).
Figura 5: O instrumento como entidade mista
Logo os instrumentos passam a ser entendidos a partir de duas partes, uma ligada ao
processo de produção e outro aos sistemas de utilização, denominado pelo autor como
46
Situação de Atividade Instrumentada (SAI), sendo possível perceber as relações dos três
pólos.
Segundo Mello (2005), estas partes mantém certa individualidade, um esquema de
utilização pode corresponder a vários artefatos e um artefato pode obedecer a diferentes
esquemas de utilização. Rabardel (1995) e Boëda (2001) (apud VIANA, 2005) relacionaram a
estes conjuntos os conceitos de instrumentalização e instrumentação.
O termo e os processos de instrumentalização estão relacionados aos meios de
produção e a transformação do objeto técnico (estrutura, funcionamento) (RABARDEL 1995
apud MELLO 2005), que segundo Rabardel (1995 apud VIANA 2005), o objeto está
constituído por características intrínsecas e extrínsecas.
As características extrínsecas são designadas as peculiaridades da matéria-prima a ser
trabalhada, como por exemplo, disponibilidade e qualidade. E as características intrínsecas
estão ligadas a analise estrutural do objeto técnico, sua morfologia, volume, qualidade do
gume, para citar alguns exemplos. Estas características refletem as características do saber
fazer de um grupo. (BOËDA, 2001 apud VIANA 2005).
Os processos de instrumentação tratam do objeto em ação, do modo de seu
funcionamento, é o objeto em ação (LEROI-GOURHAN, 1983b), a relação entre as
características transformativas como as características de preensão (VIANA, 2005).
Tratar de funcionamento é um tanto quanto complexo, pois o funcionamento depende
do gesto, do artefato-mão e da mão-material, e na arqueologia não disponhamos muitas vezes
de todos estes componentes.
De acordo com Lepot (1993 apud VIANA, 2005) o instrumento apresenta três áreas
sinérgicas funcionais: receptiva, preensiva, transformativa, cada uma destas partes pode ser
constituída de uma ou mais Unidades Técno-Funcional (UTF) (figura 06), definida como “um
conjunto de elementos e/ou características técnicas que coexistem em uma sinergia de efeitos”
(MELLO 2005), As UTF’s receptivas são responsáveis por colocar o instrumento em
funcionamento, a preensiva permite ao instrumento trabalhar e a transformativa, tem a
propriedade de transformar a matéria.
47
Figura 6: Diferentes partes de um instrumento e suas respectivas UTF’s.
No caso dos instrumentos que iremos tratar, artefatos abstratos, as partes preensivas e
receptiva coincidem.
As UTFs transformativas são formadas por plano de bico, caracterizada como a parte
que entra em contato com a matéria, a zona ativa do bordo, que deve possuir características
relativas à sua ação técnica, ser mais resistente à matéria a ser transformada (BOËDA 1997
apud VIANA, 2005). Todo plano de bico está relacionado ao plano de corte, local onde o
plano de bico é produzido, o plano de corte pode ser natural ou produzido, colaborando para o
direcionamento do “corte” e na estabilidade da ação, não necessariamente entrando em
contato com a matéria a ser transformada (figura 07). '
Figura 7: Planos de bico e de corte
Verificar os ângulos de tais planos nos fazem pensar em uma digamos, “atribuição”, já
que um gume de 30º corta e um ângulo entre 70º e 90º raspe, além de verificar uma resistência
do gume que quanto mais abrupto ele for mais resistente ele será. (BOËDA 1997 apud
VIANA, 2005).
48
4. ANÁLISE DOS DADOS
O material que nos propomos a estudar seguirá dentro dos conceitos e teorias que
apresentamos até o momento, tentaremos perceber como se deu a cadeia operatória da
produção dos instrumentos, serão descritas as qualidades técnicas utilizadas sobre cada
matéria-prima presente no abrigo.
Os dados foram baseados na analise dos artefatos/instrumentos, das lascas e do único
núcleo em calcário, a metodologia utilizada será descrita em cada tópico.
Segue neste capitulo a descrição dos dados produzidos.
4.1 Gestão de Matéria Prima
As economias de matéria-prima, baseado em Perlès (1987, 1992, 1993), nos mostram
que devemos observar o ambiente onde está localizado o sítio, onde no ambiente estão
localizadas as jazidas de matéria-prima utilizadas, bem como as características das rochas e as
formas de utilização das mesmas.
No sítio do Morro Furado temos três principais tipos de matérias-primas utilizadas no
lascamento: o sílex (incluem-se nessa categoria todos os materiais micro-cristalinos,
calcedônias), o arenito silicificado (ou quartzito) e o calcário.
É de grande pesar não dispor de meios melhores para averiguação desta etapa, como o
projeto é de re-analise, não foi possível voltar ao sitio, para um melhor diagnóstico.
4.1.1 Distribuição no Ambiente
Primeiramente devemos identificar onde estão localizadas tais matérias-primas, como
não dispúnhamos de mapas detalhados, o único meio de investigação para este tópico é a
publicação do Projeto Serra Geral (SCHMITZ et al. 1996).
Sabemos apenas que o calcário lascado é o mesmo do abrigo e dos abrigos
circunvizinhos (SCHMITZ, comunicação pessoal 2009) apresentando inclusive lascas em
marga que é uma qualidade de calcário super friável.
49
O sílex apresenta diversas cores e texturas, alguns com uma heterogeneidade muito
grande, se apresentando algumas vezes com alta qualidade, outros já apresentam intrusões e
uma qualidade mais baixa, esta heterogeneidade do sílex nos faz pensar que a coleta era feita
em lugares distintos, bastante distintos, através do córtex de algumas lascas inferimos eu em
suma maioria o sílex é proveniente de nódulos ou blocos.
Segundo a publicação do projeto quando é descrito o sítio BA-RC-52 (sítio da tradição
Una), localizado fora do canyon, (mas sem maiores descrições, inclusive não foi colocado no
mapa), é dito que a calcedônia “é originária de nódulos mais ou menos grandes, que devem
formar nas rochas locais; tem massa mais ou menos homogênea” (SCHMITZ et al. 1996: p.
113), é dito ainda que o quartzito ou arenito silicificado seja pouco usado por ser exógeno.
Transportando estas informações para analisar o BA-RC-28, suponhamos que o sílex
seja exógeno, mas não distante, na forma de nódulos com diversos tamanhos, o calcário é
endógeno, e o arenito exógeno e sem localização “exata”, mas bastante homogêneo, os sítios
descritos com a presença de arenito são bastante distantes, teríamos que fazer uma varredura
no subsistema dos Gerais para uma melhor averiguação.
Não temos informações precisas da localização das matérias-primas, o calcário
apresenta formas e volumes muito variados, dentro dos perfis é possível ver uma grande
quantidade de blocos. Quanto a seixos temos menos informações ainda.
4.1.2 O que foi selecionado? Quais os critérios de seleção?
O sílex já foi utilizado para produzir lascas pequenas, não ultrapassando 10 cm de
comprimento, são lascas variadas, algumas ultrapassantes, outras com pouca quantidade de
córtex, possivelmente os suportes já vinham configurados ou pré-configurados, pois não
foram encontrados núcleos no sítio, lascas de “grandes dimensões” e há um grande
reaproveitamento dos instrumentos. Um ponto interessante é que os instrumentos em sílex
encontrados são sempre pequenos, as lascas encontradas são praticamente do tamanho dos
instrumentos encontrados nos sítios.
O arenito, não é possível saber quais forma os critérios de seleção, foi encontrado (no
corte III) apenas dois instrumentos, um sobre lasca que possivelmente bastante robusta e outro
que é elabora sobre uma plaqueta, podemos dizer apenas que as características da matéria
50
prima são as mesmas para os dois artefatos e para as lascas, inferimos que seja de um mesmo
local de exploração.
A seleção sobre o calcário era feita sobre blocos com uma face plana para criação de
gumes, ou blocos com arestas verticais e dorsos, para retiradas de lascas muitas vezes
robustas. Existe ainda a presença de pequenos blocos, com uma face plana, utilizados para
criação de instrumentos tipo coches.
4.2 Estratégias de debitage, a produção ou não de suportes
Os sistemas de debitage, ou seja, de produção dos suportes foi baseado dentro de uma
análise evolutiva, descritas no capitulo anterior, sobre os seis níveis de debitage A,B,C, D,E e
F. (BOËDA E FOGAÇA, 2006).
Dispúnhamos de apenas um núcleo na coleção para investigar estas características.
Para aumentaras possibilidades de investigação, analisamos também os suportes dos próprios
instrumentos, verificando primeiramente quais as características dos seus suportes.
Tratando-se dos artefatos em sílex, com exceção de um artefato que o trabalho de
façonnage foi muito intenso e não sendo possível observar as características do suporte
original, no outro pequeno artefato com coche onde o suporte foi tido como indeterminado,
todos os outros instrumentos elaborados em sílex são sobre lasca, geralmente são lascas
pequenas, algumas ultrapassantes, com talão liso ou retocado, o perfil, no geral é retilíneo,
suponhamos que á a possibilidade da maioria destes pequenos instrumentos possa ter uma
ligação com alguma etapa de produção de outros instrumentos, que por ventura não estão no
sítio ou não foram encontrados.
Em calcário temos instrumentos produzidos tanto sobre suportes naturais, quanto
suportes sobre lasca, quase sempre apresentando uma nervura guia, sistema de debitagem B,
aproveitando uma área natural do bloco e/ou da lasca suporte, onde aparecem recorrentemente
um dorso ou dorsos paralelos perpendiculares ao gume.
Os artefatos sobre arenito são elaborados um sobre lasca e outro sobre plaqueta, são
dois artefatos robustos.
51
4.2.1 O núcleo
O núcleo é sobre um calcário de baixa qualidade para lascamento, mas apresenta
características semelhantes às lascas encontradas, possui dois negativos no mesmo plano de
debitagem, mas em direções opostas, aproveitando as características do bloco. Os dois
negativos são semelhantes, apresentando quase as mesmas dimensões, os contra-bulbos são
bastante côncavos, os talões supõe-se que seriam espessos, são seriam subcirculares. O
sistema é B.
4.3 As lascas
As lascas são em sua maioria, a categoria mais numerosa, há possíveis representantes
das etapas de façonnage e de retoques. As lascas do sítio foram diferenciadas apenas como de
façonnage ou retoque.
Foram analisadas 717 lascas das três matérias-primas, sendo 507 de calcário, 181 de
sílex e 29 de arenito, as lascas fragmentadas foram incluídas em apenas algumas
características, como tipo de talão. As lascas foram separadas primeiramente por tipo de
matéria-prima, e por cronologia em três grupos, o primeiro grupo que atinge os cinco
primeiros níveis (horticultores), o segundo de uma profundidade de 60 cm a 100 cm onde
corresponde a uma ocupação do Holoceno Médio, e a terceira que atinge o final do corte com
180 cm, onde a ocupação é rala e controversa:
Gráfico 1: quantidade de lascas por horizonte e matéria-prima
52
Sendo assim no horizonte 1, referente à ocupação horticultora-cerâmista, possuímos
uma grande porcentagem de lascas de calcário com 52,40% contra os 39,60% das lascas de
sílex, o arenito fica com apenas 8%.
Gráfico 2: Porcentagens das lascas no Horizonte 1.
No segundo horizonte temos uma porcentagem muito superior das lascas de calcário:
Gráfico 3: Porcentagens das lascas no horizonte 2
No terceiro horizonte só existem lascas de calcário, totalizando 100% das lascas neste
horizonte são de calcário.
As 717 lascas foram analisadas utilizando uma tabela segundo algumas variáveis:
− Matéria-prima;
− Cor;
− Alterações naturais;
53
− Presença de córtex;
− Suporte;
− Dimensões
− Morfologia;
− Perfil;
− Talão: morfologia e dimensões;
− Ângulo do talão com a face interna;
− Acidentes de lascamento;
− Nervuras: quantidade e disposição;
4.3.1 Lascas-suporte/blocos suportes
O grande problema de abordar este tópico é que os instrumentos não apresentam um
padrão recorrente, tornando-se impossível estabelecer lascas ou mesmos blocos que poderiam
servir como suporte de artefatos.
Dentre os detritos e lascas de calcário, são muito diversos, apresentando diversas
características, desde lascas robustas a pequenos detritos ângulos.
No geral para o sílex, grande parte das lascas poderia se tornar possíveis suportes, já
que os suportes dos instrumentos são bastante semelhantes às lascas, logo, em alguns casos
ainda existem instrumento que foram utilizados sem trabalho de “façonnage” ou retoque.
4.3.2 Lascas de façonnage e lascas de retoque
As lascas de façonnage e retoques não puderam ser distinguidas umas das outras, não
foram separadas porque as características dos negativos de façonnage e de retoque observados
nos instrumentos presentes no corte e mesmo no sitio não condiz totalmente com o universo
de diversidade das lascas presentes.
As lascas foram organizadas de acordo com alguns estigmas presentes, foram levadas
em conta as características da morfologia do talão, as dimensões, o perfil, morfologia das
peças, organizações das nervuras, e algumas outras características que se sobressaíssem, como
54
“acidentes” (siret, bulbo-duplo, ultrapassantes e refletidos), de acordo com o objetivo
procurado.
Nos níveis lito-cerâmicos (0-50 cm):
• Arenito: três grandes grupos técnicos de lascas:
1. Lascas pouco espessas, geralmente com talão linear (ou liso pouco espesso),
perfil retilíneo, com nervura vertical como guia e forma retangular.
2. Lascas com talão liso e pouco comprido, não ultrapassando os 5 cm, bulbo
pouco proeminente, são lascas largas e não apresentam uma nervura guia.
3. Lascas espessas, com talão liso e espesso, são lascas subcirculares com perfil
retilíneo ou levemente convexo.
• Calcário: foi possível observar seis grandes grupos:
1. Lascas triangulares, com talão liso ou cortical, perfil retilíneo ou levemente
curvo, apresentando uma nervura vertical como guia das retiradas.
2. Lascas largas, pouco compridas, face superior apresentando poucas nervuras
ou totalmente corticais e o talão se apresentam normalmente liso.
3. Lascas com um dorso, talão puntiforme e nervura transversal ao eixo de
debitagem.
4. Lascas espessas, ultrapassantes, com perfil côncavo e face superior cortical ou
sem nervuras, são lascas quadrangulares.
5. Lascas desviadas, com talão liso (pouco espesso) ou linear, algumas são
levemente ultrapassantes.
6. Lascas quadrangulares, com talão linear ou liso, com uma nervura ou face
externa totalmente cortical.
• Sílex: cinco grupos:
1. Lascas largas, com talão geralmente comprido e face externa com muitas
nervuras, mostrando um grande trabalho anteriormente. Perfil retilíneo.
2. Lascas quadrangulares, com perfil retilíneo ou convexo, talão liso, é possível
perceber na face superior que houve um trabalho anterior para retirada da lasca.
3. Lascas subcirculares com perfil retilíneo, talão liso ou em asa e a face externa
com mais de duas nervuras.
55
4. Lascas retangulares, com uma ou duas nervuras paralelas como guia da
retirada, apresentando um talão liso ou linear.
5. Lascas triangulares, com uma nervura vertical como guia, o talão apresenta-se
liso e bastante espesso.
Quanto ao segundo horizonte (60 a 100 cm), sem a presença de cerâmica, só temos
duas matérias primas: o sílex e o calcário, já que a quantidade de lascas de arenito é muito
inferior:
• O sílex: dividido em sete tipos, assim descrito:
1. Lascas ultrapassantes, com uma nervura guia em Y.
2. Lascas que são desviadas, com talão liso pouco espesso e perfil convexo.
3. Lascas quadrangulares, talão liso pouco espesso ou linear, em algumas peças a
face superior apresenta uma pequena quantidade se córtex.
4. Lascas subcirculares / quadrangulares, com talão liso, bulbo bastante
proeminente e perfil retilíneo.
5. Lascas triangulares com nervura vertical com guia, talão pouco espesso (liso,
asa ou linear) e perfil retilíneo.
6. Lascas com talão em asa, apresentando uma grande retirada na face superior,
perfil côncavo, são lascas comumente mais largas.
7. Lascas largas, com talão liso, espessas e muitas vezes com bulbo duplo.
• Calcário: apresentam sete tipos:
1. Lascas com presença de córtex, largas e com perfil retilíneo, podem ser
subdivididas de acordo com o talão:
a. Puntiforme
b. Liso
c. Em asa
d. Diedro
2. Lascas com menos de um cm de comprimento e largura, são lascas de retoques
ou “lascas de cornija” para reforço do bordo, possuem em sua maioria córtex,
são largas e com perfil retilíneo.
3. Lascas largas com talão liso pouco espesso ou linear, geralmente com nervuras
horizontais.
56
4. As características do tipo são de “laminas” (lasca com mais ou menos o dobro
do comprimento em relação à largura), com ou sem a presença de córtex, perfil
retilíneo ou convexo e nervura central como guia.
5. Lascas que retiraram muito volume do artefato, são lascas espessas,
ultrapassantes e nervura em Y.
6. Lascas quadrangulares, sem a presença de córtex, podendo ser subdividido em
dois grupos, o primeiro apresenta o perfil retilíneo e o segundo com perfil
convexo.
7. Lascas largas, com uma evidente predeterminação para a sua retirada, o talão
apresenta sempre pequenas dimensões, não ultrapassando 3 cm de
comprimento.
O ultimo nível, é um horizonte onde só aparece material:
1. Lascas semicirculares, pouco espessas com talão liso ou cortical, com poucas
ou nenhuma nervura.
2. Lascas largas com talão liso ou cortical, perfil retilíneo e muitas delas são
refletidas.
3. Lascas longas, em sua maioria com uma nervura central vertical, talão liso
pouco espesso ou linear, algumas lascas apresentam no talão com a face
interna um ângulo bastante obtuso.
4. Lascas quadrangulares, com talão cortical ou liso e perfil retilíneo.
5. Lascas ultrapassantes, talão liso e as nervuras da face superior se apresentam
em Y.
6. Lascas ultrapassantes, com a face superior chegando a ficar paralela ao talão, a
face superior é totalmente cortical. São lascas espessas.
7. Lascas triangulares, com nervuras em Y invertido, talão linear e perfil retilíneo.
Após esta descrição de algumas características técnicas das lascas temos algumas
características e quantidades relevantes. Fizemos cruzamentos dos estigmas pelas matérias-
primas e horizontes, demos ênfase as características de forma, perfil, tipo de talão e tipo de
nervuras.
Verificamos as seguintes características das lascas no primeiro horizonte:
57
FORMA
Triangular Quatro lados
Cinco lados Subcircular Seis lados ou
+ Total
Sílex 7 24 11 20 26 88Arenito 2 3 3 5 6 19Calcário 10 39 19 22 27 117 223
Quadro 2: Forma das lascas no Horizonte 1
PERFIL Retilíneo Côncavo Convexo Helicoidal Total Sílex 63 6 16 3 88 Arenito 10 0 9 0 19 Calcário 71 7 35 3 117 223
Quadro 3: Perfil das lascas no Horizonte 1
TIPO DE TALÃO
Liso Diedro Linear Asa Cortical Puntiforme Facetado Esmagado Ausente Total Sílex 54 3 14 4 9 9 3 1 14 111
Arenito 17 0 1 1 2 0 0 0 2 23 Calcário 77 2 20 2 36 15 2 0 6 160
294 Quadro 4: Tipo de Talão das lascas no Horizonte 1
NERVURAS
Vertical Paralela Em Y
Em Y invertido
Em T Convergente 1 2 + de
2 S/
nervuras Total
Sílex 3 1 1 0 0 7 1 3 63 7 97 Arenito 0 0 0 1 1 0 0 3 24 2 31
Calcário 7 0 2 2 0 0 19 11 58 18 117
245Quadro 5: Nervuras das lascas no Horizonte 1
Verificamos que as matérias primas se comportam de maneira bastante semelhante,
Com forma quadrangular, perfis retilíneos e sem uma morfologia clara de nervuras, a
diferença se dá quanto aos talões, onde em sua maioria é liso, mas o calcário apresenta uma
quantidade maior de talões trabalhados, como o puntiforme e o linear, além de uma
quantidade expressiva de talões corticais.
No segundo horizonte o arenito ainda não era utilizado, as lascas se comportaram com
estas características:
58
FORMA
Triangular Quatro lados
Cinco lados Subcircular Seis lados ou
+ Total
Sílex 4 9 7 9 9 38Calcário 13 23 15 25 40 116 154
Quadro 6: Forma das lascas no Horizonte 2
PERFIL Retilíneo Côncavo Convexo Helicoidal Total Sílex 28 6 3 1 38 Calcário 77 10 29 0 116 154
Quadro 7: Perfil das lascas no Horizonte 2
TIPO DE TALÃO
Liso Diedro Linear Asa Cortical Puntiforme Facetado Esmagado Ausente Total Sílex 45 2 18 5 9 4 2 0 4 89
Calcário 43 6 17 1 50 14 1 0 3 135 224
Quadro 8: Tipo de Talão das lascas no Horizonte 2
NERVURAS
Vertical Paralela Em Y
Em Y invertido
Em T Convergente 1 2 + de
2 S/
nervuras Total
Sílex 1 0 2 1 1 0 9 6 20 17 70 Calcário 3 1 3 1 1 1 27 8 26 28 99
169Quadro 9: Nervuras das lascas no Horizonte 2
As lascas neste horizonte se comportam de mesma maneira, com formas
quadrangulares, perfis retilíneos seguido de perfis convexos, e mais de duas nervuras, o talão
mantém as mesmas características.
No terceiro horizonte temos a utilização apenas do calcário, o refugo de lascamento
possui estas características:
FORMA
Triangular Quatro lados
Cinco lados Subcircular Seis lados ou
+ Total
Calcário 34 18 15 24 18 109Quadro 10: Forma das lascas no Horizonte 3
59
PERFIL Retilíneo Côncavo Convexo Helicoidal Total Calcário 68 15 17 9 109
Quadro 11: Perfil das lascas no Horizonte 3
TIPO DE TALÃO
Liso Diedro Linear Asa Cortical Puntiforme Facetado Esmagado Ausente Total Calcário 56 1 15 2 33 9 0 0 11 127
Quadro 12: Tipo de Talão das lascas no Horizonte 3
NERVURAS
Vertical Paralela Em Y
Em Y invertido
Em T Convergente 1 2 + de
2 S/
nervuras Total
Calcário 3 4 2 1 0 0 22 10 29 25 96 Quadro 13: Nervuras das lascas no Horizonte 3
Os talões em sua maioria são lisos, seguidos de um talão linear, a quantidade
de lascas com mais de duas nervuras (que não possuem uma morfologia exata) são a sua
maioria e o perfil retilíneo domina, sugerindo que os blocos não possuem uma característica
de convexidade em sua maioria.
4.4 Os instrumentos
Foram analisados 41 instrumentos.
Os instrumentos, já que não apresentam uma estrutura definida, depois de
classificados pela matéria-prima e pelo suporte, foram agrupados, observando principalmente
o delineamento do gume.
Esta separação se deu por que a criação de tipos tecnológicos focados na construção
volumétrica dos instrumentos, não foi possível, os artefatos não apresentam uma estrutura
volumétrica que possibilite ademais a quantidade é pouco expressiva. Percebemos que a
maior preocupação técnica era em criar os gumes, não em construir um volume.
Na descrição dos tipos as dimensões dos artefatos são sempre comprimento X largura
X espessura, sempre em milímetros.
60
Em geral os instrumentos não possuem negativos de façonnage, apresenta, no entanto
apenas uma retirada preparando o plano de corte. Os retoques muitas vezes são constituídos
por poucas retiradas sem uma morfologia especifica ou mesmo uma retirada, caso contrario
será descrito juntamente com o instrumento referido.
4.4.1 Instrumentos sobre lascas de calcário
Sobre lascas de calcário temos quatro tipos: - coche, convexo, côncavo e gumes
duplos, com, por exemplo, coche + convexo.
Em geral os instrumentos não possuem negativos de façonnage, apresenta, no entanto
apenas uma retirada preparando o plano de cortem. Os retoques muitas vezes são constituídos
por poucas retiradas sem uma morfologia especifica ou mesmo uma retirada, caso contrario
será descrito no instrumento, As UTF’s preensivas não foram produzidas, aproveitou-se a
própria superfície do suporte, em alguns casos a um dorso oposto ao gume.
Os artefatos sobre coche apresentam plano de bico que varia entre 55° e 70° e o plano
de corte entre 35° e 70°, a qualidade da matéria prima é baixa. Este grupo é composto por
quatro peças, C-L-1, 9, 7 e 11, com dimensões variadas com instrumentos pequenos como o
C-L-7 a grandes como o C-L-9, quanto aos níveis, o instrumento C-L-11 pertence ao primeiro
horizonte, os C-L-1 e C-L-9 ao segundo, e o C-L-7 ao terceiro horizonte.
Os artefatos C-L-3 e C-L-2 são do tipo convexo, com dimensões de 98x40x22 e
40x28x15 respectivamente. A UTF apresenta plano de bico entre 45° e 90° e plano de corte
com 35° e 60°, ambos pertencem ao horizonte destinado ao Holoceno médio, o Horizonte 2.
O tipo côncavo conta com apenas um exemplar, a peça C-L-17, com dimensões de
91x49x34 com planos de 80° de bico e 45° de corte, os retoques são escalariformes e diretos,
pertence ao segundo horizonte.
O artefato retilíneo conta com uma peça com retoques escalariformes, bifaciais, por
todo o bordo esquerdo, criando no gume uma secção convexo-convexo, o artefato é elaborado
em um calcário cm uma qualidade melhor que os outros artefatos, possui dimensões de
50x20x27.
As peças com mais de duas UTF transformativas são elaboradas sobre lascas robustas
sem um trabalho de façonnage, na primeira peça (C-L-6), é uma lasca ultrapassante com perfil
retilíneo, bulbo proeminente e talão liso, este artefato pertence ao horizonte primeiro. As UTF
61
transformativas se encontram na porção proximal do bordo direito (convexo-côncavo) e no
lado direito da porção distal. Na UTF transformativa 1, o plano de bico tem 65° e 75° para o
plano de corte, é caracterizada por pequenas retiradas alternantes, possui marca de uso. NA
UTF transformativa 2, a UTF foi criada com duas retiradas inversas, longas, possivelmente o
percutor foi macio, pois não apresenta um ponto de impacto marcado nem um contra-bulbo
marcado, o plano de bico apresenta 70° e plano de corte com 60°.
O segundo instrumento é uma lasca robusta, com bulbo proeminente, talão liso, a
primeira UTF transformativa possui um gume convexo, produzido por apenas uma retirada,
direta, longa, possui um plano de bico com 80° e plano de corte com 70°, está UTF está
oposta á um dorso natural (cortical), é localizada no bordo esquerdo. Na porção distal possui
uma UTF transformativa que está delineando um gume convexo, este instrumento faz parte da
coleção do segundo horizonte.
4.4.2 Instrumentos sobre plaquetas/blocos de calcário
Foram separados em coche, retilíneo, ponta, côncavo e outro com dois gumes.
O tipo coche apresenta três peças, C-P-1, 3 e 6, os planos de bico e de corte são
semelhantes, de 90° a 85°de bico e 50°a 55 de corte. O maior artefato tem dimensões de
50x50x35 e o menor com 40x35x20. Este seria o único grupo com uma construção
volumétrica regular, a UTF preenciva deste grupo é composta por dois dorsos paralelos e
perpendiculares ao gume.
O tipo retilíneo abarca apenas uma peça, é uma plaqueta chata, com secção em prisma
trapezoidal, com dois dorsos laterais perpendiculares ao gume, formando a UTF preensiva. O
gume possui um ângulo abrupto, com o plano de bico com 85° e o plano de corte com 80° e
suas dimensões são 95x90x25.
O conjunto em ponta possui também apenas uma peça, onde a UTF preensiva foi
produzida, ao mesmo tempo em que dá forma a UTF transformativa. Possui plano de bico
com 85° e plano de corte 45°. Suas dimensões são 75x70x35, a face plana dividida em dois
patamares foi produzida também.
O conjunto de instrumentos com delineamento côncavo contém apenas um único
artefato, com dimensões de 80x55x11, sobre um calcário de baixa qualidade. Este instrumento
teve dois momentos visíveis pela diferença na patina e pela segunda seqüência de retoques
62
que interrompe a primeira. No primeiro momento os retoques são subparalelos, curtos,
possuindo plano de bico de 50° e de corte 45°. O delineamento desta área que não foi
sobreposta sugere um gume convexo. Já no segundo momento os retoques se mostram mais
abruptos em um delineamento côncavo, o plano de bico e o de corte possuem 85°.
O instrumento com duas UTF’s é transformativas (C-P-15) é elaborado sobre um
calcário de ótima qualidade, quase silicificado, é uma das peças onde é visível o trabalho de
façonnage, tanto na criação dos planos de corte, quanto para parte preensiva, os dois gumes
são perpendiculares ao dorsos paralelos, a UTF 1 é caracterizada por um gume retilíneo com
plano de bico 45° e plano de corte 70°, na segunda possui um delineamento em coche, onde o
plano de bico possui 90° e o de corte 60°.
4.4.3 Instrumentos sobre lasca de sílex
Os instrumentos sobre lasca de sílex foram divididos em oito delineamentos distintos,
côncavo, convexo, denticulado, coche, em ponta, retilíneo, irregular e que possui dois gumes.
Os instrumentos em geral não apresentam trabalho de façonnage ou quando
apresentam o trabalho, são muito pouco, criando apenas o plano de corte, muitos instrumentos
são apenas lascas que foram utilizadas brutas. As UTF’s preensivas são formadas pela
superfície do suporte, a preensão suponhamos que seja em pinça, com o polegar sobre uma
das faces ou bordos do instrumento, ou como é no caso do grupo convexo a preensão poderia
ser com o dedo indicador sobre o dorso.
O grupo de UTFs transformativas com delineamento convexo apresenta planos de bico
que variam entre 35° e 70° e os planos de corte entre 35° e 65°, a qualidade do sílex é muito
boa, todas as peças refletem um sinal de fogo, possivelmente pós-deposicional.
O tamanho é variado, a peça (S-L-5) de menor dimensão é a que apresenta os planos
mais abruptos, com 18x13x09. As outras duas possuem volumes parecidos, 39x32x15 (S-L-1)
e 30x25x14 (S-L-6). Todas as três peças possuem um dorso oposto à UTF transformativa, este
dorso foi produzido por uma retirada anterior à retirada do suporte e possivelmente ligado a
preensão, as UTF transformativas nos instrumentos S-L-1 e 6 são bastante “longas” no bordo.
O conjunto em ponta é composto por dois artefatos S-L-16 e S-L-4 com dimensões
muito diferentes 12x17x5 e 33x32x15 respectivamente, o sílex do artefato 16 é de altíssima
63
qualidade, quase vítreo, esta peça pode ter sido um aproveitamento de lasca de façonnage ou
mesmo de retoque.
As concepções de lascamento são completamente diferentes, a peça de maiores
dimensões possui um trabalho de façonnage maior, mas os ângulos são parecidos, a peça
menor apresenta ângulos menores, os planos de bico 50° e 40° e o de corte 40° e 30°.
Temos uma peça no grupo retilíneo, com dimensões de 20x25x12 em um sílex de boa
qualidade, o plano de bico e o de corte apresentam-se com 35° oposto a um pequeno dorso
produzido anteriormente a retirada do suporte, que seria para preensão. (S-L-15).
O irregular é composto de uma peça que não apresenta um delineamento do gume coerente,
possui dimensões de 28x25x8, os ângulos no bordo variam, a primeira parte possui o plano de
bico com 50° e de corte com 30° a segunda parte possui 50° nos dois planos. (S-L-7).
O conjunto de gume denticulado corresponde a uma única peça, a S-L-8, com
dimensões de 36x25x13, a UTF transformativa está oposta a um “dorso” cortical, apresenta
plano de bico de 85° e o plano de corte com 35°.
O grupo coche é composto por dois artefatos, quanto a similaridade morfológica deles:
totalmente diferentes. Os artefatos são S-L-13, 19, as dimensões são 30x25x13, 32x17x14,
respectivamente. Os planos de bico são 35° e 70° e os de corte 65° e 40°.
O grupo técnico côncavo apresenta duas peças, a S-L-10 e 11, com planos de bico 45°
e 80° e os de corte com 55° e 75°, as dimensões são 22x20x13 e 35x30x15, respectivamente.
A qualidade da matéria-prima é muito boa, se apresentando quase vítrea.
No conjunto com duas UTFs transformativas possuem três instrumentos, S-L-2, 3 e 9.
Na peça S-L-2, a UTF transformativa 1 é uma coche formada por uma única retirada
direta, localizada no bordo direito, possui plano de bico e de corte com 55°. A UTF
transformativa 2 é composta por um único negativo, formando um gume côncavo, na porção
proximal do bordo esquerdo. Com dimensões de 50x49x13.
O instrumento C-L-3, possui uma UTF transformativa em ponta no bordo esquerdo,
com ângulo de plano de bico 45° e plano de corte 50°, a segunda UTF transformativa possui
um gume convexo no encontro do bordo direito com a porção distal. Os retoques são curtos e
possui ângulo de bico com 70° e um plano de corte com 45°. Suas dimensões são 44x38x14.
O instrumento S-L-9 é sobre uma lasca sem a porção proximal, possui dimensões de
41x40x16, possui uma UTF transformativa em coche e outra se apresenta como um
denticulado-convexo, a coche está localizada no bordo direito com ângulo de 40° para o plano
64
de bico e 65° para o plano de corte. A UTF transformativa denticulado-convexo está
localizada na porção proximal do artefato, o plano de bico possui 50° e o plano de corte 60°.
Para os instrumentos com duas UTF’s transformativas a preensão seria em pinça.
4.4.4 Instrumentos sobre outros suportes de sílex.
Os outros artefatos em sílex são representados por quatro artefatos, distintos, S-O-1, 2,
3 e 4.
Os instrumentos S-O-1 e S-O-3 são pertencentes aos níveis referentes ao horizonte 1,
onde existe a presença de cerâmica, o S-O-2 pertence ao segundo horizonte.
A peça S-O-1 possui um delineamento em ponta elaborada sobre um fragmento
térmico de uma lasca de refrescamento de gume, em sua face superior, na porção proximal
existem os retoques abruptos do antigo instrumento. A face inferior possui um grande
negativo de uma cúpula térmica, mas o que restou da face inferior é possível identificar a
topografia de uma face inferior de lasca, mas o ponto de impacto e o bulbo não estão
presentes. Os planos apresentam 30°, tanto de bico como de corte. Suas dimensões são
40x44x9, a preensão seria em pinça, mas não me arriscaria a afirmar, pois como se trata de
uma ponta dependeria de saber como era o seu funcionamento.
O instrumento S-O-2 possui um delineamento em coche, córtex em sua face superior,
córtex de nódulos, mas não foi possível identificar o suporte. As dimensões são 28x22x10,
seu plano de bico é de 85° e o plano de corte tem 35°, sua preensão estaria ligada ao dorso
natural.
A peça S-O-3 é um dos artefatos mais trabalhados que foi encontrado, é uma dos
únicos artefatos que possui a UTF preensiva produzida por façonnage, a face inferior também
foi produzida em uma etapa de façonnage, não é possível saber qual foi o sistema de debitage,
a o gume possui um delineamento irregular, com uma coche, Os planos desta UTF
transformativa possuem de ângulo do plano de bico 80° e 60° para o plano de corte. (ver
anexo).
O instrumento S-O-4 possui duas UTFs transformativas, em um bloco de ângulos
abruptos de sílex de baixa qualidade, o gume retilíneo foi produzido por duas retiradas
paralelas, longas, com bulbo pouco proeminente e plano de bico e de corte com ângulo de
80°. A segunda UTF transformativa é um coche, produzida por uma retirada de uma lasca
65
refletida subcircular com bulbo proeminente e algumas pequenas retiradas sobrepostas, o
ângulo do plano de bico é de 70° e do plano de corte 90°.
4.4.5 Instrumentos sobre arenito.
Os instrumentos sobre arenito são diferentes entre si, o primeiro possui um suporte
sobre um lasca grande e robusta, o outro, bastante intemperizado sobre uma plaqueta, os dois
artefatos possuem fuligem.
O primeiro A-L-1 é um instrumento sobre um grande lasca robusta, apresentando duas
UTF transformativas opostas, uma no encontro dos bordos esquerdo e direito formando uma
ponta, com retoques inversos, em escamas, com plano de bico com 60° e 50° de ângulo de
corte. A segunda UTF transformativa está localizada no bordo direito e se estendendo até a
região distal, são retoques bifaciais (mas sem um padrão na seqüência de retiradas), curtos,
delineando um gume convexo, os planos de bico e de corte possuem 45° e 60°
respectivamente. Suas dimensões são 96x135x29.
O artefato A-L-2 é um fragmento de instrumento elaborado sobre uma plaqueta, com
retoques alternantes, o plano de bico possui 70° e plano de corte tem 65°. Suas dimensões
foram tiradas de acordo com o eixo morfológico, são 92x77x40. Este fragmento de
instrumento foi colocado na analise para o arenito não ficar com apenas um exemplar.
66
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O sítio BA-RC-28, como já dito, está implantado em um abrigo sob rocha de calcário,
em vegetação de caatinga muito próxima ao cerrado, na divisa dos estados brasileiros da
Bahia e Goiás, no Planalto Central, a única fonte próxima de água é o rio subterrâneo que
corre dentro do canyon.
É um sítio com diversos materiais arqueológicos e uma ocupação bastante longa,
dentre os diversos tipos de vestígios, a nossa analise priorizou os aspectos técnicos
empregados na confecção e uso dos instrumentos líticos lascados. Optamos por dividir a
ocupação do sítio em 3 horizontes, o primeiro horizonte trata-se de uma ocupação de
horticultores-ceramistas, os 50 cm superficiais do sítio, o segundo horizonte corresponde a
uma ou varias ocupações de caçadores-coletores que se deram no Holoceno médio, com
datações que perduram até por volta dos 9.000 anos antes do presente, ou seja, os níveis
artificiais de 60 cm a 100 cm. O terceiro horizonte é caracterizado por uma possível ocupação
que perdura até o pleistoceno, é uma ocupação rala onde o único vestígio arqueológico fora o
material malacológico é o material lítico lascado em calcário, que é do próprio abrigo, há
duvidas quanto à validação desta pseudo-ocupação, existe duas características que serviram
como base para separação entre os horizontes 2 e 3, o sílex não aparece nos níveis
correspondentes ao horizonte 3 e há uma ruptura temporal (caso as datações estejam corretas)
de pelo menos 8.000 anos, entre as camadas 3 e 4.
Passamos agora a possível interpretação da cadeia operatória do material lítico lascado
enfatizando as diferenças da gestão das matérias primas.
O arenito no sítio aparece em pouquíssima quantidade, num papel periférico das
matérias-primas utilizadas, pela pouquíssima quantidade não fica claro como se deu a cadeia
operatória da produção e utilização. O arenito como foi visto pertence apenas aos níveis lito-
cerâmicos.
O arenito é exógeno, não pertencendo à geologia da região, estava sendo coletado de
regiões distantes, necessitaria de estudos de geológicos mais aprofundados, para se ter certeza
da localização e formação das matérias-primas. Pelo que se observam, apenas os suportes
chegavam ao sítio prontos, pois não foi encontrado nenhum núcleo no sítio, as lascas do sitio
eram apenas de façonnage e retoque.
67
Os instrumentos possuem características bastante distintas, mas a façonnage é mais
evidente que nas outras matérias-primas, o gume do segundo instrumento (sobre plaqueta) é
caracterizado por retoques alternantes (um-por-um) e o primeiro (lasca) possui retoques sem
uma morfologia definida, mas também das duas faces do artefato. Outros instrumentos
estavam sendo produzidos, mas não foram encontrados no sítio, seu descarte pode ter ocorrido
em uma área exógena ao sítio (ver anexo XIV).
O sílex, certamente também foi uma matéria prima exógena, provém de lugares não
muito longínquos, possivelmente de áreas circunvizinhas ao abrigo, mas de diferentes lugares,
pois as cores, granulações, homogeneidade, enfim, as qualidades são muito distintas, ora se
apresentando cheio de intrusões ora quase vítreo, contudo segundo Schmitz (comunicação
pessoal, 2009) o sílex é formado nas próprias rochas calcarias do abrigo. Pela falta de núcleos
e lascas de debitage suponhamos que apenas os suportes estavam sendo trazidos.
Percebemos um aproveitamento máximo do sílex, pois o refugo foi utilizado como
suporte de novos instrumentos, sugerindo talvez que a fonte de coleta do sítio não fosse
próxima ou não seja em muita quantidade. (ver anexos XVI)
O calcário é o único tipo de matéria-prima proveniente do sítio, possuindo todas as
etapas da cadeia operatória no próprio sítio, desde a sua coleta, debitage, façonnage, retoques,
utilização e descarte.
A debitagem do calcário visava em sua maioria das vezes em lascas robustas onde em
algumas possuindo um dorso que estaria ligado a preensão, apesar de haver apenas um único
núcleo, de debitage B. No entanto a façonnage aparece apenas em alguns casos, não sendo
muito recorrente, esta etapa foi utilizada apenas para a criação de um plano de corte para
coches, no entanto isso não coincide com o universo das lascas, poderíamos afirmar que,
como acontece com o sílex, alguns instrumentos de calcário não foram descartados no sítio.
Aos instrumentos elaborados sobre plaquetas de calcário, a recorrência da façonnage é maior,
produzindo planos de corte, criando um volume para preensão ou uma face plana. (ver anexos
XV)
Quanto à produção, os dois horizontes, primeiro e segundo, onde aparece esse tipo de
matéria-prima se comportam de uma mesma maneira. As lascas do sítio parecem pertencer às
etapas de façonnage de instrumentos que por ventura não estão no sítio, pois características
dos negativos de façonnage e de retoque observadas nos instrumentos presentes não condizem
totalmente com o universo de diversidade das lascas presentes.
68
Os instrumentos encontrados teriam uma maior preocupação técnica em criar os
gumes, na qual boa parte do instrumental não possui trabalho de façonnage, contudo fica
complicado afirmar também quais são os sistemas de debitage. Possivelmente os instrumentos
sejam provenientes de lascas de façonnage de instrumentos que não se encontram no sítio.
O calcário sendo a única a pertencer aos três horizontes que delimitamos, logo, se faz
necessária uma comparação. Os instrumentos de calcário são unifaciais (com exceção de uma
peça que pertence ao horizonte mais recente), os instrumentos em sua maioria apresentam
apenas uma única UTF transformativa, nos horizontes mais recentes (primeiro e segundo) os
artefatos tendem a possuir um maior volume, e em alguns casos a UTF preensiva e o plano de
corte é produzido (façonnage), algo que no horizonte 3 não acontece, existem apenas os
retoques.
Os instrumentos em calcário dos horizontes recentes necessitam de uma apreensão
mais de força do que de precisão, até pela dimensão dos mesmos. Nos três horizontes a
estrutura dos suportes guarda as características do suporte original, claro que com algumas
exceções, no horizonte um há peças onde a face plana foi produzida. Os gumes, como já foi
dito apresenta sempre poucas retiradas, no caso do primeiro e do segundo horizonte, os
retoques se apresentam mais complexos.
No horizonte três aparecem lascas que não ocorriam com tanta freqüência nos outros
horizontes, sugerindo outra atividade de produção. A quantidade de instrumentos no terceiro
horizonte dificulta a comparação com os outros níveis, mas quanto aos horizontes mais
recentes, o material se comporta de maneira muito similar, produzindo lascas semelhantes e
instrumentos com uma mesma característica, muitas vezes são robustos e sem um trabalho
complexo de façonnage.
O sílex possui, entre os dois horizontes onde são utilizadas, características muito
semelhantes, apesar de que no primeiro horizonte é onde os artefatos mais complexos
aparecem, apesar de que é onde aparece a maior quantidade de instrumentos.
Em geral no primeiro horizonte, as características técnicas de produção se mostram
um pouco mais elaboradas, com vestígios mais claros e com uma variabilidade maior de
instrumentos, no segundo momento os instrumentos aparecem em uma menor quantidade, e
conseqüentemente os seus refugos também, o material se comporta diferente, não existe muito
sílex sendo lascado e o material em calcário também diminui de quantidade, o lascamento
neste nível é simples e sem recorrências de padrões.
69
O terceiro horizonte apresenta apenas o calcário, que como foi dito se comporta de
uma maneira distinta.
Verificamos então que as matérias primas estavam sendo utilizadas de forma formas
diferentes, com um baixo caráter técnico, com sistemas de debitagem tipo B, e aproveitando
blocos com características morfológicas que atendessem a sua necessidade (no caso do
calcário), mas verificamos também que existem algumas similaridades quanto ao uso do sílex
e do calcário, a quantidade e o universo das lascas não condizem com os instrumentos
encontrados.
O sítio possui apenas algumas etapas da vida das ferramentas, etapas estas ligadas
mais a utilização, pois os gumes estão muitas vezes gastos ou com marcas de abrasão, para
uma melhor análise, sugerimos que uma nova escavação, com objetivos e métodos diferentes,
seja efetuada.
Esperamos que este trabalho tenha ajudado a melhor caracterizar o nosso Planalto
Central tão belo no quesito pré-história.
70
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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73
ANEXOS
ANEXOS
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ANEXO I
Anexo 01: Localização dos projetos no Programa Arqueológico de Goiás . retirado de SCHMITZ, P. I.;
BARBOSA, A. S.; MIRANDA, A. F.; RIBEIRO, M. B.; BARBOSA, M. O. (1978/79/80)
75
ANEXO II
Anexos 2: Perfil do Projeto, geomorfologia e ambiente, modificado de Schmitz et al. (1996).
76
ANEXO III
Anexo 3: Sítios arqueológicos do Projeto Serra Geral, destaque para o BA-RC-28, modificado de Schmitz et al.
1996.
77
ANEXO IV
Anexo 4: localização da serra do Ramalho
78
ANEXO V
Anexos 5: Planta baixa e perfis do abrigo. Modificado de Schmitz et al. (1996).
79
ANEXO VI
80
ANEXO VII
81
ANEXOS VIII
Anexo 8: Exemplo de possíveis lascas de façonnage
82
ANEXO IX
Anexo 9: exemplos de lasca de Limpeza do bloco e um possível suporte, ambos em calcário.
83
ANEXO X Instrumentos sobre lascas de calcário.
h
84
85
ANEXO XI
Exemplos de instrumentos sobre plaqueta calcário (UTF Transformativa delimitada)
86
ANEXO XII Exemplos de instrumentos sobre lascas sílex. (UTF Transformativa delimitada)
87
88
ANEXO XIII
Outras categorias de instrumentos
89
ANEXO XIV
Cadeia operatória do Arenito silicificado.
90
ANEXO XV
Cadeia operatória do calcário
91
ANEXO XVI
Cadeia operatória do sílex.
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