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7/23/2019 Monografia - Zumbi Romeriano - Lcio_Reis_Filho
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL
IMPERMANNCIA ENTUSIASTA
TRANSMUTAES DO MODELO ROMERIANO DE HORROR
Juiz de Fora
Maro de 2012
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Lcio De Franciscis dos Reis Piedade Filho
IMPERMANNCIA ENTUSIASTA
TRANSMUTAES DO MODELO ROMERIANO DE HORROR
Dissertao apresentada ao Programa
de Ps-Graduao em Comunicao da
Universidade Federal de Juiz de Fora
Orientador: Prof. Dr. Alfredo Suppia
Juiz de Fora
Maro de 2012
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Lcio De Franciscis dos Reis Piedade Filho
Impermanncia Entusiasta: Transmutaes do
Modelo Romeriano de Horror
Dissertao apresentada como requisito para obteno do ttulo de Mestre em
Comunicao Social na Faculdade de Comunicao Social da UFJF
Orientador: Alfredo Suppia
Dissertao aprovada em 28/03/2012 pela banca
composta pelos seguintes membros:
_____________________________________
Prof. Dr. Alfredo Suppia (UFJF)Orientador
_____________________________________
Prof. Dr. Potiguara Mendes da Silveira Jnior - Convidado
_____________________________________
Prof. Dr. Laura Loguercio Cnepa (Universidade Anhembi Morumbi - SP)
Conceito Obtido: ______________________
Juiz de Fora
Maro de 2012
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E foi ento que reconheceram estar ali presente a MorteRubra. Ali penetrara, como um ladro noturno. E um a
um, foram tombando os folies, nos sales de orgia,orvalhados de sangue, morrendo na mesma posio
desesperada de sua queda. E a vida do relgio de banose extinguiu com a do ltimo dos folies. E as chamas das
trpodes expiraram. E o ilimitado poder da Treva, da
Runa e da Morte Rubra dominou tudo.
Edgar Allan Poe, A Mscara da Morte Rubra, 1842.
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queles que sentaram-se noutro mundo, ceia de seus ancestrais,
Dedico.
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AGRADECIMENTOS
A Alfredo Suppia, pela orientao sempre sincera.
minha famlia, pela pacincia, carinho e apoio.
s amigas de mestrado Debora Faccion, Marlia Lima e Fernanda Viana, pelo
companheirismo e pelas aprazveis horas de conversa.
A Beth Honorato, pelo incentivo.
s professoras Edna Mara Ferreira, Patrcia Vargas e Cirinia Arantes, pela
inspirao e exemplo inestimveis.
Pr-Reitoria de Ps-Graduao, pela bolsa de monitoria.
Ao Programa de Ps-Graduao em Comunicao, pela acolhida do projeto.
A George Romero, pelo seu legado.
E a todos os demais colegas e profissionais que, direta ou indiretamente,
colaboraram para a realizao deste trabalho.
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RESUMO
Primeiramente, pretendemos analisar o filme A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living
Dead, 1968), de George A. Romero, observando o contexto histrico de sua produo,
conectando-o ao esprito do tempo da era atmica e aos movimentos contraculturais de fins
dos anos de 1960. Em seguida, realizaremos um estudo minucioso acerca do modelo
romeriano de horror a representao moderna do zombie e suas nuances. Por fim,
identificaremos a permanncia deste modelo na atualidade e as transmutaes que vem
sofrendo nas novas mdias, na esteira do desenvolvimento cientfico e tecnolgico.Consideraremos, ainda, a perspectiva de retorno do gtico no fim do milnio e o subsequente
perodo de crise poltica e econmica da primeira dcada do sculo XXI, marcado pelo
surgimento de novos movimentos contraculturais de propagao viral. Dentro desse contexto,
ozombieparece retornar, uma vez mais, enquanto representao das classes oprimidas na era
do capitalismo ps-industrial.
Palavras-Chave: George Romero; A Noite dos Mortos-Vivos; Cinema de Horror;
Contracultura.
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ABSTRACT
Firstly, we intend to analyze George A. RomerosNight of the Living Dead(1968) aiming at
the historical context of the film, connecting it to the atomic ages spirit of the time and the
countercultural movements of the late 1960s. Secondly, we will conduct a detailed study on
the Romerians model of horror the modern representation of the zombie and its nuances.
Finally, we will identify the permanence of this model nowadays and the transmutations that
undergoes in new media, following the scientific and technological development. We will
also consider the return of the Gothic style at the end of the millennium and the subsequentperiod of political and economic crisis at 21st centurys first decade, characterized by the
emergence of new countercultural movements of viral propagation. Inside this context, the
zombie returns once more, as a representation of the oppressed classes, at the post-industrial
capitalism era.
Keywords: George Romero;Night of the Living Dead; Horror Cinema; Counterculture.
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SUMRIO
INTRODUO.......................................................................................................................11
CAPTULO I: O MODELO DE ROMERO........................................................................20
1. Genealogia do Zumbi....................................................................................................20
2. A Condio doZombie.................................................................................................29
2.1. Natureza Epidmica do Horror..........................................................................29
2.1.1 Estranha Fascinao...............................................................................29
2.1.2. Cidade dos Mortos.................................................................................37
2.2. Perspectiva do Mundo Estranhado....................................................................40
2.3. Anti-Sujeito | Crise da Corporeidade.................................................................43
2.4. Ideologia Imperialista........................................................................................46
2.5. Sociedade de Consumo......................................................................................51
CAPTULO II: IMPERMANNCIA ENTUSIASTA.....................................................56
1. O Microcosmo do Medo...............................................................................................56
2. Era de Mudana e Inquietao Social...........................................................................63
3. Impermanncia Entusiasta.........................................................................................67
4. O Poder das Ideias........................................................................................................74
5. Repensando a Mudana.................................................................................................78
CAPTULO III: O MAL RESIDENTE................................................................................83
1. Funo Poltica da Alegoria..........................................................................................83
2. Morte versus Poder........................................................................................................87
3. A Noite que No Terminou...........................................................................................94
3.1. A Ameaa do Corpo..........................................................................................94
3.2.
A Esfera Privada................................................................................................974. Transgresso e Mudana.............................................................................................100
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5. Matriz Contracultural..................................................................................................103
5.1. Nova Linguagem & Novas Tcnicas...............................................................103
5.2. Cabos de Conexo...........................................................................................104
a) Contato Direto.................................................................................................105
b) Contato Indireto...............................................................................................106
CAPTULO IV: TRANSMUTAES...............................................................................111
1. 1968 e Incio do Sculo XXI: Equivalncias..............................................................111
2. O Retorno do Gtico: Preldio de uma Nova Era......................................................114
3. FatorResident Evil......................................................................................................1213.1. Esttica Visceral..............................................................................................121
3.2. Recurso ao Gtico...........................................................................................129
3.3. Metfora Viral.................................................................................................134
4. Transmutaes do Modelo Romeriano.......................................................................139
5. Racionalizao do Subgnero.....................................................................................144
6. Epidemia Contracultural.............................................................................................148
7.
Movimentos Populares: Reavaliao..........................................................................155
EPITFIO.............................................................................................................................159
REFERNCIAS....................................................................................................................162
FILMES CITADOS..............................................................................................................171
ANEXOS................................................................................................................................175
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INTRODUO
O interesse nos mortos-vivos enquanto alegoria social surgiu durante pesquisas
preliminares, quando foram levantados documentos que permitiram estabelecer conexes
entre a hansenase e certos aspectos do que denominaremos modelo romeriano de horror,
em especial a sua natureza epidmica. De maneira geral, as analogias entre a lepra e a
ficcional epidemia dos zumbis referem-se a elementos que compreendem as misteriosascondies do contgio; as implicaes da doena, como a degenerao dos traos
fisionmicos; e o medo da infeco. Consideramos tambm, por um lado, o histrico
isolamento social dos hansenianos, e, por outro, o isolamento dos sos em face da invaso dos
mortos-vivos, nas narrativas ficcionais. Esses apontamentos nos aproximaram da obra que,
pela primeira vez, despertou os mortos do sereno descanso em sua configurao moderna.
A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, EUA, 1968), de George Andrew
Romero, fundou um subgnero cinematogrfico que influencia at hoje produes de um
gnero que extravasa as fronteiras da mdia cinema, contaminando a televiso, os videogames,
a msica, a literatura e as histrias em quadrinhos. A Noite...,1 filme independente de horror
realizado com poucos recursos, na zona rural de Pittsburgh, no estado norte-americano da
Pensilvnia, oferece mltiplas leituras a respeito do contexto de fins dos anos 1960, da
contracultura e da tensa geopoltica vigente no momento de sua produo.
Pretendemos, aqui, analisar os elementos textuais, intertextuais e extratextuais deste
filme, no que se refere ao pano de fundo da histria norte-americana da dcada de 1960, da
contracultura e do cinema independente. Acreditamos que vale a pena resgatar a obra de
Romero hoje quarenta e quatro anos aps o seu lanamento considerando que o
1 Para evitar a repetio do ttulo, A Noite dos Mortos-Vivos ser abreviado para A Noite...
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subgnero iniciado pelo cineasta permanece vivo, tendo inspirado ao longo do tempo no s o
cinema independente e industrial, mas tambm a indstria emergente de videogames.
*
Segundo Peter Burke (1992), a nova histria a histria escrita como uma reao
deliberada contra o paradigma tradicional, de acordo com o qual a histria diz respeito
essencialmente poltica. O movimento da nova histria, por sua vez, comeou a se interessar
por virtualmente toda a atividade humana. Nosso estudo fundamentar-se- dentro do campo
em que o fazer historiogrfico procura integrar a dimenso imagtica. Sabe-se que embora os
historiadores utilizem diversos tipos de material como fonte, seu treinamento em geral os leva
a ficarem mais vontade com documentos escritos (GASKELL, 1992, p. 236). Contudo,
Peter Burke (1992, p. 14) oferece uma alternativa: se os historiadores [da nova histria] esto
mais preocupados que seus antecessores com uma maior variedade de atividades humanas,
devem examinar uma maior variedade de evidncias. Em defesa da utilizao das imagens
como fonte, Ivan Gaskell (1992, p. 236) complementa: Alguns historiadores tm
proporcionado valiosas contribuies nossa viso do passadoe do local em que nele estinserido o material visual usando as imagens de uma forma sofisticada e especificamente
histrica.Partindo dessa assertiva, destacamos a importncia de trazer o filme para dentro do
laboratrio, uma vez que a prpria noo do tempo histrico se modificou. Nos rescaldos
ps-maio de 1968, uma srie de historiadores franceses discutiam novos problemas, novas
abordagens, novos mtodos, explica Silvio Tendler (2001, p. 7). Naquele mesmo ano,
Franois Furet escreveu, no Social Science, Information sur les sciences sociales, que
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O historiador deixou de ser o maestro que fala de tudo a propsito de tudo, do altoda indeterminao e da universalidade de seu saber, a histria. Ele deixou de contaro que se passou, isto , deixou de escolher, naquilo que se passou, o que lhe pareceapropriado para seu relato, para seu gosto ou para sua interpretao. Como seuscolegas de outras cincias humanas, ele deve dizer o que busca, constituir osmateriais pertinentes sua questo, mostrar hipteses, resultados, provas, incertezas(FURET apud FERRO, 1992, p. 84).
Segundo Ferro (1992), no suficiente constatar que o cinema fascina e inquieta, pois
os poderes pblicos e privados pressentem tambm que ele pode ter um efeito corrosivo. Ben
Hervey (2008, p. 8) rememora filmes que foram difamados pela mdia mainstream, ora pelas
cenas de transgresso e anormalidade, como Monstros (Freaks, dir. Tod Browning, 1932) e
Pink Flamingos (dir. John Waters, 1972); ora pela poltica anti- establishment, a exemplo do
antibelicista Esse Mundo dos Loucos (King of Hearts, dir. Philippe de Broca, 1966). No
caso de A Noite dos Mortos-Vivos, nos deteremos, mais adiante, sobre a funo poltica que
comporta e o princpio da representao alegrica presente em sua narrativa.
Quanto ao poder subversivo das imagens, Ferro aponta que a cmera [...] desvenda o
segredo, apresenta o avesso de uma sociedade, seus lapsos (FERRO, 1992, p. 85-6). Para o
autor, esses lapsos podem estar relacionados a um criador, a uma ideologia, a uma
sociedade, e podem produzir-se em todos os nveis do filme, como tambm em sua relao
com a sociedade. Assinalar tais lapsos, bem como suas concordncias ou discordncias com a
ideologia, ajudaria a descobrir o que est latente por trs do aparente, o no-visvel atravs do
visvel (1992, p. 88). Talvez a prpria estrutura do poder, este considerado por Michel
Foucault algo ao mesmo tempo visvel e invisvel2 (2011, p. 75). Analisando as estruturas,
ele [o historiador] se interessa pelas permanncias e mutaes invisveis de longa durao,
2 De acordo com Roberto Machado, na introduo de Microfsica do Poder, no existe em Foucault uma teoriageral do poder. Suas anlises no consideram o poder como uma realidade que possua uma natureza, uma
essncia que ele procuraria definir por suas caractersticas universais. No existe algo unitrio e global chamadopoder, mas unicamente formas dspares, heterogneas, em constante transformao. Portanto, o poder no seriaum objeto natural, uma coisa; e sim uma prtica social e, como tal, constituda historicamente. FOUCAULT,Michel. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Edies Graal, 2011, p. x.
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estas terminando s vezes por eclipsar um pouco as outras (FERRO, 1992, p.84-5). No
presente estudo, consideramos que os lapsos no interior da sociedade norte-americana dos
anos de 1960 sejam o movimento contracultural e suas mltiplas repercusses na esfera social
e poltica, revelados alegoricamente pelo filme de Romero.
Enfim, Gaskell (1992, p. 268-9) salienta que a nova histria interessa-se virtualmente
por toda a atividade humana, preocupando-se com a anlise das estruturas da sociedade, e
espera que os historiadores voltem cada vez mais sua ateno para o material visual, tendo
como tarefa recuperar a viso do perodo estudado: a contribuio para o estudo do material
visual que o historiador est provavelmente mais bem equipado para realizar a discusso de
sua produo e de seu consumo como atividades sociais, econmicas e polticas. Nesse
sentido, adotaremos uma orientao metodolgica com o aporte da nova histria, campo que
se debrua sobre diversos tipos de fonte, ao invs de se preocupar meramente com os
documentos oficiais com os quais o paradigma tradicional fundamentava seus estudos; uma
histria cuja base filosfica parte da idia de que a realidade social ou culturalmente
constituda (BURKE, 1992, p. 11). Encaminharemos nosso estudo nessa direo.
*
Adotaremos a abordagem metodolgica proposta por Marc Ferro (1992, p. 87). A
Noite...ser observado no apenas enquanto narrativa, ou obra de arte, mas como um produto,
uma imagem-objeto, cujas significaes vo alm do campo cinematogrfico e refletem os
valores culturais da sociedade que o produziu. Dessa maneira, trataremos no apenas dos
elementos flmicos de A Noite..., mas tambm dos extra-flmicos, considerando a integrao
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do mesmo ao mundo social com o qual se comunica, necessariamente. Este mundo se
refere tanto ao final da dcada de 1960 quanto ao tempo presente.
De acordo com Ferro, um filme no vale somente por aquilo que testemunha, mas
tambm pela abordagem scio-histrica que autoriza (1992, p. 87). O autor atesta a
multiplicidade das interferncias entre cinema e histria. Nesse sentido, o cinema interviria na
Histria que se faz e na Histria compreendida como explicao do devir das sociedades. Para
Ferro, desde o momento em que os dirigentes compreenderam a funo que o cinema pode
desempenhar, tentaram apropriar-se dele e p-lo a seu servio. Lnin considerava o cinema a
principal arte no contexto revolucionrio e Goebbels manipulou intensivamente a indstria
cinematogrfica alem em favor da propaganda nazista. Se tanto no Ocidente como no
Oriente os dirigentes tiveram a mesma atitude, as diferenas entre as formas de apropriao
situar-se-iam no nvel da tomada da conscincia, no no nvel das ideologias.
As autoridades, sejam as representativas do Capital, dos Sovietes ou da Burocracia,desejam tornar submisso o cinema. Este, entretanto, pretende permanecer autnomo,agindo como contra-poder, [...] como os escritores de todos os tempos procederam.Sem dvida, esses cineastas, conscientemente ou no, esto cada um a servio deuma causa, de uma ideologia, explicitamente ou sem colocar abertamente asquestes. Entretanto, isso no exclui o fato de que haja entre eles resistncia e duroscombates em defesa de suas prprias idias. sua maneira, o Jean Vigo de Zro deConduite, o Rne Clair deA ns a liberdade, e Louis Malle de Lacombe Lucien, ouainda o Alains Resnais de Stavisky, sem falar em quase todos os filmes de Godard,manifestam uma independncia diante das correntes ideolgicas dominantes,criando e propondo uma viso de mundo indita, prpria de cada um deles, o quevigorosamente suscita uma tomada de conscincia, de tal forma que as instituiesideolgicas instauradas [...] entram em disputa e rejeitam tais obras, como se apenasessas instituies tivessem o direito de se expressar em nome de Deus, da nao oudo proletariado, e como se apenas elas dispusessem de outra legitimidade almdaquela que elas prprias se outorgaram (FERRO, 1992, p. 14).
Nosso enfoque recair sobre o cinema independente americano, que promoveu
transformaes radicais no fazer cinematogrfico e seguiu caminhos divergentes das funes
ideolgicas consideradas importantes pela estrutura clssica da narrativa.3De certa maneira,
3 Cinema clssico hollywoodiano / narrativa clssica: refere-se tradio dominante na produo deHollywood dos anos de 1930 a 1960, mas que tambm permeou o cinema ocidental mainstream. Sua herana
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os gneros cinematogrficos4 eram percebidos pelos cineastas independentes como um
conjunto de regras e convenes que poderiam ser exploradas, questionadas e
frequentemente subvertidas, o que resultaria num desordenamento das expectativas do
espectador (TZIOUMAKIS, 2006, p. 180). Assim, a contribuio do cinema independente
americano, muitas vezes marginalizado pelas instituies hegemnicas, parece ter sido uma
viso de mundo original, que suscitou uma tomada de conscincia.
Portanto, tendo em A Noite dos Mortos-Vivoso nosso objeto, apontaremos para trs
domnios: o processo criativo, a obra e a sua recepo. Em relao a este ltimo, Ferro
rememora as palavras de Sergei Eisenstein, segundo o qual toda sociedade recebe as imagens
em funo de sua prpria cultura (1992, p. 17). Burke assinala que s percebemos o mundo
atravs de uma estrutura de convenes, esquemas e esteretipos, um entrelaamento que
varia de uma cultura para outra (1992, p. 15). Aspecto igualmente importante refere-se ao
dilogo entre o cinema e outros suportes de veiculao de imagem. De acordo com Maria
Helena Capelato e os demais organizadores da coletneaHistria e Cinema,
Com o exame detalhado dos filmes poderemos entender o cinema de uma pocacomo uma expresso de valores, no s delimitados pela maneira de abordar o temaencenado, mas, de modo mais decisivo, pela forma como foram concebidos osregistros visuais e sua organizao na forma flmica. Nesse ponto h uma dupladimenso: a primeira diz respeito s linguagens, tcnicas e estilos que marcam ocinema como rea de expresso artstica; a segunda, envolvendo o aspectoiconogrfico e ideolgico de anlise, ou seja, de que modo o cinema dialoga comoutros suportes de veiculao de imagem que lhe so contemporneos e que ajudam
a compor o leque de opes que o contexto sociocultural oferece (CAPELATO etal., 2007, p. 10).
remonta ao melodrama do primeiro cinema europeu e americano e ao teatro melodramtico que o antecedeu.Essa tradio ainda se faz presente no cinema dominante ou mainstream, em algumas ou todas as suas partes.HAYWARD, Susan. Cinema studies: the key concepts. 3. ed. New York: Routledge, 2006, p. 82-5.4 Gnero: mais do que mera catalogao genrica, no se refere apenas a um tipo de filme, mas expectativa e hiptese do espectador. Tambm se refere funo de discursos institucionais especficos queformam estruturas genricas. Em outras palavras, deve ser visto como parte de um processo tripartite de
produo, mercado (incluindo distribuio e exibio) e consumo. Os gneros no so estticos, mas mutveis,compostos por diversos intertextos. Os gneros so flexionados tanto pelos imperativos capitalistas da indstriacinematogrfica como pela preferncia do pblico e pelas realidades scio-histricas de um dado perodo.HAYWARD, Susan. Cinema studies: the key concepts. 3. ed. New York: Routledge, 2006, p. 185-91.
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Dessa maneira, pretendemos estudar A Noite dos Mortos-Vivos, de George Romero,
associando o filme ao mundo que o produz e ao mundo que o consome/recebe, no intuito no
somente de analisar as relaes mais amplas entre cinema e histria, mas de pensar o filme
como documento que possibilita a discusso de uma poca, considerando seu estatuto de
objeto da cultura e as releituras que sofre no decorrer do processo histrico.
Em seguida, observaremos o dilogo entre o cinema e as novas mdias, levantando a
hiptese do carter perene do modelo romeriano de horror e suas transmutaes em tempos
de crise poltica e econmica, releituras estas que parecem seguir as correntes contraculturais
e os medos epidmicos5 numa determinada sociedade. Nesse sentido, so relevantes as
consideraes de Milena Kalinovska, em prefcio obra Gothic, de Christoph Grunenberg
(1997, p. 218), a respeito de uma importante tendncia dentro da arte contempornea.
Kalinovska trata da captura de metforas, em estilo gtico, promovida por diversos artistas,
sobre os extremos emocionais que nos assombram: aquilo que mais tememos, e o que esses
artistas representam, na verdade, somos ns mesmos. A possibilidade de circunstncias
incontrolveis e irracionais permite um desenvolvimento esttico que exprime nosso
desconforto e desorientao. Nos captulos finais analisaremos com maior cuidado esse
movimento que, at certo ponto, pode ter sido inspirado pela esttica de A Noite..., ganhando
fora durante a ltima dcada do sculo passado.
Tentaremos demonstrar porque a obra de George Romero se mostra inquietante emambiente externo moldura alegorizante, e qual a razo de retornar a essa obra ainda hoje,
numa sociedade marcada pelos atentados de 11 de Setembro 2001. Em suma, debateremos a
importncia de tratar 1968 agora, estimulados por um subgnero cinematogrfico que
conquistou terreno em diversas mdias na dcada de 1990, sofreu significativas transmutaes
no mundo ps-11/9, e continua se expandindo significativamente na atualidade. Pretendemos,
5 Consideramos medos epidmicos os temores que afligem determinadas sociedades e que ganhamcores extremadas num dado perodo, como, por exemplo, o medo da aniquilao nuclear ou do terrorismo.
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tambm, observar a usabilidade do morto-vivo enquanto metfora que dialoga com alguns dos
elementos mais tensos e delicados da geopoltica atual e do momento scio-histrico em que
vivemos, estabelecendo pontos de contato entre a representao do zombie, o esprito
contagioso da rebelio e os movimentos de protesto que sacudiram o mundo a partir de 2010.
Para tanto, trabalharemos com a distino tipolgica proposta por Sarah Juliet Lauro e
Karen Embry em A Zombie Manifesto: The Nonhuman Condition in the Era of Advanced
Capitalism (2008) : em sua passagem de zumbi para zombie, essa figurao que,
primeiramente, se tratava apenas de um escravo sonmbulo, despertado individualmente dos
mortos, tornou-se maligna, contagiosa e plural (2008, p. 88). Acreditamos que o termo
zumbi impreciso para definir a verso contempornea do monstro e suas muitas
reformulaes por seroriginariamente africano, denotativo de uma manifestao prpria
da religio vodu e ter sido utilizado para definir o morto-vivo no cinema dos anos de 1930.
Logo, utilizaremos o termo zombie sempre que abordarmos essa forma de representao (o
modelo romeriano e seu legado), considerando a diferena radical no ethose na iconografia
desse monstro contemporneo em relao ao seu precursor haitiano.
No captulo I, construiremos uma genealogia do monstro, partindo dos primrdios de
sua representao at o advento do morto-vivo moderno. Ento, observaremos a condio
do zombie, ou seja, os aspectos fundamentais do modelo romeriano: a natureza epidmica
do horror e o estatuto de impureza; a perspectiva do mundo estranhado; o anti-sujeito, aascenso ao espectro ps-humano atravs da morte e a crise da corporeidade; a ideologia
imperialista, a reviso capitalista do monstro e a metfora da sociedade de consumo.
No captulo II, traaremos um panorama de fins dos anos de 1960, contexto scio-
histrico em que A Noite... foi produzido. Partindo das relaes entre Cinema e Histria,
conectaremos a obra e seu tempo, observando a gerao contracultural e as novas formas de
fazer cinema surgidas a partir de uma contraposio ao mainstreamescapista.
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No captulo III, analisaremos a esttica do filme e a funo poltica da alegoria
presente no mesmo, bem como a nova linguagem e as novas tcnicas empregadas pelos
jovens cineastas da era contracultural e seu desejo de transgresso e mudana. Observaremos
at que ponto a morte pode ser considerada uma forma de reao ao poder, e como ela
aparece emA Noite..., e tambm a matriz contracultural do modelo romeriano de horrore os
cabos de conexo existentes entre essa obra e os produtos culturas que a antecedem.
No captulo IV abordaremos a transmutao mais recente do modelo romeriano de
horror, ocorrida em fins do sculo XX e no incio do XXI, buscando as equivalncias entre esse
perodo e os anos finais da dcada de 1960. Analisaremos a reconfigurao do morto-vivo na
sociedade contempornea a partir das novas mdias, considerando o impacto do game
Resident Evile o retorno do gnero gtico cultura popular, no final do milnio.
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Captulo I
O MODELO DE ROMERO
(...) S um artista de verdade conhece a fundo a anatomia do terrorou a psicologia do medo o tipo exato de linhas e propores quese ligam a instintos latentes ou memrias hereditrias de pavor, e
os contrastes e a iluminao que despertam o sentimento deestranheza adormecido.
H.P. Lovecraft, O Modelo de Pickman, 1927.
1. Genealogia do Zumbi
No faria sentido abordar a figura do zombie, ou tentar discutir seus modos derepresentao e as transmutaes que sofre no imaginrio social da contemporaneidade, sem
antes buscarmos, em suas origens mais remotas, os aspectos que se constituem enquanto
permanncias dentro do modelo romeriano de horror. Dessa maneira, antes de nos determos
sobre esse modelo e a sua transmutao no final do sculo XX, necessrio, primeiramente,
observar a figura bastante peculiar do morto que retorna vida.
O imaginrio da morte constitui parte essencial das crenas religiosas das sociedades.
De acordo com Jean Claude-Schmitt, as crenas e o imaginrio dependem, antes de tudo, das
estruturas e do funcionamento da sociedade e da cultura em uma poca dada. O autor continua
a argumentao, sugerindo que os homens atribuem aos mortos representaes do que
esperam para si prprios, de acordo com a cultura e o contexto histrico. Assim, os mortos
teriam apenas a existncia que os vivos imaginam para eles. A dimenso antropolgica e
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universal do retorno dos mortos est presente, entre outras, na tradio ocidental, desde a
Antiguidade, na Idade Mdia e at no folclore contemporneo (SCHMITT, 1999, p. 17).
Os mortos que retornam vida aparecem nas narrativas mitolgicas de diversas
culturas, assumindo a forma de vampiros e espritos em muitas delas. Michael Page e Robert
Ingpen (1985) sugerem que as lendas de vampiros ora fantasmas, ora mortos-vivos
remontam ao Egito Antigo e, provavelmente, aos sculos mais primitivos. Na mitologia
nrdica, diz-se que durante o Ragnark (batalha apocalptica que resultaria no fim do mundo)
os mortos-vivos formariam um exrcito para acabar com os vivos (CUETO, 2009, p. 24). Na
Idade Mdia, em uma cultura eminentemente religiosa e familiar morte e aos mortos, a
crena nos fantasmas era admitida por todos (SCHMITT, 1999, p. 17).
De acordo com Philippe Aris (2003, p. 206), o incio do sculo XIX assistiu a uma
exaltao da morte na poca romntica. Jos Manuel Serrano Cueto assinala o grande
nmero de narrativas sobre amantes ressuscitados que vagam por cemitrios gticos, mortos
que regressam de suas tumbas como os monges esquelticos de El Miserere (1862), de
Gustavo Adolfo Bcquer. Na explorao do mundo confuso onde se misturam as guas
subterrneas do mundo imaginrio e as correntes da cincia, destacamos Frankenstein ou o
Prometeu Moderno (1818, revisado em 1831), de Mary Wollstonecraft Shelley, romance
gtico de destaque responsvel por engendrar um monstro icnico com idiossincracia
particular, uma clara referncia ao mundo zumbi (CUETO, 2009, p. 33). A abominao deShelley surge pelas mos de Vtor Frankenstein e sua cincia com intenes divinas, capaz de
insuflar vida num emaranhado de cadveres. O extraordinrio projeto de recriao do ser
consolida-se graas fermentao e eletricidade, o que evoca o certo fascnio romntico
pela cincia por parte do poeta Percy Bysshe Shelley e a influncia deste sobre a
companheira Mary Wollstonecraft, num perodo em que progressos cientficos como os
experimentos de Galvani eram comentados com expectativa nos crculos intelectuais.
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Segundo Aris (1990, p. 423), Frankenstein extrai o segredo da vida do milagre dos
cadveres, nos quais estaria inscrito o conhecimento e tambm subsistiria um elemento vital.
Essa exaltao da morte tambm pode ser identificada na obra de Edgar Allan Poe, em seu
universo de enterrados vivos e espectros. Posteriormente, H.P. Lovecraft tambm escreveria
diversas histrias com ressuscitados.
Uma forma de representao bastante distinta do morto que retorna vida pode ser
identificada na tradio religiosa afro-caribenha. De acordo com Page e Ingpen (1985, p.
231), as antigas religies da frica Ocidental deram origem ao vodu, e, segundo Peter
Dendle, no contexto dessa religio que se encontram as razes da palavra zumbi. Em sua
etimologia originria do quimbundo,6 a palavra relaciona-se idia do morto que se ergue da
sepultura e denota a importncia do conceito da ressurreio no interior daquela religio. Vale
a ressalva de que as associaes entre a figura do zumbi e as religies afro-caribenhas no so
automticas. A prpria idia de feitio, nas religies americanas de origem africana, est
sujeita a discusses. Alm disso, o discurso de ligao automtica entre vodu e feitiaria
visando o malefcio, vulgarmente propagado no cinema comercial, notadamente o cinema
anglfono, revela uma perspectiva eurocntrica que deturpa a realidade cultural afro-
caribenha e ignora suas nuances. Sabe-se que a forma dominante euroamericana de cinema
no apenas herdou e propagou um discurso colonial hegemnico, como tambm criou uma
poderosa hegemonia por intermdio do controle monopolstico da distribuio e da exibiocinematogrficas [...] (STAM, 2003, p. 34).
Para o espectador europeu, portanto, a experincia cinematogrfica promovia umagratificante sensao de pertencimento nacional e imperial, mas, para o colonizado,o cinema deflagrava uma sensao de extrema ambivalncia, mesclando aidentificao provocada pela narrativa cinematogrfica com um intensoressentimento (STAM, 2003, p. 34).
6 O kimbundu a lngua da regio de Luanda, Catete, Malanje e as reas de fronteira no Norte (Dembos -variante crioula kimbundu/kikongo) e no Centro (Kuanza Sul - variante crioula kimbundu/umbundu). faladapor mais de um milho e meio de pessoas. RAMOS, Rui. A lngua kimbundu. Disponvel em:. Acesso em: 15 jan. 2012.
http://www.ciberduvidas.com/diversidades.php?rid=351http://www.ciberduvidas.com/diversidades.php?rid=3517/23/2019 Monografia - Zumbi Romeriano - Lcio_Reis_Filho
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Nas dcadas de 1930 e 1940, filmes como Zumbi Branco ( White Zombie, dir. Victor
Halperin, 1932), Ouanga (dir. George Terwilliger, 1936), Revolt of the Zombies (dir. Victor
Halperin, 1936), I Walked with a Zombie (dir. Jacques Tourneur, 1943), entre outros,
evocavam a discriminao racial atravs da relao de domnio e submisso entre o zumbi e
seu mentor. Luciano Saracino explica que os zumbis so cadveres animados mediante
espritos escravos, utilizados pelo bokor7 para o seu benefcio pessoal. Considerando o cinema
euroamericano herdeiro e propagador do discurso colonial hegemnico imperialista (STAM,
2003, p. 34), a relao entre o zumbi e o sacerdote parece ter sido construda justamente a
partir dessa ptica, que ser mais bem explicada adiante. Saracino consideraZumbi Branco a
produo pioneira do subgnero do zumbi, e sugere que I Walked with a Zombie tenha
explorado temas como o passado obscuro, os amores proibidos, os tambores negros e os
rituais (2009, p. 19-20). Naquela poca, entretanto, o zumbi funcionaria essencialmente como
pano de fundo para complementar um vilo humano, ou seja, seria antes a representao de
um objeto de horror visual do que uma ameaa para os protagonistas.
O zumbi em I Walked with a Zombie(1943).
7 Sacerdote da religio vodu.
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Dendle aponta que a representao do zumbi no cinema dos anos 1930 e 1940 esteve
atrelada s suas razes folclricas, ora conectada religio afro-caribenha, ora mitologia
egpcia (2001, p. 3). Tomamos como exemplo O Ressuscitado (The Ghoul, 1933), uma
produo da Gaumont-British Picture Corporation, dirigida por T. Hayes Hunter. Nele, Boris
Karloff interpreta o Professor Morlant, egiptlogo obcecado pela idia da imortalidade,
alcanada por meio de um contrato com Anbis. Mas os planos de Morlant so desrespeitados
e o Professor retorna vida como um zumbi para se vingar dos violadores de sua tumba.
Dendle considera os anos de 1950 e 1960 um estranho perodo de transio (2001, p.
5), em que a figura do zumbi teria experimentado certa confuso, tateando em busca de novos
rumos, embora j no estivesse presa ao modelo religioso das duas dcadas anteriores. A
confuso tornou-se ntida a partir de 1950, quando o termo quimbundo passou a ser utilizado
na definio de gneros distintos de criaturas: invasores marcianos humanides (Zombies of
the Stratosphere, dir. Fred C. Brannon, 1952), seres subaquticos (Zombies of Mora-Tau, dir.
Edward L. Cahn, 1957), jovens de classe mdia sob o efeito de drogas hipnticas ( Teenage
Zombies, dir. Jerry Warren, 1959), peixes mutantes radioativos (The Horror of Party Beach,
dir. Del Tenney, 1964) e andrides cibernticos (The Astro-Zombies, dir. Ted V. Mikels,
1968). Entretanto, certa veia de coerncia podia ser identificada nessepout-pourriconceitual.
Filmes como Plano 9 do Espao Sideral (Plan 9 from Outer Space, dir. Ed Wood, 1959) eInvasores Invisveis (Invisible Invaders, dir. Edward L. Cahn, 1959) compartilhavam uma
ansiedade comum ao insistir que os mortos redivivos no eram, de forma alguma, sensitivos,
mas radicalmente distintos de qualquer concepo de mente ou alma (DENDLE, 2001, p. 4-
5). Argumento reconfortante para que o zumbi pudesse ser tratado como Outro, animal ou
escravo, e, portanto, livremente trucidado sem nus moral ou judicial ao homem branco.
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A partir desse argumento, estabelecemos um dilogo com o artigo A Zombie
Manifesto: The Nonhuman Condition in the Era of Advanced Capitalism (2008), de Sarah
Juliet Lauro e Karen Embry. O manifesto trata do zumbi tnico, de origem histrica e
religiosa, que diz respeito posio do sujeito na sociedade haitiana e sua relao com a
dialtica mestre/escravo; e dos zombies, os mortos-vivos dos filmes contemporneos, que
parecem escapar, cada vez mais, da tela para o mundo real. Enquanto metfora, o modelo
romeriano e suas transmutaes so muito reveladores da maneira pela qual se consideram
indignos de vida os sujeitos ditos inferiores. De maneira geral, Lauro e Embry sustentam que
o zumbi est historicamente vinculado expanso do capitalismo global, uma importao
colonial que infiltrou o imaginrio cultural norte-americano no incio do sculo XX, durante a
ocupao dos Estados Unidos no Haiti (2008, p. 96).
Daniel Cohen, em suas pesquisas sobre os ritos religiosos haitianos, aponta que se
deve entender o zumbi, primeiramente, como um cadver andarilho e sem alma, e que o
mesmo no inerentemente mau, como um vampiro; um mero servo (apud LAURO;
EMBRY, 2008, p. 97-8). Em Voodoo, Devils and the Invisible World(1972), Cohen explica
que tanto o zumbi original como sua encarnao contempornea derivam do vodu, religio em
que a palavra zombi significaria no apenas um corpo sem alma, mas tambm uma alma
sem corpo (apud LAURO; EMBRY, 2008, p. 97). Porm, se a questo das fronteiras nunca
foi limitante para essa figura mitolgica, Lauro e Embry sugerem que o zombie possui umcorpo fluido que transgride suas prprias fronteiras atravs da mordida e da infeco de suas
vtimas, enquanto o zumbi haitiano podia ser criado apenas por um no-zumbi (2008, p. 97).
Na segunda metade dos anos 1960, o zumbi sofreria importante reformulao,
pavimentando o caminho para uma nova vertente cultural e um novo subgnero dentro do
cinema de horror. De acordo com Luciano Saracino, nesse perodo nasceu uma nova vertente
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dentro do gnero, denominadagore,splatterou splatterpunk,8 e a imagem do zumbi comeou
a ser repensada (SARACINO, 2009, p. 39-40). Segundo Dendle, dois filmes contriburam de
forma significativa para a reconstruo do morto-vivo:A Epidemia dos Zumbis (Plague of the
Zombies, dir. John Gilling, 1966) e A Noite dos Mortos-Vivos. O primeiro, romperia o tabu
relacionado exibio de cadveres decompostos no cinema; o segundo, ao libertar os zumbis
do controle mstico, daria incio a um mythos contemporneo essencialmente corporal
(DENDLE, 2001, p. 6), com monstros dotados de anseios fsicos e biolgicos:
A inovao mais peculiar de A Noite dos Mortos-Vivos a idia de que os zombiess podem ser destrudos se alvejados na cabea, ou de outra maneira que desative oncleo do crebro. Isso compatvel com o fisicalismo 9 [...]: embora anmala, afora vital que habita os corpos errantes est intrinsecamente conectada aosprocessos fsicos cerebrais (DENDLE, 2001, p.6).
O primeiro filme de Romero tornar-se-ia a produo responsvel por iniciar um
subgnero inteiramente novo: o filme de zombies (STINE, 2001, p. 16). O cineasta criou a
figura contempornea do zumbi aqui tambm definido como zombie ou modelo
romeriano atravs do abandono de suas formas iniciais/religiosas de representao. Dessa
maneira,A Noite... estabeleceu o zumbi secular ou laico em oposio ao modelo anterior,
ligado a rituais religiosos. Essa transmutao se deu no momento considerado por Dendle
(2001, p. 6) o perodo de estabilizao do mythoscontemporneo do monstro.
O modelo romeriano foi responsvel para a primeira onda de filmes de zumbis, as
mais de trinta produes que surgiram entre 1969 e 1977, em diversos pases. Podemos
mencionarA Virgin Among the Living Dead e a srie Tombs of the Blind Dead, de Amando
De Ossorio. Embora o entusiasmo inicial tenha comeado a declinar entre 1975 e 1978, a
8 Splatter film 1. Qualquer filme que contenha cenas de extrema violncia com detalhes grficosmacabros, especialmente as produes que recaem na categoria mais ampla dos filmes de horror. 2. Todos osfilmes produzidos desde 1963 que tm os efeitos especiais sangrentos como ponto central, custa de pequenosrecursos tcnicos. STINE, Scott Aaron. The gorehounds guide to splatter films of the 1960s and 1970s.
Jefferson, NC: McFarland, 2001, p.2.9 Fisicalismo a tese de que tudo fsico ou, como argumenta a filosofia contempornea, que tudosobrevm ou decorre do fsico. Fonte: Physicalism. Stanford encyclopedia of philosophy. Disponvel em:http://plato.stanford.edu/ entries/physicalism/.Acesso em 18 jul. 2010
http://plato.stanford.edu/%20entries/physicalism/http://plato.stanford.edu/%20entries/physicalism/http://plato.stanford.edu/%20entries/physicalism/7/23/2019 Monografia - Zumbi Romeriano - Lcio_Reis_Filho
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recesso terminou com o lanamento deZumbiO Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead,
1979), o segundo filme de Romero sobre os morto-vivos (DENDLE, 2001, p. 7).
Zumbi, cujo enredo trata do momento em que a epidemia perde o controle e a
sociedade caminha rumo ao colapso, inaugura a segunda onda, com propores ainda
maiores. A partir desse ponto, a narrativa dos filmes dezombiesfoca especificamente no tema
do apocalipse, associado ao contgio que se espalha com os mortos-vivos. Nesse momento, a
Itlia assume a posio de grande produtora do subgnero, com diversos filmes importantes,
entre elesZumbi 2A Volta dos Mortos (Zombi 2, dir. Lucio Fulci, 1979),Burial Ground(Le
notti del terrore, dir. Andrea Bianchi, 1980), City of the Walking Dead (Incubo sulla citt
contaminata, dir. Umberto Lenzi, 1980), Pavor na Cidade dos Zumbis(Paura nella citt dei
morti viventi, dir. Lucio Fulci, 1980) e Virus(Night of the Zombies, dir. Bruno Mattei, 1981).
*
A partir de certo momento, segundo Dendle, os corpos redivivos passaram a ser
radicalmente distintos de qualquer concepo de mente ou alma (2001, p. 4 -5). Em
consonncia, Lauro e Embry sustentam que o zumbi articula ansiedades relacionadas fragmentao do corpo e da mente/alma, embora consideremos que o corpo e o pensamento
esto imbricados. Alm disso, suas narrativas estariam comprometidas com o ardil de crises
polticas e sociais ao longo da histria. Nesse sentido, o zumbi no seria uma mera
representao das preocupaes sociais prementes do momento histrico no qual aparece
sejam essas preocupaes concernentes colonizao, escravido ou servido capitalista.
Antes disso, seria produto da estrutura desses eventos histricos, significando nas profundezas
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uma crise to antiga como a prpria compreenso da mortalidade fsica. As autoras
consideram, ainda, que o zumbi reconfigura a dinmica do poder (2008, p. 101).
Atualmente, de acordo com Lauro e Embry, cineastas e crticos tm percebido a
ressonncia do zombiecom diversos aspectos do modo de produo vigente: o desempenho
mecnico do operrio das fbricas; a morte-cerebral; o servo da indstria, alimentado pela
ideologia; os escravos do capitalismo, meramente iludidos a pensar que so livres; e a boca
sempre voraz do Estado-nao. O indivduo, sob o jugo do capitalismo, , com freqncia,
caracterizado como um zumbi (2008, p. 92). No entanto, no desconsideraremos a
permanncia de elementos do zumbi tnico no interior do modelo romeriano, uma vez que
o processo perene de transmutao deste per se uma reviso capitalista do zumbi afro-
caribenhoparece ter se configurado a partir da ideologia imperialista.
No captulo final, analisaremos a transmutao do modelo romeriano de horror e a
reconfigurao do morto-vivo nos anos finais do sculo XX e no incio do XXI. Entrementes,
pontuaremos os aspectos fundamentais da condio do zombie, considerando: o estatuto de
impureza e a natureza epidmica do horror; a perspectiva do mundo estranhado; o anti-
sujeito, a ascenso ao espectro ps-humano atravs da morte e a crise da corporeidade; a
releitura capitalista e a ideologia imperialista; a metfora da sociedade de consumo o
zombieenquanto mquina consumidora no-consciente. Para tanto, traaremos paralelos entre
A Noite dos Mortos-Vivose seu legado.
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2. A Condio do Zombie
2.1. Natureza Epidmica do Horror
2.1.1. Estranha Fascinao
Como observou Schiller em Sobre a arte trgica (1792), um fenmeno geral na
nossa natureza que aquilo que triste, terrvel, at horrendo nos atraia com irresistvel
fascnio; que nos sintamos repelidos e atrados com a mesma fora por cenas de dor e terror e
que devoremos com avidez histrias de espectros capazes de arrepiar os cabelos (apud ECO,
2007, p. 282). De acordo com Umberto Eco, nesse esprito nasceu o romance gtico, povoado
de castelos e monastrios em runas, subterrneos aterradores, crimes sangrentos, aparies
diablicas, fantasmas e corpos em decomposio. Se em Crtica da faculdade do juzo (1790)
Kant sustenta que a feiura que provoca repulsa no pode ser representada sem que se destrua
qualquer prazer esttico (apud ECO, 2007, p. 282), com o romantismo esse limite foi
superado. Doravante, a beleza deixou de ser a ideia dominante de esttica, ou, nas palavras deNietzsche, em O nascimento da tragdia (1872), o Sublime colocou- se como sujeio
esttica do horrvel (apud ECO, 2007, p. 276).
No interior da esfera de tudo o que triste e horrendo, destacamos a atrao que a
doena exerce sobre a natureza humana. Segundo Nietzsche, tambm os doentes e fracos tm
a seu favor a fascinao ([s.d.], p. 282), mas ao mesmo tempo a doena carrega consigo a
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feiura (ECO, 2007, p. 302). Na primeira e mais completa Esttica do feio (1853), Karl
Rosenkrantz aborda essa questo:
A doena sempre causa de feio quando comporta a deformao de ossos, esqueletoe msculos, como a tumefao dos ossos na sfilis, nas devastaes gangrenosas. Eigualmente quando tinge a pele, como na ictercia, quando cobre a pele deexantemas, como na escarlatina, na peste, em certas formas de sfilis, na lepra, noherpes, no tracoma. As mais horrendas deformidades advm, sem dvida, da sfilis,pois ela no causa apenas erupes nauseabundas, mas tambm chagas putrescentese devastaes sseas. Exantemas e abscessos so assimilveis ao bicho-geogrfico,que escava seus sinais sob a pele; so, em certa medida, indivduos parasitrios, cujaexistncia contradiz a natureza do organismo como unidade e na qual ele sedesintegra [...] De uma maneira geral, a doena causa de feio quando modifica demodo anormal a forma [...] (ROZENKRANTZ apud ECO, 2007, p. 256).
De acordo com Peter Dendle (2001, p. 12), as sociedades exibem uma ansiedade
aguda com relao morte. O autor considera a ansiedade desencadeada pelas pragas
historicamente multiforme remontaria bblica repulsa pela lepra, 10 aos sintomas
hemorrgicos do ebola11 e recente perplexidade da mdia em relao ao estreptococo do
grupo A, conhecido como a doena comedora de carne.12 No intuito de traar um paralelo
entre a ideia de feiura/fascinao e o modelo romeriano, conectando este ao imaginrio
acerca das enfermidades e do contgio, abordaremos dois exemplos distintos, sem perder de
vista que a doena causa do feio quando modifica de modo anormal a forma
10 A hansenase, doena crnica infecciosa, geralmente afeta a pele e os nervos perifricos, mas possuiuma vasta gama de possveis manifestaes clnicas. O mal de Hansen associado a leses cutneas simtricas,
ndulos, placas, espessamento da derme e acometimento frequente da mucosa nasal. O bacilo Mycobacteriumleprae se multiplica de forma lenta, afetando principalmente a pele, os nervos e as membranas damucosa. Apesar do modo de transmisso permanecer incerto, a maioria dos pesquisadores acredita que adisseminao ocorra atravs de gotculas respiratrias. Dados de acordo com: . Acesso em: 15 jan. 2012.11 A febre hemorrgica ebola uma doena infecciosa grave, frequentemente fatal, que atinge humanos eprimatas (macacos, gorilas e chimpanzs) e tem se manifestado esporadicamente desde a sua identificao inicialem 1976. A doena causada pela infeco com o vrus ebola, assim denominado em funo de um rio daRepblica Democrtica do Congo (antigo Zaire), na frica. Dados de acordo com: . Acesso em: 6 out. 2011.12 A fascete necrotizante uma infeco rara que resulta na necrose das camadas mais fundas da pele edos tecidos subcutneos no plano fascial. Tem-se observado que as taxas de mortalidade chegam a 73%. Ospacientes geralmente se queixam de dor excessiva e os sintomas cutneos incluem vermelhido difusa e edema,
que progride para a necrose e bolhas hemorrgicas. Apesar do termo fascete necrotizante ser utilizado desde1952, ao longo dos anos outras denominaes tm sido usadas para se referir doena, incluindo sndrome da
bactria comedora de carne, fascete supurativa, gangrena hospitalar e erisipela necrotizante. Dados deacordo com: http://www.medscape.com/viewarticle/444061.Acesso em: 6 out. 2011.
http://www.cdc.gov/ncidod/%20dvrd/spb/mnpages/dispages/ebola/qa.htmhttp://www.cdc.gov/ncidod/%20dvrd/spb/mnpages/dispages/ebola/qa.htmhttp://www.medscape.com/viewarticle/444061http://www.medscape.com/viewarticle/444061http://www.medscape.com/viewarticle/444061http://www.medscape.com/viewarticle/444061http://www.cdc.gov/ncidod/%20dvrd/spb/mnpages/dispages/ebola/qa.htmhttp://www.cdc.gov/ncidod/%20dvrd/spb/mnpages/dispages/ebola/qa.htm7/23/2019 Monografia - Zumbi Romeriano - Lcio_Reis_Filho
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(ROZENKRANTZ apud ECO, 2007, p. 256). Primeiramente, observaremos o imaginrio
medieval a respeito dos leprosos, considerados objetos de horror pela doena que
desfigura-lhes os traos, quase dissolvendo sua aparncia humana (GINZBURG, 1991, p.
50), e sua permanncia ainda na primeira metade do sculo XX. Em seguida, lanaremos um
breve olhar sobre o medo contemporneo incitado pela fascete necrotizante, a assustadora
doena comedora de carne.
Textos do sculo XIV relatam o extermnio dos leprosos, motivado pelo temor que a
hansenase despertava. Segundo uma crnica do mosteiro de Santa Catarina de Monte
Rotomagi, Em todo o reino da Frana, os leprosos foram aprisionados e condenados pelo
papa; muitos foram mandados para a fogueira [...]. Alguns confessaram ter conspirado para
matar todos os sos [...] para ter o domnio sobre o mundo inteiro (GINZBURG, 1991, p.
43). Carlo Ginzburg considera ainda mais abrangentes os escritos do inquisidor dominicano
Bernardo Gui, segundo o qual os doentes no corpo e na alma haviam espalhado p
envenenado nas fontes, nos poos e nos rios, para transmitir a lepra aos sos e faz-los
adoecer ou morrer. Parece incrvel, diz Gui, mas aspiravam ao domnio das cidades e dos
campos (1991, p. 43). Essa ameaa teria conduzido poltica de marginalizao dos
hansenianos.
Pela primeira vez na histria da Europa, estabelecia-se um programa de recluso tomacio. Nos sculos seguintes, aos leprosos se seguiriam outras personagens:loucos, pobres, criminosos, judeus. Mas os leprosos abriram o caminho. At ento,apesar do medo de contgio, que inspirava complexos rituais de separao [...], osleprosos viviam em instituies de tipo hospitalar, quase sempre administradas porreligiosos, bastante abertas para o exterior, nas quais se entrava voluntariamente. NaFrana, a partir daquele momento, passaram a ser segregados em carter perptuoem lugares fechados (GINZBURG, 1991, p. 45).
Naquele perodo, explica Ginzburg, os cagots ou leprosos brancos, que no senso
comum medieval distinguiam-se dos sos apenas pela falta dos lobos das orelhas e pelo hlito
fedorento, deviam usar roupas especiais e sinais de reconhecimento. O estigma costurado nas
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roupas evidenciava o profundo estranhamento fsico com relao queles considerados
difusores do contgio. Entretanto, como destaca o autor, a repulsa que inspiravam e que os
mantinha distncia, com tendncia marginalizao, tratava-se de uma atitude complexa e
contraditria. Sua condio era ambgua, limtrofe. Os leprosos so objetos de horror porque
a doena, entendida como smbolo carnal do pecado, desfigura-lhes os traos, quase
dissolvendo sua aparncia humana (GINZBURG, 1991, p. 50).
A representao do leproso enquanto objeto de horror tem sido constante ao longo
do processo histrico. Na edio de 16 de maro de 1946 da revista portuguesa O Sculo
Ilustrado, por exemplo, encontramos a matria intitulada 40.000 leprosos vivem isolados do
mundo: uma cidade modelo de mortos-vivos, no Brasil.13 De acordo com a notcia:
Curupaiti, nova cidade da felicidade filosfica, lembra de perto Shangri-La, olendrio e maravilhoso pas do filme Horizontes perdidos. No entanto, Curupaiti a cidade dos leprosos, a urbe dos mortos-vivos. Fica a poucos quilmetros do Rio deJaneiro e uma das maravilhas do mundo porque os doentes condenados a umamorte lenta ali criaram o seu paraso. O governador, o prior, a mestra-escola, osmdicos, os engenheiros, os diretores de cinema, os presidentes dos clubesdesportivos, os jardineiros e os carcereiros duma priso sem presos todos soleprosos.
Outro caso que merece nota tambm ocorreu no Brasil, e foi narrado pela edio n.39
do jornal O Campanhense, de 17 de novembro de 1929. Ainda sobre o problema da lepra14
sustenta que Ha ainda entre leprosos as mais das vezes entre os que se apresentam em
peor estado, horrendamente deformadosa velha e estupida lenda de que, para se curarem,
devem transmittir a molestia a sete pessoas.15A notcia narra, ento, um fato horripilante:
durante os festejos do jubileu de Congonhas, em Minas Gerais, um romeiro, acompanhado de
sua filha pequena, resolveu distribuir determinada quantia entre os lzaros. Porm, antes de
terminar a doao, um morftico de aparncia jovem raptou a criana e saiu correndo em
13 Ver Anexo A e Anexo B, p. 176-7.14 Ver Anexo C, p. 178.15 O fragmento cita do foi transcrito tal qual aparece na matria Sobre o problema da lepra, datada de 17de novembro de 1929, de acordo do as normas ortogrficas vigentes na poca de sua publicao.
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meio multido. Com o auxlio da polcia, o pai saiu no encalo da repelente criatura, que
somente foi encontrada horas depois. Na nsia de se ver curado, o maldito procurava
contaminar a infeliz menina, cujo corpo, pelas mordeduras do monstro, era uma chaga viva.
Ento, A policia narrou [...] a antiga historia das sete victimas que cada um deles deve fazer
para alcanar a cura. Aquella menina era a sua terceira victima. Em suma, No so raros os
exemplos de morpheticos que atacam e mordem pessoas ss, de preferncia as creanas, que,
inermes, no lhes podem oppr resistencia agresso assassina.16
O ato de comer carne humana enquanto rito social tem sido notado em todas as partes
do mundo, exceto na Europa continental, explica Jay Slater (2006, p. 12). Nas notcias
supracitadas, identificamos similitudes entre o imaginrio acerca da lepra e o modelo
romeriano de horror, considerando as definies pejorativas concedidas aos hansenianos
(mortos-vivos, malditos, monstros) e o modo pelo qual, em certos casos, tentavam
transmitir a sua doena aos sos. Em suma, observamos arqutipos relacionados ao contgio e
impureza. Segundo Mary Douglas, a reflexo sobre esta ltima fruto do cuidado com a
higiene e do respeito pelas convenes que nos so prprias. Refere-se relao entre a
ordem e a desordem, o ser e o no-ser, a forma e a ausncia dela, a vida e a morte. A impureza
seria essencialmente a desordem, e esta, ao mesmo tempo, smbolo de perigo e poder (1991,
p. 114). Para a autora, concebemos a impureza como uma espcie de compndio de elementos
repelidos pelos nossos sistemas ordenados, ou seja, o impuro o que no est no seu devidolugar. Portanto, devemos abord-lo pelo prisma da ordem. O impuro, o poluente, aquilo
que no pode ser includo se quiser manter esta ou aquela ordem (1991, p. 55).
Prosseguindo com a argumentao, Douglas sugere que quanto mais examinamos as
regras e as condutas rituais de diversos povos, mais evidente se torna a concepo de que
estamos nos confrontando com sistemas do domnio simblico. A impureza nunca um
16 O fragmento citado foi transcrito tal qual aparece na matria Sobre o problema da lepra, datada de 17de novembro de 1929, de acordo do as normas ortogrficas vigentes na poca de sua publicao..
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fenmeno nico, isolado. Onde houver impureza, h sistema. Ela o subproduto de uma
organizao e de uma classificao da matria, na medida em que ordenar pressupe repelir
os elementos no apropriados (1991, p. 50).
[...] As nossas ideias sobre impureza esto dominadas pelo nosso conhecimento dosorganismos patognicos. No sculo XIX descobriu-se que as bactrias transmitemdoenas. Esta grande descoberta esteve na origem da evoluo mais radical damedicina. Transformou de tal maneira a nossa existncia que hoje nos difcilpensar na impureza sem evocar de imediato o seu carter patognico (DOUGLAS,1991, p. 50).
Uma gama de monstros da literatura representa arqutipos relacionados ao contgio,
ou seja, construes simblicas e metafricas que os conectam a determinadas doenas e
epidemias que assolam a humanidade desde os tempos mais remotos da histria. Sabe-se, por
exemplo, que outrora a anemia foi associada ao vampirismo. de certa forma interessante
observar que Drcula [1897] foi escrito no momento em que a moderna medicina estava
emergindo, e Bram Stoker misturou as crenas tradicionais sobre o sangue com a nova
medicina (MELTON, 1995, p. 691).
A ideia de fazer uma transfuso para rebater o vampiro introduziu uma novainquietao no crescente mito do vampiro no sculo XX, especialmente porque oselementos sobrenaturais do mito estavam sendo descartados. Se o vampirismo noera um estado sobrenatural e se, ao contrrio, era causado afinal por uma falhateolgica ou moral dos vampiros originais, ento era possvel que a sede de sanguefosse um sintoma de doena causada por um germe ou por uma perturbao qumicado sangue, ambos possveis de serem transmitidos pela mordida do vampiro. [...] Nodecorrer do sculo XX, e medida que os conhecimentos dos detalhes relativos funo e composio do sangue humano foram explorados pelos pesquisadores eespecialistas, os romancistas e roteiristas cogitaram que o vampirismo era umadoena (MELTON, 1995, p. 691-2).
Segundo a lenda citada em Ainda sobre o problema da lepra, os hansenianos
buscavam transmitir a sua doena atravs da mordida. Entre os brmanes havik, aponta
Douglas, o ato de comer pode transmitir impureza, mas a maneira de co mer que determina
a sua intensidade. A saliva polui [...] ao mais alto grau [...] (1991, p. 48). Alm desta, todas
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as secrees corporais seriam fonte de impureza, explica a autora, incluindo o sangue ou o pus
de uma ferida. Em analogia, talvez nenhum local seja mais emblemtico da fome insacivel e
da permeabilidade onipresente do que a boca dozombie. Por isso sempre pela boca que o
zombiese alimenta, e neste local que a fronteira fsica entre zombiee no-zombiese oblitera,
atravs da mordida (LAURO; EMBRY, 2008, p. 99). De acordo com Luiz Nazrio (1998),
um dos motivos para os mortos retornarem ao convvio social, no universo imaginrio, seria a
necessidade de arrebanhar, atravs do contgio, novos companheiros de tumba. Dessa
maneira, o vampiro multiplica sua espcie atravs da contaminao do sangue; os lobisomens
ezombies, por meio da mordida e da devorao do corpo. Em todos esses casos, no entanto,
parece insinuada a impureza de uma secreo corporal em particular, a saliva, por meio da
qual determinada magia ou contgio se opera. O autor prossegue:
Quando se processa num corpo humano, a transformao implica na perda deidentidade e/ou carter, na degradao fsica e/ou moral [...] Em casos assim, a
vtima escapa das leis naturais da condio humana para ver-se submetida a leisestranhas, ditadas com sinistra regularidade por uma lgica sobrenatural [...] Astransformaes so o efeito de um pacto com o demnio, de possesso, contgio,magia negra, experincia cientfica ou maldio [...] [que] abate-se sobre umindivduo que, depois, transmite seu mal por contgio (NAZRIO, 1998, p. 40).
Segundo Andrew Delbanco (apud GRUNENBERG, 1997, p. 202), conforme
perdemos contato com a ideia de Mal, parecemos necessitar de mais e mais representaes
desse conceito como se o mesmo fosse uma droga cujo potencial diminui com o uso.
Tendo em mente as implicaes fisiolgicas e sociais das doenas de difcil erradicao,
observemos o questionamento de Eco a respeito da possibilidade de o recurso ao feio ser
um meio de denunciar a presena do Mal: E se cyborg, splatter e mortos-vivos fossem
manifestaes de superfcie, enfatizadas pelos mass media, atravs das quais exorcizamos
uma feiura bem mais profunda que nos assola, nos aterra e que gostaramos de ignorar?
(ECO, 2007, p. 431). O autor continua:
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Na vida cotidiana somos cercados por espetculos horrveis. Vemos imagens depopulaes onde as crianas morrem de fome, reduzidas a esqueletos de barrigainchada, de pases onde as mulheres so estupradas por invasores, de outros ondecorpos humanos so torturados, assim como ressurgem continuamente sob nossosolhos as vises no muito remotas de outros esqueletos vivos espera de entrar em
uma cmara de gs. Vemos membros dilacerados pela exploso de um arranha-cuou de um avio em voo e vivemos no terror de que isso possa acontecer conosco.Tais coisas so feias, no apenas no sentido moral, mas em sentido fsico, issoporque suscitam nojo, susto, repulsa independentemente do fato de que possaminspirar piedade, desdm, instinto de rebelio, solidariedade, mesmo quando aceitascom o fatalismo de quem acredita que a vida nada mais que uma histria contadapor idiotas, cheia de som e fria e vazia de significado. Nenhuma conscincia darelatividade dos valores estticos elimina o fato de que, nestes casos, reconhecemossem hesitao o feio e no conseguimos transform-lo em objeto de prazer.Compreendemos ento por que a arte dos vrios sculos tem voltado com tantainsistncia a representar o feio. Por mais marginal que seja, sua voz tenta recordarque h neste mundo algo de irredutvel e maligno (ECO, 2007, p. 436).
Nos dias de hoje, explica Barry Glassner, a extenso dos medos humanos em relao
sade parece ilimitado, pois alm de nos preocuparmos com enfermidades autnticas, de
forma desproporcional, e com pseudo-doenas, de forma prematura, continuamos nos
afligindo com perigos j refutados. A questo que no mundo ocidental nascemos e
crescemos numa cultura de medo (2003, p. 11). O autor demonstra que algumas pessoas
ainda parecem se preocupar com a bactria comedora de carne, doena que veio tona em
1994 quando a imprensa americana reproduziu a manchete histrica de um tabloide britnico:
micrbio assassino comeu meu rosto. Dizia-se que a bactria, descrita como a coisa mais
cruel jamais vista nos tempos modernos, estava se alastrando rapidamente. [...] No entanto,
no estvamos tremendamente vulnerveis a esses supermicrbios, nem se tratavam do
pior pesadelo da medicina, como alertavam as vozes da mdia. Porm, mesmo aps o
alarmismo ter sido refutado por especialistas,17 o medo persistiu. Anos aps a onda inicial de
pnico, reportagens horripilantes continuavam a aparecer com fotos grotescas das vtimas
(GLASSNER, 2003, p. 21).
17 O estreptobacilo do grupo A, uma variedade cclica que existe h eras, ficou adormecido por meio
sculo ou mais antes de ressurgir. Especialistas mdicos refutaram veementemente o alarmismo, observando que
das 20 ou 30 milhes de infeces por bactrias que ocorrem todos os anos nos Estados Unidos, menos de umaem mil envolvem complicaes srias dessa pseudo-epidemia, e apenas de 500 a 1500 pessoas sofrem dasndrome da bactria comedora de carne, cujo nome correto fascete necrotizante. Glassner, Barry. Cultura domedo. So Paulo: Francis, 2003.
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2.1.2. Cidade dos Mortos
Admitindo o carter essencialmente corporal do zombie cinematogrfico e sua
conexo com diversas doenas, entre elas a peste bubnica, o cncer, a AIDSe at mesmo a
acne (DENDLE, 2001, p. 12), alm da lepra e da fascete necrotizante, observaremos o
conceito da tecnologia de poder surgida na segunda metade do sculo XVIII, denominada
biopoltica. De acordo com a definio foucaultiana,
Essa biopoltica no est preocupada apenas com a fertilidade. Tambm lida com oproblema da morbidez, mas no simplesmente [...] no nvel das famosas epidemias,as ameaas que tm assombrado os poderes polticos desde a Idade Mdia (essasfamosas epidemias foram desastres temporrios causadores de mltiplas mortes, emtempos nos quais todos pareciam estar sob o risco de morte iminente). No final dosculo XVIII, a questo no eram as epidemias, mas algo mais o que poderia seramplamente chamado de endemia, ou, em outras palavras, a forma, a natureza, a
extenso, a durao e a intensidade da doena prevalente em uma populao. Essaseram molstias difceis de serem erradicadas, consideradas no como epidemiascausadoras de mortes frequentes, mas como fatores permanentes que [...] minavam ovigor da populao, encurtando a semana de trabalho, despediam energia e custavamdinheiro, porque levavam a uma queda na produo e era caro trat-las(FOUCAULT, 1997, p. 244).
Lauro e Embry (2008, p. 100) compreendem a representao dozombieenquanto uma
ilustrao do esforo da humanidade em transferir para outrem a sua carga (nesse sentido, o
medo de doenas cada vez mais divulgadas). Assim, alm de simbolizar toda sorte de
infeces virais recorrentes, de ampla propagao e difcil erradicao, o zombie surge como
representao do indissocivel medo da morte. Entretanto, ultimamente a prpria morte
parece ser a doena, no a lepra ou a AIDS. A morte uma vrgula no meio de uma existncia
conturbada, [...] ao invs de um ponto final [...] (DENDLE, 2001, p. 12). No filme Fonte da
Vida( The Fountain, dir. Darren Aronofsky, 2006), o personagem Tom Creo (Hugh Jackman)afirma: A morte uma doena. Como qualquer outra. E existe uma cura [...]. Para Foucault,
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a morte deixou de ser algo que se abateu repentinamente sobre a vida como em uma
epidemia. A morte passou a ser, agora, algo permanente, algo que adentrou na vida e que
perpetuamente a corri, diminui e enfraquece (FOUCAULT, 1997, p. 244).
A imagem da morte e sua onipresena so constantes no legado romeriano. Veremos
ao longo deste estudo queA Noite dos Mortos-Vivosintroduziu uma srie de elementos que se
tornariam cnones do subgnero dos zombies: a epidemia mortal e inexplicvel, o medo da
morte, a desestruturao da sociedade, o poder poltico desarticulado, o esfacelamento dos
valores tradicionais da classe mdia, a desintegrao da instituio burguesa da famlia
nuclear, o universo de desconfiana, o silncio opressivo, a ineficcia dos meios de
comunicao, as casas abandonadas, os ambientes urbanos desertos e silenciosos, entre
outros. Percebemos que esses aspectos tambm so caractersticos das sociedades que
viveram o tempo da peste, entre os sculos XIVe XVII. Observaremos a seguir alguns trechos
do captulo de Histria do medo no Ocidentededicado doena, grifando os elementos que
aproximam o modelo romeriano de horror ao imaginrio da peste.
Os escritos do religioso portugus F. de Santa-Maria, datados de fins do sculo XVII,
representam um bom testemunho das imensas perturbaes que a peste provocava nos
comportamentos cotidianos:
A peste sem nenhuma dvida, entre todas as calamidades desta vida, a maiscruel e verdadeiramente a mais atroz. com grande razo que chamada porantonomsia de o Mal. Pois no h sobre a terra nenhum mal que seja comparvel esemelhante peste. Desde que se acende num reino ou numa repblica esse fogoviolento e impetuoso, vem-se os magistrados atordoados, as populaesapavoradas, o governo poltico desarticulado. A justia no mais obedecida;os ofcios param; as famlias perdem sua coerncia e as ruas, sua animao. Tudofica reduzido a uma extrema confuso. Tudo runa. Pois tudo atingido e reviradopelo peso e pela grandeza de uma calamidade to horrvel. As pessoas, semdistino de estado ou de fortuna, afogam-se numa tristeza mortal. Sofrendo, umasda doena, as outras do medo, so confrontadas a cada passo ou com a morte,ou com o perigo. Aqueles que ontem enterravam, hoje so enterrados e, por vezes,por cima dos mortos que na vspera haviam posto na terra.Os homens temem at oar que respiram. Tm medo dos defuntos, dos vivos e de si mesmos, pois que amorte muitas vezes envolve-se nas roupas com que se cobrem e que maioriaservem de mortalha, em razo da rapidez do desfecho [...]. As ruas, as praas, asigrejas cobertas de cadveres apresentam aos olhos um espetculo pungente,
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cuja viso torna os vivos invejosos da sorte daqueles que j esto mortos. Os locaishabitados parecem transformados em desertos e, por si s, essa solidoinusitada aumenta o medo e o desespero. Recusa-se qualquer piedade aos amigos,j que toda piedade perigosa. Estando todos na mesma situao, mal se temcompaixo uns dos outros. Estando sufocadas ou esquecidas, em meio aos horrores
de to grande confuso, todas as leis do amor e da natureza, as crianas sosubitamente separadas dos pais, as mulheres dos maridos, os irmos ou osamigos uns dos outros ausncia desoladora de pessoas que so deixadas vivas eque no se voltar a ver (SANTA-MARIA apud DELUMEAU, 2002, p. 121-2).
Certamente importante dentro da iconografia do modelo romeriano a imagem da
cidade sitiada pela doena. No contexto da peste, Jean Delumeau aponta que a cidade
posta em quarentena, se necessrio cercada pela tropa, confrontada com a angstia
cotidiana e obrigada a um estilo de existncia em ruptura com aquele a que se habituara.
Dentro desse ambiente, os quadros familiares so abolidos e a insegurana nasce no apenas
da presena da doena, mas tambm de uma desestruturao dos elementos que construam o
meio cotidiano. Tudo outro. Antes de mais nada, a cidade est anormalmente deserta e
silenciosa. Muitas casas esto doravante desabitadas (DELUMEAU, 2002, p. 120).
Podemos observar a presena dessa imagem em pelo menos trs filmes de Romero:Zombie
O Despertar dos Mortos (1978), Dia dos Mortos (Day of the Dead, 1985) e Terra dos Mortos
(Land of the Dead, 2005); e tambm em obras importantes que constituem o seu legado, como
Extermnio ( 28 Days Later, dir. Danny Boyle, 2002), a srie em quadrinhos Os Mortos-Vivos
(2003-) e os gamesResident Evil 2 (1998) e Resident Evil 3: Nemesis (1999).
Cortados do resto do mundo, os habitantes afastam-se uns dos outros no prpriointerior da cidade maldita, temendo contaminar-se mutuamente. Evita-se abriras janelas da casa e descer rua. As pessoas esforam-se em resistir, fechadas emcasa, com as reservas que se pode acumular. [...] muitos so bloqueados em suacasa declarada suspeita e doravante vigiada por um guarda, ou at trancada compregos ou cadeado. Assim, na cidade sitiada pela peste, a presena dos outros jno um reconforto. A agitao familiar na rua, os rudos cotidianos que ritmavamos trabalhos e os dias, o encontro do vizinho na soleira da porta: tudo issodesapareceu. D. Defoe constata com estupor essa falta de comunicao entre oshomens que caracteriza o tempo da peste [...] (DELUMEAU, 2002, p. 122).
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A Noite... parece reunir todos os principais elementos desse imaginrio acerca da
peste. Veremos no prximo captulo, em nossa anlise do primeiro filme de Romero, que os
personagens humanos tentam resistir ao ataque dos mortos-vivos trancando-se numa casa de
fazenda abandonada, selando as portas e janelas com tbuas de madeira. Sabem que no
podem contar com os meios de comunicao nem com os seus governantes. O prprio
cineasta declarou que o seu filme trata, especificamente, da falta de comunicao entre as
pessoas (HERVEY, 2008, p. 75). A tenso entre os personagens Ben (Duane Jones) e Harry
Cooper (Karl Hardman) tambm representativa do universo de desconfiana presente numa
crnica italiana da peste de 1630, recopiada por Manzoni:
[...] Enquanto as pilhas de cadveres, amontoados sempre sob os olhos, [...] faziamda cidade inteira uma vasta sepultura, havia algo de mais funesto, de mais hediondoainda: era a desconfiana recproca, a monstruosidade das suspeitas [...]. No sesuspeitava apenas do vizinho, do amigo, do hspede: esses doces nomes, essesternos laos de esposo, de pai, de filho, de irmo eram objetos de terror; e, coisaindigna e horrvel de dizer, a mesa domstica, o leito nupcial eram temidos comoarmadilhas, como locais onde se escondia o veneno (DELUMEAU, 2002, p. 123).
2.2. Perspectiva do Mundo Estranhado
A causa do despertar dos mortos no explicada, emA Noite..., apenas sugerida sob
a forma da suposta radiao misteriosa de uma sonda espacial que retornou de Vnus. De
acordo com Todorov (2007, p. 47), o gnero do fantstico ocorre nesta incerteza e dura
apenas o tempo de uma hesitao, esta comum ao leitor e personagem, que devem decidir se
o que percebem depende ou no da realidade.
Somos assim transportados ao mago do fantstico. Num mundo que exatamente onosso, aquele que conhecemos [...], produz-se um acontecimento que no pode serexplicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar
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por uma das duas solues possveis; ou se trata de uma iluso dos sentidos, de umproduto da imaginao e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que so; ouento o acontecimento realmente ocorreu, parte integrante da realidade, mas nessecaso esta realidade regida por leis desconhecidas para ns [...] (TODOROV, 2007,p. 30).
No caso do nosso objeto de estudo, a hesitao se d em relao ao espectador e aos
personagens do filme, dentre os quais destacamos os protagonistas Barbra (Judith ODea) e
Ben (Duane Jones). Sabemos que o retorno vida de cadveres no enterrados no pode ser
explicado pelas leis da natureza tais como so conhecidas. Ento, a obra de Romero parece
adentrar no campo do fantstico-maravilhoso,
[...] classe das narrativas que se apresentam como fantsticas e que terminam poruma aceitao do sobrenatural. Estas so as narrativas mais prximas do fantsticopuro, pois este, pelo prprio fato de permanecer sem explicao, no racionalizado,sugere-nos realmente a existncia do sobrenatural (TODOROV, 2007, p. 58).
A despeito dessa aproximao com o gnero do fantstico-maravilhoso, Todorov
(2007, p. 26) observa que uma obra pode [...] manifestar mais de uma categoria, mais de um
gnero. Contudo, levando em conta a indeterminao deA Noite..., aspecto presente em toda
a obra de Romero, faz-se necessrio observar o teor grotesco de seu primeiro filme, no
domnio de sua recepo partindo da perspectiva do mundo estranhado.
O fato de o grotesco apontar para os trs domnios, o processo criativo, a obra e a
sua recepo, significativo e corresponde s coisas, indicando que o conceitoencerra o instrumento necessrio a uma noo esttica fundamental. Pois esteaspecto trplice prprio, em geral, de toda a obra de arte que criada, palavra a seraqui entendida em oposio expressa a outras espcies de produo. Esta obrapossui uma estrutura de carter especial, que a capacita a perdurar em si mesma, pormais que nela haja infludo aquilo que lhe deu azo, pois ela dispe da fora paraelevar-se acima da ocasio. Finalmente, porm, a obra de arte recebida empregamos aqui o termo tendo tambm em vista outros que designam modalidadesdiferentes de uso do idioma; s no ato da recepo possvel experiment-la, pormodificante que seja o ato (KAYSER, 1986, p. 156).
De acordo com Wolfgang Kayser, o grotesco o mundo alheado, ou seja, o mundo
tornado estranho. Mas isto exige uma explicao. O mundo dos contos de fadas, quando visto
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de fora, poderia ser caracterizado como estranho e extico. Mas no um mundo alheado.
Para pertencer a ele, preciso que aquilo que nos era conhecido e familiar se revele, de
repente, estranho e sinistro. Pois foi o nosso mundo que se transformou (1986, p. 159).
O repentino e a surpresa so partes essenciais do grotesco. [...] O horror nos assalta,e com tanta fora, porque precisamente o nosso mundo cuja segurana se nosmostra como aparncia. Concomitantemente, sentimos que no nos seria possvelviver neste mundo transformado. No caso do grotesco no se trata de medo damorte, porm de angstia de viver. Faz parte da estrutura do grotesco que ascategorias de nossa orientao no mundo falhem. Desde a arte ornamentalrenascentista, observamos processos de dissoluo persistentes, como a mistura dedomnios para ns separados, a abolio da esttica, a perda da identidade, a
distoro das propores naturais e assim por diante. Deparamo-nos agora comnovas dissolues: a suspenso da categoria de coisa, a destruio do conceito depersonalidade, o aniquilamento da ordem histrica (KAYSER, 1986, p. 159).
Mas quem efetua o estranhamento no mundo, quem se anuncia no plano de fundo
ameaador?, indaga-se Kayser. Para o autor, a partir dessa questo que alcanamos a
profundeza ltima do horror ante o mundo transmutado, pois as perguntas ficam sem resposta.
Isso se d justamente porque as plasmaes do grotesco constituem a contradio mais
ruidosa e evidente a todo racionalismo e a qualquer sistemtica do pensar (1986, p. 161).
Do abismo surgem os animais do apocalipse, demnios irrompem na vidacotidiana. To logo pudssemos nomear os poderes e assinalar-lhes um lugar naordem csmica, o grotesco perderia algo de sua essncia [...]. O que irrompepermanece inconcebvel, impessoal (KAYSER, 1986, p. 159).
Kayser sustenta que o elemento mecnico se faz estranho ao ganhar vida; o elemento
humano, ao perder a vida. So motivos duradouros os corpos enrijecidos em bonecas,
autmatos, marionetes, e os rostos coagulados em larvas e mscaras (1986, p. 158).
Aplicamos essa definio ao modelo romeriano de morto-vivo, que existiria dentro de um
mundo estranhado em funo da indeterminao de sua gnese.
O mundo estranhado no nos permite uma orientao, aparece como um absurdo.Vemos a diferena em relao ao trgico, pois tambm o trgico agasalha
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inicialmente o absurdo. Depreendemo-lo das clulas germinais trgicas da tragdiagrega: absurdo, quando uma me mata os filhos, quando um filho mata a sua me,quando um pai mata um filho, quando a carne dos filhos serve de comida paraalgum [...]. Mas de incio se tratam de aes isoladas. Alm do mais, so aesque parecem ameaar de destruio os princpios da ordem moral de nosso mundo.
No caso do grotesco no se trata de aes que, como tais, estejam isoladas, nem dadestruio da ordem moral do universo (esta pode constituir um elemento parcial):primordialmente a questo do fracasso da prpria orientao fsica do mundo(KAYSER, 1986, p. 159).
Kayser fala da destruio da ordem moral, do absurdo que seria um filho matar a sua
me. O matricdio, em A Noite..., parece funcionar como um registro da morte da famlia
nuclear. Hervey (2008, p. 102) resume uma das cenas finais do filme. Aos 84 minutos,
Romero corta para o poro de forma contundente: Harry (Karl Hardman) est morto e lhe
falta um brao. Karen (Kyra Schon) ajoelha-se sobre ele com sangue na boca, devorando a
carne de seu pai. Helen (Marilyn Eastman) adentra no nauseante momento ntimo,
reagrupando a famlia nuclear, e Karen cambaleia em sua direo. Helen ainda no se deu
conta da morte do marido e da transformao da filha. Quando tropea, permanece no cho e
mal tenta escapar. Karen escolhe uma esptula afiada e se aproxima. Ento, da perspectiva de
Helen, a menina eleva-se como um pai quando castiga o filho. No vemos a esptula perfurar
Helen mais do que o suficiente ver os jorros de sangue e ouvir a carne se rasgando.
2.3. Anti-Sujeito | Crise da Corporeidade
Um ponto fundamental do Manifesto Zumbi a suposta existncia, defendida por
Lauro e Embry, de uma tenso implacvel entre o capitalismo global e a escola terica do
ps-humanismo (2008, p. 86-7). Partindo dessa assero, as autoras buscam desenvolver um
modelo de zumbi ainda inexistente, um ser desprovido de conscincia, um organismo-enxame
que consistiria numa experimentao mental que expe os limites da teoria ps-humana ao
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demonstrar que a ps-humanidade s pode ser alcanada atravs da morte do sujeito. O
inconcilivel corpo do zombie (tanto vivo quanto morto) provocaria a insuficincia do
modelo dialtico (sujeito/objeto), sugerindo com sua prpria dialtica negativa, que a nica
maneira de atingir verdadeiramente a ps-humanidade tornar-se anti-sujeito (2008, p. 87).
O zombie fala ansiedade humana sobre o seu isolamento dentro do corpoindividual, e nossa mortalidade satirizada pela grotesca provocao dozombie paracom a existncia humana, colocando em questo o que mais terrvel: a separaodefinitiva de nossos companheiros humanos, ou a fantasia distpica de umorganismo-enxame. O que podemos perceber ao examinar a trajetria histrica daevoluo zumbi que os nossos medos, os impulsos mediados que traduzem a nossa
maquiagem psicolgica, so narrativas informadas pelas condies materiais dasociedade (LAURO; EMBRY, 2008, p. 101).
Lauro e Embry propem uma leitura do zombieque muito tem a revelar sobre a crise
da corporeidade humana, a forma como o poder funciona, e a histria da opresso e da
subjugao para com os Outros. Esses pontos sero esmiuados nos prximos tpicos deste
captulo. Partindo dessa anlise, as autoras observam o zombiedesde as suas origens haitian
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