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PERSONAGENS
Lucas
Locutores da Rádio Internacional
ATO ÚNICO
Cenário vazio. Radinho colocado sobre os blocos
empilhados, está ligado. Ruído forte de ferro batendo,
ordenando o início do período de trabalho em edifício em
construção.
RÁDIO (Música de prefixo esportivo da emissora) - É
bestial, sensacional, / O gol na
Internacional. / É um furor, é furta-cor /
A voz do nosso locutor. / Dá mais tesão,
mais emoção / E pode ser até fatal, /
Ouvir a nossa seleção / Pelo som da
Internacional, / Onde o jogo é sempre
legal.
LOCUTOR (Sobre acordes finais do prefixo) - Boa tarde,
querida torcida brasileira. Boa tarde,
meu amigo, boa tarde minha amiga.
Estamos novamente unidos pelas ondas
sonoras da sua Internacional - onde o
jogo é sempre legal - nesta data gloriosa
para o esporte pátrio, quando todos
estaremos mais uma vez irmanados,
formando aquela corrente de pensamento
positivo para a frente, para a frente,
para a frente e para o alto, com os
corações batendo compassados na mesma
sintonia de fé nos destinos da gloriosa
seleção canarinho, que representará,
mais uma vez, em gramados europeus e
perante o mundo, o brio, a honra, a
tradição, a força e a esperança de mais
de cem milhões de patriotas, confiantes
na avassaladora potência do futebol-arte
da nossa terra! Pelo nosso infalível
Cronomag Perpétuo são 16 horas em
ponto aqui em Frankfurt, portanto, 14
horas de Brasília. Dentro em pouco
menos de duas horas, nossa seleção estará
tentando assegurar sua classificação
para as semi-finais desta Copa do Mundo,
e nós como todos vocês, queridos ouvintes,
estaremos vibrando mais uma vez ao
lado dos nossos valorosos craques. Em
nosso primeiro boletim desta tarde,
diretamente do Velho Mundo, queremos
reiterar nossa irrestrita confiança na
raça, na garra, na valentia e na
capacidade ilimitada dos canarinhos tri-
campeões do mundo, que certamente
saberão repetir hoje as heróicas jornadas
do México, de Santiago e de Estocolmo,
erguendo mais alto o nome de nossa
pátria. (Acordes musicais. Entra em cena
Lucas, empurrando um carrinho de
massa. Sobre a massa, espetada a
bandeirinha de papel do Coríntias.
Acende um cigarro e começa a preparar
as ferramentas para o trabalho até o
final da locução) Faz um dia lindo, lindo,
lindo neste quase anoitecer romântico. O
sol poente da tarde de outono europeu
ilumina o alto dos brilhantes edifícios
desta cidade encantadora e acolhedora,
que tão gentilmente tem agasalhado e
incentivado nossos patrícios. A
temperatura local é amena: apenas 16
graus centígrados. O céu está muito azul,
prenunciando um maravilhoso
crepúsculo para a hora do início do
espetáculo. O escrete nacional ainda não
está escalado para a partida desta noite.
Tão logo nos seja fornecida a escalação
dos onze canarinhos, voltaremos a
chamar o Brasil, para informar nossos
ouvintes sempre em primeira mão. Até
lá, mantenhamos nossos corações
voltados para o alto, confiando em que
logo mais as cores de nossa seleção
tremularão radiantes nos maravilhosos
céus deste Velho Continente. Deus é
brasileiro, torcida amiga. Confiemos em
sua proteção. Ele, na sua infinita
sabedoria, saberá dar a inspiração
necessária aos nossos craques, para que
eles encontrem, definitivamente, o
caminho das redes inimigas. Continuem
em sintonia com a Internacional - onde o
jogo é sempre legal! Alô Brasil! Alô
estúdio! (Volta a marchinha do prefixo
da emissora. Lucas desliga o radinho.
Tira a bandeirinha de cima do carrinho
de massa e continua assobiando a
marcha de prefixo da emissora. Não sabe
onde colocar a bandeirinha. Olha em
volta, sentindo-se meio ridículo com a
bandeirinha na mão. Tira o capacete e
prende nele a bandeirinha. Acalma-se,
pega as ferramentas e começa a assentar
os blocos no chão, formando a base do
muro).
LUCAS (Parando de assobiar e falando consigo mesmo,
enquanto trabalha) - Calma, calma, cara,
calma Lucas... Não adianta nada ficar
nervoso. O melhor mesmo é fazer aquilo
que o engenheiro disse: "trabalhar com
calma e com cuidado até a hora do jogo,
para evitar qualquer acidente" e na hora
do jogo, então sim, parar com o trabalho
onde estiver, para escutar folgado a
partida. Até lá, é bobagem se afobar. Só
faltam duas horas. Duas horinhas. É
tempo demais para um cara agüentar
nervoso, fumando sem parar, gastando
cigarro sem serventia e jogando dinheiro
fora. (Apaga o cigarro, que estava
terminando) Pronto, já acabou o
primeiro depois da bóia. (Olha o maço)
Puxa! Como eu fumei hoje cedo! Estão
sobrando só três. Mais duas horas, um
por hora e vá lá... é mais do que
suficiente. Quando esse muro estiver por
aqui, mais ou menos na metade, eu
acendo outro. Até lá a ordem é agüentar.
Só prestar atenção no trabalho, como o
engenheiro disse. Assim: um bloco bem
assentado, massa, bastante massa, outro
bloco, com cuidado, pensando só no
trabalho para não lembrar do jogo, que o
tempo assim passa mais depressa. Bloco.
Massa. Outro bloco. Isso. Devagar. Com
muito carinho, prestando atenção só no
trabalho, só no muro... um muro bem
feito, um muro bem forte, um muro bem
firme para agüentar o peso da caixa
d'água do prédio, um muro bem
caprichado, bloco depois de bloco, sem
pensar em mais nada, bloco depois de
bloco, sem pensar em futebol, bloco depois
de bloco, sem pensar na seleção, bloco
depois de bloco, sem pensar em porra
nenhuma, que não seja essa porra desse
muro, feito com essas porras desses blocos,
um depois do outro, com essa porra dessa
massa, bloco depois de bloco, com essa
porra dessa calma de quem é capaz de
não pensar nessa porra de futebol...
(Começa a assobiar, sem querer, o prefixo
da emissora, cantarolando alguns versos
e tentando se controlar) Será que eu não
sou capaz de esquecer essa bosta de jogo?
Mas que merda! (Continua a assobiar.
Pausa) E se o Brasil não ganhar hoje,
hein Lucas? De que adiantou todo esse
nervoso, hein? Me conta? Ah... você sabe
que o Brasil ganha sim, tem que ganhar...
Tem obrigação de ganhar! Eu apostei
uma cerveja com o vigia da obra como
ganha. E ainda dei um de lambuja.
(Pausa) Pensando bem, eu acho que sou
meio louco. Para que dar um de lambuja?
Ele nem estava pedindo... a culpa é desse
orgulho, desse entusiasmo que a gente
fica. A culpa é do rádio que fica pondo
fogo na gente. (Para o rádio) Se eu perder
essa cerveja, a culpa é sua, ouviu bem? A
culpa é toda sua, que eu nem estava com
dinheiro sobrando para apostar cerveja
com ninguém... Mas eles devem ter razão.
Eu não sou louco nada. O Brasil vai
ganhar hoje. É só aquele desgraçado
mudar o time... e se ele não mudar? Ele
tem que mudar! Ele sabe que se não
mexer no time a gente nunca vai ganhar
desses gringos! E depois se a seleção
perde... não vai perder, não vai perder,
eu tenho certeza de que não vai perder!
(Pausa. Para de trabalhar) Mas se
perder, porque aquele cachorro não
mexeu no time, eu juro que eu vou... eu
nem sei bem o que é que eu juro que vou
fazer... mas eu juro que eu queria que ele
passasse ali em baixo, bem aqui em baixo,
andando devagarinho nessa calçada... aí
eu juro que ia acertar uma tijolada bem
na cabeça do bagre. Com toda pontaria.
Para abrir ele pelo meio. Eu ia esperar
ele chegar bem devagarinho, com toda a
calma, não pensando em mais nada,
assim... depois era só soltar o bloco na
cabeça do burro! Fiummm... bam! Ia
esparramar merda pela calçada inteira!
Isso sim é que era um desabafo! (Percebe
que está em pé, na beira do palco,
olhando para baixo. Cai em si) Mas que
porra! O jogo ainda nem começou e eu já
estou querendo matar o homem. E se o
Mestre me vê parado aqui em cima, com
esse bloco na mão? Era capaz de me
despedir... O Mestre até que não, mas o
engenheiro, se estivesse aqui... Eta cabeça
fodida! Quando a gente começa a
imaginar as coisas pelo pior... o melhor é
mudar de assunto na imaginação. Pensar
em outra coisa. Pensar em mulher.
Pensar em mulher é sempre bom. Mas o
melhor ainda é pensar na cerveja que eu
vou ganhar do Pedro vigia. Isso sim.
Pensar na cerveja que eu vou gozar na
cara do Pedro, depois do jogo. E voltar já
para o trabalho. E só pensar no trabalho.
E tocar para cima essa porra desse
murinho lindo. Com toda atenção, porque
"evitar acidentes é o dever de todos!"
(Continua a colocar os blocos. Cantarola)
Evitar acidentes é o dever de todos, é o
dever de todos, é o dever de todos...
(Pausa) Bem que podia ter mais um
infeliz trabalhando comigo aqui em cima.
Pelo menos dava para a gente ir
puxando um papo. Falar de outra coisa.
Do trabalho, do dinheiro, da mulher, dos
filhos... Besteira. A gente ia acabar
mesmo era falando de futebol. Hoje não
tem jeito. Acho que foi por isso mesmo
que o Mestre espalhou todo mundo pela
obra. Arranjou um trabalho diferente
para cada um. Deve ter sido idéia do
engenheiro. Agora, está cada um num
canto. E o palhaço aqui veio parar bem
em cima, longe de todo o mundo... É, vai
ver que assim é mesmo melhor. Do jeito
que todo mundo está nervoso hoje era
bem capaz de sair uma briga igual à do
outro dia, antes do jogo. Também quem
mandou aquele lazarento de paraibano
boca-de-praga ficar agourando a manhã
inteira. Encheu o saco da obra! "Porque a
seleção não ganhava, porque não ia
ganhar, porque os gringos isso, porque os
gringos aquilo, porque em 70 tinha o
crioulo, porque se o crioulo estivesse lá..."
Bem feito. Tanto encheu que tomou com
um caibro na cabeça meia hora antes do
jogo começar. Acabou com a festa dele.
Ninguém disse quem bateu e o
desgraçado foi ouvir o jogo no Pronto
Socorro das Clínicas. Mudo e com a cara
quebrada. Fodido e mal pago. Bem feito,
para o boca-de-praga aprender...
Lazarento! Acabou sofrendo um "acidente
de trabalho". Um puta acidente de
trabalho, bem no meio da testa. (Pausa)
Mas nem por isso o time ganhou... Ainda
bem que despediram o cara. O Mestre
manjou muito bem o tipo de acidente do
trabalho que tinha sido. Fez uma trouxa
com as roupas do veado e ele nem voltou
mais para a obra. É... mas acho que foi
por causa disso que hoje eles escalaram
um de cada canto do prédio, bem antes
do jogo. Escalaram, escalaram... será que
o homem já escalou o time? Deixa eu ver!
(Vai ligar o radinho, para e pensa)
Calma, Lucas. Calma. O mundo inteiro
sabe que o homem só dá a escalação bem
na horinha de começar o jogo. Deixa eu
acender mais um cigarro. Não tem
importância que o muro ainda não esteja
aqui. Faz de conta que já chegou. É
melhor fumar mais um cigarro do que
ouvir essas bestas que não dizem nada e
só fazem a gente ficar ainda mais
nervoso. Agora vão sobrar só mais dois
cigarros. Não tem importância. Até a
hora do jogo vai dar. O pior é sempre
agora: antes. Depois a gente dá um jeito.
Fila de um, fila de outro. E na hora do gol
ninguém recusa cigarro para ninguém.
Mesmo que seja o último. (Acende o
cigarro. Levanta-se e olha em volta.
Pausa) Eta mundaréu de cidade! É obra
para todo lado. Graças a Deus, trabalho
agora é o que não falta. Bendito BNH!
Bendito progresso! Bendito país! Por onde
a gente passa tem placa pedindo:
servente, pedreiro, pintor, ajudante... E
estão pagando o preço que a gente pede.
Principalmente se o cara tem
experiência, que nem eu. Só daqui dá pra
ver... deixa eu contar... acho que mais de
umas trinta obras! Os homens têm que
cumprir os prazos, então eles precisam
da gente. Tanto quanto o bloco, cimento e
areia. É o prazo que faz o preço... graças
a Deus! Será que está todo mundo
trabalhando agora como eu? Lá, naquele
prédio da outra rua, tem um negrão
trabalhando nesse mesma altura.
Trabalhando uma porra, que ele está
parado, que nem eu. Fumando. Coçando a
cabeça. Coçando o saco. Está nervoso,
veado? (Gritando) Está nervoso, crioulo
bicha? Ei, crioulo! Olha para cá! (Molha o
dedo na boca e levanta) Não adianta
gritar. O vento está soprando para lá.
Mas que ele está nervoso, está. Com o cu
na mão, eu garanto. Também, hoje ele
pode ficar parado um pouco que ninguém
vai despedir ninguém. Se tiver
experiência então? Ninguém se mete.
Antigamente a barra era outra. Atrasou,
desconto. Parou de trabalhar, despedido.
Nem mijar a gente podia. Quando queria
descansar tinha que ficar fazendo pose de
quem estava trabalhando. Assim.
Abaixando e levantando. Sem fazer
nada. (Grita) Ei, crioulo cagão! Está com
medo, veado? Olha para cá! Para de
pensar e trabalha que é melhor! Trabalha
vagabundo, que pensar não serve para
nada! (Pausa) Acho que ele me ouviu.
Está começando a trabalhar, o
vagabundo. (Cai em si) Coitado...
vagabundo coisa nenhuma. Ele está tão
nervoso como eu... Esse cigarro também
já foi para as picas... (Apaga o cigarro e
recomeça a trabalhar, cantarolando)
Evitar acidentes é o dever de todos, é o
dever de todos, é o dever de todos... ainda
mais com eu aqui em cima! Vai que um
veado joga um cigarro aceso naquele
madeirame lá em baixo. Adivinha quem
é que se fode? Adivinha, Lucas? Quem se
fode é quem está aqui em cima. Essa é a
única hora em que se fode quem está em
cima. Vê lá se numa hora dessas aparece
algum helicóptero para tirar alguém
daqui... com jogo da seleção para começar
nem Corpo de Bombeiros vem apagar
incêndio... quanto mais helicóptero! Se
pegasse fogo agora nessa porra de obra,
eu ia virar churrasquinho de mãe... ou
me esborrachar lá embaixo, naquela
bosta de calçada. (Continua a trabalhar.
Brincando) Um bloquinho. Massa. Mais
outro bloquinho. Mais um pouco de
massa. Um bloquinho aqui para o senhor.
Outro bloco ali para o cavalheiro. Está
sobrando bloco para todo mundo. Não
requer prática nem habilidade. Mais um
bloco aqui. Outro ali. (Pausa) Será que eu
tinha coragem de pular? Sei lá o que é
pior: morrer torrado ou morrer
esborrachado... Pensando bem, acho que
esborrachado deve ser melhor. Mas só em
caso de fogo, é claro. Eu nunca vi
ninguém morrer queimado, só nos jornais
e na televisão. Mas eu já vi mais de meia
dúzia que se despencaram sem querer
daqui de cima. Desse prédio, nenhum,
graças a Deus, mas em quase vinte anos
de serviço isso acaba sendo normal. A
gente até que se acostuma. Um dia o
cabra descuida, tropeça, escorrega,
quebra a corda, cai o balancim e aí... é
melhor nem pensar nisso. Fico todo
atrapalhado só de lembrar o grito dele. O
grito é sempre igual. E o barulho do corpo
se esborrachando lá em baixo. Barulho
seco. Bam! Parece um soco na terra.
Grito, barulho e depois silêncio. Ninguém
se mexe mais na obra. Todo mundo sabe
de ouvido, o que foi que aconteceu. O
povo lá embaixo corre, mas a gente olha.
Para que olhar? O máximo que a gente
faz é olhar para cima. Para ver quem
está faltando. E, às vezes, tudo o que a
gente vê é um andaime caído, um
balancim pendurado, uma tábua
balançando no vento. Então a gente só
calcula o andar. Foi no oitavo, foi no
décimo... E mais ou menos a gente fica
sabendo quem pode ter sido. Só mais
tarde alguém confirma. Foi esse, foi
aquele. Aí o rabecão vem e leva o morto.
Alguém conserta a corda, prega o
andaime, todo mundo faz de conta que
não aconteceu nada e a obra vai em
frente. Mas olhar para baixo na hora do
grito, eu não olho, que sei muito bem que
podia ter sido comigo. Pode acontecer
com qualquer um. Pode acontecer com
aquele negrão vagabundo lá na frente... o
danado continua trabalhando.
Fiummm... bam! O grito e o soco são
sempre os mesmos. Sempre iguais. É...
pensando bem, acho que preferia morrer
de queimado... (Pausa) Sai azar! (Bate na
madeira) Cada merda de idéia que vem
na cabeça da gente numa hora dessas!
Tudo por causa da porcaria de um jogo
de futebol. Bom... mas até que com essa
idéia de morrer eu me esqueci do jogo.
Está aí. Pensando em morrer, a gente não
pensa em futebol. Pensar em morte é até
melhor do que pensar em mulher. Distrai
menos e o tempo passa mais depressa. E
depois eu tenho lá tempo para pensar em
mulher? Já chega a que eu tenho em casa.
Ela e os filhos. Só de pensar neles já me
esquenta a cabeça. Se eu caísse, quem é
que ia agüentar as pontas para o arroz e
o feijão da ninhada? Quem? O Papa? O
Pelé? O Fittipaldi? Eu, hein?... Só de olhar
para baixo eu às vezes me arrepio
inteiro. Por isso o melhor é a gente não
olhar nunca. Fazer de conta que está
sempre no primeiro andar, no térreo, lá
em baixo, junto da terra, de pé no chão.
Quanto mais cagão é um cara, mais ele se
fode. Quem tem medo treme, quem treme
tropica e quem tropica despenca...
Fiummm, bam! (Ruído de um rojão
explodindo perto do prédio) Veado!
Cachorro! Filho da puta! Isso é hora de
soltar rojão? Quase me mata de susto!
Cornudo! Corno! Filho de uma vaca! Está
querendo que eu caia daqui de cima, seu
lazarento? Só se for na sua cabeça,
chifrudo de merda! (Senta-se) Que puta
susto, meu saco! Quase morro do coração!
(Olha em frente) Porra, que sarro! O
crioulão também se assustou todo. Está
xingando os caras lá em baixo. Está com
jeito de quem se borrou todo, o crioulão.
Aí negrão! Dá duro neles! Xinga mesmo
aqueles afobados. Isso é lá hora de soltar
foguete? (Pausa) Acho que agora ele me
viu. (Acena) Ei, crioulão! Assustou?
Assustou, bichona? Quase que nós...
(Gesto). Ó, para você também, que eu vi
tua cara de medo. Você está com o rabo
na mão. Assim, não é crioulão... (Gesto)
Então, vê se me entende. (Aponta para
baixo. Soletra, com o movimento dos
lábios, mas sem falar) São todos uns filhos
da puta! (Pausa) Isso ele entendeu sem eu
falar. (Ri) Agora vamos trabalhar,
negrão. Deixa eles para lá. Daqui a
pouco, quando começar o foguetório, a
gente também para de trabalhar. Pela
barulheira se percebe quando o jogo está
para começar. Na hora em que o time
entra em campo é aquela zona. Foguete
pelo céu inteiro. E na hora do gol, então,
nem se fala. Aqui de cima é mais bonito
de se ver. Primeiro a gente só enxerga a
fumaça, depois a explosão. Fiummm...
bam! (Pausa) É... Fiummm, bam. Quase o
mesmo barulho. Merda! É melhor eu
tocar logo essa droga de muro. E não
pensar em mais nada. Um bloco. Massa.
Acabamento. Outro bloco. Mais massa.
Acabamento. Bastante massa que é para
o muro ficar bem forte e agüentar o peso
da caixa d'água. Cinqüenta mil litros! É
água para cacete! Dava para apagar
qualquer incêndio. Um bloco. Outro bloco.
Massa. Depois os pilares. Um em cada
ponta para reforçar o muro. Bloco.
Massa. Bloco. Massa. No tempo em que só
havia tijolo, o trabalho era maior. A obra
sempre demorava mais. Em
compensação, a gente ganhava menos. Ou
não? Bloco. Massa. Sei lá. Acho que a
gente ganhava a mesma coisa. Bloco.
Massa. Mais massa. Agora eu sei que tem
mais trabalho, trabalho para todo
mundo. Bloco. O trabalho eu sei que
aumentou. Mas o dinheiro... é, parece...
tem umas horas em que parece que o
dinheiro também aumentou.
Principalmente de noite, na frente da
televisão. Aí a gente sente que o dinheiro
parece que aumentou... Um bloco. Mais
outro. Hoje, à noite, eu vou ver o video-
tape da seleção. Devagar, Lucas. Mais
massa. Minha mulher acha que não, que
está tudo na mesma. Ainda bem que o
Antonio e o Jonas já estão trabalhando.
Mais um bloquinho aqui. Se não fosse o
dinheiro deles, pingando todo o fim de
mês... a televisão eu pagava com o meu
salário, mas o resto, não sei não. Ainda
faltam dez, não, onze prestações. Mais
onze prestações e a gente acaba de pagar
a televisão. Isso se o carnê não for
sorteado... Bem que podiam sortear o
número da gente. Eu não precisava
pagar mais nenhuma prestação e ainda
ia aparecer com a patroa na televisão. E
concorrer para aquele monte de prêmios:
casa, automóvel, geladeiras,
liquidificador, bicicleta, máquina de
lavar roupa... Bom mesmo era ganhar
uma casa. Ou um carro. Eu sei que é até
bobagem pensar nisso, mas já que é para
sonhar, vamos sonhar caro. O que é que
eu ia fazer com um liquidificador?
Merda. Nós não temos nem dinheiro
para comprar fruta em casa... (Pausa)
Olha o trabalho, Lucas! Só mais um
bloquinho aqui para acabar essa fileira.
Pronto. Sorte que o Zeca vai poder
começar a trabalhar logo. Ainda bem que
os mais velhos saíram todos machos... que
nem o pai. Machos e corintianos. Todos
sofredores, coitados. Que nem o pai. É por
isso que o Brasil precisa ganhar essa
merda de jogo. Pelo menos os meninos
iam sentir o que é a emoção de ganhar
um campeonato. Sentir o que é ser O
Bom. Ser o maior. Ser o maior de todos!
(Pausa) O último campeonato que o
Corinthians ganhou, eu tinha a idade
deles. Mas me lembro bem, como se fosse
hoje. Me lembro que eu gritei, gritei,
gritei até ficar rouco e depois chorei de
um jeito diferente, de um jeito largo, de
um jeito gostoso, de um jeito de quem sabe
que até que enfim ganhou uma na vida.
Para valer. Fiquei de cabeça erguida
para o mundo. Olhando de cima para
todos os são-paulinos e palmeirenses,
sabendo que eles tinham muito mais do
que eu, mas podendo gritar para todos
eles: hoje, ó! Nós em vocês! Em vocês
todos! Na cidade inteira! No mundo
inteiro! Eh, timão velho de guerra! Quase
que eu já tinha esquecido como é que era
essa alegria de ganhar campeonato. Mas
com os moleques vai ser tudo diferente.
Tem que ser diferente. Eles vão sentir isso
hoje, vão sentir isso um monte de vezes,
vão sentir isso na final de domingo. E vão
sentir como é bom ser brasileiro e ser
campeão do mundo. Os melhores do
mundo. Vai ser de novo aquela satisfação
de todo mundo se abraçando: corintiano,
português, palmeirense e até são-paulino.
Bem... pensando assim, a coisa fica meio
diferente. Não tem a força daquela
raiva, daquela vingança, daquele sarro
que a gente tira quando é o Corinthians
que ganha. Com o timão a gente sente
mais que foi a gente mesmo que ganhou.
Em jogo de seleção não dá para gozar
tanto. Acho que é porque o patrão, o
engenheiro, o Mestre, o padeiro, os
vizinhos, ninguém torce pelo time dos
gringos. Mas deixa para lá... Está certo
que seja assim. Qualquer dia o timão
ainda há de voltar a ganhar um
campeonato, isso vai. Pode custar, mas
vai. E então eu nem quero pensar no que
vai acontecer. Nós vamos pôr fogo nesta
cidade. Vai ser um carnaval só. De uma
ponta até a outra. Uma festa só! Um
barulho só! Uma raiva só! E ninguém vai
trabalhar no dia seguinte. E ninguém vai
trabalhar na semana seguinte. No dia em
que o Corinthians for campeão, ninguém,
nunca mais, vai precisar trabalhar!
Nunca! (Pausa) Trabalhar, merda,
preciso acabar esse muro antes do jogo
começar. E está acabando a porra da
massa. Bloco está sobrando. Vai dar justo
para terminar esse pedaço do arrimo.
Arrimo, é isso aí... Arrimo de família.
Todos eles. O Antonio, o Jonas e logo o
Zeca. Arrimo, como eu. Bom... pelo tempo
que eu levei para assentar esses blocos,
acho que ainda deve estar faltando uma
hora para o jogo começar. Num dia de
trabalho normal, com o bico calado, sem
pensar em besteira, esse muro já devia
estar por aqui. Como faz falta um relógio
numa hora dessas! Será que o crioulão
tem relógio? (Olha) Daqui não dá para
ver, mas não deve ter, não. Deve ser
corintiano, como eu: tem radinho, pode
ter até televisão, mas não tem relógio.
(Para o rádio) Deixa eu ligar essa jóia,
enquanto vou buscar mais massa. Nessas
horas não tem importância. De longe,
não dá para entender o que eles dizem e
eu não fico nervoso. (Liga o radinho e sai
com o carrinho de mão, gritando para
baixo) Manda mais massa, seus folgados!
Manda mais massa! Manda a massa que
eu ainda estou trabalhando, seus bundas
moles. (Acena para o outro prédio) Não
vai embora, crioulão! Agüenta aí no
batente, que eu já venho. Não estou
dando folga, não! Espera que eu já volto!
(Sai assobiando a marchinha que o rádio
começou a transmitir).
RÁDIO (Marchinha esportiva) - Viva a nossa seleção /
Glória do esporte bretão / Com eterna
vibração / É sempre a mesma emoção. /
Com o coração na mão / Todo mundo fica
irmão / Para viver a sensação / De
também ser campeão! (Comerciais
gravados. Acordes).
LOCUTOR - Jairzinho passa para Pelé. Pelé para. Faz
que vai, mas não vai, passa por um,
passa por dois, passa por três, devolve
para Gerson que estica para Jairzinho.
Lá vai o terror da copa, atenção, torcida
brasileira, chutou, é Gol! E GOL DO
BRASIL! GOL DE JAIRZINHO! UMA
BELEZA DE GOL! TÁ LÁ DENTRO! É
CANARINHO! É DO BRASIL! A deusa
branca foi fazer chuá no filó inimigo.
Agora não adianta chorar... o melhor é
tomar um cafezinho - o aditivo da
torcida brasileira! (Acordes. Música lenta
e suave).
OUTRO LOCUTOR - Nosso país é o maior produtor de
açúcar do mundo. A Superçúcar muito se
orgulha de participar com quatro quintos
da produção nacional de açúcar. Brasil,
Doce Brasil... (Acordes. Ao término dos
comerciais, acordes da marchinha de
prefixo esportivo da emissora. Em
seguida, locutor).
LOCUTOR - E agora, amigos ouvintes da Internacional -
onde o jogo é sempre legal - enquanto
aguardamos o chamado definitivo de
nossos incansáveis companheiros do
Velho Mundo, nesta hora emocionante,
que antecede mais um jogo da nossa
seleção, o jogo definitivo da classificação,
vamos chamar nossa equipe volante, que
está trabalhando desde hoje cedo, num
esforço soberbo de reportagem, para
ouvir em praça pública a opinião do
povo, a opinião do homem da rua, a
opinião de você, que está nos ouvindo
agora. Queremos saber a opinião de todos
sobre a expectativa que cerca mais uma
grande vitória brasileira nesta tarde.
Atenção, perua de freqüência modulada!
Fala Vivaldo!
REPÓRTER - Alô, central! Quem fala aqui é Vivaldo.
Como vai, Teófilo?
LOCUTOR - Tudo bem, Vivaldo. Estamos todos aqui nos
estúdios da Internacional - onde o jogo é
sempre legal - aguardando o som direto
do outro lado do oceano. E como vão as
coisas aí pelas ruas da nossa querida
cidade, Vivaldo?
REPÓRTER - Muito bem, caríssimo Teófilo. Nós estamos
agora em pleno coração da metrópole.
São 15 horas pelo meu Cronomag
perpétuo. Faltando apenas uma hora
para o início do grande embate, muita
gente ainda está voltando para suas
casas. O movimento do trânsito é intenso
no sentido cidade-bairro. Mas nós sem
pouparmos sacrifícios para bem
informar, estamos aqui, cercados por
uma pequena multidão de torcedores
brasileiros que desejam, através das
ondas da nossa Internacional, transmitir
sua opinião, seu palpite, sua palavra de
incentivo aos craques canarinhos da
nossa seleção. (Neste momento, Lucas
volta com o carrinho cheio de massa.
Retoma lentamente o trabalho, parando
logo para ouvir e comentar as
entrevistas que estão sendo feitas através
do rádio) Boa tarde, como é o seu nome,
meu amigo?
VOZ - Joaquim.
REPÓRTER - Muito bem, Seu Joaquim. E na sua opinião,
qual vai ser o resultado do jogo de logo
mais? Dê aqui sua opinião para os
ouvintes da Internacional.
VOZ - Tenho certeza que nós vamos ganhar. Dois a zero.
Não vai dar erro.
LUCAS - É isso, aí, moço. Com fé a gente ganha.
REPÓRTER - Muito obrigado, Seu Joaquim. E agora
temos aqui uma senhora que também vai
dar seu palpite para os ouvintes da
Internacional! Como é o seu nome, minha
senhora?
VOZ - Em primeiro lugar o meu boa tarde a todos os
ouvintes. Meu nome é Madalena.
REPÓRTER - E qual a sua profissão, Dona Madalena?
VOZ - Eu sou faxineira daquele prédio, ali em frente.
REPÓRTER - Muito nervosa, Dona Madalena?
VOZ - De jeito nenhum... Quer dizer, um pouco nervosa a
gente sempre fica, mas eu ontem acendi
três velas para o meu São Jorge e agora
estou muito confiante nos nossos
jogadores. (Ruídos de aprovação).
LUCAS - Não está nervosa aqui, ó! Vela para São Jorge...
com certeza a infeliz também é
corintiana.
REPÓRTER - E temos aqui um jovem torcedor brasileiro.
Um guardinha de carros. Como é seu
nome, meu filho? Fale aqui para os
ouvintes da Internacional.
VOZ - Nelson.
REPÓRTER - Nelson do quê?
VOZ - Nelson Roque.
REPÓRTER - E qual é a sua idade, Nelson?
VOZ - Doze anos.
LUCAS - A mesma idade de Zeca.
REPÓRTER - Vejam que exemplo, meus senhores! Doze
anos e já trabalhando!
LUCAS - Grande novidade...
REPÓRTER - Ganhando dinheiro para pagar seus
estudos, não é Nelson? Mas conte para
nós agora qual é o seu palpite para o jogo
de hoje. A gente vai ganhar, Nelson?
VOZ - É claro que vai. Vai sim. Meu palpite é quatro a
zero para o Brasil. (Ruídos de aplausos).
LUCAS - Inocente e exagerado! Quatro a zero, só se der a
louca nos homens.
REPÓRTER - Muita calma, meus amigos. Todos vão
poder falar. Um de cada vez. Cuidado
com o fio, poxa! Mais uma opinião do
amigo aqui. Como é o seu nome?
VOZ - Severino Arcanjo.
LUCAS - Baiano, aposto.
REPÓRTER - E onde é que o senhor nasceu, Seu
Severino?
VOZ - Eu sou de Pernambuco, torcedor do glorioso
Náutico Capibaribe de Futebol e Regatas.
LUCAS - Quase acertei. Pela voz e pelo nome é tudo
parecido.
REPÓRTER - E como é que o senhor está esperando o
jogo de hoje, Seu Severino?
VOZ - Como todo bom patriota e brasileiro! Eu tenho a
certeza de que nós vamos ganhar de
qualquer jeito. Se não for na classe, vai
ser na raça. Hoje não tem jeito! Nós
ganhamos na marra, na botinada, no
apito... Sei lá! A gente tem que ganhar,
não é? Então a gente vai ganhar desses
gringos que estão pensando que são os
maiores, mas se esqueceram que maior
mesmo é só o Brasil. Meu palpite é três a
um. Para nós! (Ruídos de fortes aplausos).
LUCAS - A merda é que os gringos também devem estar
achando a mesma coisa...
REPÓRTER - E agora, nossa última entrevista. Seu
nome, por obséquio, cavalheiro?
VOZ - Eu me chamo Fritz.
LUCAS- Esse é inimigo!
REPÓRTER - O senhor é brasileiro, Seu Fritz?
VOZ - Filho de alemães, mas brasileiro com a graça de
Deus.
LUCAS - Duvideodó!
REPÓRTER - E qual é o seu prognóstico para a partida
de hoje, Senhor Fritz?
VOZ - Bem, para falar a verdade, eu acho que o jogo vai
ser muito difícil. É claro que eu vou
torcer como todos os brasileiros. Mas
sinceramente, o meu palpite é empate:
zero a zero. (Ruído de vaias).
LUCAS - Gringo veado. Zero a zero no rabo de sua mãe,
cachorro. Aposto que o cavalheiro é são-
paulino...
REPÓRTER - Uma última pergunta, Senhor Fritz. Para
que time o senhor torce?
VOZ - Fora da copa do mundo, eu não acompanho muito
futebol.
LUCAS - Então para que é que vem dar palpite no que
não entende, porra?
VOZ - Mas lá no fundo eu acho que sou palmeirense.
LUCAS - Italiano vendido! Carcamano com nome de
alemão! Vai se foder. É isso mesmo! Vai
essa bicha, gente! Bicha! Bicha! Bicha!
REPÓRTER (Sobre barulho de vaias) - Atenção, central!
Atenção Teófilo! Voltamos o som para
vocês aí no estúdio. Obrigado, amigos
ouvintes, e até logo mais. Continuem
sintonizando a sua Internacional - onde o
jogo é sempre legal! (Corta para prefixo
esportivo da emissora. Lucas desliga o
rádio e retoma o trabalho).
LUCAS - Estava todo mundo entusiasmado, confiando,
animando a gente. Aí vem um palhaço,
que nem entende de futebol, botar olho
gordo em cima da esperança do povo.
Tomara que tenham dado uns cacetes no
safado. Brasileiro, o catzo! Onde é que já
se viu? Fritz, e ainda por cima
palmeirense. Merda. É por causa de uns
bostas desses daí que esse país não vai
pra frente... não vai porra nenhuma! Vai
sim! E vai mesmo! Quem é que disse que
não vai? Pronto! Quem foi que disse? Se
tiver alguém aí em baixo, em toda essa
cidade, que duvida do progresso desse
país, que levante a mão. Está aí.
Ninguém duvida. Se tiver alguém aí
embaixo que não acredite na vitória da
seleção, que solte um foguete. Então
ninguém duvida da vitória da seleção. Se
tem alguém aí embaixo que não goste de
ser brasileiro, que se suicide já. Ninguém
se suicida? Muito bem. Então o Brasil vai
ganhar. Hoje todos confiam no Brasil. E
quem não confiar, não passa de um
gringo filho da puta, traidor da pátria!
como esse alemão boca-de-praga. Deviam
expulsar ele do país, só por causa dessa
conversa de zero a zero! Mas que zero a
zero! (Bate na madeira) Sai azar! E a
cerveja que eu apostei com o Pedro vigia
como é que ia ficar? Nós vamos ganhar,
vamos, sim! (Pausa) Engraçado. O Pedro
vigia não tem nada de gringo, mas
apostou contra o Brasil. E dele eu não
tenho raiva. Vai se entender uma coisa
dessas? (Retoma o trabalho, com atenção)
Mais um bloco aqui, outro bloco do lado.
O cara que misturou essa porcaria de
massa também devia estar com a cabeça
noutro lugar. Agora vai dar mais
trabalho. Está faltando cimento e
sobrando cal nessa porra de massa.
Parece uma merda. Escorrendo toda.
Uma verdadeira bosta. Mas hoje não
adianta reclamar. É tocar o trabalho
para a frente e para o alto! A massa vai
demorar para secar, mas depois fica
firme. E se não ficar, que se dane o veado
que fez a mistura. Ninguém, nunca, vai
perceber mesmo. E se esse joça ceder um
dia, eu já nem vou estar aqui para ver.
(Mexe a massa, com a pá) Mas não custa
caprichar um pouco. Se fosse um outro
dia, eu mandava trocar todo o carrinho.
Hoje é bobagem. Vou pôr um pouco mais
do que é preciso e no fim vai dar tudo
certo. Um bloquinho. Um monte de
massa. Outro bloquinho. Outro monte de
massa. Isso... É, mas se eu continuar
gastando massa desse jeito, não vai dar
para terminar esse muro antes do jogo.
Então a ordem é pôr um pouco menos de
cada vez. (Assobia) Um bloco. Outro
bloco. Mais massa. Menos massa. Mais
merda! Saco! E eu com isso? No fim acaba
ficando firme do mesmo jeito. E se cair, a
culpa é do engenheiro, da construtora, do
calculista, de uma bicha qualquer que a
esta hora já deve estar em casa, no bem-
bom, em frente da televisão esperando o
jogo começar, enquanto eu estou aqui,
firme na dureza. (Pausa) Bem que eu
podia ter ficado em casa hoje. Ou os
homens podiam ter soltado a gente mais
cedo. Eles disseram que se o Brasil for
para a semi-final, na quarta-feira, está
todo mundo dispensado na hora do
almoço. Bela diferença! Como se a gente
ficasse menos nervoso hoje do que na
quarta-feira. É assim mesmo: "faça o que
eu falo, mas não faça o que eu faço".
Agora não sobrou nenhum bacana para
fiscalizar o trabalho da gente. Se
mandaram todos. É. Mas eu sei muito
bem que amanhã eles vêm conferir para
ver se o trabalho rendeu. É só nisso que
eles pensam. Prazo! Prazo! Prazo! Eu não
sei porque, mas toda obra em que eu
trabalho está sempre atrasada. Conversa!
Atrasado estou eu - e não a obra. Mesmo
se eu estivesse doente hoje, com uma puta
gripe ou uma baita caganeira, nunca que
ninguém ia acreditar em mim se eu
faltasse. Os homens iam dizer que eu
tinha ficado em casa por causa do jogo. E
tome desconto! Desconto, porque eles
sabem que eu trabalho bem. Se fosse outro
infeliz, eram bem capazes de despedir.
Com atestado e tudo. (Pausa) Besteira. Os
outros não têm nem casa para voltar,
quanto mais televisão. E estão todos com
dor de corno, só porque hoje à noite eu
vou poder assistir o video-tape, enquanto
eles vão ficar aqui mesmo, grudados nos
radinhos e imaginando como é que foi a
coisa. Adivinhando as jogadas, pensando
nos passes, inventando as cabeçadas,
tentando imaginar por onde foi que a
bola entrou. Se foi pênalti mesmo, ou é
tudo invenção do locutor. E depois vão
encher a cara para comemorar ou para
esquecer... Raio de pensamento maldito
que não me larga! Isso já deve ser doença
de corintiano: desconfiança. Mas graças
a Deus hoje não é Corinthians - é a
seleção, é o Brasil, é essa cidade toda que
está jogando tudo em cima daqueles onze
caras. E eles sabem muito bem que esse
povo está aqui, sofrendo por causa deles.
(Pausa) Olha, para falar a verdade, eu
não queria estar hoje no lugar deles.
Imagine que puta responsabilidade! Eu
sei que eles estão ganhando dinheiro para
isso. Um bloco. Mais massa. Muito
dinheiro. Outro bloco. Mas numa hora
dessas não é a gaita que conta. É o
patriotismo! (Para de trabalhar) Porra...
se um dia me dessem uma daquelas
camisas amarelas para vestir e me
mandassem entrar no campo para um
jogo desses, eu acho que me cagava todo.
É preciso ser muito macho para não
perder a cabeça num jogo assim. Com
cem milhões de cabeças sabendo que você
não pode errar, de olha nas suas pernas,
na sua cabeça... cacete! Se o cara parar
para pensar, ele não acerta nem pênalti!
Cai do cavalo. Cai da chuteira. Cai do
balancim. Fiummm... bam! E não levanta
nunca mais. (Representando) Imagina só.
Último minuto de jogo. Zero a zero.
Pênalti a favor do Brasil. Aí o cara sabe
que tem de acertar de qualquer jeito. Não
dá para errar. Tem cem milhões de
gentes empurrando ele para cima da
bola. Sem falar na família dele: mulher,
pai, mãe, filho e... e ainda o prefeito, o
governador, o presidente... o mundo!
Então ele olha e vê aquele puta golzão,
com aquela titica de goleirinho no meio.
Aí, de repente, o golzão vai virando um
golzinho e o goleirinho vai virando um
puta goleirão. Ocupando o espaço todo.
Um gringo enorme com cara de quem
sabe o canto em que você vai chutar. Se
eu fosse ele, eu acho que não chutava.
Nessa hora é que é preciso ter calma.
Mas, calma aonde, sabendo que se errar
vão jogar a culpa inteira em cima das
costas da gente! E se mandassem chutar?
Acho que o melhor nessa hora era não
pensar. Não pensar em nada. Como
quando a gente está trabalhando muito
alto. Abaixar a cabeça, não olhar para o
goleiro, não olhar para o canto, não olhar
para a cidade, não olhar para ninguém.
Sair correndo e meter o bico. Assim!
(Chuta um pedaço de madeira para
longe. Para) Porra! Se dependesse de
mim, o Brasil estava fodido. Essa ia
passar mais de três metros para fora. E
depois? (Cai em si. Pausa) Merda! Tomara
que não tenha caído na cabeça de
ninguém lá em baixo! Caiu nada... se
tivesse caído já tinham gritado. Não
preciso nem olhar. Depois, o melhor é eu
voltar para o trabalho. Eu lá entendo de
futebol? Meu negócio é esse aqui. Isso eu
sei fazer. Isso eu não erro. Um bloco.
Massa. Outro bloco. Mais um pouco dessa
porcaria de massa mole. Calculando
direitinho, vai dar para terminar o
muro. Nem mais, nem menos. No fim vai
dar tudo certo. Para essas coisas eu tenho
pontaria. Olho. Quase vinte anos de
tarimba. A massa vai dar justo. Só que o
muro vai ficar uma bosta... mas deixa
para lá. Eu não nasci para bater pênalti
mesmo. Que puta vontade de fumar!
(Pega o maço) Só tem mais dois. Deve dar
até a hora do jogo. Deixa eu ver. Um
cigarro para vinte blocos. É isso. Vai dar.
(Acende o cigarro) Vício desgraçado. Só
serve para a gente gastar dinheiro. (Dá
uma tragada) O... coisa boa... nada como
um cigarro para acalmar os nervos.
(Acompanha a fumaça) Também, se a
gente não tem o direito de ficar nervoso
num dia como hoje, quando é que pode,
então? Eta cigarrinho forte, quebra peito
bom, cigarro de macho... cada tragada
vale por três. A gente vê pela fumaça.
Azul forte. Quase preta. Dizem que faz
mal para a saúde. Pode ser, mas e daí?
Mais mal para a saúde é ficar lá em
baixo, chupando aquela poluição toda.
Pelo menos aqui em cima o ar é mais
leve. A gente vê toda a sujeira longe,
cobrindo o resto da cidade. Tem umas
manhãs de neblina em que parece que dá
para cortar o ar com canivete. Mas aí o
sol nasce. Primeiro aqui em cima. E a
gente vê que a fumaça maior está toda lá
longe, lá em baixo. Ou será que é
impressão? Não sei. Eu me sinto bem
melhor aqui em cima. Quanto mais alto
melhor. Apesar do perigo. Tenho até
saudades daquela obra em que eu
trabalhei no centro da cidade. Um prédio
de quarenta andares. Aquilo sim, é que
era altura. O vento passava assobiando
pela gente. Balançando tudo. As pessoas
lá embaixo pareciam umas titicas de
mosquito. Correndo de um lado para
outro, sem rumo certo. Umas coisinhas
pretas se amontoando, se empurrando,
formando fila, esperando a hora do sinal
abrir. E então o estouro da boiada. Mas
tudo pequeno. Muito pequeno. Todas as
cabeças iguais. Todos iguais. Sem nome.
Sem nada. Só com pressa. Sempre com
pressa de ir de um lado para o outro. Sei
lá para quê? E quando tinha um desastre
então, era aquela correria. Do alto a
gente via bem. Nessas horas aparece o
povo de todo o lado. Todos correndo para
ver a batida. O atropelamento. O morto.
Esticado ali no meio da rua. E só um
espaçozinho em volta dele. E toda aquela
multidão de cabeças querendo olhar,
querendo ver, querendo espiar. Se
apertando em volta do morto, mas sem
coragem de chegar mito perto. Aqui de
cima, parece que a coisa nem é com a
gente. É um outro mundo. O mundo lá de
baixo. (Pausa) Uma vez eu vi um cara
pular do viaduto. Foi aquela barulheira.
Grito. Pancada. Brecada. Quase caiu em
cima de um ônibus. E depois ficou lá.
Parou o trânsito todo. Quase duas horas.
E todo mundo buzinando para o morto.
(Ri) O infeliz ali, estirado no chão, nem
ligando para aquela confusão toda. Tinha
bem uns dez quilômetros de trânsito
parado por causa dele. E ele, nada. Nem
ali. Toda aquela gente olhando, berrando,
buzinando. A cidade inteira parada por
causa do morto. E a gente, de cima,
olhando tudo. De camarote. É isso aí! De
camarote! Daqui de cima a gente vê até a
morte de camarote. Não tem desgraça.
Não tem tristeza. Não tem tropelia.
Nada. A gente assiste tudo de fora do
rolo, fora do atropelo, fora da vida.
(Apaga o cigarro e joga para baixo.
Acompanha ele caindo) Pronto. Foi bem o
que eu disse. Comecei a pensar de novo na
morte e me esqueci do futebol. Será que o
crioulão ainda está trabalhando? (Olha)
Parece que não. Gozado! O que diabo será
que ele está fazendo? Está se arrastando
pelo chão. Ei, crioulão! Não adianta. Ele
não ouve. Parece que está meio bebum, o
desgraçado. Está nada! O safado está é
fazendo outro tipo de trabalho. Olha lá!
Ele está com um troço preto na mão,
riscando o chão da obra. Parece carvão.
Deve ser macumba... Aposto que é algum
trabalho de macumba! Agora ele está se
levantando. Parece que foi buscar uns
troços. O que será que esse cara está
aprontando? Lá vem ele de volta. Bem
que eu adivinhei. Está trazendo um
pacote de velas e um monte de fitas. Só
quero ver ele acender as velas com essa
ventania toda... Começou! Acho que é
uma vela em cada canto riscado que ele
fez no chão. Pronto. Se ajoelhou num
lado. Está difícil de acender. (Grita)
Força, crioulo macumbeiro! Essa parece
que ele conseguiu. Acendeu sim! Credo!
Com essa ventania toda, ela está
agüentando acesa. O diabo deve ter jeito
para a coisa. É melhor eu parar de gozar
dele. Vai que depois ele me joga um mal
olhado qualquer. Eu hein... não quero
nem conversa com macumba. Quando
vejo trabalho em encruzilhada trato de
passar de lado e nem olhar para o
despacho. Pela mãe de Deus! Não é que
ele já acendeu outra? E a danada
também está firme. Esse crioulo aí deve
ser é da pesada. Está pregando as
velinhas na laje. Agora só faltam duas.
Uma em cada canto. E depois que ele
acende cada uma, se ajoelha em frente
dela. Aí parece que a chama firma. Cada
coisa que acontece nesse mundo... só
vendo para acreditar! Pronto, lá vai ele
para a terceira. Pegou o fósforo... riscou...
acendeu! Boa, negrão! Firma ela direito
para não apagar. Está ajoelhado e
rezando de novo. Reza com fé, crioulo
macumbeiro! Vai lá, meu irmão! (Pausa)
Agora só falta uma. Força nessa, que é a
última. Merda... parece que está mais
difícil. Um fósforo. Dois... Vira contra o
vento, veado! Assim! Isso, acho que ele me
ouviu. Agora se ajoelhou de novo. Deve
estar pregando a velinha no chão.
Tomara que tenha acendido. Sai da
frente, porra... As outras três estão
firmes. Com vento e tudo. Sai da frente
que eu quero ver! Chega de reza que eu
quero ver se acendeu. (Pausa) Ele está
levantando... agora... acendeu! Boa,
crioulo! Aí, macumbeiro, legal! (Faz o
sinal da cruz) Graças a Deus que ele
conseguiu acender as quatro velas. Com
um cara de fé, rezando com uma força
dessas, o Brasil não pode perder mesmo.
Uma vela para cada gol. Vão ser quatro.
Quatro a zero. Como o guardinha disse no
rádio. (Grita) Hoje vai ser de quatro,
crioulo! Saravá! (Faz de novo o sinal da
cruz) Deus queira, Deus queira... Ele me
viu de novo. Está me abençoando, o cara.
Deve ser pai de santo. (Gesto de vitória)
Nós vamos ganhar! Nós va-mos ganhar!
(Gesto) Com essa reza forte, a gente não
pode perder. Se as velas estão agüentando
a ventania, é sinal que a gente não vai
perder. (Gesto) Boa, negrão! (Acena a
bandeirinha do Corinthians) Firma o
ponto! Firma o pon-to! É isso mesmo.
Tchau! Vai com Deus! Ele está indo
embora. Deixou o despacho pronto e se
mandou. Isso é que é fé! Só de pensar que
as velas podem apagar... apagam nada.
Estão lá... firmes! E o negrão já se picou.
Ele deve ter parte com o demônio. Deus
que me perdoe, mas tomara que dê certo
a macumba dele. É melhor eu olhar para
o outro lado antes que eu seque as
velinhas. Vai que uma apaga... nem é
bom pensar. Eu vou é olhar para outra
banda. Tomara que não apaguem. Pelo
menos até a hora do jogo começar. Ainda
mais agora que o crioulo foi embora e não
tem ninguém lá em cima para acender se
elas apagarem. Mas elas não vão apagar
não. Deus é justo. Deus é brasileiro. Eu
não quero nem olhar, mas aposto como
elas estão acesas. (Olha) Eu não disse! As
quatro! Queimando firme! Agora chega.
Deixa elas queimarem em paz, enquanto
eu acabo essa porra desse meu serviço.
(Retoma o trabalho) Vai dar tempo
folgado. A massa já está mais dura. Vai
firmar melhor. Secar antes. Mais
depressa. Vamos nós! (Cantarolando o
prefixo esportivo da emissora) Um bloco.
Mais um bloco. Mais um outro!... cem
milhões de blocos em ação... muita massa
com carinho, com cuidado, com afeto...
Mais um pouquinho de massa aqui para
firmar bem esse murinho perfeito. Vai
ficar uma jóia de muro. Forte e firme.
Um trabalho para ninguém botar defeito.
Um servicinho para sempre. Mais um
bloco. Mais outro. Agora só faltam duas
fileiras. Duas fileiras para o jogo
começar. Está na hora de eu fumar meu
último cigarrinho. Com muita calma... E
de ouvir o que esses caras estão dizendo
aí no rádio. (Com calma acende o cigarro,
joga fora o maço) Lá vai... Agora a ordem
é não olhar para as velinhas do crioulo e
ouvir as notícias. Quem sabe se o homem
já deu a escalação... (Liga o rádio e fica
ouvindo, fumando e se enervando com a
irradiação).
LOCUTOR - Atenção, Brasil! Boa tarde, meus queridos
patrícios! Boa tarde, minhas queridas
patrícias! Boa tarde, amigos ouvintes da
grande cadeia Internacional - mais de
duzentas emissoras esparramadas pela
imensidão azul-verde de nossa terra!
Quem tem o prazer de cumprimentá-los
respeitosamente no início de nossos
trabalhos diretamente do Velho
Continente, nestes momentos que
antecedem o grande embate deste fim de
tarde, quase noite, é Sinval Moreira. E
agora atenção, torcida brasileira,
atenção amigos ouvintes, atenção, Brasil
de norte a sul: nossa seleção já está
oficialmente escalada para o jogo de logo
mais. Para informar a definição - de um
a onze - do escrete canarinho, passo a
palavra ao nosso solerte repórter de
campo, Josias Almada. Mas, antes, uma
mensagem dos nossos patrocinadores.
COMERCIAL - Canção: Essa pilha nunca falha, / Ela é
boa de fato. / É listrada de alto a baixo /
E tem a cara de um gato.
VOZ - Eu só uso essa pilha, tá!
CANÇÃO - Se ele usa, ele sabe / Porque ele nunca errou.
/ Deus no céu e ele na terra, / Se ele disse,
ele acertou.
VOZ - Os lucros desta gravação são destinados às
criancinhas pobres do meu país.
LUCAS (Durante o comercial) - Mas isso é hora de fazer
reclame, pô? Dá logo essa porcaria de
escalação! Já estou cansado de saber que
o homem usa essa pilha. Eu também uso,
pronto! Agora diz logo de uma vez, se o
homem mexeu ou não mexeu no time.
LOCUTOR - Fala, Josias! O Brasil inteiro está com o
coração na mão, à espera de sua
informação.
LOCUTOR DE CAMPO - Em primeiro lugar o meu mais
cordial boa tarde aos nossos queridos
ouvintes da Internacional - onde o jogo é
sempre legal! Como informou o nosso
companheiro Sinval Moreira já estamos
de posse da escalação definitiva do nosso
time para hoje!
LOCUTOR - E então, Josias? Alguma alteração no
quadro brasileiro?
LUCAS - Fala de uma vez, desgraçados!
LOCUTOR DE CAMPO - Pode tomar nota, Sinval. Podem
tomar nota, amigos da central
Internacional. Pode tomar nota, Brasil!
(Acordes musicais).
LUCAS - Garanto que o homem mexeu no time. Com essa
onda toda, só pode ser isso!
LOCUTOR DE CAMPO - O time brasileiro que iniciará o
jogo de logo mais será exatamente o
mesmo que iniciou os nossos últimos
compromissos. Nenhuma alteração no
escrete canarinho nacional. Nossa seleção
vai jogar, portanto, com: camisa número
um...
LUCAS (Desliga o rádio com raiva. Vai se exacerbando
até o final da peça) - Esse time eu já sei,
desgraçado! Esse time todo mundo sabe!
Todo mundo sabe de cor. E sabe que não
funciona. Bosta de time! Bosta de técnico!
Mas como é possível uma coisa dessas! Eu
sei, todos os desgraçados que trabalham
em todas essas obras dessa cidade
desgraçada, também sabem. O crioulo
macumbeiro ali da frente sabe; meus
filhos sabem, até minha mulher que não
entende porra nenhuma de futebol
também sabe! Com esse time não pode dar
certo! (Para baixo, falando com a cidade)
O senhor aí, que vem guiando o seu
carrão para ver o jogo em casa, o senhor
não sabe? Sabe! Todo mundo que está
correndo feito doido por aí, com fitinha
verde-amarela na antena, não sabe?
Sabe! E você aí, madame, que já está
pendurando bandeira na janela? A
madame não sabe que precisa mudar o
time? Não sabe? Eu sei que a madame
sabe! O mundo inteiro sabe! Menos ele...
Aquele ônibus sabe. Aquele menino que
está batendo bola, sabe! Mas ele não sabe!
Não é justo que um burro sozinho possa
ir contra a inteligência de um país
inteiro! (Pausa) Merda! Acabou meu
último cigarro! Desgosto de vida.
Desperdício de nervoso. Tanta aflição à
toa. Agora vou ter que ficar sem
cigarros, até voltar para casa, por causa
desse técnico cabeça de bagre. O dinheiro
mal vai dar para pagar a cerveja do
Pedro e a condução. Se era para não
mudar o time, podia ter avisado antes!
Eu economizava cigarro, não apostava
cerveja nenhuma e ainda por cima tinha
trabalhado muito melhor nesta bosta de
muro! Agora vai acabar do jeito que
começou: uma merda! (Retoma o
trabalho, resmungando) Bloco! Massa!
Uma porcaria de massa, mas eu não
tenho nada a ver com isso. Bloco! Massa!
Uma meleca de massa, que não vai
agüentar com o peso da caixa, mas eu
não tenho nada a ver com isso! Bloco!
Massa! E tome pouca massa, que é para
acabar logo. Não fui eu que misturei
mesmo. Porcaria de massa! Porcaria de
técnico! Porcaria de seleção! Bloco!
Massa! Porcaria de muro! Porcaria de
serviço! Porcaria de obra! E eu com isso?
Bloco! Massa! Não fui eu quem misturou
a massa, não fui eu quem escalou a
seleção. Bloco! Massa! Bloco! Massa! Bloco!
Massa! (Ruído de foguete e estouro)
Porcaria de foguete! Para que é que está
soltando foguete? Para quê? Para ver se
acerta aqui em cima, é? Bem na minha
cabeça? Para esquentar mais meu
ouvido, é? (Pausa) É... isso mesmo. É bom
ir soltando já esses foguetes, porque
depois, ó! Com esse time jogando, a festa
vai ser de enfiar foguete no rabo! Vamos
gente! É isso aí mesmo! A ordem é soltar
foguete agora, enquanto ainda tem
esperança! Festa, gente! (Começam a
estourar foguetes, espaçadamente, à
distância, crescente até o final da peça)
Um foguetinho ali. Outro lá. Aquele no
Centro. Aquele no Brás. Aquele para os
lados de Santana. Aquele, de três tiros,
para as bandas de Santo Amaro. Isso,
gente! Foguete na cidade inteira! Rojão
no rabo do mundo! Vão soltando, seus
patetas! Vão soltando, seus burros!
Gozaram de vocês, cagaram em vocês,
não mudaram o time e vocês ainda estão
comemorando! Bem feito! Cada povo tem
a seleção que merece! E cada seleção tem
o técnico que merece! Bem feito. Agora
vamos soltar bastante rojão, que a gente
não merece outra coisa mesmo. Alegria!
Alegria! Cambada de burros. Todos
burros! Burros! BURROS! (Pausa.
Continuam a explodir foguetes. Lucas cai
em si e retoma o trabalho) Bobagem é a
gente sofrer com antecedência. Vamos
acabar logo com esse serviço. Quantos
blocos faltam? Um, dois, três... isso! Onze
justo! Um para cada um. Um bloquinho
para cada posição. Esse aqui é o goleiro!
Massa no goleiro! Este é o beque direito!
Massa no beque direito! E esse aqui é o
líbero. Massa no líbero! Esse é o ponta
recuado. Massa no ponto recuado! Esse é
o outro ponta recuado. Massa no outro
ponta recuado! Só faltam quatro. Pelo
menos mais um vai jogar recuado. Esse
aqui. Massa no recuado! Agora só faltam
três. Será que pelo menos esses três vão
jogar no ataque? Três é muito no ataque.
Para que três no ataque? Não! Você aqui,
bloquinho besta, você também vai jogar
recuado. Bem recuado, bloquinho, bem na
defesa, sempre na defesa, tomando
cuidado para nunca marcar um gol. E se
me desobedecer, já sabe! Está substituído
e não entra mais no time. Ouviu bem,
bloquinho? Lá atrás. Defendendo.
Defendendo sempre, ouviu bem? E não
discuta, que nesse muro mando eu! Massa
no recuado! Bastante massa! Isso! Um
monte de massa, para você ficar bem
firme aí, no seu lugarzinho, sem se mexer
nunca, sem atacar, nunca, sem marcar
gol nunca! (Aumentam os ruídos de
foguetes) Já deve estar começando o jogo,
meu Deus! E só faltam dois bloquinhos!
Dois bloquinhos, com quatro perninhas,
para tentar salvar o time inteiro. Dois
bloquinhos com duas cabecinhas para
salvar o país inteiro. Dois bloquinhos
para salvarem minha cerveja, a
condução da volta, a encheção de saco, a
dor de corno, a festa de ser campeão, a
esperança de ser o melhor do mundo em
alguma coisa. (Pausa) Será que ao menos
a macumba do crioulo ainda está acesa?
É melhor nem olhar... E depois, se
macumba ganhasse jogo, o Corinthians
não estava na fila há vinte anos. Quem
pode ganhar o jogo são esses dois
bloquinhos aqui. (Pega um dos blocos)
Você está ouvindo esse foguetório? Está
ouvindo bem? Todo mundo está
dependendo de você, seu safado! E eu vou
assentar você agora com todo cuidado,
com todo carinho, com todo amor. Eu sei
que o resto do muro está uma merda, mas
você vai ter que dar um jeito de salvar a
pátria, ouviu bem? Você vai dar um jeito
da gente ganhar esse jogo. Qualquer jeito.
Inventa. Briga. Dá botinada. Morre, mas
marca pelo menos um gol, desgraçado!
(Assenta o bloco) Pronto. Massa para
você. Mais massa. Mais massa ainda.
Agora vê lá o que você vai fazer... Pau
nos gringos, bloquinho! Pau neles! (Pausa)
E agora o último. A última esperança. Eu
vou ligar essa porcaria de rádio, só para
você ouvir bem o que eles vão falar.
Escuta tudo, bloquinho maldito. Mas
primeiro olha bem para essa cidade. Olha
bem para todo esse povo que vai estar
olhando para o que você vai fazer hoje.
Olha bem para aquela gente correndo lá
em baixo. Olha bem para essa fumaceira
no céu. Ouve só a barulheira dos foguetes.
Olha, ali, ali em frente, naquela obra:
você está vendo o despacho que fizeram
para você acertar hoje? Não está vendo?
Então olha bem para lá! Tem quatro
velas e as quatro estão... acesas! Meu
Deus! Com esse vento todo, as quatro
continuam acesas. Nós vamos ganhar,
bloquinho! Você está vendo! As velas do
crioulo macumbeiro agüentaram acesas
até agora! Você precisa agüentar
também. Agora ouve bem, bloquinho.
Ouve direito que o jogo vai começar.
(Liga o rádio. Som simultâneo e
superposto de foguetes, músicas, locutor e
falas de Lucas. Ruídos de aplausos).
LOCUTOR - E após a execução do Hino Nacional
Brasileiro, ouviremos agora, com todo o
respeito, o hino de nosso adversário.
(Música marcial).
LUCAS (Durante a música) - Está ouvindo bem,
desgraçado. É em cima deles que você vai
mandar ver. Esses caras não vão pisar
em cima de você. Esses gringos não vão
pisar em cima da gente! Você não vai
deixar. Você vai lá hoje e enfia quatro
nesses caras. Quatro, como o guardinha
falou. Nem mais, nem menos. Pelo menos
quatro. Um por velinha do crioulo. Um
por conta da minha cerveja. Um por
conta da minha mulher. Um por conta
dos meus filhos. Um por conta de cada
cigarro que eu fumei até agora. Um por
conta de cada bloquinho que eu assentei
nesse muro. E que vão sustentar você aí
em cima. Bem em cima. Em cima de todos
os outros bloquinhos. De toda a massa. De
toda a obra. De toda a cidade. De toda a
esperança da gente!
LOCUTOR - Os dois capitães são chamados para o centro
do campo. Tudo pronto para o início da
partida!
LUCAS - Ouve isso pelo amor de Deus! Vai lá e salva a
gente!
RÁDIO (Marchinha esportiva) - Viva a nossa seleção, /
Glória do esporte bretão. / Com eterna
vibração / É sempre a mesma emoção. /
Com o coração na mão. / Todo mundo
fica irmão, / Para viver a sensação / De
também ser campeão! (Durante a
execução da marchinha, Lucas
permanece com o bloco em cima da
cabeça, seguro com as duas mãos, como se
fosse uma taça. Lentamente vai
assentando o bloco. Quando termina a
marchinha, o muro está completo,
ocultando Lucas do público. O ruído de
foguete se torna ensurdecedor. Pausa
súbita. Silêncio total).
LOCUTOR - Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo!
(Lucas coloca sobre o muro terminado seu
capacete, com a bandeira do Corinthians.
Ruído de ferro batendo em ferro,
interrompendo o trabalho. As luzes se
apagam lentamente. Permanece apenas
um foco sobre o muro. O ator, que
representou o papel de Lucas, sai detrás
do muro, com um recorte de jornal na
mão. Para em frente ao muro).
ATOR - Notícia publicada nos jornais de São Paulo, no
dia 28 de julho de 1974. "Pedreiro morre
de desgosto pela seleção. O pedreiro José
Ribeiro, de 35 anos, morreu de desgosto
em Guarulhos, deitado sobre uma
bandeira do Brasil salpicada de sangue
em volta das palavras Ordem e
Progresso. José Ribeiro não resistiu à
decepção de ver a Seleção humilhada na
Copa e, já muito fraco, ontem, foi vítima
de um enfarte. Vivia com sua
companheira, Sônia Oliveira Houvatti,
de 31 anos, que ainda sem saber de nada,
está no Hospital Brasil, onde deu à luz ao
oitavo filho do casal. Ontem cedo,
alertados pelo choro das crianças, os
outros filhos de José e Sônia, cinco
meninas e dois meninos, de um e onze
anos, os vizinhos chamaram a polícia.
Pelas crianças, os soldados souberam que
José Ribeiro era muito patriota e sempre
lhes falava do amor que deveriam ter
com o país. Quando começou a Copa do
Mundo, ele tinha grandes esperanças na
Seleção Brasileira e começou a
acompanhar os preparativos com grande
interesse. Mas ficou cheio de mágoa,
quando o time foi derrotado e acabou
ficando em quarto lugar. Desde então,
José começou a ficar cada vez mais
acabrunhado, sem comer, e os filhos
contam que ele andava calado, não
falava mais do seu grande amor pelo
Brasil e das histórias de sua cidade,
Jequié. Os mais velhos contam que na
madrugada de sábado acordaram com
um estranho ruído. Olharam para a
cama do pai e viram que ele estava com
estranhas convulsões. Sob a cabeça, tinha
estendido uma bandeira brasileira. O
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