View
238
Download
2
Category
Preview:
Citation preview
1
N 12 Agosto de 2016 So Paulo - SP
BBLIA E MINISTRIO PASTORAL
N 12 A
gosto de 2016 So Paulo - SP
LER EM PERSPECTIVA HERMENUTICA Pablo R. Andiach TEOLOGIAS NO AT: POLIFONIA OU CACOFONIA Erhard S. Gerstenberger RITUAIS E INSTITUIES LITRGICAS DO ANTIGO TESTAMENTO Dallmer Palmeira Rodrigues de Assis MARCOS E O CONFLITO Elsa Tamez CRISTIANISMO: RELIGIO DA CASA RELIGIO SEM TEMPLO Ricardo de Oliveira Souza A RELAO ENTRE O ANTIGO E O NOVO TESTAMENTO Marcos Paulo M. da C. Bailo A BBLIA E TRANSFORMAO SOCIAL Marcelo da Silva Carneiro BBLIA E QUESTES SOCIAIS SueHellen Monteiro de Matos
RESENHAS POSTCOLONIAL PERSPECTIVES Paulo Srgio de Proena CRIANAS NA BBLIA HEBRAICA Rodrigo Bezerra Dalla Costa ATOS DOS APSTOLOS Lysias Oliveira Santos
Capa Teo 12.indd 1 15/08/2016 16:55:46
1
Expediente
Editor: Eduardo Galasso Faria
Colaboradores deste nmero: Marcos Paulo M. da C. Bailo,
Marcelo da Silva Carneiro e Ricardo de Oliveira Souza.
Reviso: Gerson Correia de Lacerda
Conselho Editorial: Jos Adriano Filho, Leontino Farias dos Santos,
Pedro Lima Vasconcellos, Shirley Maria dos Santos Proena, Reginaldo von Zuben, Ronaldo Cardoso Alves e Waldemar Marques.
Presidente da FECP: Heitor Pires Barbosa Junior
Planejamento grfico e capa: Ana Paula Pires
Ilustrao: Fotolia Impresso: Grfica Potyguara
Tiragem: 700 exemplares Verso eletrnica: www.teologiaesociedade.org.br
Teologia e Sociedade editada pela Faculdade de Teologia de
So Paulo da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil Rua Genebra, 180 So Paulo / SP CEP 01316-010
www.fatipi.edu.br
N 12 Agosto de 2016 So Paulo - SP
BBLIA E MINISTRIO PASTORAL
2
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAOTeologia e Sociedade / Faculdade de Teologia de So Paulo Vol. 1, n 12 (2016). So Paulo: Potyguara, 2016.
AnualISSN 1806563-5 1. Teologia Peridicos. 2. Teologia e Sociedade.3. Presbiterianismo no Brasil. 4. Bblia. 5. Pastoral.CDD 200
As informaes e as opinies emitidas nos artigos assinadosso de inteira responsabilidade de seus autores.
ACESSE
www.teologiaesociedade.org.br
3
EDITORIAL .....................................................................................................4 LER EM PERSPECTIVA HERMENUTICA....................................................6 Pablo R. Andiach TEOLOGIAS NO AT: POLIFONIA OU CACOFONIA.................................22 Erhard S. Gerstenberger RITUAIS E INSTITUIES LITRGICAS DO ANTIGO TESTAMENTO...............................................................................................38 Dallmer Palmeira Rodrigues de Assis MARCOS E O CONFLITO............................................................................48 Elsa Tamez CRISTIANISMO: RELIGIO DA CASA RELIGIO SEM TEMPLO...........74 Ricardo de Oliveira Souza A RELAO ENTRE O ANTIGO E O NOVO TESTAMENTO...................88 Marcos Paulo M. da C. Bailo A BBLIA E TRANSFORMAO SOCIAL.................................................106 Marcelo da Silva Carneiro
BBLIA E QUESTES SOCIAIS..................................................................128 SueHellen Monteiro de Matos RESENHAS POSTCOLONIAL PERSPECTIVES.............................................................144 Paulo Srgio de Proena CRIANAS NA BBLIA HEBRAICA............................................................154 Rodrigo Bezerra Dalla Costa ATOS DOS APSTOLOS............................................................................160 Lysias de Oliveira Santos
Sumrio
4
EDITORIAL
No primeiro semestre de 2015 os professores da rea de Bblia da FA-
TIPI, Ricardo de Oliveira Souza, Marcelo da Silva Carneiro e Marcos Paulo
Monteiro da Cruz Bailo, foram procurados pela Direo da FATIPI para
que organizassem a Semana Teolgica que tradicionalmente acontece no
segundo semestre letivo dessa casa. Esses docentes viram nesta proposta
um duplo desafio e oportunidade: seria a chance de trabalhar importantes
temas que normalmente no se consegue tratar em sala de aula e tambm
a ocasio para abordar questes que envolvem o lugar das Escrituras Sa-
gradas na vida da igreja. Assim, o tema da Semana Teolgica de 2015 ficou
definido como: O lugar da Bblia na vida e na igreja.
Este evento aconteceu entre os dias 26 e 30 de outubro de 2015 e
contou com a contribuio de professores de outras instituies, como o
Dr Jos Ademar Kaefer, da Universidade Metodista de So Paulo, e Prof.
Paulo Teixeira, Secretrio de Publicaes da Sociedade Bblica do Brasil, de
pastores da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, como a Reva. Ms.
SueHellen Monteiro de Matos (ex-aluna) e do Rev. Ms. Dallmer Palmeira
Rodrigues de Assis (ex- docente), alm dos docentes da casa. Alm deles, e
como j se tem tornado hbito nessas ocasies, alguns formandos de 2015
da FATIPI tiveram a oportunidade de apresentar Comunicaes sobre
os resultados de seus trabalhos de concluso de curso antes do incio das
palestras. Todas essas contribuies enriqueceram o dilogo produzido na
Semana Teolgica.
Este nmero da revista Teologia e Sociedade tem suas razes neste
evento. Tem suas razes, mas no uma simples reproduo do que ali
aconteceu. Por um lado, e infelizmente, os trabalhos do Dr. Jos Ademar
Kaefer sobre a ligao entre exegese cientfica e leitura popular da Bblia, e
do Prof. Paulo Teixeira sobre a histria e mtodos de traduo bblica no
esto aqui includos. Esperamos que eles sejam publicados em outro espao
oportunamente. Por outro lado, neste nmero da Revista contamos com os
estimulantes trabalhos dos biblistas Dr, Pablo Andiach, Dra. Elsa Tamez
ED
ITOR
IAL
MA
RC
OS
PAU
LO M
ON
TEIR
O D
A C
RU
Z B
AIL
O
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
5
e Dr. Erhard Gerstenberger. Para completar a proposta desse nmero,
contamos com resenhas crticas escritas por pessoas ligadas histria da
FATIPI: Rev. Dr. Paulo Srgio de Proena, Rev. Prof. Lysias Oliveira Santos
(ambos ex-professores) e Lic. Rodrigo Bezerra Dalla Costa (ex-aluno).
O primeiro artigo, de autoria de Andiach um convite leitura da Bblia
com o intuito de compreender a sua mensagem com mais profundidade e a
partir da realidade do texto que se d em trs nveis: a redao, a estrutura
e a interpretao do texto. O provocativo trabalho de Gerstenberger nos
chama a ateno para o fato de que o Antigo Testamento (como tambm
podemos considerar toda a Bblia) no um todo homogneo, mas abrange
uma grande diversidade de expresses de f. Assis estuda os rituais litrgicos
do Antigo Testamento e faz atualizao dessas experincias para as expres-
ses de f do povo de Deus na atualidade. Tambm provocador o artigo
de Tamez em que explora o conflito como pano-de-fundo do Evangelho de
Marcos. A obra lucana o ponto de partida para que Souza afirme que o
cristianismo uma religio de relacionamentos pessoais mais do que rituais,
cujo lugar original era a casa e no os templos. Bailo apresenta uma forma
de ler a Bblia numa perspectiva integradora dos dois Testamentos. E por
fim, mas no menos importantes, esto os trabalhos de Matos e Carneiro
que relacionam a Bblia a importantes questes ticas contemporneas.
A todos os autores e autoras, o nosso agradecimento pela preciosa con-
tribuio. Tambm a nossa gratido se estende direo da FATIPI como
sua Mantenedora, Fundao Eduardo Carlos Pereira, pelo imprescindvel
apoio. A todos os alunos, alunas e demais participantes da Semana Teolgica
de 2015, bem como aos leitores e leitoras, nosso muito obrigado.
Esperamos que este nmero de Teologia e Sociedade contribua, assim
como os nmeros anteriores j vm contribuindo, para o estmulo ao di-
logo teolgico. Neste caso especificamente, estimule a reflexo em torno
da Bblia e com ela a respeito dos desafios ticos, pastorais e teolgicos do
povo de Deus na atualidade.
Pela equipe organizadora,Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailo
6
LER EM PERSPECTIVA HERMENUTICA1
Pablo R. Andiach2
1Traduzido para o portugus de Marcelo da Silva Carneiro2Pablo R. Andiach pastor metodista argentino, doutor em Teologia ISEDET, e cursou estudos de Ps-Graduao na Universidade Hebraica de Jerusalm e na Iliff School of Theology, Estados Unidos.3ANDIACH, Pablo. Introduo hermenutica ao Antigo Testamento. So Leopoldo: Sinodal/EST, 2015.
Este artigo , em boa parte, uma adaptao das primeiras pginas da minha recente Introduo hermenutica ao Antigo Testamento publicada pela Editora Sinodal3. Mas no um resumo nem cpia e, sim, uma tentativa para apresentar o desafio que significa ler um texto como o bblico, seja o Antigo ou o Novo Testamento. Ao oferec-la aqui o fazemos com a inteno de ajudar a compreender nossa perspectiva. O ato de ler pe em ao diversas realidades que desejamos expor para que, tornando-as conscientes, nos ajudem a melhorar nossa leitura e compreenso da mensagem. Em ltima instncia, o que nos interessa que possamos ler as Escrituras com maior profundidade e compreenso de sua men-sagem. De certa forma, no fim toda leitura a proclamao da Palavra e, consequentemente, o que buscamos entend-la melhor para compartilhar melhor a mensagem recebida.
LER
EM
PER
SPEC
TIVA
HER
MEN
U
TICA
PAB
LO R
. AN
DI
AC
HPalavras-chave
Hermenutica Polissemia Crculo Hermenutico releitura bblica -
Cnon Teologia da Libertao
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
7
A Introduo hermenutica
Que queremos dizer quando falamos em hermenutica? Hermenutica
uma palavra de origem grega que significa interpretar e que, no contexto
desta obra, a utilizamos para nos referir ao ato de interpretar textos bbli-
cos. Um postulado bsico e inicial da hermenutica que o sentido de um
texto no algo que est depositado nele e que tem que ser tirado dele,
mas que o sentido produto do encontro de um texto com um leitor, que
pode ser individual ou coletivo. Isso significa que, no momento da leitura
de um texto, so ativados uma srie de fatores que possibilitam a produo
de sentido.
A leitura que gera o sentidoToda leitura interpretao e isso vale no s para os textos como tam-
bm para a vida em si. Interpretar parte da condio humana e um ato
cotidiano que se mostra tanto ao descobrir figuras nos contornos das nuvens
quanto ao ler um jornal pela manh. Todos eles so atos irrepetveis e, como
tais, capazes de suscitar novas leituras cada vez que voltamos a exercit-los.
Mas, nesta oportunidade, nos atemos interpretao dos textos do Antigo
Testamento, se bem que os que participam nessa condio geral de toda
interpretao tem suas prprias particularidades.
A hermenutica no uma dentre a multiplicidade de mtodos exe-gticos que se aplicam leitura dos textos bblicos. Em princpio porque
no se especializa num aspecto especfico do texto como fazem outros
mtodos (a histria, a estrutura, a psicologia dos personagens, as relaes
sociais e polticas, a retrica, a leitura narrativa, etc.), mas, em vez disso,
busca estabelecer uma convergncia de mtodos. Mas tambm porque a
hermenutica no busca excluir e, sim, somar. Ela postula que o acesso
ao sentido no pode limitar-se a uma entrada apenas ao texto, pois desse
modo se reduz a dimenso de sua mensagem medida de cada mtodo.
Cada texto um testemunho de vida e a vida tem muitas facetas que so
irredutveis e que se devem ter em conta a fim de evitar o empobrecimento
LER
EM
PER
SPEC
TIVA
HER
MN
EU
TICA
PAB
LO R
. AN
DI
AC
H
8
da plenitude de sentidos presentes nas obras que lemos.
Em segundo lugar, porque a hermenutica, longe de competir, clama
pela necessidade de atravessar o texto pelos diversos mtodos mencio-
nados que contribuem para clarificar as relaes literrias internas, os
aspectos ideolgicos e polticos, a histria da redao, etc. No se pode
fazer uma interpretao sem prescindir da crtica bblica, mesmo que esta
seja considerada somente um passo do caminho at o sentido. Ao mesmo
tempo, como de esperar de toda leitura fundamentada, a hermenutica
considera de maneira crtica as ferramentas que utiliza para evitar que a
interpretao fique presa por conceitos distantes do texto. Mas, chegado
o momento em que se submete o texto a um estudo detalhado, a herme-
nutica se apresenta como indicaremos mais adiante como o salto final
at o sentido do texto tal como lido em cada contexto particular. E no
pretende pelo prprio princpio ser a interpretao definitiva nem a
correta pelo simples fato de que considera que toda leitura, no momento
em que acontece, assumida pelo leitor como a melhor possvel, mas, sem
dvida, que passvel de ser modificada em cada nova situao.
Tudo que foi dito at aqui quer dizer que, ao falar de perspectiva her-
menutica, nos referimos aplicao na interpretao de determinados
critrios que devem ser considerados e fazer evidentes os mecanismos que
conduzem a toda interpretao. Com essa expresso fazemos aluso a uma
leitura que leva em conta determinados elementos prprios do ato de ler.
Aqui expomos os principais:
1. O sentido surge no cruzamento de um texto com um leitor.
O leitor pode ser pessoal ou comunitrio, mas o que interessa
aqui que o cruzamento exige dos dois realidades diferentes.
Por um lado, a realidade do texto que em nosso caso um
texto fixado pela sua condio de cannico e, por outro, a
realidade do leitor. Enquanto que, ao completar a leitura, o
primeiro permanece invarivel, o segundo modificado por
ela. No somos mais os mesmos ou a comunidade no mais
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
9
a mesma depois de termos explorado o sentido de um texto
e de havermos sido interpelados por ele.
2. Todo texto tem uma reserva de sentido que se revela na leitura. Mas a leitura no pode esgotar essa reserva, pois toda leitura
est condicionada pelo contexto do leitor que lhe permite
descobrir ou atualizar um sentido, mas persistem outros
que sero atualizados em futuros encontros. A esse processo
chamamos de releitura porque os textos bblicos por sua
natureza so lidos e relidos por cada gerao. De modo que
o texto se revela como uma realidade insondvel da qual, por
mais que se o interprete e estude com profundidade, sempre
haver mais gua para beber desse poo.
3. A afirmao no ponto anterior se prolonga na constatao de
que os textos so polissmicos. Isso quer dizer que abrigam uma multiplicidade de sentidos e que requerem ferramentas
para traz-los luz. Apesar disso valer para toda escrita um
poema, uma novela no caso dos textos bblicos, adquire uma
dimenso particular, pois lidamos com textos de elaborao
complexa e, em quase todos os casos, produto de sucessivas
redaes. Esta redao progressiva complica a aproximao ao
texto, mas, ao mesmo tempo, o enriquece, pois o revela no
s como testemunho do passado, como tambm do percurso teolgico e conceitual impresso nele.
4. Um texto uma entidade objetiva e fechada porque o texto
j no pode ser modificado -, porm esse texto fechado
aberto quando interpretado num estudo comunitrio ou
no ato de pregar sobre ele. A tarefa do intrprete abrir o
texto para exp-lo no comentrio ou na pregao. Ao faz-lo
traz a nova realidade de leitura, que sua prpria realidade.
LER
EM
PER
SPEC
TIVA
HER
MN
EU
TICA
PAB
LO R
. AN
DI
AC
H
10
5. A hermenutica afirma que o exerccio da interpretao faz
crescer o sentido. Uma leitura literal, parcial ou tendenciosa, oferecer pouco retorno hermenutico. Poder ficar na
superfcie da narrativa ou buscar concordncias com a
realidade para aplicar o que se narra a situaes parecidas da
vida cotidiana. Este ltimo tem seu valor, porm no esgota
o valor do texto, antes pode limitar o sentido do texto. Pelo
contrrio, deve-se compreend-lo como uma realidade a ser
interpretada a partir de diversos ngulos ou que abre a uma
pluralidade de sentidos que antes permaneciam latentes. A
mensagem de um texto cresce na medida em que o exploramos
com ferramentas diversas, sem que ningum pretenda ter a
exclusividade de ser a nica chave de leitura.
As trs dimenses do textoOs textos seculares ou profanos tambm participam de vrias destas
caractersticas, mas os textos bblicos tm elementos que os distinguem. Eles no vm de nenhum valor mgico, mas do fato de ser fruto de um
longo processo de elaborao e de serem textos coletivos e annimos que
em sentido inverso se apresentam como obra de um s autor. A fim
de dar conta dessa realidade que falamos de um por trs do texto.
Este consiste no processo que conduziu a que o texto que temos hoje
como cannico chegou a ser. Por exemplo, podemos distinguir diferentes
mos nos livros de Isaas ou de Zacarias ou no livro de Joel. A formao
do Pentateuco outro claro exemplo de diversas obras concatenadas. O
esforo em descobrir o caminho que o conduziu, desde os estgios orais
conformao de blocos textuais e, finalmente, o livro que conhecemos
hoje, um trabalho que nos ajuda a evitar as leituras literais ou ingnuas.
Quando consideramos trs ou quatros estratos em Isaas, descrevemos, por
um lado, o longo processo de produo que conduziu obra que temos
hoje, mas, por outro lado, no mbito da mensagem, afirmamos que o que
interessa de um texto o que ele diz e no quem o diz. O autor material do
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
11
texto diludo e cresce o autor semitico, que a figura virtual que subjaz
a toda narrao e que se observa ao considerar a dimenso sincrnica do
texto. Mas agora o que nos interessa destacar que os textos bblicos, por
sua natureza, tm um por trs que revela sua condio de obra composta
ao longo de sculos e por diferentes mos. Costuma-se dizer que h uma
arqueologia dos textos bblicos no sentido de que se busca reconstruir um
hipottico texto original a partir dos restos literrios que sobreviveram
no texto atual. um erro hoje cada vez mais comum considerar que
o sentido do texto aparece quando se descreve ou distingue esses estgios
anteriores. Quando se pensa assim, se distinguem textos originais do
autor de textos agregados, tardios, glosas, etc. e se considera que
os textos originais so os que revelam a verdadeira mensagem, enquanto
que os demais so secundrios. A perspectiva hermenutica no aceita tal
distino e considera que estudar os distintos estratos permite compreender
a histria do texto, suas repeties e lacunas, e que isso contribui para a
interpretao. Mas considera que os textos chamados secundrios so obra
da redao final e so to importantes como os outros porque revelam o
processo de expanso do texto e colocam em evidncia a teologia do relato
final e definitivo, que o que coloca o marco literrio em toda a obra. O
sentido no ser encontrado num texto fragmentado, mas na compreenso
da totalidade da obra. Buscar e ficar nos supostos textos originais obscurece
boa parte do potencial do texto e desvia o sentido da obra como totalidade.
A segunda dimenso o texto em si mesmo, como uma entidade aca-
bada e sujeita a uma estrutura literria. Esta dimenso tem sido explorada
pela semitica e outras disciplinas da linguagem que desenvolveram para a
literatura que, como bvio, no possui um por trs do texto nem uma
arqueologia. Considera o texto tal qual ele , sem indagar pelos seus estgios
anteriores e busca descrever as relaes internas que geram o sentido. H
dois nveis desta anlise do texto. Um que indaga as profundas relaes e
revela os valores que esto em jogo em cada texto. Esclarece os atuantes e
os eixos de sentido e descreve as foras distintas em conflito em geral em
pares de oposio . til, se estas aparecem confusas ou contraditrias
LER
EM
PER
SPEC
TIVA
HER
MN
EU
TICA
PAB
LO R
. AN
DI
AC
H
12
e, portanto, requerem ser explicadas. Um segundo nvel a anlise da su-
perfcie do texto e o que chamamos de anlise literria. Estuda, descreve,
avalia as relaes presentes no texto tais como os personagens, os cenrios,
a evoluo da trama, as palavras-chave, as voltas lingusticas. Quando
pertinente, busca comparar o texto em questo com outros textos bblicos
ou extrabblicos no que chamamos de intertextualidade. A anlise literria
considera cada detalhe do texto como um ator semitico. Por exemplo, se
um livro proftico comea com a informao da data da atuao do profeta,
no se pergunta sobre a veracidade dessa informao; antes ela assumida
como informao semitica que oferece sentido ao relato. Se os Cantares
so atribudos em 1.1 a Salomo, no interessa constatar se, na realidade,
ele foi o autor, mas se faz a pergunta: que significa que o livro diga que foi
composto por Salomo? Ao ver que Gn 12.10-20 e 20.1-18 narram duas
histrias muito parecidas sobre Abrao e Sara, a pergunta da semitica
qual o sentido de constarem estas duas histrias. A anlise do por trs
nos revela que cada histria provm de fontes distintas (a primeira, javista;
a segunda, elosta), mas isso no suficiente para explicar a presena de ambas narrativas, pois o narrador poderia ter omitido uma delas. A anlise
literria observar que uma cena acontece no Egito enquanto a outra em
Gerar, prximo de Cana; que o expulsam do Egito no fim, enquanto que,
em Gerar, os acolhem e lhes do animais e dinheiro, e lhes oferecem que
escolha uma terra para viver. Estes e outros detalhes ampliaro o sentido
dos textos e permitiro uma indagao que levar a interpretar o porqu
de incluir as duas narrativas.
Uma vez percorrido o texto pela anlise literria, compete passar di-
menso seguinte. Chamamos de diante do texto a tarefa hermenutica
propriamente dita. Esta se desenvolve como uma explorao do sentido
do texto. J mencionamos que todo texto tem uma reserva de sentido a
ser investigada pelo leitor ou a comunidade que l. A situao do leitor
de certo modo privilegiada porque dotada do que chamamos o trplice
distanciamento. O primeiro distanciamento do autor material do tex-
to que, ao produzir uma obra e d-la por acabada, se afasta dela e ela
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
13
adquire autonomia em relao a ele. A busca pelo autor histrico de um
texto bblico do Antigo Testamento no faz sentido, em primeiro lugar,
porque no contamos com ferramentas para reconstruir o passado em
seus detalhes; porm, mesmo que, em algum caso, se pudesse estabelecer
no teria nenhum valor no momento de interpretar o texto, pois pouco
importa quem construiu a obra, mas o que ela diz. Uma vez constituda a
mensagem e as relaes semnticas que a compem, j no precisam do
autor material, a ponto de se poder dizer que, para efeitos hermenuticos,
o autor est morto.
O segundo distanciamento o que corresponde ao interlocutor ao qual
o texto foi dirigido pela primeira vez. Sucede o mesmo que com o autor
que, ao perder-se o contexto da comunicao e desconhecer-se a situao
particular desse interlocutor, a pergunta por suas preocupaes e interesses
perde todo sentido. A pergunta pelo que quis dizer o autor e pelo que
pde significar para os primeiros ouvintes ou leitores tem valor como parte
por trs do texto, como uma reconstruo hipottica que fornece um
aspecto valioso e a considerar, porm que reconhecemos como limitado e
necessitado de ser superado na aproximao hermenutica.
O terceiro distanciamento tem a ver com o contexto inicial que pode
ser social, psicolgico ou cultural e esta requer algumas precises. O
contexto inicial tambm desaparece no texto, porm em algumas ocasies
substitudo pelo que chamamos de contexto textual. pouco o que
se pode dizer do contexto, por exemplo, de uma coleo de Provrbios,
mas como ler um livro como Daniel cujo contexto textual a corte do
rei Nabucodonosor na Babilnia, porm que a crtica bblica nos mostra,
sem dvida alguma, que foi escrito durante as perseguies de Antoco IV
Epfanes (meados do sc. II a.C.)? A princpio, devemos perguntar-nos o
que significa esta transferncia contextual do sculo II para o VI, qual seu
interesse, porque foi eleito como contexto textual. preciso investigar o
que ocorria em Jerusalm naquele momento (sculo II) para que induza a
escolha para o relato de um contexto distinto do prprio. Se a narrativa se
situa num momento determinado, esse contexto tem valor semitico, com
LER
EM
PER
SPEC
TIVA
HER
MN
EU
TICA
PAB
LO R
. AN
DI
AC
H
14
a independncia de sabermos que no o contexto material da produo
do texto. O mesmo vale para toda informao sobre o tempo ou lugar que
um relato informa. Como informao oferecida pelo relato, indicador de
sentido totalidade da obra. Deve-se insistir em afirmar que o esforo da
crtica bblica em descrever o contexto social, religioso, cultural em que
surgiu cada livro um aporte de grande valor, que, a princpio, evita as
leituras literalistas e simplistas, mas, como j percebemos, o sentido no
est nessa reconstruo, porm a hermenutica se aproveita dela para ir
mais alm.
Da experincia aos textos
Ao chegar a este ponto vemos que a hermenutica se desdobra no diante
do texto mas no esquece nem descarta as outras duas dimenses -. Aps
ter passado pelas outras anlises, a interpretao explora o sentido do texto
para a situao particular do leitor ou de sua comunidade, sentido que ser
desvelado, caso se produza a devoluo da mensagem ao mbito da vida.
A experincia humana na histria, nos acontecimentos relevantes para a
vida pessoal ou de um povo, caso seja profunda e deixe marcas, narrada
e, portanto, gera uma palavra que transmitida de forma oral de uma
gerao a outra. Chega um momento que essa tradio quando permanece
e se deseja preservar das distores prprias da fala se pe por escrito e
se torna texto. Um povo produz muitos textos, mas alguns deles recebem
uma ateno especial por sua condio de representar aquilo que constitui
a si mesmo e d sentido sua existncia; esses textos adquirem um valor
fundamental para estruturar a identidade religiosa, poltica e cultural da
comunidade. Quando ocorre isso, o texto se fixa, adquire valor como
escritura sagrada e se converte em cnon. O que descrevemos pode ser
observado na maneira como os livros do Antigo Testamento foram escritos,
mesmo se vemos que cada um tem seus prprios matizes.
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
15
O Cnon
Uma forma de clausura ou fechamento do texto o que chamamos de
cnon. Isso ocorre porque um cnon no pode ser modificado, nem se pode
acrescentar ou tirar pginas. Isso acontecia quando a narrativa ainda no
era cannica, mas, sim, uma coleo de tradies reverenciadas, porm
abertas a modificaes. Entretanto, ao canoniz-las, se fecha o processo de
crescimento material do texto. Contudo, toda comunidade que gera um
cnon necessita que esse texto lhe sirva para viver e interpretar sua vida
atual. Embora aparentemente seja um registro do passado todo cnon
narrao de acontecimentos do passado, seja as oraes, bem como os
salmos ou as reflexes dos sbios expressas em provrbios ou em poemas
se espera que o texto feito cnon ilumine o presente e seja uma palavra
atual. E como palavra atual, modifica o leitor e o conduz a mudar seu
presente e a histria que vive. De modo que o texto que nasceu de uma
experincia vital devolvido vida na releitura que muda a vida do leitor
e o conduz a modificar sua realidade pessoal, social e poltica. A releitura
chega a seu ponto culminante na proclamao da Palavra, que quando
os textos voltam a confrontar-se com a vida e a enriquecer a experincia
histrica. Neste sentido, na perspectiva da comunidade que entesoura
uma escritura sagrada, esse texto para sempre eterno e contemporneo.
A circularidade hermenutica
Aqui preferimos falar de circularidade no lugar da clssica expresso
crculo hermenutico. Com ela se expressa o processo que se faz de um
ponto de partida at outro e, depois, a outro, at que se retorna ao ponto
inicial, mas agora modificado pela leitura; dali volta a iniciar o caminho
e a circularidade. Como entidade, a hermenutica excede a leitura de
textos, porm imprescindvel compreender sua dinmica para avali-la
de forma plena. Concretamente, a leitura da Bblia no um ato isolado de outras experincias, seja social ou religiosas e, sim, acontece no mbito das tradies judaicas e crists, participa de suas teologias e da compre-
LER
EM
PER
SPEC
TIVA
HER
MN
EU
TICA
PAB
LO R
. AN
DI
AC
H
16
enso prpria da experincia de f. Foi Juan Luis Segundo quem definiu
com muita clareza este aspecto do ato hermenutico em sua obra clssica
Liberacin de la Teologa, publicada em 1973. Ele o descreveu como a contnua mudana de nossa compreenso da Bblia em funo da cont-
nua mudana de nossa realidade presente, tanto individual como social.
Logo se levanta que o crculo se rompe, caso a teologia considere que pode
responder s perguntas do presente sem ser ela mesma modificada ou sua
leitura da Bblia, ou se nossa interpretao da Bblia no muda frente aos
novos problemas e perguntas e, portanto, estas permanecem sem resposta
ou recebem respostas velhas, inteis ou conservadoras. O crculo tem
quatro pontos e, neste caso, os adaptamos linguagem desta Introduo:
1. O primeiro a interpretao da realidade que nos leva a
suspeitar que nossa compreenso dos fatos histricos ou
personagens pode estar equivocada.
2. O segundo ponto a aplicao dessa suspeita teologia e
maneira de ler a Bblia.
3. O terceiro ponto , como consequncia do anterior, que
revisamos nossa teologia e a leitura de Bblia, e a relemos.
4. O quarto consiste em que o resultado dessa releitura uma nova
hermenutica bblica que conduz a uma nova interpretao da
realidade. E comea a circularidade...
Este breve esquema nos permite visualizar o quo importante a
hermenutica para a leitura bblica, pois no se trata somente de voltar a
ler os textos antigos, mas de que essa leitura modifique nossa compreenso
da histria, da teologia e da vida. Temos sinalizado com acerto que no
um esquema rgido e que se pode ingressar no crculo por qualquer um de
seus pontos. Em algumas ocasies, a leitura (ou releitura) de um texto
bblico que nos desperta a uma nova interpretao da realidade e, a partir
dali, pe-se o crculo a andar.
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
17
Crticas e riscos da perspectiva hermenutica
So duas as principais crticas aproximao hermenutica dos textos
bblicos. Uma delas aponta que a hermenutica, por sua prpria natureza,
se torna um subjetivismo. Sustenta-se que, se o leitor gera o sentido, a con-
sequncia natural disso ser que a interpretao ir expressar sempre seus
prprios gestos, interesses e tendncias. Cada ideologia ou teologia ajustar
sua interpretao a seu prprio perfil e, portanto, no h uma verdadeira
aproximao ao texto para ver o que h nele, mas que s uma desculpa
para dar matiz bblico a decises tomadas anteriormente.
A segunda observao que a hermenutica no uma instncia crtica,
mas o final do processo de leitura levado a cabo pelos mtodos crticos,
sejam os histrico-crticos, estruturais ou literrios. Se for assim, o que
chamamos perspectiva hermenutica no agregaria nada ao que, por du-
zentos anos, a leitura crtica tem feito, qualquer que seja seu smbolo ou
tendncia, porque a hermenutica no seria outra coisa que a homiltica, a
leitura popular ou a contemplativa: formas de interpretao que podem uti-
lizar os resultados da investigao crtica, mas que so independentes dela.
Diferentemente de uma crtica, devemos considerar o que aqui cha-
mamos um risco a evitar para quem abraa a perspectiva hermenutica.
Algumas vezes, ouve-se falar que, considerando a leitura como criao de
sentido, nega-se a objetividade do texto. Sustenta-se que, se todo texto
lido a partir do ponto de vista particular do leitor ou da comunidade
leitora, este tem como corolrio que no h texto externo ao processo de
leitura. Conclui-se que o texto bblico e todo texto que se leia no
uma entidade autnoma e, portanto, no oferece um sentido a ser explo-
rado, a no ser que o seu sentido se construa em sua totalidade em cada
ato hermenutico. Esta postura tambm encontra certo respaldo material
na situao do cnon. Se no levarmos em conta um texto cannico, mas
uma lista de livros e, por sua vez, se esse texto (hebraico ou grego) tem
variantes que a crtica textual deve analisar, chegamos concluso de que
tampouco existe um texto objetivo, mas uma multiplicidade de cpias e
LER
EM
PER
SPEC
TIVA
HER
MN
EU
TICA
PAB
LO R
. AN
DI
AC
H
18
verses dentre as quais tem que se optar para chegar a um texto sobre o
qual logo se executar o ato hermenutico. A isso se agrega que as distintas
tradies crists Ortodoxos, Catlicos Romanos, Protestantes sustentam
como cannicas diversas colees de livros; diante dessa situao, como
possvel que se fale de um texto objetivo e cannico como entidade prpria
e externo ao leitor?
As trs observaes so sagazes e expressam riscos comprovveis que
o hermeneuta deve evitar. No primeiro caso, sem dvida uma interpreta-
o simples do texto, baseada na prpria experincia do leitor e em seus
conhecimentos sejam muitos ou poucos , dificilmente no culmina em
uma leitura que reflita seus prprios interesses e os de sua comunidade, e
revele pouco da mensagem do texto. Contra este risco preciso recordar
que toda hermenutica deve se basear numa leitura crtica do texto em
todos os seus nveis, desde a crtica textual, passando pelo estudo do con-
texto literrio e social presente no texto, at as exploraes da estrutura
do texto. O subjetivismo presente em muitas pregaes e outros modos
de leitura so produto no da atividade hermenutica, mas justamente de
sua ausncia.
A segunda crtica nos leva considerar um dos pontos centrais do processo
hermenutico. Consiste em que a conscientizao de que toda leitura um
processo hermenutico de seleo e criao de sentidos leva a suspeitar e
ver de forma crtica as ferramentas tcnicas que so utilizadas no processo.
Isso assim porque se reconhece que o recurso aos distintos mtodos de
anlise no so atos puros e alheios a tendncias filosficas, teolgicas e
at ideolgicas. Desde a traduo de um texto hebraico ou grego que, em
alguns casos, ao optar por uma leitura reflete posies alheias ao texto (tais
como moralismo, tendncias culturais, racismo e outras formas de desvios
de sentido) at a aplicao ao texto de mtodos que provm da literatura
ou da lingustica, requerem uma considerao crtica para evitar possveis
desvios metodolgicos. Em xodo 1.2-4, os nomes dos filhos de Jac so
enumerados em grupos com o fim de destacar as mes de cada um, porm
geralmente, nas tradues, apresentada uma lista corrida de nomes que
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
19
torna difcil descobrir esse detalhe. Quando a mulher de Cantares diz
em 1.5 sou negra e formosa, a maioria das tradues apresenta porm formosa, manifestando esperamos que inconscientemente prejuzos
culturais e at raciais. Considerar a traduo como parte de um processo
hermenutico e no uma cincia objetiva e sem tendncias permite
colocar em evidncia estas irregularidades e refletir sobre elas. O mesmo
vale para as leituras que vinculam o histrico como ferramenta principal
da interpretao. importante saber como era a sociedade israelita no
tempo dos diferentes profetas ou da elaborao dos textos sapienciais, mas
devemos lembrar que toda reconstruo do passado precria e sujeita
a que novas descobertas a modifiquem. De modo que, ao dar um alto
valor ao contexto de produo do texto a fim de assegurar uma leitura
crtica, corre-se o risco de considerar como slida uma ferramenta que,
na verdade, voltil. A perspectiva hermenutica considerar os dados de
matiz histrica presentes no texto mesmo quando estejam distantes da histria factual como um dado semitico que influencia na construo
do sentido. A atribuio a Moiss de todo o Pentateuco (Dt 31.24) no
tem apoio na histria factual, mas tem valor semntico e desempenha
um papel muito importante na forma como o Pentateuco se oferece a si
mesmo ao leitor. Desta maneira, a perspectiva hermenutica questiona o
zelo excessivo pela origem histrica de um texto, mas valoriza os dados
histricos que o texto apresenta ao dar-lhes valor como atores semiticos
e, portanto, reconhecendo sua condio de criadores de sentido do texto.
A ltima observao no menos importante, pois questiona a existncia
de um dos pontos do ato hermenutico. A diversidade de cnones no afeta
as doutrinas centrais das distintas igrejas. Por outro lado, a crtica sobre a
dificuldade em definir o texto devido multiplicidade de variantes no
supera o fato de constatar que, ao observar as variantes dos diferentes ma-
nuscritos, vemos que estas se tornam mais graves quando consideramos o
versculo isoladamente e se diluem, se as colocamos no contexto maior da
passagem ou do livro em questo. Nenhuma variante, por mais significativa
que seja, chega a alterar o sentido geral de um livro ou de uma corrente
LER
EM
PER
SPEC
TIVA
HER
MN
EU
TICA
PAB
LO R
. AN
DI
AC
H
20
de pensamento dentro dos textos bblicos. Mas o ponto mais srio o que
comentaremos a seguir.
H um texto a ser lido ou s temos leituras de um texto? A herme-
nutica pressupe o encontro entre o leitor e um texto. O sentido surge
desse encontro, mas, enquanto o leitor modificado pela leitura, o texto
permanece invarivel. Isso vale para uma obra de Lope de Vega1 que
ser encenada dezenas de vezes com matizes prprios dados pelo diretor
e seus atores e ainda mais para a hermenutica bblica cuja contrapartida
do leitor um texto cannico. verdade que um texto no at o mo-
mento em que lido, mas tambm certo que a multiplicidade de leituras
possveis no infinita, pois esto limitadas pelo texto em si: um texto
passvel de mltiplas interpretaes, porm o intrprete no pode dizer
que o texto afirma algo que ele no afirma. Ao observar um dicionrio da
lngua, percebemos que um reservatrio quase infinito de combinaes
das quais um texto uma combinao particular e nica de uma seleo
de palavras contidas neste dicionrio. Por isso, um texto uma realidade
imensa, mas no infinita e, de certo modo, todo texto exige ao leitor que
se submeta aos seus prprios limites semnticos. Isso significa que toda
interpretao todo intrprete deve prestar contas perante o texto
que tem diante de seu particular modo de interpret-lo. Ao aplicar estas
reflexes ao texto bblico, podemos ver que as narraes do evangelhos
ou do Gnesis so, para uma comunidade do sculo XXI que os l, uma
fonte de orientao para sua f e prtica crist assim como emocionaram a
Agostinho, no sculo IV, Teresa de vila, no sculo XVI, ou John Wesley,
no sculo XVIII. A perspectiva hermenutica explora e tira proveito dessa
dupla condio do texto de entregar-se para que o leitor o percorra e, ao
mesmo tempo, estabelecer os limites de sua leitura e evitar desvios. Sem
um texto externo ao leitor no existe leitura possvel.
1Flix Lope de Vega Carpio foi um dramaturgo espanhol que viveu entre 1562 a 1635, criador da comdia espanhola e prolfico autor de obras literrias na lngua espanhola (nota do tradutor).
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
21
22
A PLURALIDADE TEOLGICA
DA BBLIA: POLIFONIA OU
CACOFONIA DA F?
Erhard S. Gerstenberger1
gersterh@staff.uni-marburg.de
A leitura mais comum e simples da Bblia pressupe uma ho-mogeneidade na sua mensagem e nas suas expresses de f. Os estudiosos, no entanto, j admitem atualmente que ela guarda diferentes concepes teolgicas, decorrentes de diferentes contex-tos originais, como a casa ou o palcio monrquico, por exemplo. Essa pluralidade enriquecedora no mundo atual, em quase tudo diferente das estruturas da poca da Bblia. Leva-nos a pensar na aceitao da diversidade e no a impor violentamente um nico modelo de f e de sociedade.
Palavras-chave
Diversidade Antigo Testamento culto familiar culto estatal santu-rios locais dilogo inter-religioso
1Erhard Gerstenberger alemo, pastor luterano, estudou teologia em Marburg, Tbingen, Bonn e Wuppertal. Lecionou em Wuppertal, Yale (EUA), So Leopoldo (Brasil) e Marburg. autor de muitos livros e artigos em alemo, ingls e portugus.
TEO
LOG
IAS N
O AT: P
OLIFO
NIA
OU
CA
CO
FON
IAER
HA
RD
S. G
ER
STEN
BER
GER
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
23
1. Normalmente, leitores e leitoras da Bblia leem os textos
sagrados como se fossem um livro coerente e uniforme, partindo
do pressuposto de que a voz divina igualmente soa por pgina aps pgi-
na do volume amado. Existe algo de verdade nesta perspectiva. Mas, se
queremos entender melhor a palavra eterna, que s fala no verncu-
lo (Pedro Casaldliga), temos que considerar os contextos histricos e
culturais, nos quais surgiram as palavras particulares dentro do conjunto
bblico. As cincias vetero e neotestamentrias dos ltimos dois sculos e
meio descobriram a grande variedade de testemunhos antigos, sendo eles
via de regra annimos, que contriburam na composio e transmisso
das palavras queridas. So, ento, milhares de pessoas que, ao longo do
desenvolvimento do cnon bblico (ca. 1100-100 a.C. para o AT e 50-150
d.C. para o NT) formulavam e reformulavam as mensagens de vida e f
contidas em inmeros gneros literrios da antiguidade oriental. Ser que
um livro to misto e refinado por geraes de colaboradores pode falar
com uma nica voz?
2. Grande parte dos biblistas modernos admite a heterogenei-
dade das tradies antigas bem como a particularidade e a contextualidade
das interpretaes hodiernas. Mesmo assim, eles muitas vezes continuam
a procurar a unidade doutrinria da Escritura, a harmonia das diferentes
conceituaes teolgicas dentro da Bblia, a no-ambiguidade das normas
ticas, a concordncia de vises variadas do mundo e da humanidade, na
antiguidade mesma e tambm em relao aos parmetros modernos, etc. Os
meios de harmonizao so diversos. Bem frequentemente, os intrpretes
da Bblia declaram uma ideia das Escrituras, uma camada bblica, uma figura
literria, um evento histrico, etc., a coisa mais importante ou central de
todo o cnon. Prosseguem por subordinar outras constelaes ao assunto
principal predileto ou as ignoram completamente. Desta forma, surge uma
interpretao mais ou menos homognea das Escrituras to complexas e
diversas. Vale investigar a riqueza teolgica prpria das Escrituras.
TEO
LOG
IAS N
O AT: P
OLIFO
NIA
OU
CA
CO
FON
IAER
HA
RD
S. G
ER
STEN
BER
GER
24
3. Como se apresenta a pluralidade teolgica no AT?
Os autores individuais e annimos dos escritos nunca pensaram em uma
coletnea final chamada Bblia, com tantas camadas literrias, livros par-
ticulares, poesias, narraes, pores legislativas, adorativas, meditativas,
etc. No s autores originais falhavam em prever o cnon completa dos
escritos hebraicos. Tambm os transmissores dos textos tradicionais ainda
no enxergaram o conjunto da Escritura Sagrada. Mesmo aqueles escribas
e peritos da herana espiritual de Israel que conscientemente tentaram
ajuntar as palavras de Jav a partir do sculo 5 a.C. mal imaginaram o cnon
do primeiro sculo d.C. (e tambm este foi objeto de mudanas atravs
dos sculos seguintes at hoje). O que , ento, que ns podemos descobrir
no Antigo Testamento da nossa herana confessional (isto , os escritos
hebraicos traduzidos por cones da igreja como Lutero ou Almeida ou os
mesmos escritos transmitidos na cultura grega e latina apresentam grandes
diferenas de composio e contexto cultural)?
Certamente, poderamos analisar o AT meramente sob aspectos cul-
turais, conceituais, lingusticos. Mas as estruturas sociais, bem visveis no
AT, exerciam papel importantssimo na articulao da f adequada a cada
nvel da sociedade. Por isso, tentemos incluir os aspectos sociolgicos em
nossa argumentao, sem deixar de lado os momentos relevantes da histria
cognitiva e intelectual. Enxergamos, no AT, os cinco nveis principais de
organizao do povo de Israel ao longo da sua histria religiosa (cf. Gers-
tenberger, 2007).
3.1 F em divindades protetoras de famlias e cls
notvel a clareza com qual a transmisso das lendas patriarcais (Gn
12-36) confia no organismo familiar como receptor e guardio da religio
primordial. Abrao e a sua descendncia, alm de ser prottipo do pai do
povo todo (cf. Gn 12.2; 15.18; Ex 2.24; etc.) representa um chefe familiar
e, assim, a teia de parentesco ntimo. O deus dos pais, identificado por
Albrecht Alt em 1929 como modelo arcaico de religio no Oriente Mdio
Antigo (cf. Toorn, 1996), na verdade, era um protetor do grupo ntimo
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
25
da sociedade. Ele cuidava dos problemas bsicos da famlia: procriao,
bem-estar, sade (cf. os salmos de queixa individuais). A permanncia
da famlia dependia muito das mulheres e de sua capacidade de fornecer
prognitos masculinos. Assim, a concorrncia de Raquel e Lia em dar luz
a filhos masculinos (Gn 29-30) no s serve para narrar os incios do povo
de Israel, mas, no fundo, aponta aos desejos fundamentais das famlias.
No de estranhar, portanto, que as mulheres em casa cuidavam das pe-
quenas esttuas das divindades protetoras caseiras (Gn 31.19, 30-35; 1Sm
19.11-16), quer dizer do deus do pai. Este mesmo deus caseiro estava
localizado no umbral da porta (Ex 21.6). Artefatos cultuais encontrados
por escavaes arqueolgicas em moradias simples de israelitas antigos
confirmam a existncia de cultos familiais (cf. Schroer, 1987). Mais ainda,
a tradio larga e profunda mesopotmica, de tratar pessoas doentes atravs
de cnticos e preces, refletida tambm nos salmos individuais de queixa
(ou lamentao), implica nas divindades de proteo familiar e de deuses
maiores. Em todos os casos, a religio familiar nasceu nos grupos primrios
da pr-histria e se manteve bsica at tempos modernos, embora a famlia
perdeu muito da sua importncia desde o incio da poca industrial. A f
vivida neste grupo ntimo se desenvolvia no mbito dos interesses e vivncias
desse organismo fundamental da humanidade. Existem diferenas enormes
entre a f familiar e a f de outras organizaes sociais.
3.2 Assentamentos locais e os seus santurios
Os livros histricos (no judasmo chamados de profetas anteriores)
do AT falam muito dos santurios locais (bamot, morros, cf. Gleis, 1997) da poca pr-estatal. Supostamente, eles foram destrudos por
reis de Jud, fieis a Jav, por constiturem cultos alheios e proibidos pela
teologia deuteronomista (1Rs 14.22-23; 15.12-14; 2Rs 12.4; 14.4; etc.).
A verdade histrica um pouco diferente. O Javismo exclusivo s surgiu
depois da derrota da monarquia em Jud; a concentrao do culto do Jav
nico e universal em Jerusalm apenas aconteceu com o segundo templo
(dedicado 515 a.C.). Isto quer dizer que os santurios locais funcionavam
TEO
LOG
IAS N
O AT: P
OLIFO
NIA
OU
CA
CO
FON
IAER
HA
RD
S. G
ER
STEN
BER
GER
26
legitimamente pelo menos at o fim do reinado de Jud (586 a.C.). Que
tipo de teologia se vivia nestes cultos locais?
Um assentamento de vrias famlias dentro de uma aldeia ou cidade exige
outras estruturas de vida, diferentes das existentes nos grupos primrios. A
convivncia maior de 50 at 1000 cidados no pode mais ser organizada
conforme as regras de solidariedade de sangue, do parentesco mais ntimo.
A se assume uma responsabilidade total para com um membro do grupo
nuclear, filhos para os pais, mulher para homem e vice-versa (com limitaes
patriarcais!). Quanto mais distante se torna a relao parental, tanto menor
vale a solidariedade pessoal (cf. os costumes de vingana de sangue ou do
casamento do levirato - Dt 25.5-10; Rt 4.1-11). Regras de convivncia ou
leis civis tm que ser estabelecidas e aprovadas, de preferncia provindas
de autoridades divinas. O culto local, portanto, tem que garantir a paz e
a justia internas da comunidade. Outros assuntos de significado comu-
nitrio certamente eram interesses bsicos comuns, a saber, o bem-estar
do organismo social, especialmente em termos de fertilidade das roas e
dos rebanhos, a segurana externa, os interesses econmicos (intercmbio
de bens naturais e do artesanato), as regras de exogamia. Nestes campos
da vida, precisavam-se de divindades de porte maior do que de proteo
simples. Alguns nomes locais dentro do territrio judaico revelam que
divindades como Anat e Baal serviam como chefes de cidades (Js 15.9-
10, 29; 21.18; 1Rs 2.26; Jr 1.1). Tambm Jerusalm mostra sua afinidade
com um deus antigo shalim (fundao do Shalim). Jav no ocorre em nomes geogrficos; s em nomes pessoais. O culto em lugares pequenos
acontecia em um morro perto do assentamento. Os utenslios do recinto
sagrado eram, muitas vezes, um altar para sacrifcios sangrentos e smbolos
da presena de Baal (estela do membro viril) e de Asherah (rvore ou polo
de madeira; Jz 6.25-32). Templos de material com sacerdcio estabelecido
constituram santurios mais afluentes e com fama regional (cf. Shiloh;
Arad; Nob; Gibeo).
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
27
3.3 O deus guerreiro de tribos e alianas de tribos
Povos nmades ou seminmades via de regra se organizam em cls
itinerantes ou tribos de forma segmentria e sem cabea autoritria
(a-cefala; cf. Sigrist, 1967). A coeso vivencial desses grupos sociais
sempre precria; predominam, entre os seus interesses comuns, a ne-
cessidade de se defender contra os povos vizinhos e manter o usufruto
de um territrio que garanta a sobrevivncia dos rebanhos bem como a
oportunidade de caar, recolher frutos selvagens e praticar agricultura.
Crculos de ancios, quer dizer, conselhos de chefes dos cls, debatiam
assuntos importantes e tomaram decises por unanimidade. A religio
comum de tribos ou alianas de tribos se limitava mais ou menos a um
culto guerreiro (cf. por exemplo, as tribos indgenas dos Estados Unidos
nos sculos 18 e 19). Deus defendia os direitos tribais e um lder especial
era nomeado por aclamao do povo ou por determinao divina (cf. 1Sm
10.1-6, 19-24). Ele exercia uma autoridade maior nas necessrias batalhas
de defesa. No AT, os juzes [comandantes] de Israel representam tais
figuras carismticas, inclusive em guerras santas de sobrevivncia. Parece
que a arca da aliana originalmente era um smbolo porttil da presena do
Deus Jav, tpica divindade tribal da guerra (cf. Nm 10.35-36). Saul e Davi
comeavam a sua carreira como lderes tribais. Davi ainda usava para a sua
orientao em tempos de conflito um sacerdote especialista que consultava
Jav atravs dos urim e tumim, contidos em uma caixa chamada efod (1Sm 14.18; 23.6, 9-12), um tipo de adivinhao tribal. A histria tardia
da arca se conta em 2Sm 6. Jav, provavelmente herdado dos midianitas
(cf. Ex 18), recebeu o sobrenome deus dos exrcitos [celestes] (2Sm
5.10; 1Rs 19.10, 14). Ele decididamente entrou nas batalhas das suas tri-
bos com troves, relmpagos, granizo, tempestades e conquistou a vitria
(Ex 15.21; Jz 4-5; Sl 68). pouco provvel que as tribos israelitas tenham
mantido santurios locais estveis, embora o AT mencione alguns lugares
de encontro tribal (Gilgal; Shiloh; Siqum; etc.). Sobre rituais avulsos,
irregulares s podemos especular. Contedos principais imaginveis so
sacrifcios e preparaes para a guerra. Orientaes ticas para a vida diria
TEO
LOG
IAS N
O AT: P
OLIFO
NIA
OU
CA
CO
FON
IAER
HA
RD
S. G
ER
STEN
BER
GER
28
provavelmente no fizeram parte de cultos mveis.
3.4 Davi e a construo de um culto estatal
Uma ruptura profunda, socialmente dita, aconteceu com a introduo
da monarquia em Israel (ca. 980 a.C.). Os livros do AT de Juzes e de
Samuel deixam transparecer uma resistncia forte contra a autocracia dos
reis vindouros (cf. Jz 9.7-21; Crsemann, 1978). Essa crtica implica con-
tornos religiosos. A hibris dos governantes semi-divinos destri o equilbrio
da sociedade (cf. 1Sm 8.10-18; crtica retrospectiva deuteronomista). Foi
justamente isto o que aconteceu em Israel. Os reis davdicos transformaram
o culto tribal de Jav em uma religio estatal (2Sm 6-7; 1Rs 4.4) visando a
permanncia eterna da dinastia governante (2Sm 7; Sl 89). O rei terrestre
foi considerado, conforme padres tradicionais do Oriente Mdio Antigo,
o filho de Deus (Sl 89.20-30; 2.7-9; 110.1-3) e vice-regente do Deus
supremo na terra. Encontram-se perfis plausveis do rei quase omnipo-
tente (2Sm 8.1-2; 1Rs 5.1-14, 27-32; 11.1-3) bem como perfis religiosos
anacrnicos (2Sm 6.5, 14 - Davi dana diante da arca; Dt 17-14-20 o rei
como estudante da Tor; 1Rs 8.12-61 - o rei como pregador sinagogal). O
templo central da capital era propriedade do rei; os sacerdotes chefiados
por Zadoque, velho sumo-sacerdote jebusita, eram funcionrios do governo
real (2Sm 8.17). O santurio de Jerusalm, desta forma, de jeito nenhum
servia diretamente ao povo. Este, por sua vez, com grande concordncia
da corte, venerava as suas divindades caseiras e locais. Os sacrifcios e
outros rituais da capital serviam para fortalecer e manter a dinastia real e,
atravs do rei regente, manter o povo em sujeio. Tal teologia centralizada
tornou o monarca como funil das graas divinas. A fertilidade das terras
e dos rebanhos, as vitrias nos conflitos inevitveis, a justia da sociedade
civil, a sade dos cidados e pees, isto , o bem-estar da nao toda fo-
ram mediadas ou administradas pelo rei (cf. Sl 20; 21; 72 etc.). Ao todo,
o servio a Jav dominava a corte e a capital de Israel. Como mostram os
nomes pessoais da poca, o javismo entrou tambm na esfera pessoal da
f. O deus nacional foi abraado em determinados crculos como protetor
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
29
individual (cf. Norin, 2013), como era costume no Oriente Mdio Antigo
(cf. nomes com Baal, Marduque; Hadad; Ishtar etc. cf. Fowler, 1988). Isso
tudo, no entanto, no impedia a adorao de vrias divindades nos nveis
familiares e locais da sociedade israelita na poca dos reis.
3.5 A inveno da organizao eclesial
Um modo de crer muito novo tinha que se desenvolver aps da derrota
do reinado de Jud diante dos babilnios em 587 a.C. Este fato histri-
co constituiu a quebra mais profunda da existncia do povo israelita. A
destruio da cidade e templo, o fim da dinastia davdica considerada
eterna e a deportao da elite judeia para Babilnia significaram a perda
da identidade tnica e religiosa do povo. O trauma do exlio se gravou na
conscincia judeia da para frente, mas ele tambm se tornou uma fora
inovadora considervel. Os exilados formavam comunidades distintas na
Babilnia com certa autonomia civil sob liderana de ancios (Ez 1.1; 3.15;
8.1; 14:1; Ed 2.59). Os judeus participavam, ao que parece, livremente da
vida em sociedade (os arquivos de Murashu mostram clientes com nomes
judeus: Stolper, 1985). Ao mesmo tempo, j existia uma comunidade de
judeus no Egito, formada por mercenrios a servio do governo imperial.
Esta congregao, conforme documentos escavados, vivia a sua prpria f
atravs de um culto a Jav e sua companheira Anat-Bethel ou Aschim-
-Bethel, em um templo distinto, mas em certa unio com os judeus de
Jerusalm e Samaria (cf. Porten, 2011).
A existncia de comunidades variadas de confisso javista nos leva a
imaginar a potncia da f em Jav nas condies novas do imprio persa
(cf. Gerstenberger, 2013). A congregao se reunia ao redor da Tor (Ne
8; Sl 119). Cada um dos membros e cada famlia confessava sua adeso
a Jav (Js 24.14-15; Dt 29-30: prdicas de converso). A comunidade se
constitua por decises pessoais (familiares), no mais por descendncia
paternal (como a f familiar). Os smbolos de pertena eram o sbado, a
circunciso, a dieta especial (pura), as festas anuais, as peregrinaes, as
regras de matrimnio, a relao com estrangeiros. No centro da vida co-
TEO
LOG
IAS N
O AT: P
OLIFO
NIA
OU
CA
CO
FON
IAER
HA
RD
S. G
ER
STEN
BER
GER
30
munitria se desenvolvia, na poca exlica e ps-exlica, o culto sinagogal da
palavra. O primeiro vestgio claro a leitura da Tor por Esdras diante do
povo unido (Ne 8.5-11), prottipo de liturgias sinagogais: leitura contnua,
traduo para o vernculo (aramaico), interpretao por levitas, responsrios
da assembleia. Faltavam apenas a parte dos hinos e das preces na liturgia.
A estima pela Tor se reflete em Sl 1; 19 e 119 entre outros.
Nenhum outro perodo da histria israelita foi to influente como este
do imprio persa (539-331 a.C.; cf. Gerstenberger, 2013). As estruturas
scio-religiosas da comunidade judeia confessional ou eclesial se pro-
longaram para o cristianismo e o isl. Muitos detalhes da vida espiritual
(festas; liturgias; traje dos sacerdotes; etc.) se perpetuaram nas religies
seguintes. Tambm as conceituaes teolgicas seguem um padro comum.
A comunidade religiosa confessional providencia, por um lado, um Deus
bem pessoal, guardio do crente (no seu mbito grupal = paroquial), isto
, parceiro e supervisor individual. Tal ideia provm, realmente, da religio
familiar, agora com conotaes comunitrias. Em segundo lugar, o Deus
da comunidade judaica era um deus da aliana, que apoiava o seu povo
eleito dentre todas as naes do mundo (cf. Dt 7). Terceiro, o Deus Jav
se tornou o Deus universal e exclusivo, porque a comunidade pequenssima
em um imprio vasto tinha que se defender contra a presena esmagadora
de Ahura Mazda, divindade superior dos Aquemenidas. Por outro lado,
a falta de qualquer polmica contra a religio de Zoroastro pode levar a
uma outra hiptese: o Deus universal Jav poderia ser considerado, quem
sabe, o mesmo como Ahura Mazda, sob um nome judeu. O deus que A
e a nica verdadeira divindade (Is 41.4; 44.6; 48.12; etc.) e tambm
governador dos povos todos. Ele manda at o rei Ciro ser o messias de
Israel (Is 44.24-45:7). Parece que a teologia do deus universal persa foi
roubada dos imperialistas e incorporada em uma teologia israelita.
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
31
4. Como lidar com as variedades de f em parte sucessivas e
em parte contemporneas dentro do AT?
Fica claro que o AT no ensina uma teologia homognea, mas, sim, con-
ceituaes de Deus contextualizadas. O Deus eterno s fala no vernculo
(Pedro Casaldliga). Ou com palavras do Paulo: Cristo se esvaziou-se a
si mesmo, e assumiu a condio de servo ... (Fl 2.7) e de Joo: O verbo
se fez carne (Jo 1.14); Isto todo significa, visto por outro lado, que as
capacidades mentais, intelectuais, lingusticas humanas no so capazes de
entender a plenitude divina. A cautela da proibio de imagens (Ex 20.4-
6) tambm toma conta desse fato das limitaes humanas. Mais ainda, da
nossa perspectiva de hoje, afirmaes teolgicas (e seculares), por causa de
razes epistemolgicas (cf. Ernst Cassirer; Michel Foucault; Bruno Latour
e muitos outros), no podem acontecer do lado objetivo, divino, mas, sim,
apenas do lado subjetivo, do crente. Podemos, isto sim, falar dos conceitos
bem limitados de Deus, no do Senhor em si, em afirmaes essenciais.
Em outras palavras: no possvel de captar, com os nossos meios sensuais
e intelectuais, a realidade do outro, do mundo, de Deus. Gostamos, isto
sim, da iluso de que a coisa por si mesmo seria alcanvel e manipulvel.
O que realmente temos so imagens fabricadas pelos nossos crebros das
experincias, sentimentos, preconceitos que constituem a nossa pessoa.
Como conseguimos, ento, discursos teolgicos vlidos em nossos mbitos
vivenciais?
4.1 Para chegar perto de um discurso teolgico atual, temos
que refletir a situao prpria de hoje em termos de nveis sociais, heran-
as culturais, gneros sexuais, etc. e as mensagens diferentes da Bblia.
As estruturas sociais, com certeza, mudaram pelos sculos passados, mas
igualmente existem certas constantes antropolgicas. A grosso modo, os
contornos teolgicos parecem alterados sobretudo nas esferas pessoal e
global. Quais as camadas sociais principais onde acontece o crer em Deus
hoje? A famlia perdeu bastante do seu significado desde a poca industrial.
Hoje, raramente existem grupos ntimos de parentesco vivendo, trabalhan-
TEO
LOG
IAS N
O AT: P
OLIFO
NIA
OU
CA
CO
FON
IAER
HA
RD
S. G
ER
STEN
BER
GER
32
do, festejando em conjunto todos os dias da vida. As foras centrifugais do
trabalho moderno enfraqueceram a coeso familiar. Cada pessoa tem que
se cuidar por si mesmo, perseguir uma educao particular, lidar uma vida
autnoma financeira e emocionalmente. A internet aumentou o isolamento
do indivduo. Agora, a f uma coisa bem pessoal. Ningum mais deveria
mexer com as convices espirituais do outro, mesmo dentro do grupo
ntimo de parentesco. Da, embora a f na Bblia j fosse atributo da prpria
pessoa, hoje em dia ainda mais o crente decide para si sozinho sobre a sua
confisso religiosa, dividindo ainda mais as famlias. Da perspectiva bblica,
abraamos, devido ao nosso modo de viver, um individualismo muito exa-
gerado. Esse desenvolvimento geral, de fato, vai alm da individualizao
antiga, e dificulta tendncias de unir e controlar as pessoas autnomas.
(Existem outros fatores, no entanto, que promovem a massificao das
populaes). Deus procurado como sustentador do indivduo.
Agrupamentos secundrios sempre desenvolviam as suas maneiras de
crer. Nem todos organismos sociais chegam a um culto explcito. De certo,
porm, eles cultivam convices comuns, interpretaes do mundo, regras
e valores sagrados. No mundo de hoje existem talvez mais tipos do que
nunca de aglomerao social, clubes e associaes de interesse, profisso,
ideologia poltica ou econmica. O nmero de organizaes espirituais,
eclesiais, cultuais cresceu enormemente. Tambm as denominaes crists,
judias, islmicas so incontveis. No fundo, porm, todos esses conjuntos
civis ou religiosos seguem a linha antiga de arrumarem as suas prprias
crenas. A teologia oficial deveria saber disto. Um papel especial (de-
pois do sculo 19, que inventou o super-nacionalismo) ainda resta com
os estados modernos. Eles ainda exigem a ltima fidelidade das pessoas,
como se fossem divindades verdadeiras. As organizaes universais, como
as prprias Naes Unidas, infelizmente, recebem uma ateno muito
menor. Mas justamente os organismos globais, em muitas reas da vida,
vo ser decisivos para a sobrevivncia da humanidade.
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
33
4.2 Outras mudanas histricas entram no quadro e tm que ser
reconhecidas. Hoje, a humanidade, pelo menos parcialmente, vive em um
mundo cientfico-tcnico, pressupondo relaes causais mecnicas em
certas reas de vida. Por exemplo, doenas para ns normalmente tm
origem no em vontades ms, mas, sim, atravs de infees ou processos
qumicos nas clulas. O universo funciona por foras fsicas de expanso
e rotao. A vida toda se desenrola por si mesma, sem a interferncia de
entidades divinas externas. Quer dizer: os fenmenos naturais tm uma
autonomia no personalizada. Isto tudo influencia por muito a conceituao
teolgica. As mitologias antigas ao mximo constituem projees metaf-
ricas do super-humano. Precisamos uma lngua condizente aos padres de
pensar de hoje. Admite-se, porm, que boa parte dos seres humanos de
hoje ainda est aderindo aos padres antigos de pensar. Isto , eles per-
manecem, parcialmente, em um mundo pr-esclarecido, confiando em
adivinhos, astrologia, magia, anjos, foras demonacas, etc. Mesmo assim,
os crentes participam, tambm parcialmente, na vivncia causal-mecni-
ca, no progresso cognitivo. Raramente resistem o progresso maravilhoso
alcanado nos laboratrios de pesquisadores. Quem iria rejeitar um trata-
mento medicinal em caso de perigo de vida? Consequentemente, ento,
eles tm que articular a sua f em Deus tambm de maneira cientfica.
4.3 Quais os valores ticos e mandamentos de Deus para
hoje? Fica claro, de vez em quando, que as normas sociais da Bblia no
oferecem mais orientaes vlidas para hoje. Por exemplo, ns cremos na
democracia em vez da monarquia bblica. Ns acreditamos nos direitos
humanos, sem considerar raa, gnero, confisso, nacionalidade, etc. Ns
admitimos vrias formas de convivncia familiar. As experincias modernas
da guerra quase excluem a admisso de conflitos violentos como soluo
de problemas internacionais. Experincias modernas quase exigem uma
alterao do mandamento: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra
e submetei-a (Gn 1.28) por causa do excesso de populaes e a rpida
deteriorao das condies de vida. Como avaliamos as normas sociais e
TEO
LOG
IAS N
O AT: P
OLIFO
NIA
OU
CA
CO
FON
IAER
HA
RD
S. G
ER
STEN
BER
GER
34
ticas de hoje? Temos que modificar as orientaes bblicas?
4.4 Qual a viso legtima hodierna de terra, humanidade e
histria luz de Bblia? legtima uma teleologia da histria mundial,
da criao at a consumao do planeta e do universo? Os astrofsicos
contam uma estria diferente daquela do AT. O universo agora to
imenso que o nosso sistema solar fica insignificante. Mesmo se o nosso sol
vai consumir-se em 5 bilhes de anos, o resto do universo no vai tomar
conhecimento desse fato. Galxias inteiras implodem e nascem todos os
dias no universo incompreensvel. A humanidade planetria, em todos os
casos, tem pouco a ver com tal acontecimento distante. As histrias das
criaturas terrestres se perdem no espao universal. O novo cu e a nova
terra so sonhos irreais nos horizontes modernos. Podemos contar, isto
sim, com grandes catstrofes no nosso planeta, mas dificilmente vamos
chegar a um fim definitivo do sistema solar. As especulaes bblicas (e
de outras escrituras sagradas) sobre um juzo final so construes antigas
bem limitadas. O cosmos dos nossos antepassados, sabemos disso, contava
com um universo geocntrico (!) de poucos mil quilmetros de largura e
uma histria mundial com alguns milhares de anos de durao. E as nossas
suposies quanto ao espao e tempo do universo?
4.5 Os desafios teolgicos de hoje, ento, so claros: enfren-
tamos uma cincia potente, tecnologias que se aproximam da categoria
super-humana, uma economia global destruidora, uma poltica catica
mundial que incapaz de lidar com os problemas criados pela humanidade.
Como afirmar a f em Deus no contexto do mundo de hoje?
a) Cada nvel da sociedade precisa de uma ateno teolgica bem como
uma pregao especfica. Cada pastor sabe que isto a realidade dura e
opressora das comunidades de hoje. Os indivduos necessitam fortaleci-
mento e proteo para no serem esmagados pelos organismos potentes
dos gigantes econmicos, polticos, militares. Deus, hoje em dia e mais do
que nunca, um pai/uma me dos humildes, excludos, desrespeitados.
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
35
b) As famlias, ou melhor, as microestruturas da sociedade, enfraque-
cidas, mas ainda de grande valor como fundamento da arquitetura social
maior, reclamam amparo espiritual. Uma pastoral dos grupos ntimos pode
ser o centro do trabalho paroquial. Sabemos bem que, nesta rea, mudaram
os parmetros da convivncia. Lembremos, no entanto, que a Bblia tambm
conhecia diferentes modelos de matrimnio e de convivncia (cf. Abrao e
suas esposas; Rute e Naomi; Eliseu e os seus discpulos etc.). Hoje em dia,
vive-se abertamente muitas formas de relaes de amor e solidariedade
porque antigos tabus caram. Deus age como protetor dos grupos pequenos
e minoritrios, podemos dizer.
c) Organizaes secundrias entre famlia e estado hoje em dia tm boas
razes de ser. Promovem elas, via de regra, o bem-estar dos adeptos ou
membros e contribuem para a sade e felicidade de indivduos, bem como
a estabilidade da sociedade maior. Teologias para estes grupos incluem a
mensagem da irmandade e da paz entre entidades separadas. Os estados
nacionais, por sua vez, merecem respeito religioso, mas tm de evitar o
absolutismo tradicional. E os organismos eclesisticos, a partir da Bblia,
no so chamados para dominar terras e povoaes, mas, sim, para servi-las.
d) A pluralidade de confisses e articulaes de f facilmente pode
resultar em uma cacofonia feia. imprescindvel, portanto, balancear as
teologias pluriformes de um local, de uma regio, de um continente, da
terra toda. Cada teologia tem o seu direito de ser, mas apenas dentro das
teias sociais mais abrangentes. O indivduo no deve se orgulhar das bnos
de Deus, ou seja, dos bens materiais provindos dos cus, se tantas outras
pessoas so desprivilegiadas e sofrem fome. Famlias no podem se tornar
dinastias de explorao do povo. Associaes quaisquer, incluindo naes e
igrejas (religies organizadas), no so legtimas de assumirem posturas de
vice regentes divinos. Deus nos livre! Os conceitos teolgicos reconhecidos
na Bblia e realizados em nossos contextos vivenciais devem trabalhar em
favor de uma polifonia universal, honrando o Deus nico e mundialmente
ativo, atravs de tantas formas e conceitos. A ideia da justia superior e
geral, incluindo os direitos humanos e a subsistncia para todos, fica bem
TEO
LOG
IAS N
O AT: P
OLIFO
NIA
OU
CA
CO
FON
IAER
HA
RD
S. G
ER
STEN
BER
GER
36
atual e fundada na Bblia.
Concluses
A pluralidade das confisses e crenas da Bblia conforme organizaes
sociais diferentes (quem sabe se existem outras perspectivas fundamentais
formativas?) enriquecedora e no destrutiva. Ela nos alerta para o fato
de que ns mesmos estamos vivendo em diversas teias de relaes, que
exigem cada vez mais anlises prprias e respostas teolgicas. A prtica pastoral nos ensina que sempre h necessidade de mensagens particulares
para as associaes humanas diferentes. Na prtica, as igrejas crists (e
outras religies) prestam ateno aos desejos, nsias, esperanas espirituais
(enquanto esto legtimas!) de grupos distintos da comunidade. A plurali-
dade de conceituaes e discursos teolgicos pode ser uma sintonia, mas
traz consigo conflitos e possveis dissonncias. Por isso, os crentes, inclusive
os telogos profissionais, tm a dura responsabilidade de mediar os nveis
e articulaes conflitantes de f. At que ponto o indivduo tem que se
adequar s exigncias espirituais da comunidade (ou da igreja toda, da na-
o, da humanidade)? Na antiguidade bblica, certamente, a famlia e seu
chefe valiam mais do que o membro solteiro (cf. Gn 12.10-20; 20.1-13, a
entrega da mulher). Temos que ajustar a balana hoje mais para o lado do
indivduo e a sua conscincia? Como podemos alcanar a unio de todos,
da qual fala Jesus em Joo 17? A avenida certa a via dos dilogos inter-
-confessionais e inter-religiosos sob condies iguais. O Deus universal tem
que falar dialetos, porque as nossas mentes so incapazes de compreender
ou articular uma lngua divina absoluta.
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
37
Bibliografia
ALT, Albrecht. Der Gott der Vter (1929) In: Kleine Schriften zur Geschichte des Volkes
Israel. Vol. 1. Mnchen: Beck, 1959, 1-78.
CRSEMANN, Frank. Widerstand gegen das Knigtum. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener
Verlag, 1978.
FOWLER, Jeaneane D. Theophoric Personal Names in Ancient Hebrew. A Comparative Study.
Sheffield: Academic Press, 1988.
GERSTENBERGER, Erhard S. Der bittende Mensch. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag,
1980 (re-impresso: Eugene, OR: Wipf and Stock 2009).
GERSTENBERGER, Erhard S. Teologias no Antigo Testamento. Pluralidade e sincretismo da
f em Deus no Antigo Testamento. So Leopoldo: Editora Sinodal, 2007.
GERSTENBERGER, Erhard S. Israel no tempo dos persas. Sculos V e IV antes de Cristo.
So Paulo: Loyola, 2014.
GLEIS, Matthias. Die Bamah. Berlin: de Gruyter, 1997.
MESTERS, Carlos. Esp. Circulos bblicos. Biblia y vida. Port. Crculos Bblicos (accessivel
na internet).
MILLER, Patrick. The divine warrior in early Israel. Cambridge: Harvard University Press,
1973.
NORIN, Stig I. L. Personennamen und religion im alten Israel: untersucht mit besonderer
Bercksichtigung der Namen auf El und Baal. Winona Lake: Eisenbrauns, 2013.
PORTEN, Bezalel. The elephantine papyri in english. 2nd ed. Atlanta: SBL, 2011.
SCHROER, Silvia. In Israel gab es bilder. Nachrichten von darstellender Kunst im Alten
Testament. Freiburg/Gttingen: Universittsverlag/Vandenhoeck, 1987.
SIGRIST, Christian. Regulierte anarchie (1967). Hamburg: Europische Verlagsanstalt, 1997.
STOLPER, M. W. Entrepreneurs and empire. The mura archive. Leiden: Brill, 1985.
TOORN, Karel van der. Family religion in Babylonia, Syria and Israel. Continuity and change
in the forms of religious life. Leiden: Brill, 1996.
38
RITUAIS E INSTITUIES
LITRGICAS DO ANTIGO
TESTAMENTO E SUAS
ATUALIZAES
Dallmer Palmeira Rodrigues de Assis1
O tema dos rituais e instituies litrgicas est sempre em pauta, pois so fundamentais para compreender a forma como a comunidade se encontra com Deus. Desde os tempos remotos os povos elaboraram oraes, rituais e consagraram lugares especiais para a adorao da divindade, cuja denominao em geral era de uma casa para o ser divino. Israel tambm adotou essa prtica, e com ele toda a tradio crist, em particular na tradio reformada. Por isso, conhecer o sentido desses elementos e atualiz-los tem muita relevncia para a identidade e a forma como a comunidade expressa sua f e adorao a Deus.
Palavras-chave
Liturgia Ritual Casa de Deus Templo Liturgia Reformada
1 Dallmer Palmeira Rodrigues de Assis pastor da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, Mestre em Cincias da Religio (UMESP) e ex-professor da FATIPI
RITU
AIS E
INSTITU
I
ES LIT
RG
ICA
S DO
AN
TIGO
TESTA
MEN
TOD
ALLM
ER
PALM
EIR
A R
OD
RIG
UES D
E A
SS
IS
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
39
Uma palavra de gratido especial FATIPI (Faculdade de Teologia de
So Paulo da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil) pela oportu-
nidade de discusso de um tema to relevante quanto este que vivido
no centro das comunidades presbiterianas independentes em todo o Brasil
diariamente. O tema da liturgia e culto exige releitura em nossas comuni-
dades para que haja, continuamente, vivificao das instituies litrgicas
nas igrejas locais.
Introduo
Para este trabalho divide-se o tema em trs partes: na primeira, relem-
bra-se o tema como era vivido nos templos e locais sagrados na poca do
Antigo Testamento. Na segunda parte, revisa-se os conceitos prprios da
Igreja Protestante Reformada no que se refere liturgia. Por fim, relembra-
-se estes significados para uma cuidadosa atualizao nas comunidades de f.
A ideia do encontro com Deus em comunidade expresso de vida que,
muitas vezes, se confunde com a prpria existncia tanto pessoal quanto
familiar, tribal e social. As manifestaes litrgicas do povo no passado e
nas igrejas hoje revelam a identidade eclesistica, e muitas vezes respondem
perguntas do tipo: Quem somos? De que forma existimos? O prprio texto
bblico, como exemplo, apresenta, na boca de Miri, uma das mais antigas
ou primeiras - formas de expresso litrgica comunitria de devoo a
Deus no meio do povo: Cantai ao Senhor, porque gloriosamente triunfou e precipitou no mar o cavalo e seu cavaleiro (x 15.21), verso que revela quem era o povo e a situao vivencial naquele momento, pouco depois
da sada do Egito.
Igualmente um hino Acdio deusa Ishtar, escrito no final da primeira dinastia da Babilnia aproximadamente 1.600 a.C. - revela toda excelncia
da divindade em relao aos outros deuses. Este antigo hino exprime quem
era a deusa e o que pensavam seus seguidores quando cantavam: Hino a Ishtar: Louvada seja a maior de todos os deuses. Per-mitam reverncia senhora dos povos, a maior entre os grandes deuses dos cus. Louvada seja Ishtar, a maior de todos os deuses.
RITU
AIS E
INSTITU
I
ES LIT
RG
ICA
S DO
AN
TIGO
TESTA
MEN
TOD
ALLM
ER
PALM
EIR
A R
OD
RIG
UES D
E A
SS
IS
40
Permitam reverncia rainha das mulheres, a maior entre os grandes deuses dos cus. Ela est vestida com prazer e amor. Ela est cheia de vida, charme e volpia. Ela est vestida com prazer e amor. Ela est cheia de vida, charme e volpia (...).
De forma que, sejam antigas ou mais recentes como orculos profti-
cos do perodo ps-exlio, por exemplo - essas expresses comunitrias de
devoo a Deus esto presentes na histria desde os tempos mais remotos
e tm o objetivo de identificar o povo adoradores - em sua mais ntima
relao com a divindade. De igual forma, as canes entoadas, as oraes,
os sermes, as reunies nas casas, os coros das igrejas contemporneas
mostram como se d essa expresso de adorao a Deus, revelando em
ltima instncia sua identidade confessional e seus valores existenciais.
O Antigo Testamento
Olhando especificamente para o Antigo Testamento, h uma infinidade
de possibilidades de leitura e estudo do tema. Para no ampliar demais o
horizonte de reflexo, observa-se apenas a situao de Jud em Jerusalm
no perodo que corresponde ao exlio e ps-exlio principalmente.
Uma rpida, porm necessria, contextualizao proposta por Ro-
land de Vaux que escreve: A queda de Jerusalm trouxe o desastre para
o sacerdcio do templo. O sacerdote principal, o segundo sacerdote e os
guardas da porta, ou seja, todos os oficiais do templo foram feitos cativos
ou executados por Nabucodonosor, citando 2Rs 25.18. De acordo com
o autor, a situao litrgica de Jud no perodo do ps-exlio era de quase
total destruio.
Para ilustrar ainda mais a situao da chamada casa do Senhor pelo autor bblico, veja o que relata o captulo 24.10-13 de 2Rs:
Naquele tempo, subiram os servos de Nabucodonosor, rei da Babilnia, a Jerusalm, e a cidade foi cercada. 11 Nabucodo-nosor, rei da Babilnia, veio cidade, quando os seus servos a sitiavam. 12 Ento, subiu Joaquim, rei de Jud, a encontrar-se com o rei da Babilnia, ele, sua me, seus servos, seus prncipes
REV
ISTA TE
OLO
GIA
E SO
CIE
DA
DE
Vol. 1 n
12, agosto d
e 2016, S
o Pau
lo, SP
41
e seus oficiais; e o rei da Babilnia, no oitavo ano do seu reinado, o levou cativo. 13 Levou dali todos os tesouros da Casa do SENHOR e os tesouros da casa do rei; e, segundo tinha dito o SENHOR, cortou em pedaos todos os utenslios de ouro que fizera Salomo, rei de Israel, para o templo do SENHOR.
A deportao e a execuo da liderana religiosa em Jerusalm no
foram a causa dos maiores problemas. Nota-se, de acordo com o autor
supracitado, que:
A comunidade em Jud, de certa forma, ainda mantinha sua vida litrgica e religiosa em prtica. As pessoas ainda frequentavam os santurios nas provncias que reabriram depois das falhas da reforma josinica. Os mesmos cultos sincretistas, que foram proibidos antes da reforma, estavam sendo praticados nesses santurios. Contudo, algumas pessoas permaneceram fiis ao culto a YHWH.
O autor escreve de um momento na histria de Israel que, por consequ-
ncia dessa confuso generalizada em ambiente de destruio do templo e
liturgia, que o povo maculou, trocou a adorao a YHWH por outros deuses.
Para esse estudo, se torna demais valioso compreender o contexto so-
bre o qual existem as instituies e rituais litrgicos no perodo do exlio
e ps-exlio. A saber, os lderes religiosos so deportados ou executados.
Os chefes do Estado so levados cativos. Os templos locais nas cidades
so destrudos. Os que permanecem na terra procuram por outros deuses
e os adoram. Uma minoria permanece fiel e lamenta diante das runas do
templo: Disseram-me: Os restantes, que no foram levados para o exlio
e se acham l na provncia, esto em grande misria e desprezo; os muros
de Jerusalm esto derribados, e suas portas, queimadas (Ne 1.3).
Assim, observa-se da anlise at o momento que a comunidade judaica
tinha o templo como o centro de suas atividades litrgicas e cultuais. De
forma geral, pode-se dizer que as manifestaes litrgicas veterotestamen-
trias eram templocentristas. A prpria ausncia do templo revelava um
tipo de relao existente entre o povo recm-chegado do exlio e Deus.
RITU
AIS E
INSTITU
I
ES LIT
RG
ICA
S DO
AN
TIGO
TESTA
MEN
TOD
ALLM
ER
PALM
EIR
A R
OD
Recommended