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NAS FRONTEIRAS DO CRIME: VIGILÂNCIA E SOCIABILIDADES ENTRE MERETRÍCIO E POLICIAMENTO NA CURITIBA DA DÉCADA DE 1930
Nayara Elisa de Moraes Aguiar
(Universidade Federal do Paraná) Resumo: A historiografia recente vem se dedicando ao estudo do ato criminoso e do seu autor, especialmente, a partir da perspectiva cultural, repensando a periculosidade e a insegurança social como temas que possuem uma historicidade própria. Em um período comumente caracterizado como moderno, as sensações de insegurança e medo tem relação com comportamentos que insistem em desviar-se de normas impostas culturalmente. Tais comportamentos nem sempre atentam contra o indivíduo diretamente, no entanto, representam um problema para a coletividade e uma idealizada ordem pública; os grupos que não respeitam tais normas de conduta vivem constantemente nas fronteiras da ilegalidade, transitando ora pela inaceitação social, ora pelo delito propriamente dito. Este trabalho pretende pensar a relação entre um destes grupos fronteiriços, o das prostitutas, com a coletividade urbana no começo do século XX, no contexto da cidade de Curitiba. Para tanto, um acontecimento específico será analisado, o assassinato de uma prostituta no ano de 1937 cometido pelo seu amante, um investigador policial. A partir de reflexões foucaultinas será analisada a configuração da vigilância e do controle exercido pela polícia, e exigida por parte da população curitibana, em relação ao meretrício que circulava pelas ruas da cidade. Contudo, este crime permite repensar estas relações de poder a partir de considerações sobre o cotidiano, as sociabilidades urbanas e o contexto local, possibilitando uma análise que privilegie as nuances e especificidades do crime enquanto fenômeno cultural. Palavras-chave: prostituição; vigilância; cotidiano. Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
As reflexões desenvolvidas neste artigo tem como ponto de partida a
pesquisa de mestrado que realizo no Programa de Pós Graduação em História da
UFPR e que tem como principal objeto analisar o controle policial do meretrício
curitibano entre os anos de 1929 e 1937. Este recorte temporal específico foi
determinado a partir das datas de criação do principal conjunto documental da
pesquisa, os prontuários de identificação de meretrizes. Entre os 914 prontuários de
identificação disponíveis, um chamou atenção por conter uma informação
diferenciada no campo dedicado a observações diversas. Este prontuário específico
era o arquivo de Antonieta Dino.
Primeiramente, é necessário explicar o que eram estes prontuários de
identificação. No ano de 1928, o chefe da Polícia Civil do Paraná cria a delegacia de
Costumes para a cidade de Curitiba. A nova repartição deveria zelar por questões
relativas à moral, vigiando comportamentos que não eram considerados criminosos,
mas atentavam contra a ordem pública e os preceitos idealizados de trabalho e
família, próprios de uma forma de pensar burguesa. Alguns exemplos dos grupos
que eram responsabilidade da nova delegacia são os mendigos, os trabalhadores
domésticos e as prostitutas. Aproximadamente, um ano após a criação da polícia de
Costumes, inicia-se o registro das meretrizes.
A ação foi a solução encontrada pelo então delegado, Francisco Raitani,
como dispositivo de vigilância e controle das mulheres que exerciam a atividade,
especialmente na região central da cidade. Entre os anos de 1929 e 1937, a guarda
deveria encaminhar as meretrizes para o Gabinete de Identificação e Estatísticas,
onde era criada uma pasta que registrava dados pessoais, a antropometria,
endereços, crimes e contravenções cometidas1. Em troca, as mulheres receberiam
“certidões de meretrizes”, uma espécie de carteira de identidade que deveria ser
apresentada sempre que solicitada.
O investigador e a meretriz: um crime passional
A meretriz Antonieta Dino foi prontuariada2 logo no início da ação de
identificação por parte da Delegacia de Costumes, no dia 02/04/1929. Através das
informações do documento é possível saber que era natural da Itália, nasceu em
1900 e chegou ao Brasil no ano de 1914. Registra-se no campo de endereços que,
em 1929, Antonieta residia na rua Racticliff. Esta é uma rua importante para o estudo
da prostituição do período. O logradouro, que logo depois passaria a se chamar
Desembargador Westphalen3, se tornou um famoso reduto da marginalidade e
1 Os prontuários de identificação das meretrizes fazem parte do Fundo da Polícia Civil do Paraná, que está disponível para pesquisas no Arquivo Público do estado. 2 Gabinete de Identificação e Estatística do Estado do Paraná. Promptuario n. 18 de Antonieta Dino. 3 Nome atual da rua.
criminalidade curitibana graças ao local conhecido como Barranco, parte da rua que
comportava botequins e bordéis do baixo meretrício. O Barranco é fechado pela
polícia em 1929, mas a região continua sendo um famoso ponto de prostituição e
atividades ilícitas. Ao contrário de outras mulheres identificadas, Antonieta não
abandona a atividade com o tempo. Oito anos depois, se torna proprietária de uma
pensão alegre, forma como a imprensa chamava as pensões em que residiam
meretrizes. O estabelecimento de Antonieta também ficava na Desembargador
Westphalen, provavelmente a poucos metros da casa em que residia quando era
mais nova.
No campo Observações do prontuário de identificação da meretriz foi escrito
que “Em 25-08-1937 foi assassinada pelo investigador Pedro Freitas”. A informação,
suscinta mas elucidativa, pode ser complementada através de algumas notícias
encontradas nos periódicos Gazeta do Povo e Diário da Tarde4 que circulavam na
cidade de Curitiba no período. Na verdade, o prontuário é impreciso, o assassinato
de Antonieta ocorreu no dia 27 quando, poucos minutos antes da 1 hora da manhã,
o seu amante Pedro Freitas a mata com três tiros nas costas5. Pedro e Antonieta
mantinham um relacionamento a oito anos. Os antecedentes profissionais de Freitas
chamam a atenção por se relacionarem com a segurança pública e a manutenção
da ordem, ele era investigador policial na época e havia lutado da Revolta Paulista
de 19246.
O relato que será realizado a seguir sobre os acontecimentos da madrugada
de 27 de agosto se baseiam nas matérias dos jornais citados. Entre os dias 26 e 27,
o casal teve uma discussão na pensão. Havia várias pessoas no local que
presenciaram a briga, incluindo Helena Quadros, também meretriz, que residia em
outra pensão da Des. Westphalen. Pedro vai até ela, insistindo em uma aproximação
e é repelido com veêmencia chegando até a levar um tapa no rosto: “Repellido
4 O Diário da Tarde começa a circular em Curitiba no ano de 1899 e a Gazeta do Povo no ano de 1909. Os dois jornais adotaram, nas três primeiras décadas do século XX, uma postura crítica em relação ao governo, criando uma situação de oposição ao órgão da imprensa republicana, o periódico A República. Ver: BENVENUTTI, Alexandre Fabiano. As Reclamações do Povo na Belle Époque: a cidade em discussão na imprensa curitibana (1909-1916). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná, 2004. PILLOTO, Osvaldo. Cem anos de imprensa no Paraná (1854-1954). Curitiba: Instituto Histórico Geográfico e Etnográfico Paranaense, 1976. 5 DIÁRIO DA TARDE. Amor infeliz. 27 de agosto de 1937, p. 8. 6 GAZETA DO POVO. Ensopada de sangue uma pensão alegre. 28 de agosto de 1937, p. 2.
Pedro insistiu tanto, obrigando mesmo a mulher a aggredil-o. Não reagiu”7. Nova
discussão se segue entre Antonieta e Pedro na qual, segundo o Diário, a dona da
pensão teria dito a Pedro que não ficava com homem que “se deixava espancar por
mulher”8. O investigador, então, se retirou furioso da casa.
Freitas sai, para retornar horas depois, desta vez armado. Dois clientes que
estavam na casa naquela madrugada solicitaram que a proprietária fizesse as
contas de suas despesas, Antonieta senta em uma mesa no salão de bebidas para
atender os clientes. Neste momento, Pedro Freitas desfere três tiros contra a
meretriz, que morre instantaneamente. O criminoso e os clientes fogem pulando uma
janela. As meretrizes que residiam com Antonieta chamam as autoridades policiais.
As reportagens não deixam claro se Pedro foi preso ou se entregou, mas foi detido
em algum momento da manhã do dia 27. Presta depoimento e é liberado através de
um habeas corpus, o corpo de Antonieta é sepultado às 16 horas daquele mesmo
dia.
Após o recolhimento do depoimento do acusado e de testemunhas, que
incluíam as três meretrizes que residiam na pensão e um dos clientes presentes no
momento do crime, o delegado do 2.º Distrito policial de Curitiba encaminha ao juiz
da 2.ª Vara Criminal um relatório sobre o caso, no qual recomenda que o
investigador seja preso. O relatório do delegado foi resumido e publicado em matéria
do Diário9. Aí finalizam-se as matérias jornalísticas sobre o crime passional, dali em
diante o caso pertenceria a esfera burocrática e desinteressante do poder judiciário.
A história de amor e crime chega ao leitor curitibano através dos periódicos.
Conhecidos como fait-divers, as escritas sensacionalistas eram consideradas
atrasadas e sem qualidade por intelectuais e literatos contemporâneos, mas as
constantes e numerosas publicações nos periódicos indicavam que havia público
para tais leituras10. Dos diferentes tipos de fait-divers, os relatos de crimes
passionais eram os mais populares: “seu potencial dramático e plástico, próprio da
ficção, é aproveitado pelo cronista para transformar a realidade em objeto
7 DIÁRIO..., op.cit, 27/08/1937, p. 8. 8 Idem. 9 DIÁRIO DA TARDE, Amor infeliz, 28 de agosto de 1937, p. 1. 10 GUIMARÃES, Valéria. Sensacionalismo e modernidade na imprensa brasileira no início do século XX. ArtCultura, Uberlândia, v. 11, n.º 18, jan/jun. 2009, p. 231.
midiático”11. A dramaticidade já começava pelo título, responsável por atrair leitores.
A Gazeta escolhe intitular sua série de textos sobre o caso como Ensopada de
sangue uma Pensão Alegre! Fazendo referência tanto ao crime quanto a
prostituição, uma associação já presente no senso comum. Já o Diário escolhe o
título Amor infeliz enfatizando o caráter passional do caso.
Valéria Guimarães explica que dentre os vários recursos utilizados pelos
autores dos fait-divers está o da imaginação, que entra preenchendo possíveis
lacunas das histórias reais. Como no caso do escritor da matéria do Diário de
27/08/1937, que se dedica a contar a história pregressa do relacionamento entre
Pedro e Antonieta:
“Rapaz impulsivo, apaixonado, Pedro Freitas queria só para elle o amor e
os carinhos da mulher que era de todos. As rusgas surgiam de vez em
quando. Mas os impulsos do affecto, de dois corações que se attrahiam,
acabavam unindo, ainda mais, aquellas duas almas que vicejavam no
lodaçal do vício. E tudo acabava bem. As palavras mal pensadas
transformavam-se em beijos ardentes...Assim foi-se escrevendo a historia
daquelle amor.”12
A caracterização do relacionamento como intenso e impulsivo poderia se basear nas
discussões entre o casal no dia do crime, mas pessoas que conviviam com o eles no
cotidiano declararam que eles viviam bem13. O autor pode ter se aproveitado do
tema literário da intensidade dos amores, principalmente os ilícitos, para tornar a
história mais interessante. A impulsividade em relação aos desejos, especialmente
se cometidos por uma prostituta e um criminoso, remetem também ao discurso
científico que circulava no período e que associava os atos anti-sociais com um
primitivismo originário da degenerescência.
Outro recurso utilizado para atrair atenção para as notícias eram as imagens.
A reportagem feita pela Gazeta do Povo no dia do acontecimento fotografou o local
11 Idem, p. 234. 12 DIÁRIO..., op. cit., 27/08/1937, p. 8. 13 GAZETA DO POVO, Ensopada de sangue uma pensão alegre! 27 de agosto de 1937, p. 1.
do crime e no dia seguinte publicou fotografias referentes ao caso14. Mas, das quatro
fotos publicadas apenas uma era da cena do crime. Trata-se da imagem de
Antonieta já morta no chão de sua pensão. Esta é a maior fotografia da reportagem,
que foi posicionada bem ao meio, de forma que as outras duas fotografias e o texto
a circundassem. As demais imagens utilizadas são fotos de Pedro Freitas e Helena
Quadros, posicionadas uma de cada lado da fotografia da vítima. Esta disposição,
aliada as legendas, eram um indicativo visual de parte da trama, o envolvimento
daquelas três pessoas tinha resultado em uma tragédia. Provavelmente, causasse
algum tipo de impressão no leitor que passasse os olhos pela página do jornal.
Sobre o cenário da tragédia é possível fazer algumas inferências que auxiliam
a compreender a dinâmica destes espaços ocupados pelo meretrício. A casa de
Antonieta era uma pensão, nela residiam três mulheres que exerciam a atividade da
prostituição. Nesta residência, também havia um espaço de socialização, um
cômodo que foi chamado pelo delegado do caso de salão de bebidas e danças. Era
neste salão que os clientes que se encontravam na casa confraternizavam com as
meretrizes e foi ali, neste espaço público que paradoxalmente ficava dentro de uma
residência, que Antonieta foi assassinada por Pedro.
Se a pensão foi o cenário desta história, Antonieta foi uma das protagonistas.
Apesar de ser a vítima do crime, nas matérias há algumas sutis sugestões que
apontam certa parcela de culpa por parte da meretriz. Primeiramente, a atividade
que exerce e o fato de que o relacionamento com Pedro havia começado através
dela já explicava o acontecimento: “Amor nascido no vicio, no vicio mesmo elle
dever'a se extinguir”15. Outro fator que culpabilizava a vítima nas matérias foi a
humilhação a que teria submitido Pedro na ocasião em que este foi esbofeteado por
Helena: “Voltando para á presença de Antonieta, Pedro foi por esta insultado,
humilhado”16. A vítima teria atacado a masculinadade de Pedro ao apontar sua
passividade diante do ocorrido.
O subtítulo de uma matéria da Gazeta também parece sugerir a
responsabilidade da meretriz: “O desprezo daquela com quem convivera durante
14 GAZETA..., op. cit., 28/08/1937, p. 2. 15 DIÁRIO..., op. cit., 27/08/1937, p. 8. 16 Idem.
oito anos, impeliu um investigador policial a' pratica de um monstruoso crime”17.
Segundo esta chamada, Pedro teria sido compelido pelas ações da meretriz a
cometer o ato de violência18. A caracterização da mulher como culpada da violência
que sofria de seus parceiros nestes casos levou o delegado, em seu relatório, a
declarar que “as testemunhas são contestes em afirmar que a vitima era
demasiadamente fiel ao indiciado”19, afim de que o argumento de uma possível
traição não servisse de atenuante no julgamento.
Além da figura da prostituta que era culpada pelo seu destino, também evoca-
se a imagem da mulher vitimizada pela sua condição: “Era mais um crime que se
tinha a registrar na dolorida história da prostituição”20. A situação de risco em que,
possivelmente, viviam as meretrizes que serviram de testemunha para o caso serviu
como argumento para que o delegado solicitasse a prisão de Pedro Correia:
“Dada a temibilidade revelada pelo indiciado, as testemunhas ouvidas no
inquérito, sabendo-o solto, certamente que o temerão, tanto mais que taes
testemunhas de vista são mulheres da vida, sem poderes propriamente, de
reacção”21.
Antonieta representava a vítima, parcialmente culpada devido a vida que
levava como prostituta. Pedro era a outra personagem principal da história relatada
através do sensacionalismo dos jornais. Um fator que auxiliava a narração
melodramática dos fatos era a aparente surpresa por um investigador da Polícia,
aparentemente um cidadão de respeito, se transformar em um assassino: “era afeito
ao trabalho, motivo pelo qual chegou a ser o chefe dos investigadores da Vigilância,
de nossa Polícia Civil”22. Mas ao traçar a história de Pedro Freitas, os periódicos já
apontam sinais de um comportamento errático, a começar pelo próprio envolvimento
com uma meretriz e por ser afeito a uma vida boemia.
Os termos monstruoso e bárbaro foram utilizados para explicar tanto a ação
17 GAZETA..., op. cit., 27/08/1937, p. 1. 18 É importante destacar que o conteúdo da matéria não segue esta tônica, priorizando a caracterização de Pedro como um indivíduo selvagem e monstruoso. 19 DIÁRIO..., op. cit., 28/08/1937, p. 1. 20 DIÁRIO..., op. cit., 27/08/1937, p. 8. 21 DIÁRIO..., op. cit., 28/08/1937, p. 1. 22 Idem.
do crime, quanto o indivíduo que a cometeu: “Nada até agora a justifica. Nada?
Talvez o delírio sádico, do sangue, o desejo bestial e simples do assassino...”23. A
figura do monstro e do homem primitivo, que aproxima criminosos da figura do
animal, da besta, da inumanidade, para explicar os atos de violência em um contexto
urbano são comuns no discurso jornalístico, o aproximando da literatura policial e de
horror dos séculos XIX e XX e do discurso médico tributário do pensamento
lombrosiano, evidenciando a partilha de uma sensibilidade moderna caracterizada
pelo medo e pela insegurança. A proximidade aparente com o “real” transformava o
texto do jornal em um agente destas sensações modernas ao trazer o elemento
anormal e animalesco do crime para o cotidiano do leitor24. Pedro representa
exatamente esta ameaça do real, que transitou tanto tempo nos espaços da
normalidade, mas com certo descontrole sempre latente, sempre a ponto de vir à
tona.
Entre os vários vícios urbanos que reforçavam as noções de insegurança
social estava a embriaguez. O álcool, assim como o jogo, eram os responsáveis por
desvirtuar pais de família e trabalhadores. Em seu depoimento, Pedro atribuiu suas
ações a embriaguez, condição confirmada pelas testemunhas:
“Entregue ás autoridades, Pedro Freitas maldizia, desesperado, o estado de
embriaguês em que se encontrava no momento do seu gesto impensado, e
sob cuja ação passára para o ról dos culpados”25.
Estar embriagado não redimia Pedro pelos seus atos, pelo contrário, representava
mais uma evidência de que era um indivíduo de máus instintos.
As matérias sobre os casos trazem ainda outras representações e imagens
que tocam nos temas das sensibilidades modernas e urbanas e que não foram
analisadas aqui. A imagem da prostituta que paga pela sua imoralidade e da
prostituta-vítima, assim como, do investigador desvirtuado pelos vícios da vida
23 Idem. 24 GRUNER, Clóvis. Paixões torpes, ambições sórdidas: transgressão, controle social, cultura, e sensibilidade moderna em Curitiba, fins do século XIX e início do XX. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná, 2012, p. 90. 25 GAZETA..., op. cit., 28/08/1937, p. 1.
boemia e do assassino monstruoso são ideais para atrair leitores ao contar uma
história que só poderia ter um destino imaginável. Histórias que acabavam de forma
trágica reiteravam as concepções moralistas sobre comportamentos desviantes e
indisciplinados.
Apesar de seu caráter de objeto midiático, que transforma a “realidade”, os
fait-divers eram escritos por sujeitos históricos que partiam das referências do meio
que lhes cercava para escrever as suas histórias, naqueles pequenos detalhes que
não são centrais para história, é possível perceber alguns elementos que remetem à
trocas e práticas daquele contexto. É a partir desta premissa que busco pensar a
sociabilidade de vários grupos que circulavam pelas ruas curitibanas e que tinham
como ligação atividade ilegais e anti-sociais tomando como base os acontecimentos
relatados nas matérias analisadas.
Sociabilidades da “outra” Curitiba
Enquanto fonte, os periódicos tem a sua relevância por circularem como
material de leitura entre um número relativamente grande de pessoas. No caso dos
jornais Gazeta do Povo e Diário da Tarde no contexto curitibano, apesar de não ser
possível ter acesso à sua tiragem, é possível conjecturar certa relevância na
circulação e importância das publicações através das solicitações da população nos
próprios jornais. A dissertação de Alexandre F. Benvenutti, As reclamações do povo
na Belle Époque, tem como principal tema as demandas da população ao poder
público em matérias como a segurança pública e urbanismo feitas através do Diário
da Tarde26 na década de 1910. Nas décadas seguintes, ao pesquisar em fontes
jornalísticas o tema da prostituição, constatei que várias matérias chegavam até as
redações através da denúncia da população, que ligava ou ia até as sedes do
periódicos para comentar sobre algum fato que ocorrera na cidade. Portanto, os
periódicos constituiam um canal para que uma parte da população fosse ouvida, seja
para cobrar o poder público ou para denunciar atos imorais e criminosos que haviam
presenciado pelas ruas.
Através do contato relativamente próximo das redações com a população e os
26 BENVENUTTI, op. cit.
acontecimentos do centro urbano, é possível conjecturar sobre alguns elementos
presentes nas matérias dos jornais além das interpretações dos fatos feitas pelos
jornalistas. No caso do relato do assassinato de Antonieta Dino se destaca o tema
das sociabilidades constituídas no ambiente do submundo curitibano. Enquanto
figuras como Antonieta e Helena são representadas pelo jornal como típicos
membros do meretrício urbano, mantendo relações amorosas intensas e resolvendo
suas questões com brigas e agressão, Pedro Freitas representa uma contradição.
Membro da instituição policial e sobrevivente da Revolta de 1924, Pedro era também
um ativo frequentador de ambientes como a rua Desembargador Westphalen, se
relacionava com prostitutas e, possivelmente, consumidor assíduo de álcool.
Somente o caso de Pedro não seria suficiente para afirmar que os membros
da força policial, assim como outras instituições relacionadas a segurança pública,
agiam pela contradição de que, ao mesmo tempo, em que mantinham a ordem,
frequentemente a desestabilizavam. Ao analisar a instituição policial no Rio de
Janeiro, no começo do século, Marcos Bretas afirma que apesar de ser comumente
associar a polícia com o Estado, a independência entre os dois pólos do poder eram
maiores do que se imagina27. Esta afirmação vale, principalmente, no que tange a
ação cotidiana. Não eram excepcionais os casos de confusão e violência que
envolviam membros da segurança pública em desordens que ocorriam em bórdeis e
botequins, provavelmente se valendo da sua condição de “autoridade”28. Portanto,
não é absurdo pensar que parte da força policial estava mais próxima de
compartilhar de valores das classes baixas urbanas do que do Estado e das elites.
Portanto, pensando as relações sociais decorrentes da convivência em
bordéis e botequins, é possível incluir agentes das instituições policiais e da Força
Militar convivendo com meretrizes, talvez significando uma parcela significativa da
sua clientela. Outro grupo que chama atenção nas reportagens são os clientes que
27 BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro, 1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 207. 28 Alguns exemplos são a matéria do Diário da Tarde, E o “pau comeu”, sobre um conflito entre soldados e guardas cívicos na chamada Zona do Tigre; a da Gazeta em que um homem denuncia dois praças da Força Militar que estavam agredindo duas meretrizes na rua e outra que noticia a prisão de um sargento da Força Militar que, embriagado, também agrediu um meretriz. In: DIÁRIO DA TARDE. E o “pau comeu”. 02 de julho de 1931; GAZETA DO POVO. Duas praças da Força Militar aggridem 2 mulheres. 19 de fevereiro de 1929, p. 2; GAZETA DO POVO. Embriagado esbofeteou a meretriz. 05 de março de 1929, p. 3.
estavam na pensão no momento do assassinato, referenciados pelos jornais através
de sua nacionalidade, como portugueses. O que chama atenção é o fato dos dois
terem fugido quando Freitas atirou em Antonieta, já que não há nenhuma informação
de que eles tinham alguma relação com o acontecimento ou que conheciam o
investigador. A sua reação é no mínimo curiosa, novamente apelamos para
conjecturas, talvez os dois tivessem alguma situação mal resolvida com a polícia,
que inevitavelmente apareceria no local do crime. Ou ficaram com medo de serem
culpabilizados pelo crime. Não é possível saber, o fato é que um deles até saiu da
cidade depois do ocorrido. O interessante é que as figuras suspeitas dos dois
clientes frequentavam os mesmos ambientes que um investigador policial. Neste
sentido, os salões de bebidas das casas de tolerância e as próprias zonas de
meretrício eram espaços de socialização em que ocorriam a suspensão de
diferenças como aquelas, entre a criminalidade e as autoridades policiais.
Por fim, outro ponto relativo as sociabilidades na marginalidade curitibana e
que fica implícito nas matérias dos jornais, são as relações entre as mulheres
envolvidas na história. A meretriz Helena foi representada pelo jornais como o pivô
dos acontecimentos apesar das testemunhas afirmarem que o casal Antonieta e
Pedro já haviam discutido antes do seu envolvimento. Segundo a Gazeta, Helena
residia na pensão de Antonieta até o dia 26, e teve que se mudar devido a ciúmes29.
Se este foi o caso, por quê Helena estava na pensão de Antonieta no dia seguinte? A
possibilidade de este não ser um relacionamento conflituoso deve ser levada em
consideração, talvez Helena tenha rejeitado Freitas justamente porque sabia do seu
relacionamento com a dona da pensão. Pensando sobre a prostituição no mesmo
período, mas na cidade de Florianópolis, Ivonette Pereira afirma que “amizade e
companherismo deveriam ser uma constante, bem como suas paixões e amores”30
ao citar as relações entre as próprias meretrizes e refletindo sobre a criação de laços
entre estas mulheres geralmente afastadas de suas famílias. Ainda segundo a
reportagem da Gazeta, o enterro de Antonieta no cemitério do Água Verde, teve
grande acompanhamento. Considerando que a sua pensão ficava em uma rua
29 GAZETA..., op. cit., 28/08/1937, p. 2. 30 PEREIRA, Ivonete. “As decaídas”: prostituição em Florianópolis (1900-1940). Florianópolis: Editora da UFSC, 2004, p. 108.
conhecida pelas atividades e espaços marginais, inclusive uma considerável zona de
meretrício, é provável que muitas dos suas companheiras de atividade pertecessem
ao grupo que participou do enterro, enfatizando a possibilidade de uma rede de
solidariedade entre as meretrizes.
Provavelmente, há muitas nuances que não foram abordadas aqui e reforçam
a distância entre o cotidiano do meio urbano e as relações que nele se desenvolvem
das visões de mundo que buscavam um sociedade ideal baseada na moral
burguesa. O controle efetuado pela identificação das meretrizes buscava perseguir a
trajetória dos indivíduos e, através do saber e da tecnologia que destacavam o corpo
e alguns aspectos das suas relações sociais, classificá-los em categorias
estabelecidas a partir de concepções como família e trabalho, como se buscasse
através da identificação atribuir uma identidade. No entanto, percebe-se que as
relações diárias, acontecimentos e situações tornavam o arquivo policial
constantemente incompleto quando se tratava das classes perigosas das cidades.
Acontecimentos trágicos como o assassinato de Antonieta, capitalizados em forma
de notícias sensacionais, permitem ao historiador reunir fragmentos destes aspectos
mais cotidianos e que, de outra forma não ficariam registrados, afim de compreender
as dinâmicas próprias do meio urbano da Curitiba do começo do século.
Referências
Fontes documentais
DIÁRIO DA TARDE. Amor infeliz. 27 de agosto de 1937, p. 1, 8.
DIÁRIO DA TARDE. Amor infeliz. 28 de agosto de 1937, p. 1.
Gabinete de Identificação e Estatística do Estado do Paraná. Promptuario n. 18 de
Antonieta Dino.
Gabinete de Identificação e Estatística do Estado do Paraná. Promptuario n. 16071
de Helena Quadros.
GAZETA DO POVO. Ensopada de sangue uma pensão alegre! 27 de agosto de
1937, p. 1.
GAZETA DO POVO. Ensopada de sangue uma pensão alegre. 28 de agosto de
1937, p. 1-2.
Referências bibliográficas
BENVENUTTI, Alexandre Fabiano. As Reclamações do Povo na Belle Époque: a
cidade em discussão na imprensa curitibana (1909-1916). Dissertação (Mestrado em
História). Universidade Federal do Paraná, 2004.
BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial
no Rio de Janeiro, 1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
GRUNER, Clóvis. Paixões torpes, ambições sórdidas: transgressão, controle social,
cultura, e sensibilidade moderna em Curitiba, fins do século XIX e início do XX. Tese
(Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná, 2012.
GUIMARÃES, Valéria. Sensacionalismo e modernidade na imprensa brasileira no
início do século XX. ArtCultura, Uberlândia, v. 11, n.º 18, p. 227-240, jan/jun. 2009.
PEREIRA, Ivonete. “As decaídas”: prostituição em Florianópolis (1900-1940).
Florianópolis: Editora da UFSC, 2004.
PILLOTO, Osvaldo. Cem anos de imprensa no Paraná (1854-1954). Curitiba:
Recommended