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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA
IVAN JORGE SOUSA PESSOA
O CONCEITO EXISTENCIAL DE CIÊNCIA EM SER E TEMPO DE
MARTIN HEIDEGGER: UMA HERMENÊUTICA DAS CIÊNCIAS
NATURAIS.
Teresina-PI
2012
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA
O CONCEITO EXISTENCIAL DE CIÊNCIA EM SER E TEMPO DE MARTIN
HEIDEGGER: UMA HERMENÊUTICA DAS CIÊNCIAS NATURAIS.
Dissertação apresentada como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre, pelo Mestrado em Ética e
Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras,
Universidade Federal do Piauí.
Orientador: Prof. Dr. Almir Ferreira da Silva Júnior
Teresina-PI
2012
2
FICHA CATALOGRÁFICA
Universidade Federal do Piauí
Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco
Serviço de Processamento Técnico
P475c Pessoa, Ivan Jorge Sousa
O Conceito existencial de ciência em ser e tempo de Martin
Heidegger: uma hermenêutica das ciências naturais/Ivan Jorge
Sousa Pessoa. – 2012.
104f.
Dissertação (Mestrado em Ética e Epistemologia) -
Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2012.
Orientação: Prof. Drº. Almir Ferreira da Silva Júnior
1. Ontologia. 2. Metafísica. 3. Hermenêutica. 4. Heidegger,
Martin. I. Título.
3
“Todas as origens são secretas.”
Amiel.
4
AGRADECIMENTOS
A Deus em primeiro lugar pela companhia nos beirais da estrada. À minha mãe
Denise e ao meu pai Humberto, à minha irmã Flávia: família e esteio de minhas realizações.
À Glaucia Lindoso, mulher da minha vida, que nos momentos mais difíceis me abriga em
seus pequenos braços, e que de perto se revelam tão grandiosos. À Dona Cristina Lindoso e à
Larissa Lindoso, pelo aconchego de uma segunda família.
Aos amigos Diogo e Wandeilson, pelas discussões filosóficas e pela distância,
Dyêgo Marinho, Thiago Dias, Elenato Masson, Clay e Clayber Rocha, os bossanovistas. Ao
Professor Alberico Carneiro, intelectual e incentivador, ao poeta Luís Augusto Cassas, ao
estimado professor Luciano Façanha, o grande responsável por minha carreira acadêmica, e
em especial ao orientador Almir Ferreira da Silva Júnior, aquele que melhor me traduz o
sentido da palavra: elegância intelectual.
Ao tio Antônio Pessoa, grande responsável pelo blues e pela poesia. Aos primos
André e Paulo Thiago, meus parceiros de música, nas horas de Nelson Gonçalves e Screamin
Jay Hawkins, que a despeito de todas as lonjuras, ainda se assemelham aos mesmos de
outrora, das rodadas de café ao som dos Beatles. Aos primos Flávio, Marquinho, Swamy,
Neto, Leonardo e Paolla pelas horas descontraídas de alegrias.
Aos amigos de Mestrado: Jaaziel, Gadafy, Robson, Joedson, Chagas, Adaílson,
Daniel, Alexander, Osvaldino, Isabel Cristina, Lorena, Cláudia Raquel, Virna, e em especial
Antônio Marcos, pelas sábias conversas sobre Schopenhauer e a música de Raulzito, e Marcos
Roberto pela amizade antiga, pela batalha vencida entre as sinuosas estradas que separam São
Luís/Teresina, companheiro da melancolia das tardes confessadas perante o livro de Sartre,
das noites da boêmia beatnik, entre as discussões sobre Deus e Bob Dylan. Aos eventuais
amigos da vida universitária de Teresina: Ítalo Sousa, vulgo Roberto Carlos, André Ibiapina,
Ozael e Markus Emanuel. Aos engraxates da rodoviária de Teresina, que solicitamente
sempre apuravam meus calçados para a incansável batalha das viagens na longa estrada.
Aos professores da UFMA: Plínio, José Fernandes, Zilmara, Olília, vocês são
igualmente responsáveis por estes caminhos, aos professores da UFPI: Hélder, Luizir, Gérson,
Luciano Donizete, quantas idéias dinamitadas, quantas descobertas. À secretária do Mestrado,
Zélia. Ao professor e conterrâneo Ricardo pelas sugestões acatadas em minha banca de
qualificação. Aos professores da UFRJ e UERJ, respectivamente: Fernando Fragozo, e em
5
especial Antônio Augusto Passos Videiras e sua mãe Dona Ana Passos, pela acolhida na
cidade do Rio de Janeiro, responsáveis que são por esta dissertação, estas palavras ainda são
insuficientes por tanta estima. Aos eventuais amigos feitos em Buenos Aires: Felipe Verdi e
Luciano Mascaró.
Aos tios Omar, Aliomar, Luís e David e em especial Paulinho, pela disposição em
sonhar e empreender conquistas. Às tias Selma e Maria Raimunda.
À tia Jaciara, por sua visão pragmática e objetiva acerca das coisas, e em especial
à tia Neguinha, minha eterna companheira.
À afilhada e prima Luciana Monalisa e à priminha Mariana.
Às minhas avós Benedita Gonçalves (in memoriam) e Maria Silva.
Aos avôs Antônio Pessoa (in memoriam), meu arquétipo do leitor inveterado e
Raimundo, exemplo maior de honestidade e honra.
6
RESUMO
Este estudo objetiva abordar a filosofia de Heidegger em sua compreensão acerca da gênese
ontológica do comportamento científico, buscando especificamente em Ser e Tempo, uma
tematização existencial sobre as ciências naturais. Para tanto se faz necessária uma abordagem
prévia sobre a constituição fundamental do existente humano, doravante Dasein, ente com
respectivo privilégio ontológico no tocante ao conhecimento. Nesse sentido, a referência ao §
69 da obra em destaque, torna-se decisiva, almejando-se desse modo, uma leitura
hermenêutica das ciências naturais que, vinculará a temporalidade do ser-no-mundo à
descoberta científica dos entes intramundanos, na relação fundamental entre ocupação e
circunvisão. Mobilizando a questão do conhecimento para os limites metodológicos da
mundaneidade temporal do Dasein, Heidegger desloca o foco para o âmbito de uma ontologia
fundamental, a despeito de uma teoria do conhecimento propriamente. Relacionar a finitude
humana com o conhecimento científico, eis o que se objetiva nos meandros dessa pesquisa.
Palavras-chave: Ontologia fundamental, Metafísica, Hermenêutica das Ciências Naturais.
7
ABSTRACT
This study aims to address the philosophy of Heidegger in his ontological understanding of
the genesis of scientific behavior, specifically looking for in Being and Time, an existential
thematization of the natural sciences. For this purpose it is necessary a previous approach on
the existing constitution of the existential human Dasein now, ontological entity with its
privilege with respect to knowledge. In this sense, the reference to § 69 of the work
highlighted, becomes decisive, aiming to be this way, a hermeneutic reading of the natural
sciences who binds the temporality of being in the world in scientific discovery of loved
innerworldly, the relationship between occupation and fundamental circunvisão. Mobilizing
knowledge to the question of the methodological limitations of time worldliness of Dasein,
Heidegger shifts the focus to the scope of a fundamental ontology, in spite of a theory of
knowledge itself. Relate human finitude with scientific knowledge, this is what is objectively
in the intricacies of this research.
Key-words: Fundamental ontology, Metaphysics, Hermeneutics of Natural Sciences.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 09
Capítulo I - A abertura do Dasein enquanto ser-no mundo .......................................... 17
1.1 Ser e Tempo: uma analítica existencial do Dasein ..................................................... 17
1.2 O sentido metodológico da ontologia fundamental ................................................... 19
1.3 A mundaneidade do mundo: compreensão e abertura enquanto constituição
fundamental do Dasein .............................................................................................. 21
1.4 A mundaneidade do mundo: Introdução à Filosofia ................................................. 26
1.5 O ser-em: o si mesmo da compreensão do Dasein enquanto abertura ....................... 28
1.6 O ser-com: a compreensão do Ser e o comportamento do Dasein para com os
entes intramundanos ................................................................................................... 32
1.7 A temporalidade ekstática da cura (Sorge) como modo de fundação das ciências
ônticas ........................................................................................................................ 37
Capítulo II - A transcendência no horizonte ekstático/temporal do Dasein ................ 41
2.1 A condição transcendental do Dasein ........................................................................ 41
2.2 A transcendência do Dasein enquanto ente ekstático de compreensão ..................... 42
2.3 A projeção moderna da natureza ................................................................................ 51
2.4 O conceito existencial de ciência ............................................................................... 62
2.5 O comportamento científico como modalização existencial ..................................... 64
Capítulo III - O mundo enquanto o como transcendental do Dasein ........................... 71
3.1 Implicações ontológicas do comportamento científico .............................................. 71
3.2 O método fenomenológico-hermenêutico: a abertura e o encobrimento do Ser no
horizonte da facticidade do Dasein ............................................................................ 72
3.3 A compreensão fenomenológico-hermenêutica de ciência ........................................ 81
3.4 Ciência e historicidade: uma hermenêutica das ciências naturais .............................. 84
3.5 A visada finita do comportamento científico ............................................................. 90
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 95
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 100
9
INTRODUÇÃO
Em um sentido estritamente metafórico, a palavra ciência relaciona-se com visão,
o que atesta desse modo, o caráter não meramente operativo desta prática, antes sua
proveniência focal ou ocular. Ademais, sendo visual, a ciência não pode açambarcar a
totalidade dos fenômenos em função de seus próprios limites de perspectiva, muito menos
pretender se eximir de sua condição, porquanto, tenha a temporalidade por fundamento. Tal
argumento refuta desde já, tanto a objetividade absoluta, quanto a neutralidade científica,
dísticos de um positivismo epistemológico, que apregoa a ideia de que, só se pode falar
daquilo que se tem referência, daquilo que é empiricamente apreensível. Como atesta a
legitimidade dos fenômenos naturais, o cientista passa a ser aquele que se pondo à distância,
observa-o com maior acuidade, não se envolvendo, portanto com o objeto observado. Por
conseguinte, a maior imparcialidade possível traz consigo o grau mais avançado de
objetividade, o que decerto se tornaria a tônica da prática científica, subsidiada que seria por
uma metafísica a circunscrever os limites do cognoscível.
Como a ciência é condicionada por um olhar específico, todo constructo científico
se torna apenas uma perspectiva, o que nos leva à certeza hermenêutica de que: a
determinação de uma coisa leva necessariamente à indeterminação de outra. Ao isolar um
fenômeno qualquer em busca de suas propriedades, o cientista fixa o olhar naquilo que o
inquieta, anulando outras propriedades, sedimentadas que serão por suas virtualidades
históricas. Segundo Babich:
Dating from the fourteenth century, the word Wissenchaft was coined for the needs
of a theological and mystical context in order to translate sciens, scientia which is
likewise rendered by the English word science, with its further roots in the Latin,
scire, to know, and related to scindere, to cut, divide. (…) As philologist, Nietzsche
was characteristically conscious of this root connection between vision and scientific
knowledge – hence his focus on the ocular tendency of science in general – but
especially natural science. 1 (2007, p. 212)
Destarte, como o campo visual limita-se em sua própria órbita, é natural que haja
na visão científica qualquer elemento delimitador, afinal a intervenção humana em face do
1 “Datando do século XIV, a palavra wissenchaft foi inventada para as necessidades de um contexto teológico e
místico, a fim de traduzir sciens, scientia que, também se presta a palavra inglesa science, com suas raízes ainda
no latim, scire, saber, e relacionados ao scindere, cortar, dividir. (...) Como filólogo, Nietzsche era
caracteristicamente consciente desta conexão originária entre a visão e o conhecimento científico - daí seu foco
sobre a tendência ocular da ciência em geral - mas especialmente a ciência natural.”
10
mundo, é senão seu pressuposto. Pensar em ciência e sua respectiva visualidade é relacioná-la
com a disponibilidade do homem e sua temporalidade incondicional, ou seja, é humanizá-la.
Nesse sentido, a atividade científica enfeixa-se como uma visada teórica no limiar da
mundaneidade originária. Sendo um empreendimento focal, a pergunta mais razoável em se
tratando de ciência, é aquela que se questiona quanto às condições de possibilidade à
apreensão do mundo exterior, ou seja: é possível se conhecer o mundo natural? Outrora,
subsidiada que era pela metafísica e o princípio de Razão suficiente, segundo o qual nada é
sem razão de ser, a questão científica desdobrava-se via entificação do Ser, de modo que a
busca pela essência do mundo natural e seus respectivos objetos, tornar-se-ia a tônica da
cientificidade ocidental, à cata da inteligibilidade dos fenômenos físicos 2·.
Arrolada à suficiência metafísica, a postura científica dar-se-ia como uma
contínua busca pela razoabilidade do mundo natural, apreendido em um circuito inteligível de
regularidade, de modo que sob seu alcance, a ciência legitimaria os eventos da natureza. Com
Heidegger, a atenção quanto ao esquecimento do Ser e a consequente ênfase à diferença
ontológica entre Ser e ente, há muito olvidada pela tradição metafísica, surge em um âmbito
eminentemente fenomenológico-hermenêutico3. Tal abertura a uma postura fenomenológica
impõe-se como um cotejamento e posterior liberação da prática científica de seus matizes
metafísicos, afeita à noção epistemológica de causalidade. Nesse sentido, acossar o discurso
científico a certos critérios de demarcação é, com efeito, um propósito deveras metodológico,
o que acarreta por sua vez em uma compreensão hermenêutica. Segundo Stepanich: “The
question that is most frequently asked of science is whether its understanding of the natural
world in fact represents this world as it is in itself.”4 (1991, p. 27)
A essa questão fundamental, Heidegger posiciona-se a favor, de modo que o
mundo natural pode ser conhecido, afinal enquanto ser-no-mundo o Dasein ocupa-se com os
entes de um modo notadamente conceitual ou investigativo. “Heidegger‟s central thesis is
2 Segundo o filósofo Bento Prado Júnior na quarta aula do curso Kant e o Problema da Metafísica: “E vai e
termina na ciência/tecnologia que é a realização da metafísica do princípio da razão suficiente.” Fonte:
(http://www.consciencia.org/heideggerkantcursobento4.shtml)
3 Para Heidegger a diferença ontológica pode ser compreendida como a distinção entre o Ser e o ente – o Ser é o
antípoda do ente, ou seja, seu oposto, neste sentido é o nada, não como nihil absolutum (nada absoluto), antes
como transcendência em face do ente, portanto, sua ultrapassagem. Como a metafísica não dimensiona o Ser no
âmbito de sua diferença, o concebe por sua vez em um âmbito puramente essencialista, da presença do ente
(Anwesenheit), segundo Heidegger, razão do esquecimento ontológico.
4 “A questão mais frequente da ciência é saber se a sua compreensão do mundo natural, de fato representa este
mundo como ele é em si mesmo.” (Todas as traduções presentes foram feitas pelo autor).
11
that, although natural objects are independently of human beings, the being of these objects is
only in human understanding.5” (STEPANICH, 1991, p. 23)
Levando em conta o fato de que a ciência investiga determinadas regiões do
conhecimento de maneira injustificada, urge, por conseguinte, uma elucidação que tome o
Dasein enquanto pressuposto, decerto enquanto ente que se vincula primariamente e
aprioristicamente com o mundo, por conseguinte, empreende-se prioritariamente uma
ontologia fundamental em vez de uma teoria do conhecimento. De outro modo, percebe-se a
tentativa de se construir uma fundamentação das ontologias regionais das ciências pelo viés
pré-discursivo da mundaneidade fundamental do Dasein6, ou seja, a despeito de uma tradição
subsidiada por absolutos, tão cara à metafísica.
Pensar as ontologias regionais em tais termos é empreender uma leitura
existencial do conceito mesmo de cientificidade (§ 69, Ser e Tempo7) que de certa feita, ao
priorizar o caráter pré-científico da abertura ao mundo fáctico e ulterior exclusão de qualquer
exterioridade ao Dasein; como Deus ou princípios a priori, dispõe à questão epistemológica,
o abandono das polarizações comumente aceitas entre realismo e idealismo, sujeito e objeto,
de modo que o caráter prévio e em aberto do Dasein torna-se, pois, a estrutura primária à
consecução do discurso científico no tocante à tematização dos entes em suas respectivas
regiões.
De um modo esquemático, Heidegger pensa o conhecimento primeiramente como
resultado da ocupação do mundo, por meio do qual os entes disponíveis revelam-se em
encontro, de modo que toda e qualquer pesquisa científica surge em um âmbito
fundamentalmente pré-ontológico, no aberto da mundaneidade. Se somente o Dasein funda,
5 “A tese central de Heidegger é que, embora os objetos naturais estejam independentemente dos seres humanos,
o ser desses objetos está apenas no entendimento humano.”
6 O termo Dasein, originário da terminologia de Ser e Tempo, é aqui reapropriado nas citações da obra em
português (2005) como pre-sença, em decorrência da tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback, não
interessando, portanto, os desdobramentos de tal uso.
7 Ainda que a obra mais importante na presente pesquisa seja Ser e Tempo - o que para alguns estudiosos de
Heidegger configuraria uma primeira fase de seu pensamento - muitas das análises aqui suscitadas, não
dispensam a breve interlocução de obras posteriores àquela, o que de certa feita, demonstra a sistemática de sua
filosofia. Ademais, minimizam-se os efeitos de conceitos como técnica e gestell, presentes em obras como:
Sobre a essência da técnica (1953), por desconsiderar demasiado os critérios metodológicos de uma ontologia
fundamental e a consequente reorientação filosófica da chamada viragem (Kehre), termos que põem em dissenso
o propósito em curso. Desse modo é que se endossa Ser e Tempo, especificamente o § 69 da obra em questão,
ressaltando-se o conceito existencial de ciência, bem como ontologia fundamental, em detrimento das aspirações
posteriores do filósofo, conhecidas como provenientes de um segundo Heidegger, notoriamente à distância das
pretensões metodológicas cá esboçadas, ou seja, tudo o que pretendemos na presente pesquisa é evidenciar a
relação ontológica entre as ciências ônticas, que versam sobre os entes, e a temporalidade finita do Dasein.
12
porquanto, compreenda o Ser, novamente recai sobre o solo antepredicativo da mundaneidade
do mundo enquanto abertura o estofo de fundação de todo e qualquer saber, o que se nos
ocasiona a tese do caráter não meramente sintético desse ente privilegiado, mas, sobretudo,
transcendental. Segundo Joseph Rouse em Heidegger on science and naturalism: “Heidegger
calls such an attempt to characterize science from the standpoint of being-in-the-world and
„existential conception of science‟ which is concerned to articulate „the condition for the
possibility of (our) existing in the way of scientific research.8” (2003) Se antes advindo de
todas as teorias da consciência, aliás, de toda metafísica propriamente, a noção de que o
conhecimento, portanto, a objetividade, resultaria de potentados transcendentais, haja vista: o
primeiro motor imóvel, Deus, a substância egóica do cogito, a vontade de potência, a partir de
Heidegger a mudança de paradigma quanto ao conhecimento acompanhará uma mudança à
compreensão científica, necessariamente. Não menos relevante, é a ênfase dada ao
background de inteligibilidade ressaltada por Charles Guignon, segundo o qual: “In the
picture that emerges in Being and Time, we come to see that the background of intelligibility
that permeates our everyday practices is prior to, and a condition for there being anything
like, scientific or rationalist forms of grounding.9” (1983, p. 38).
Esvaziar o campo transcendental de qualquer absoluto, em um âmbito
consequente de finitude, para em seguida dotar o Dasein de certo privilégio ontológico no
tocante ao conhecimento, eis em outras palavras o que se pretende com tal pesquisa. Só se faz
ciência porque o mundo se releva de um modo não funcional, ou seja, indisponível, o que
atesta decerto sua desocultação. Em linhas gerais o que se pode aferir quanto ao conceito
heideggeriano do conhecimento científico, é o fato de que ao implicar o método
fenomenológico-hermenêutico com o conceito existencial de ciência, o signo da
temporalidade avulta-se como o fundamento para tal atividade desveladora, de sorte que há
assim, o abandono de qualquer pretensão definitiva no tocante à cientificidade, ou seja, com
Heidegger conhecimento é imediatamente provisoriedade, afinal toda revelação traz consigo
uma ocultação.
8 "Heidegger chama essa tentativa de caracterizar a ciência do ponto de vista do ser-no-mundo-e „concepção
existencial da ciência‟, que está em causa, para articular „a condição de possibilidade de (nosso) existente no
caminho da pesquisa científica.”
9 “Na imagem que emerge em Ser e Tempo, passamos a ver que, o background de inteligibilidade que permeia
nossas práticas cotidianas, é primordial e condição para que não haja nada parecido com formas científicas ou
racionalistas de fundação.”
13
Se para a metafísica tudo seria compreensivo por meio de um fundamento
inconcusso a mediar à relação do conhecimento e sua sanha essencial do que é, para a
fenomenologia-hermenêutica, a prática científica implicaria um modo de ser do existente
humano, portanto, um como, em que toda posição teórica não esconde terminantemente
propriedades categorias, antes modos ou possibilidades.
Nesse sentido, toda a coerência lógica das proposições científicas desloca-se de
uma autossuficiência apodítica para uma antecedência fundamental, de modo que assim a
ciência enquanto discurso, assenta-se nas bases de uma modalização existencial do Dasein
enquanto ser-no-mundo. O comportamento teórico enquanto tal é antecedido por um
envolvimento imediato e cotidiano com o mundo. Dito de outro modo há uma prioridade
fundamental de um campo pré-científico que significa os objetos muito antes como
instrumentos em uma teia referencial de sentido. Não existe problema científico in abstracto
ou ex nihil - em que nada surja do nada - o que há, portanto, é uma perda da funcionalidade do
mundo. Sendo assim, apenas no âmbito instrumental dos objetos que vêm ao encontro na
ocupação é que se pode pensar em cientificidade propriamente, de sorte que a estrutura prévia
da compreensão lida operativamente de modo primário nos limites de tal abertura. De modo
não menos providencial, a recorrência a hermeneutas das ciências naturais 10
, como Patrick A.
Heelan, Robert Crease, Daniel Videla, Glazebrook, Theodore Kisiel, dentre outros, se fará
presente, de forma a endossar a relevância da pesquisa em questão, com efeito, como afirmara
Joseph Rouse em Heidegger on science and naturalism: “Heidegger thought an „existential‟
conception of science was needed, because „sciences, as human comportmants, have
(Dasein‟s) way of being‟” 11
. (2003, p. 06). Como se afirmou anteriormente, dito de um modo
esquemático, o que se pretende com essa pesquisa, é sondar o comportamento científico em
10
Para maiores esclarecimentos às questões metodológicas e suas implicações hermenêuticas, algo que nos
reporta à clássica distinção entre ciências do espírito e ciências naturais, sugere-se a leitura do livro Verdade e
Método I de Hans-Georg Gadamer, especificamente o capítulo: A superação da dimensão estética – A
significação da tradição humanista para as ciências do espírito. (1997, pp 37- 44). Ademais, de um modo
preliminar, é necessário justificar o usufruto demasiado dos comentadores citados, em sua maioria de verve
anglo-saxônica e a referência aos seus respetivos artigos, de modo que todas as presentes traduções foram
realizadas pelo autor da pesquisa. Ora, tal recorrência se deve, sobretudo, à falta de teóricos de língua portuguesa
no âmbito da questão, o que, com efeito, se origina de um diálogo entre a filosofia analítica com a chamada
filosofia continental, o que acarreta por sua vez, uma leitura hermenêutica de questões epistemológicas. Para
maiores esclarecimentos, sugere-se a leitura de Babette Babich: Early Continental Philosophy of Science (2010).
11 “Heidegger pensou uma concepção 'existencial' de ciência precisa, porque „as ciências, como
comportamentos humanos, têm os modo de ser do (Dasein).”
14
sua gênese 12
, tomando como prerrogativa a existencialidade da ciência, para tanto, faz-se
necessária uma analítica existencial do homem, investido em sua condição de Dasein, com
suas respectivas especificidades, destarte, primeiro capítulo da temática em questão.
A princípio, a analítica existencial totaliza a constituição ontológica do Dasein,
compreendida enquanto ser-no-mundo, mostrando que o homem compreende o Ser reiteradas
vezes, dada sua condição eminentemente hermenêutica ou inteligível. Enquanto ente que se
localiza no mundo, e o mundo é a sua acolhida, o Dasein enquanto ser-em e ser-com é
constantemente alcançado pelos entes intramundanos, razão da rede intencional das
atribuições. Ademais tendo o mundo como constituição existencial de seu ser, o Dasein que
opera com uma prévia compreensão, ocupa-se com o mundo que se lhe circunscreve. A
passagem da ocupação para a circunvisão, fundamento da atitude científica, torna-se, pois,
objeto de um capítulo subsequente, portanto, segundo capítulo da referida pesquisa.
Não estabelecendo relações para com os entes tão somente no âmbito enunciativo
do discurso, antes na lida cotidiana da instrumentalidade, o Dasein comporta-se ademais,
como um ente investigador, ente que é essencialmente conceitual, mensurando
categoricamente o objeto que o inquieta. Considerar a ciência como atividade investigativa do
Dasein, como um comportamento originado de uma ocupação transformada em circunvisão, é
sem mais, considerá-la em um âmbito notadamente contextual. A partir do momento que um
ente intramundano vem ao encontro do Dasein em um campo eminentemente operativo no
instante da ocupação, se tem peremptoriamente a gênese da prática científica, modificada que
será posteriormente pela circunvisão e sua respectiva tematização que, por meio da
objetivação adensa propriedades categoriais ao objeto. Segundo Heidegger:
Mas para que a pre-sença possa lidar com um nexo instrumental, ela deve
compreender, mesmo que não tematicamente, algo como conjuntura: um mundo já
se lhe deve ter aberto. Este se abre junto com a existência de fato da pre-sença, uma
vez que ela existe, essencialmente, como ser-no-mundo. E se, por fim, o ser da pre-
sença se funda na temporalidade, esta deve, pois, possibilitar o ser-no-mundo e, com
ele, a transcendência da pre-sença que, por sua vez, inclui o ser em ocupação, seja
teórico ou prático, junto aos entes intramundanos. (2005, p.165)
Se primariamente a relação do Dasein para com os entes intramundanos é uma
relação instrumental conduzida pela ocupação operativa no modo de ser da disponibilidade
cotidiana, só há conhecimento científico no instante decisivo em que os instrumentos
disponíveis (zuhanden) mostram as indisponibilidades dos entes subsistentes (vorhanden). Ao
12
O conceito ontológico de gênese no pensamento de Heidegger - no caso específico do § 69 de Ser e Tempo,
que se vincula às proveniências originárias do comportamento científico – pode ser melhor elucidado com a
leitura da obra de Theodore Kisiel: The genesis of Heidegger‟s Being and Time. (1993).
15
tornar-se ausente, ou mesmo desprovido de uso, o ente imediatamente disponível abre-se a
uma ressignificação, de modo que o como hermenêutico, prático e operativo, enseja o como
apofântico da atitude teórica, no espaço judicativo da predicação13
. Libertos do caráter
cotidiano da disponibilidade, os entes tornam-se objetos, ocasionando ao Dasein o instante
decisivo da cientificidade.
Encerrar essa pesquisa com o usufruto exemplar da física-matemática, âmbito
utilizado por Heidegger no tocante a tais questões, eis o que se objetiva com um capítulo
derradeiro. No tocante à projeção físico-matemática de viés moderna, se percebe a
característica da ciência e sua antecipação em face do ente, de sorte que descontextualiza sua
prioridade prática disponível à prescrição conceitual de certas propriedades, encerrando-o em
uma redoma objetual a ser representada por um sujeito cognoscente. Por focar o ente
subsistente em um projeto prévio, a ciência não possui condições ao modo de acesso ao ser do
ente, sobrepondo a essência ao como de qualquer mostração, o que acaba por lhe indispor na
teia mensurável da calculabilidade, o que é senão implementar uma antecipação da natureza
como um constructo matemático de prescritível regularidade. Como tudo se dá no aberto da
diferença ontológica do velamento/desvelamento, um como hermenêutico sempre se antecipa
a uma visada teórica, de modo que todo conhecimento ôntico se apresenta como pré-
científico, o que põe o mundo como pressuposto, daí porque toda tentativa metafísica a
subsidiar uma física, implicaria por sua vez em uma essencialização da natureza,
compreendida por um viés eminentemente causal. A antecipação da mundaneidade à cognição
implica um círculo hermenêutico que, passa a se vincular ao alcance teórico do
comportamento científico, tomado a partir de então como uma modalidade existencial do
Dasein.
As repercussões desta mudança paradigmática franqueiam uma hermenêutica das
ciências naturais e consequente implicação de certos expedientes à questão científica. Como
consequência do anteriormente dito, ciência como comportamento existencial no mundo,
circunscreve-se aos limites da finitude originária, de forma que se desdobra temporalmente.
De um modo elucidativo, cita-se Joseph Rouse: “Heidegger‟s early philosophy of science had
three principal themes: A) the priority of fundamental ontology of science, B) the need for an
„existential conception of science‟, C) and the ontological significance of science as the
13
Segundo Reis: “ O procedimento da gênese ontológica do comportamento teórico consiste em mostrar a
modificação originada a partir do comportamento ocupacional cotidiano, ou seja, quando os entes deixam de ser
projetados como utensílios para metas determinadas, sendo então compreendidos apenas como objetos
portadores de propriedades. Trata-se da modificação da Zuhandenheit em Vorhandenheit.” (2002, p.391)
16
discovery of the occurent(vorhanden)14
” (2003, p. 04). Portanto, é no entrechoque do Dasein
no mundo que se torna possível uma compreensão existencial de ciência, objetivo da seguinte
pesquisa.
14 "A filosofia inicial de Heidegger sobre a ciência, tinha três principais temas: A) a prioridade da ontologia
fundamental da ciência, B) a necessidade de uma „concepção existencial de ciência‟, C) e do significado
ontológico da ciência como a descoberta dos entes subsistentes (vorhanden ). "
17
CAPÍTULO I: A ABERTURA DO DASEIN ENQUANTO SER-NO-MUNDO
1.1 Ser e Tempo: Uma analítica existencial do Dasein.
Ainda que não tenha sido a questão primordial de sua filosofia, o problema do
conhecimento surge de um modo transversal e não menos decisivo no pensamento
heideggeriano. Segundo Trish Glazebrook, a principal tarefa de uma filosofia da ciência é no
mínimo questionar o que constitui a ciência, ou seja, qual o seu fundamento último, de sorte
que Heidegger o estabelece por um viés diferenciado:
The task of the philosopher of science is, at least in part, to ask what constitutes
science. Heidegger is certainly a philosopher of science in this respect. Over several
decades he explores the thesis that science is the mathematical projection of nature
(…) the idea that science is the mathematical projection of nature runs throughout
Heidegger‟s work as a background against which his critique of modernity unfolds 15
. (2000, p.01)
Conceber a ciência como uma projeção matemática da natureza, propósito de
capítulos subsequentes da presente pesquisa, põe Heidegger em um plano exclusivo no
panorama da epistemologia corrente, afinal suscita uma leitura existencial do fenômeno
científico, a despeito de uma compreensão essencialista de verve metafísica. Diferentemente
da tradição e seu veio substancialista, Heidegger dispõe ao conhecimento científico o
elemento peremptório da mundaneidade e da finitude, inauditos nos constructos da metafísica
clássica, aqui delineada como onto-teo-logia. Para Stephen Mulhall, isso pode ser
compreendido da seguinte forma:
The Western philosophical tradition has often presupposed that the human subject
can in some way transcend the material realm upon which it fixes its gaze, and so
that human beings are only contingently of a world; but, for Heidegger, no sense
attaches to the idea of a human beings existing apart from or outside a world16
.
(1996, p. 60)
15 “A tarefa do filósofo da ciência é, pelo menos em parte, questionar o que constitui a ciência. Heidegger é,
certamente, um filósofo da ciência nesse sentido. Durante várias décadas, ele explora a tese de que a ciência é a
projeção matemática da natureza (...) a idéia de que a ciência é a projeção matemática da natureza funciona
durante todo o trabalho de Heidegger como pano de fundo contra o qual sua crítica da modernidade se
desenrola.”
16 “A tradição filosófica ocidental por muitas vezes, pressupunha que o sujeito humano pode, de alguma forma
transcender o mundo material em que fixa o seu olhar, e que os seres humanos são apenas contingências de um
mundo, mas, para Heidegger, não há sentido atribuir à idéia de um existente humano apartado ou fora do
mundo.”
18
De um modo panorâmico Ser e Tempo empreende um encurtamento hermenêutico
e posterior rejeição das teorias da consciência, encerrando o alcance humano à mundaneidade,
de maneira que soçobram verdades e hipóstases absolutas.
Em sua condição originária, o mundo antecipa-se a qualquer descrição teórica no
aberto da situação fáctica. Tal perspectiva endossa o caráter diferenciado dado ao problema
do conhecimento, não mais atrelado a um fundamento inconcusso a partir do qual se deduziria
leis científicas, o que acaba por facultar à ciência o modo de ser-no-mundo e seu caráter
eminentemente existencial. A instauração de tal paradigma concebe a cientificidade não como
epifenômeno de um sujeito cognoscível, senão como transformação do mundo, tomado em
seu sentido pré-categorial, ou seja, fundamental. Daí, porque, o propósito de Ser e Tempo no
tocante ao conhecimento científico, pode assim ser compreendido segundo Glazebrook:
“Being and Time grounds and limits the sciences by showing that the theoretical atitude is a
modification of everyday understanding.17
” (2000, p. 42)
Desse modo, ciência se torna existencial pelo simples fato de que se vincula
originariamente com a tentativa humana de lidar com o mundo, com efeito, tudo tem a sua
proveniência originária. Endossando-se o fato de que Heidegger não se dispõe a elaborar uma
epistemologia stricto sensu, porquanto, esteja em busca do sentido do Ser, outra não será a
orientação desta pesquisa senão esboçar uma compreensão ontológica do fenômeno científico,
afinal o que está em jogo é a legitimidade primordial da própria ciência. Dito de outro modo:
quais são os limites do alcance teórico da ciência e sob quais condições, os objetos ou entes
podem ser compreendidos em suas especificidades? A despeito de uma postura que otimiza
consideravelmente o discurso científico, sobrevalorizando-o, objetiva-se com esta pesquisa,
limites metodológicos à ciência implicada preliminarmente com a temporalidade finita
daquele que se põe pesquisar. Empreender tal propósito é suscitar entrementes uma ontologia
fundamental, assim expressa por Robert J. Dostal:
The question for Being and Time is the question of being. In the Introduction,
Heidegger tells us that he seeks to clarify the meaning of being (BT 3I). This is his
question, he tells us further, because it is the most basic question. All other questions
presuppose that there is being, and all the sciences make assumptions about being.
Since the work is about being and not about this or that sort of being of entity, his
task is, in the first place, ontology. He calls the work „fundamental ontology‟
because it is concerned with the most basic question and because ontologies of the
various sorts of entities necessarily presuppose it.18
(1993, p. 151)
17 “Ser e Tempo fundamenta e limita as ciências, mostrando que a atitude teórica é uma modificação do
entendimento cotidiano.”
18 “A questão de Ser e Tempo é a questão do Ser. Na Introdução, Heidegger nos diz que ele procura clarificar o
significado de Ser (BT 3I). Esta é sua pergunta, ele endossa, porque é a pergunta mais elementar. Todas as outras
19
Para tais esforços, a leitura de Heidegger, sobretudo, Sobre a essência do
fundamento (Der Satz vom Grund, 1929) Introdução à filosofia (Einleitung in die
Philosophie, 1928/29) e especificamente Ser e Tempo (Sein und Zeit, 1927), se farão
presentes.
1.2 O sentido metodológico da ontologia fundamental.
A grande meta almejada em Ser e Tempo, enquanto limiar da caminhada
heideggeriana rumo à questão do sentido do Ser, objetiva preliminarmente sondar o único
ente de compreensão, a propósito Dasein, que nas traduções correntes para o português, ora é
tomado por eis-aí-ser, ora Ser-aí, e em algumas traduções como pre-sença, termo empregado
na edição trabalhada:
Elaborar a questão do ser significa, portanto, tornar transparente um ente- o que
questiona- em seu ser. Como modo de ser de um ente, o questionamento dessa
questão se acha essencialmente determinado pelo que nela se questiona- pelo ser.
Esse ente que cada um de nós somos e que, entre outras, possui em seu ser a
possibilidade de questionar, nós o designamos com o termo pre-sença. (2005, p.33)
Ora, a questão acerca do sentido do Ser, perpassa um espaço habitado pelo
Dasein, portanto, eis que se concebe a partir daí uma investigação primeira voltada à sua
especificidade, uma ontologia, fundamentando os desdobramentos das demais ontologias.
Segundo Charles Guignon: “Ontology in the widest sense lays out the conditions for the
possibility of any science.” 19
(1983, p.65) O que de fato se percebe, é que recai sobre o Dasein
o sentido fundamental de qualquer investida sobre o alcance teórico das ontologias regionais.
O exercício de tal postura metodológica seria considerado por Heidegger como ontologia
fundamental 20
, uma reserva pré-compreensiva que sustém originariamente as pretensões
programáticas das demais ontologias. Citando Heidegger:
perguntas pressupõem que há Ser, e todas as ciências fazem suposições sobre o Ser. Desde que o trabalho é sobre
o Ser e não sobre esta ou aquela espécie de ser de entes, sua tarefa é, em primeiro lugar, ontologia. Ele chama de
'ontologia fundamental' o trabalho, porque é preocupado com a pergunta mais elementar e porque as demais
ontologias, a pressupõe necessariamente.”
19 “Ontologia em um sentido mais amplo, estabelece as condições de possibilidade de qualquer ciência.”
20 Com Gadamer em Verdade e Método, especificamente na segunda parte, no tópico 1.3.2: O projeto de
Heidegger de uma fenomenologia hermenêutica se pode compreender a ontologia fundamental como: “O fato
de que o sentido do ser e da objetividade só se torna compreensível e demonstrável a partir da temporalidade e
historicidade da pre-sença.” (1997, p.387).
20
A questão do ser não se dirige apenas às condições a priori de possibilidade das
ciências que pesquisam os entes em suas entidades e que, ao fazê-lo, sempre já se
movem numa compreensão do ser. A questão do ser visa às condições de
possibilidade das próprias ontologias que antecedem e fundam as ciências ônticas.
Por mais rico e estruturado que possa ser o seu sistema de categorias, toda
ontologia permanece, no fundo, cega e uma distorção de seu propósito mais
autêntico se, previamente, não houver esclarecido, de maneira suficiente, o sentido
do ser nem tiver compreendido esse esclarecimento como sua tarefa fundamental.
(2005, p. 37)
De um modo salutar, assim considera Charles Guignon, a respeito do caráter
preliminar de uma ontologia fundamental no bojo da filosofia heideggeriana: “The ultimate
aim of Being and Time is to provide an ontology as a basis for all regional ontologies.” 21
(1983, p. 65) O entusiasmo de Heidegger no ínterim da investigação fundamental em Ser e
Tempo, dota a uma analítica preliminar do Dasein, a sede tanto de um questionamento acerca
do sentido do Ser; haja vista a sua condição ontológica, único ente que o investe e se move
numa certa compreensão de Ser, quanto à fundação metodológica das demais ciências ou
ontologias, o que quer dizer, por conseguinte, que é por meio da originariedade do Dasein, em
sua mundaneidade fundamental que se inicia toda e qualquer elucubração:
Na questão sobre o sentido do ser, o primeiro a ser interrogado é o ente que tem o
caráter da pre-sença. Em subcondição preparatória, a analítica existencial da pre-
sença necessita, de acordo com seu modo próprio de ser, de uma exposição e
delimitação em face de investigações aparentemente equivalentes (capítulo I).
Mantendo-se o ponto de partida já estabelecido na investigação, deve-se liberar uma
estrutura fundamental da pre-sença, o ser-no-mundo (capítulo II). Este “a priori” da
interpretação da pre-sença não é uma determinação composta por adição, mas uma
estrutura originária e sempre total. Não obstante, oferece perspectivas diversas dos
momentos que a constituem. Mantendo-se continuamente presente a totalidade
preliminar desta estrutura, deve-se distinguir fenomenalmente os respectivos
momentos. Torna-se, pois, objeto de análise: o mundo em sua mundaneidade
(capítulo III); o ser-no-mundo como ser-com e ser-próprio (capítulo IV); o ser-em
como tal (capítulo V). Com base nos resultados da análise desta estrutura
fundamental será, então, possível delinear provisoriamente o ser da pre-sença. O
sentido existencial da pre-sença é a cura (capítulo VI). (2005, p. 75)
Segundo Charles Guignon, conceber uma ontologia fundamental implicaria desse
modo, a instauração de uma perspectiva propedêutica para o exercício específico das demais
ciências, de modo que: “Fundamental ontology therefore seems to be a propaedeutic to
genuine ontology and not the fulfillment of the goals of ontology per se.22
” (1983, p. 65) O
êxito de uma ontologia fundamental, encontra-se no âmbito de sua investida sobre o sentido
21 “O objetivo final de Ser e tempo é fornecer uma ontologia como base para todas as ontologias regionais.”
22 “Ontologia fundamental, portanto, parece ser uma propedêutica à ontologia genuína e não o cumprimento dos
objetivos da ontologia per se.”
21
do Ser, o que habilitaria por sua vez, a elaboração de uma reserva de inteligibilidade ao
usufruto das demais ontologias, porquanto, resulte em uma vinculação do Dasein à
efetividade de sua condição temporal. Segundo Robert J. Dostal, tal êxito se daria da seguinte
forma:
Fundamental ontology concerns the meaning of being as such. It establishes the
basis for the ontologies of various regions of being, which, in turn, provide the
philosophical basis for the sciences, clarifying the assumptions and basic concepts of
the sciences (...) As the preceding quotation states, fundamental ontology hopes to
establish the a priori or necessary conditions for the regional ontologies and the
sciences. In other words, fundamental ontology would develop the background
required for the regional ontologies to proceed. It should establish the basic concepts
and assumptions of those fields by making clear the basic or „formal‟ structures of
being23
. (1993, p. 152)
A trajetória temática de Ser e Tempo encaminha-se enquanto ontologia
fundamental, o que acaba por vinculá-la a uma compreensão originária do conhecimento
científico, não via entificação, tão cara à tradição metafísica do o que é o conhecimento, antes
por meio do modo de ser do Dasein e como o ente pode se mostrar. Acirrando-se o fato de
que o mundo se dá não como uma categoria, antes como existencial é que a aprioridade da
mundaneidade do mundo enfeixa em sua estrutura fundamental, a análise que se segue.
1.3 A mundaneidade do mundo: compreensão e abertura enquanto constituição
fundamental do Dasein
Levando-se em consideração o fato de que uma ontologia fundamental desdobra
por seu turno, uma propedêutica para o exercício metodológico das demais ontologias, o
caráter preliminar de investigação tem a mundaneidade do mundo por fundamento. Segundo
Stephen Mulhall, o conceito de mundo em Ser e Tempo, assentado no decurso da obra e
elucidado demoradamente entre os §§ 14 e 24, pode ser compreendido da seguinte forma:
According to Heidegger, the notion of „world‟ can be used in at least four different
ways: 1. As an ontical concept, signifying the totality of entities that can be present-
at-hand within the world. 2. As an ontological term, denoting the Being of such
present-at-hand entities – that without which they would not be beings of that type.
3. In another ontic sense, standing for that wherein a given Dasein might be said to
23 “Ontologia fundamental diz respeito ao significado do Ser enquanto tal. Ela estabelece a base para as
ontologias de várias regiões do Ser, que, por sua vez, fornece a base filosófica para as ciências, esclarecendo as
premissas e conceitos básicos da ciência (...). Como afirma a citação anterior, a ontologia fundamental anseia
estabelecer condições a priori ou necessárias para as ontologias regionais e as ciências. Em outras palavras, a
ontologia fundamental desenvolveria o plano de fundo necessário para as ontologias regionais procederem. Deve
estabelecer os conceitos básicos e pressupostos desses campos, deixando claro as estruturas básicas ou „formais‟
do Ser.”
22
exist – it‟s domestic or working environment for example. 4. In a corresponding
ontological (or, rather, existential) sense, applying to the worldhood of the world –
to that which makes possible any and every world of the third type.24
(1996, p. 47)
A constituição ontológica do Dasein, sua propriedade inalienável, é estar-no-
mundo, não havendo outra condição que não o de habitá-lo, porque sua própria manifestação
já é espacializada pelos delineamentos do mundo. Há certamente uma vinculação ontológica
que harmoniza o Dasein ao mundo, encarnando-os a uma relação de similitude. Não que se
queira entrar nos méritos de uma discussão figurativa acerca da indissociabilidade entre figura
e fundo25
, mas, com efeito, a pertença entre o Dasein e o mundo, se assemelha sobremaneira,
aos tropos imagéticos do artista gráfico holandês Maurits Cornelius Escher. Por exemplo, na
figura que se segue de nome: Sky and water (figura 1), impossível é dissociar os elementos,
ordená-los, sob pena de desfazer o arranjo, a totalidade. A propósito é que se pode aludir à
relação: Dasein e mundo, a noção precisa de inalienabilidade.
(figura 1)
Com a alusão anteriormente feita, se percebe que a noção de mundaneidade
denota o espaço de abertura de tudo o que se põe à luz, em vinculação com o Dasein, de sorte
que se encontram intrinsicamente relacionados. O resultado de tal vinculação é a ênfase ao
24 “De acordo com Heidegger, a noção de „mundo‟ pode ser usada em pelo menos quatro maneiras diferentes: 1.
Como um conceito ôntico, significando a totalidade dos entes subsistentes dentro do mundo. 2. Como um termo
ontológico, denotando o Ser dos entes subsistentes - que, sem os quais não seriam entes desse tipo. 3. Em outro
sentido ôntico, sustentando o que é dado ao Dasein dizer que existe - doméstico ou de trabalho, por exemplo. 4.
Em um correspondente sentido ontológico(ou melhor, existencial), aplicando-se à mundaneidade do mundo -
para o que torna possível qualquer mundo do terceiro tipo.”
25
(GOMES, 2000, p. 35).
23
caráter telúrico ou terroso de todas as ponderações do Dasein, o que seria facilmente
compatível com a máxima de Dilthey em refutação à filosofia clássica: “No real blood flows
in the veins of the knowing subject constructed by Locke, Hume and Kant, but rather only the
diluted juice of reason, a mere process of thought. 26
” (Dilthey apud Guignon, 1983, p. 45) As
consequências de tal relação para o conhecimento são pontuais, afinal fundamenta-se em uma
releitura do fenômeno científico vinculado originariamente à mundaneidade do Dasein em sua
inextrincável condição, o que antecipa qualquer cisão de extração moderna entre sujeito e
objeto. Para Joseph Rouse:
For Heidegger, we are already being-in-the-world, prior to any dissolution into
subject and object or mind and world. The epistemological relation between knower
and known is, he thinks, demonstrably founded upon being-in-the-world, and the
first division of the Sein und Zeit is an articulation of this claim27
. (2003, p. 02)
O ganho epistemológico de tal proximidade entre Dasein/mundo, não apenas
repensa a relação entre sujeito/objeto, como leva ao abandono das polarizações comumente
aceitas entre realismo e idealismo, de modo que o caráter prévio e em aberto do Dasein torna-
se, pois, a estrutura primária à consecução do discurso científico no tocante à tematização dos
entes em suas respectivas regiões. Segundo Heidegger:
Se o ser-no-mundo é uma constituição fundamental da pre-sença em que ela se
move não apenas em geral mas, sobretudo, no modo da cotidianidade, então a pre-
sença já deve ter sido sempre experimentada onticamente. Incompreensível seria
uma obnubilação total, principalmente porque a pre-sença dispõe de uma
compreensão ontológica de si mesma, por mais indeterminada que seja. É que logo
que „o fenômeno do conhecimento do mundo‟ se apreende em si mesmo, sempre
recai numa interpretação formal e „externa‟. Um índice disso é uma suposição, hoje
tão corrente, do conhecimento como uma „relação de sujeito e objeto‟, tão
„verdadeira‟ quanto vã. Sujeito e objeto, porém, não coincidem com pre-sença e
mundo. (2005, p. 98)
Se nos esforçarmos em recapitular a história da metafísica, veremos que a defesa
do realismo ingênuo é circunscrita à ideia de que o Ser existe fora e independentemente da
consciência, porquanto, as coisas sejam portadoras da inteligibilidade última do sentido, e
como tal podem ser apreendidas pelo sujeito cognoscente. Como consequente, se pensa que,
entre a relação Dasein/mundo, ontologicamente o mundo tem a precedência sobre o sujeito
26 “Não flui sangue real nas veias do sujeito cognoscente construído por Locke, Hume e Kant, mas sim apenas o
suco diluído de razão, um mero processo de pensamento.”
27 “Para Heidegger, já somos ser-no-mundo antes de qualquer dissolução em sujeito e objeto ou da mente e do
mundo. A relação epistemológica entre conhecedor e conhecido é - ele pensa - comprovadamente fundada sobre
ser-no-mundo, e a primeira divisão do Ser e Tempo é uma articulação desta reivindicação.”
24
cognoscente, ou seja, o Real é um dado que se presenta à consciência humana enquanto coisa,
apreensível em sua dação. Entre a essência da coisa que se mostra e o intelecto, não há fissura
ou discrepância, afinal há uma adequação, pois conhecer algo é veracizar conceitualmente a
essência revelada. A despeito da pretensão realista, que posiciona o mundo como fundamento
do conhecimento, o idealismo desloca o Ser da coisa para o sujeito cognoscente e enquanto
constructo torna-se bastidor de legitimidade da razoabilidade.
De uma maneira demasiado fenomenológica, Heidegger esgota a querela por meio
de um franco argumento: se eliminarmos o Dasein, o mundo não poderá ser percebido
(refutação do realismo), e se eliminarmos por sua vez o mundo, o Dasein não pode se dar
enquanto compreensão (refutação do idealismo). Subjugar um pólo ao outro, com qual afã
unilateral, é desarmonizar a relação, logo é pressupor um em detrimento do outro. Daí,
porque, mui sabiamente assim afirma Sartre: “O concreto só pode ser a totalidade sintética
da qual tanto a consciência como o fenômeno são apenas momentos. É o homem no mundo,
com essa união específica do homem com o mundo que Heidegger, por exemplo, chama „ser-
no-mundo‟” (SARTRE, 2002, p. 43).
Pelo fato da tradição ter tergiversado quanto às estruturas ontológicas do Dasein e
seus respectivos limites, afinal não empreendeu uma ontologia fundamental, é que para
Heidegger se faz necessária uma revisão quanto o estatuto fundamental do conhecimento,
afinal:
Como este sujeito que conhece sai de sua „esfera‟ interna e chega a uma „outra‟
esfera, a „externa‟? Como o conhecimento pode ter um objeto? Como se deve pensar
o objeto em si mesmo de modo que o sujeito chegue por fim a conhecê-lo, sem
precisar arriscar o salto numa outra esfera? Nesse ponto de partida com suas
múltiplas variações, abre-se mão continuamente de questionar o modo de ser do
sujeito que conhece, embora, sempre, ao se tratar de seu conhecimento, esse modo
de ser esteja implícito (...). Como quer que se interprete esta esfera interna, ao se
questionar como o conhecimento dela „sai‟ e a „transcende‟, logo aparece que se
considera o conhecimento problemático, sem que antes se tenha esclarecido como é
e o que é em si mesmo este conhecimento que impõe a tarefa de um tal enigma.
(2005, p. 99)
Como é comumente aceito que, subjetividade implica atividade frente aos objetos
que se mostram, para daí formar-se representações destes, é mister se pensar em uma relação
estanque e injustificada que os toma um em prejuízo do outro, de modo que nos termos de
uma teoria do conhecimento, ponderar sobre o mundo é parcializá-lo à unilateralidade.
Inserindo Heidegger no contencioso entre realismo/idealismo; a tônica da pauta
epistemológica, Glazebrook endossa a perspectiva de que a procedência metafísica da ciência
25
moderna, por dispor de uma capacidade projetiva por meio de práticas hipotéticas, encerra um
apelo idealista, com efeito:
The ground of science may be the projection of a realm of being, but Heidegger
resists that the final word on science is idealism. The projective nature of modern
science lies in the fact that the scientist proceeds on the basis of an idea, a
hypothesis, rather than with the object. Thai is to say, a science that begins with a
regional ontology is idealistic in that it is founded on an a priori conception of its
object rather than on experience (…) He looks to uncover other possibilities for the
essence of science: to answer how the essence of science can be projective without
simply collapsing into idealism. 28
(2000, p.06)
A despeito dessa sobrestimação unilateral, consagrada na tradição, ora enquanto
realismo, ora enquanto idealismo29
e refutada metodologicamente com o usufruto da diferença
ontológica, a ser considerada nos próximos capítulos, Heidegger concebe o Dasein enquanto
ocupação com o mundo que se lhe circunscreve, afinal lhe é subjacente o já-ser-junto-ao-
mundo:
Partindo dessa suposição, não se vê o que já está implicitamente dito na tematização
mais provisória do fenômeno do conhecimento, a saber, que conhecer é um modo de
ser da pre-sença enquanto ser-no-mundo, isto é, que o conhecer tem seu fundamento
ôntico nesta constituição ontológica (...). Mesmo não se considerando que, na
questão assim formulada, reaparece, mais uma vez, o „ponto de vista‟ construtivista,
não de-monstrado nos fenômenos, há de se perguntar que instância decide se e em
qual sentido deve haver um problema do conhecimento, a não ser o próprio
fenômeno do conhecimento e o modo de ser de quem conhece. Se perguntarmos,
agora, o que se mostra nos dados fenomenais do próprio conhecimento, deve-se
admitir que o conhecer em si mesmo se funda previamente num já-ser-junto-ao-
mundo, no qual o ser da pre-sença se constitui de modo essencial. (2005, p. 100)
De um modo peremptório, a querela entre o realismo e o idealismo, perde a sua
potencialidade no instante paradigmático em que a mundaneidade torna-se fundamental,
antecipando-se assim à imanência ou à transcendência do processo gnosiológico, daí porque
assim endossa Charles Guignon:
28 “O terreno da ciência pode ser a projeção de uma esfera do Ser, mas Heidegger resiste que a palavra final
sobre a ciência seja o idealismo. A natureza projetiva da ciência moderna reside no fato de que o cientista
procede, com base em uma idéia, uma hipótese, ao invés de lidar com o objeto. Isto é, uma ciência que começa
com uma ontologia regional é idealista na medida em que é fundada sobre uma concepção a priori de seu objeto,
em vez da experiência (...) Heidegger procura descobrir outras possibilidades para a essência da ciência: para
responder como a essência da ciência pode ser simplesmente projetiva, sem recair em idealismo.”
29 “ With his paradoxical assertion that, although entities are independently of human beings, the being of entities
is not apart from human understanding, Heidegger has thus established a new voice in regard to the debate
between realism and idealism. There is an essential tension in this position, which springs from the ontological
differentiation between being and entities. Through this differentiation, Heidegger has collapsed the ground
between realism and idealism and has achieved, therefore, not so much a balance between the two as the
negation of both.” (STEPANICH, Lambert. 1991 p. 28).
26
But Heidegger‟s concept of „Being-in-the-world‟ circumvents the whole debate
between realists and idealists because it nullifies the conception of the subject or
consciousness that is supposed either to transcend its own sphere of immanence to
know a transcendent object or to constitute objects within its own sphere of
immanence. As a seamless whole, Being-in-the-world is prior to the discovery of
immanence and transcendence; such notions as these are meaningful only against
the background of Being-in-the-world. 30
(1983, p. 204)
A condição necessária do Dasein, a mundaneidade do mundo, desdobra-se em
diversos momentos, ser-no-mundo, e ser-em. No entanto, faz-se necessário um apanhado
histórico-filosófico acerca do mundo, em sua constituição ontológica, análise que se segue,
com breve referência à lição: Introdução à filosofia de Heidegger.
1.4 A mundaneidade do mundo: Introdução à filosofia
Em sua lição do ano de 1928/29, publicada com o título: Introdução à filosofia
(Einleitung in die Philosophie), pretendida em três seções, mas concluída em duas partes, com
o primeiro capítulo da segunda seção intitulado: Visão de mundo e conceito de mundo,
Heidegger, pretendera abarcar o conceito de mundo e sua compreensão no decurso histórico
do pensamento. Suas considerações iniciam-se enfocando a questão da visão de mundo
(Weltanschauung), asseverando a necessidade de se repensar a problemática oferecida, 31
para
tal, faz-se necessário um recorte histórico da questão, iniciada por Heidegger no limiar do
pensamento clássico e medieval, respectivamente.
Para os antigos, mundo é compreendido enquanto cosmos, portanto, é de ordem
cosmológica, possuindo, outrossim, dois significados. Cosmos enquanto, a natureza
totalizadora de todos os entes e enquanto o modo de ser de todos os entes que são. Essa
segunda característica do mundo, segundo Heidegger, refere-se ao Dasein, à constituição
ontológica do ente que somos - não que isso queira significar que somente o Dasein possui
mundo, muito antes - o mundo é a totalidade pela qual todos os demais entes subsistem, a
anterioridade de tudo o que é. Essa compreensão cosmológica de mundo, tipicamente clássica,
perde sua potencialidade com o surgimento do cristianismo, que passa a considerar o cosmos,
um como, ou seja, um modo fundamental do existente humano, portanto, relaciona: Dasein e
30 “Mas o conceito de Heidegger de „ser-no-mundo‟, contorna todo o debate entre realistas e idealistas, pois
anula a concepção do sujeito ou a consciência do que é suposto, quer transcenda sua própria esfera de imanência
para conhecer um objeto transcendente ou constituir objetos dentro de sua própria esfera de imanência. Como
um conjunto harmonioso, o ser-no-mundo-é anterior à descoberta da imanência e transcendência; noções como
estas são significativas somente contra o background do ser-no-mundo.”
31
IF, § 33, p.253.
27
mundo. Segundo Heidegger, essa forma de pensar a mundaneidade do mundo com o Dasein,
já está presente nas epístolas de Paulo; que passam a considerar o mundo enquanto uma
totalidade estritamente humana, desvinculada de Deus, bem como no Evangelho de São João
que, considera a mundaneidade como sinônimo de imanência, queda, danação terrena.32
Conclui-se, da breve consideração acerca da mundivisão (Weltanschauung) medieval, o
caráter, sobretudo, existencial, advindo a partir daí, o sentido mesmo de mundano, de
secularidade.
Enquanto no medievo, mundo era sinônimo de totalidade de entes finitos,
criaturas de Deus, no decorrer dos séculos XVII e XVIII, a temática do mundo passa a ser
considerada dentro de uma cosmologia racional, disciplina da metafísica especial.
Para Heidegger no ponto E do § 34 de Introdução à filosofia, o outro enfoque
dado à questão do mundo na modernidade, em oposição à escolástica, encontra-se na Crítica
da Razão Pura de Emmanuel Kant, quando considera o mundo como a totalidade de todos os
fenômenos da experiência possível. Para Heidegger, o que importa propriamente da
cosmologia kantiana, advinda da Crítica da Razão Pura, é, sobretudo, seu caráter existencial,
minimizando sua parcela cosmológica, no sentido comumente entendido. Segundo Heidegger:
Mundo: a expressão com que se designa o homem ou os homens, mas o homem não
como ingrediente do cosmos, isto é, não como uma coisa natural, quer dizer, não
como uma coisa da natureza, senão no contexto histórico de sua existência. (1999, p.
312).
A partir daqui, pode-se vincular Dasein e mundo no que há de mais existencial
nos termos desta relação e respectiva acepção compreensiva, ou seja, no caráter projetivo do
humano. Explicitando a questão no § 14 de Ser e Tempo, assim considera Heidegger:
„Mundaneidade‟ é um conceito ontológico e significa a estrutura de um momento
constitutivo do ser-no-mundo. Este, nós o conhecemos como uma determinação
existencial da pre-sença. Assim, a mundaneidade já é em si mesma um existencial.
Quando investigamos ontologicamente o „mundo‟, não abandonamos, de forma
alguma, o campo temático da analítica da pre-sença. Do ponto de vista ontológico,
„mundo‟ não é determinação de um ente que a pre-sença em sua essência não é.
„Mundo‟ é um caráter da própria pre-sença. (2005, p.104-105).
Certamente, a relação efetuada entre o mundo, em sua mundaneidade e o Dasein,
é, com efeito, uma relação de habitação, de modo que o Dasein habita no mundo, não
querendo isto significar, uma relação mesmo de inclusão, relação espacial, de algo que
contém ou engolfa reservadamente um objeto. Não há outra relação entre a mundaneidade do
32
IF, § 33, p.256.
28
Dasein, sua condição ontológica, que não essa de estar-no-mundo, ser-em, como considera
Heidegger, a propósito da temática que se segue.
1.5 O ser-em: o si mesmo da compreensão do Dasein enquanto abertura.
Enquanto os demais entes, destituídos da possibilidade do Dasein se dão no
mundo como ensimesmados, de modo que apenas tal existente dispõe existencialidade, é que
se pode a partir de então ver em tal condição, a mundaneidade, tomada não como uma
categoria, antes como um existencial. Desse modo é que Stephen Mulhall assim assevera:
As i emphasized earlier, tables and chairs cannot relate themselves to their own
Being, not even as a matter or indifference. They have properties, some of which
(what Heidegger will term their „categories‟) go to make up their essence, but
Dasein has – or rather is – possibilities; in so far as it has an essence, it consists in
existence (whose distinguishing marks Heidegger labels „existentialia‟). But this
means that human lives, unlike those of other creatures, are capable of manifesting
individuality. 33
(1996, p. 37)
O entendimento heideggeriano, que muito contribui para a tomada compreensiva
do mundo enquanto um existencial, destarte, pertencido na condição ontológica do Dasein, se
nos encaminha a uma consideração que se torna sintomática de uma postura anti-metafísica,
que passa a imbricar o mundo e o Dasein, não numa relação sobrepujante, como há pouco se
pôde ver com a cosmologia advinda de uma metafísica especial, que contrapunha
diametralmente: Dasein e mundo à guisa de hierarquização, mas sim numa esfera de
envolvimento:
O ser-em, ao contrário, significa uma constituição ontológica da pre-sença e é um
existencial. Com ele, portanto, não se pode pensar em algo simplesmente dado de
uma coisa corporal (o corpo humano) „dentro‟ de um ente simplesmente dado. O
ser-em não pode indicar que uma coisa simplesmente dada está, espacialmente,
„dentro de outra‟ porque, em sua origem, o „em‟ não significa de forma alguma uma
relação espacial desta espécie; „em‟ deriva de innan-, morar, habitar, deter-se; „an‟
significa: estou acostumado a, habitado a, familiarizado com, cultivo alguma coisa;
possui o significado de colo, no sentido de habito e diligo. O ente, ao qual pertence
o ser-em, neste sentido, é o ente que sempre eu mesmo sou. A expressão „sou‟ se
conecta a „junto‟; „eu sou‟ diz, por sua vez: eu moro, me detenho junto... ao mundo,
como alguma coisa que, deste ou daquele modo, me é familiar. O ser, entendido
como infinito de „eu sou‟, isto é, como existencial, significa morar junto a, ser
33 “Como enfatizei anteriormente, mesas e cadeiras não podem estabelecer relação com seu próprio ser, nem
mesmo como por questão ou por indiferença. Eles têm propriedades, algumas das quais (o que Heidegger irá
denominar suas „categorias‟) fazem a sua essência, mas o Dasein tem - ou melhor, é - possibilidades, na medida
em que sua essência consiste na existência (cuja distinção Heidegger pontua como existenciais). Mas isso
significa que vidas humanas, ao contrário daquelas de outras criaturas, são capazes de manifestarem-se
individualmente.”
29
familiar com... O ser-em é, pois, a expressão formal e existencial do ser da pre-
sença que possui a constituição essencial de ser-no-mundo. (2005, p. 92)
O Dasein dotada desse caráter de ser-em, no mundo, é necessariamente um ser-
junto-a (Sein-bei), ser-com os outros (Mit-sein) e ser-si-mesmo (Selbst-sein), que em outras
palavras, denota sua propriedade ontológica, que é estar familiarizado tanto com a
instrumentalidade dos entes, com os outros e consigo próprio, propriedade deveras relacional,
dialógica. Já que necessariamente intencional não num sentido husserliano do termo, como se
verá adiante, mas, sobretudo, comunicante, o Dasein já é sempre fora, vinculada que é com a
exterioridade das coisas que se dão, de sorte que é constitutivamente sua exclusiva
mundaneidade. Segundo Robert J. Dostal, para quem existe uma vinculação entre mundo e
intencionalidade, se pode afirmar que:
There are at least three crucially important and crucially different notions of
intentionality and world for Heidegger. There is (I) the intentionality and world of
the theoretical subject (the passive observer or traditional knower and the objects
observed or known), (2) the intentionality and world of the practical subject (the
active, involved participant and the objects utilized), and (3) a more primordial
intentionality and world (Heidegger would prefer „worldhood‟), which precludes
any use of the subject-object model and without which the understanding of the
other two sorts of intentionality and world are necessarily misunderstandings. 34
(1993, p. 124).
Enquanto ser-em, o Dasein não se dá apenas como um ente simplesmente dado,
porquanto, seja o único ente que se encontre junto ao mundo, em uma relação de imediata
significatividade, o que faz com que, em um plano primário de lida cotidiana o ente se dê de
modo pré-temático até a posterior quebra da manualidade e surgimento da postura teórica.
Estando junto ao mundo enquanto ser-em, o Dasein corre o risco de dispersar-se em modos de
ser, advindo assim o seu caráter de ocupação (Besorge). Por meio de tal ocupação, enquanto
modo de ser-em, os entes se dão dentro do mundo em imediata dação ao Dasein, o que acaba
por atestar o seu caráter prático.
Por meio do ser-em, se faz possível um campo relacional entre o Dasein e os entes
que se dão na ocupação por meio da disponibilidade (Zuhandenheit). No inusitado de uma
quebra de tarefa, o que acaba por indisponibilizar o modo de ser da ocupação, é que surge a
34 “Há pelo menos três noções crucialmente importantes e radicalmente diferentes da intencionalidade e do
mundo para Heidegger. Existe (I) a intencionalidade e o mundo do sujeito teórico (o observador passivo ou
conhecedor tradicional e os objetos observados ou conhecidos), (2) a intencionalidade e o mundo do sujeito
prático (o ativo, participante envolvido e os objetos utilizados) e (3) uma intencionalidade mais primordial e o
mundo (Heidegger prefere „mundaneidade‟), que proíbe qualquer uso do modelo sujeito-objeto e sem o qual a
compreensão dos outros dois tipos de intencionalidade e do mundo são necessariamente infundadas.”
30
postura teórica do conhecimento, de tal forma que em tal suspensão do manuseio, o ser-em
detém-se junto aos entes intramundanos. É necessário ressaltar que, sendo um ente de
aguçado senso prático, o Dasein lida com os instrumentos disponíveis por meio de visão que
o orienta o manuseio, de modo que essa visão de um ser-para Heidegger denominaria de
circunvisão (Umsicht). Esquematicamente, os entes intramundanos podem ser tomados por
sua disponibilidade que, por meio do modo de ser da ocupação, franqueia o encontro com tais
instrumentos. A indisponibilidade em uma remissão leva por sua vez a uma perturbação da
tarefa do instrumento, ocasionando destarte, o despertar da circunvisão e consequente
aparição do mundo circundante, de sorte que basta a quebra do campo referencial para
liberação dos entes disponíveis.
Se prioritariamente o Dasein se volta aos entes por meio do modo de ser da
ocupação, aguçando o senso de suas disponibilidades, de modo que são entes disponíveis,
basta um colapso em tal instrumentalidade para que o caráter prático ceda espaço à
subsistência do ente. Tal acontecimento permite ao Dasein lidar com entes que não dispõe de
sua mesma estrutura ontológica, investida que é em uma condição compreensiva. O que daí
advém é a vinculação da descoberta teórica, decorrente da modificação focal da ocupação
guiada pela circunvisão à mundaneidade, porquanto, surja da postura prática do Dasein em
sua cotidianidade corrente. Ademais, no âmbito de uma indisponibilidade referencial que, põe
o ente disponível em um âmbito de objetidade, com efeito, perde sua respectiva utilidade a
uma mera categorização, é em tal âmbito que se dá a verve existencial do comportamento
científico, que é senão a mudança da ocupação guiada pela circunvisão, ou seja, quando perde
o caráter cotidiano o ente revela-se a um provável objeto de investigação. O ente, liberto de
sua instrumentalidade por uma lise, libera desse modo, uma suspensão de manejo e
consequente visualização desobrigada de sua entidade, remetida a uma posterior objetivação,
via projeto prévio.
Como objetos, os entes são compreendidos, não como instrumentos afixados em
tarefas cotidianas, mas como reservas de propriedades. Tais indícios do percurso suscitado
por Heidegger no tocante ao modo de ser-em do Dasein, apenas antecipam o caráter
originário do conhecimento científico, radicado que é em um ser-no-mundo, de forma que
Dasein é algo que mundaniza-se, daí porque se põe a conhecer. Sem essa vinculação, não
meramente espacial, entre o Dasein em abrigo no mundo, não haveria, pois, qualquer
resquício de realidade. Daí porque, assim considera Lambert Stepanich de um modo
irrefutável: “If human beings no longer existed, trees, mountains, stars - the universe as a
31
whole - would not thereby cease to be.” 35
(p.1991, p. 20) De um modo complementar é que
Heidegger assim assevera:
Newton‟s laws, the principle of contradiction, any truth whatever – these are true
only as long as Dasein is (…) Newton the laws became true: and with them entities
became accessible in themselves to Dasein. Once entities have been uncovered, they
show themselves as the entities which beforehand they already were.36
(Heidegger
apud Babich, 2010, p. 284).
Sendo a condição do Dasein, uma condição não interior, mas exógena, é que se
dota à mesma a condição desoculta da abertura (erschlossenheit), um estar-no-mundo
irrevogável, sua condição fundamental. A abertura se constitui com o fator primevo de estar-
lançado no mundo, elemento fáctico desta condição que cinde o Dasein, em compreensão e
temporalidade, vida e morte. A percepção que se tem é que, dada a abertura fáctica do Dasein,
em seu caráter ontológico e desocultador, toda e qualquer busca pela compreensão, enfeixa-se
em um círculo que sempre volta a incidir sobre o existente, e consequentemente, sua
clarividência, que tudo funda, arrazoa. Neste sentido é que se pode considerar a atividade das
demais ontologias, uma tardia chegada em um objeto que há muito, já fora aclarado pela
prévia compreensão do Dasein, em sua abertura que é projetiva e que sempre se move numa
certa compreensão do Ser. Somente o Dasein pondera e põe a descoberto os entes que se dão
no mundo, cabendo a sua condição a especulação, a teorização e conjuntamente a ciência,
porque somente a sua estrutura é compreensiva, antecedida pela abertura originária que, funda
o desencobrimento inteligível da realidade. Dito isto, é que se concluí do Dasein, a insistência
corrente da compreensão do Ser, de modo que um solo antepredicativo da abertura sempre
antecede toda e qualquer investigação acerca de todo e qualquer ente, aqui incluindo toda e
qualquer ontologia. Para Patrick Heelan, quanto a esse caráter primário da mundaneidade, tal
antecedência se dá da seguinte forma:
…is rather an attempt to show human understanding or being at work historically
within the practical reality of the everyday world by directing our reflective attention
to the pre-theoretical, pre-predicative, pre-conceptual activity that is prior in our
35 "Se os seres humanos já não existem, árvores, montanhas, as estrelas - o universo como um todo – assim,
deixam de ser.”
36 “As leis de Newton, o princípio da contradição, qualquer verdade que seja- estas são verdadeiras apenas
enquanto o Dasein é (...) as leis de Newton tornaram-se verdadeiras: e com elas as entidades tornaram-se
acessíveis em si mesmas para o Dasein. Uma vez que as entidades foram descobertas, elas mostraram-se como
as entidades que de antemão que elas já eram”.
32
thinking (not temporally but as a grounding condition) to all categories of things and
institutions... 37
(1998, p. 05).
Diferentemente dos demais entes apreendidos na teia fáctica do mundo, o Dasein
é eminentemente sua compreensão, o que possibilita um constante lançamento, uma renovada
possibilidade. Não que isso queira aludir à potetia aristotélica, contraposta por Heidegger, em
sua Carta sobre o Humanismo 38
, mas, sobretudo, ao caráter ekstático do Dasein, ou seja, ao
seu caráter genuinamente projetivo. Se o Dasein é a sua existência, esta mesma existência só
se efetua enquanto tal, em função do caráter compreensivo da abertura, que lhe dispõe
sobremaneira, uma constante possibilidade, um poder-ser, uma projeção que lhe renova sua
condição ontológica de possibilidade.
1.6 O ser-com: a compreensão do Ser e o comportamento do Dasein para com os
entes intramundanos
Como se mencionou anteriormente, o modo de ser do Dasein, portanto, seu como,
funda-se na ordem da pré-compreensão ontológica, em outras palavras, na ordem da
aprioridade da abertura que lhe dispõe a familiaridade com os demais entes do mundo.
Possuindo, portanto, a pré-compreensão enquanto sua propriedade ontológica; sua condição, o
Dasein sempre se comporta desta ou daquela forma, não podendo existir no mundo sem
possuir a disponibilidade destas afecções. Nesse sentido é que Stephen Mulhall afirma:
Heidegger‟s analysis of Dasein‟s Being as Being-with simply underlines the fact
that human beings, no less than objects, are part of that same web; after all, their
Being is Being-in-the-world. Since the environment closest to them is the work-
world, the identity closest to them is their identity as workers, as people performing
socially defined and culturally inherited tasks whose nature is given prior to and
independently of their own individuality, and which typically will not be
significantly marked by their temporary inhabitation of them 39
. (1996, p.72)
37 “... É sim uma tentativa de mostrar a compreensão humana, ou Ser, historicamente desdobrado dentro da
realidade prática do mundo cotidiano, dirigindo a nossa atenção reflexiva para o pré-teórico, pré-predicativa, a
atividade pré-conceitual que é primordial ao pensamento (não temporalmente mas como uma condição
fundamental) para todas as categorias de coisas e instituições.”
38
“Os nossos termos „possível‟ e „possibilidade‟ são, sem dúvida, pensados, sob o império da „Lógica‟ e
„Metafísica‟, distinguindo-se da „atualidade‟, isto significa, a partir de uma determinada interpretação- a
metafísica – do ser, como actus e potentia, distinção que é identificada com a de existentia e essentia. Quando
falo de „força tranqüila do possível‟, não me refiro ao possibile de uma possibilitas apenas representada, nem à
potentia enquanto essentia de um actus da existentia; refiro-me ao próprio ser que, pelo seu querer, impera com
seu poder sobre o pensar e, desta maneira, sobre a essência do homem e isto quer dizer sobre a sua relação com o
ser. Poder algo significa, aqui: guarda-lo na sua essência, conservá-lo no seu elemento.” (1991, p. 4) 39 “As análises de Heidegger quanto o ser do Dasein como ser-com, simplesmente sublinha o fato de que os
seres humanos, não menos que objetos, fazem parte dessa mesma rede, afinal, o seu ser é ser-no-mundo. Como o
33
Nesse sentido, o Dasein sempre é afetado pelos entes subjacentes ao mundo, entes
disponíveis e entes subsistentes, conforme a respectiva compreensão do ser do ente, que ora
pode ser discursiva, prática ou científica. No que diz respeito ao caráter discursivo deste
comportamento do Dasein para com os entes mundanos, Heidegger o concebe em uma esfera
desencobridora, compreensão de ser que se efetuam nos predicamentos e atributos pelos quais
o Dasein nomeia a peculiaridade do ente, de modo que essa mesma predicação é antecedida
previamente pela compreensão do ser do ente, em outras palavras, dir-se-ia: a compreensão
pré-visualiza a especificidade do ser do ente, que enquanto tal subsiste na proporção que o
Dasein se projeta, porque projetar-se é decerto sua condição irrevogável. Tão somente porque
compreende de antemão algo enquanto algo, ou mesmo porque se projeta enquanto ser do
ente, é que o Dasein pode predicar algo de algo, desencobrindo predicativamente o ente,
portanto, esconde-se na antecedência compreensiva do existente a referência de todo e
qualquer enunciado, a condição de possibilidade do conhecimento enquanto tal.
O modo de ser do Dasein, o seu como de atuação em face do estar-lançado no
mundo, é soberanamente intencional, ou seja, o Dasein é todo o sentido que se atribui, afinal é
o único ente instado no mundo que compreende inteligentemente o Ser, efetuando assim, as
devidas atribuições, daí porque, fica sob seu jugo, a referencialidade dos entes mundanos,
dado o encontro que se efetua entre sua ontológica estrutura, a coisidade do ente e o mundo:
Os outros que assim „vêm ao encontro‟, no conjunto instrumental à mão no mundo
circundante, não são algo acrescentado pelo pensamento a uma coisa já antes
simplesmente dada. Todas essas coisas vêm ao encontro a partir do mundo em que
elas estão à mão para os outros. Este mundo já é previamente sempre o meu. (2005,
p. 169).
Os entes, que sempre vêm ao encontro do Dasein no mundo, não se dão como
meramente subsistentes, mas muito antes como utensílios, portanto, prenhes de utilidade. Daí
porque, segundo Heidegger, a maneira mais espontânea da relação que se estabelece entre o
Dasein e a entitatividade dos entes, é o manejo manual com os mesmos, a praticidade com os
entes, sua utensilidade. 40
Segundo Harrison Hall, tal relação primária do Dasein com o
mundo, pode ser compreendida do seguinte modo:
ambiente mais próximo a eles é o trabalho no mundo, a identidade mais próxima é a sua identidade como
trabalhadores, como pessoas específicas que executam socialmente e culturalmente tarefas herdadas, cuja
natureza é dada antes e independentemente da sua própria individualidade, e que normalmente não serão
significativamente marcadas por sua passagem temporária.”
40 ST, § 36, p.230.
34
Heidegger makes these discoveries by getting things to show themselves to us as
they really are in our ordinary dealings with them. And this turns out, according to
Heidegger, to be rather difficult, since in our ordinary dealings with things they
hardly show up at all in the traditional sense of being explicitly noticed or perceived.
In ordinary practical activity we make use of things, but we do not typically notice
or attend to them. When we use the doorknob to open the door and get into the next
office, we do not attend to its perceptual characteristics. Our attention instead is
directed toward where we are going and what we are doing, and the doorknob is
used so automatically in familiar surroundings like these that it withdraws from view
and serves its instrumental function invisibly41
. (1993, p. 126)
Endossando-se a citação anterior, é que se torna providencial a proximidade com a
compreensão de David Couzens Hoy, acerca da primordialidade utensiliar do ente, o que traz
decerto, outra postura epistemológica em face da dação do objeto:
Contrary to an empiricist epistemology that presupposes that we first „perceive‟
objects with their particular properties and only secondarily apply or use them,
Heidegger‟s suggestion is that this type of perception is not primary. Seeing is not
simply perceiving the properties of external objects with the bodily eyes (BT 187).
Instead of construing seeing as seeing that an object has such and such a property,
Heidegger construes seeing as already interpreting something as something (e.g.,
seeing something as a hammer, as a door, or as a table). 42
(1993, p. 182)
Diferentemente do caráter discursivo do Dasein, o comportamento operativo, se
caracteriza, sobretudo, como o modo que o Dasein dispõe para lidar cotidianamente com os
entes à mão, portanto, com a finalidade pretendida através dos entes à serventia. Se
compreendidos enquanto instrumentos, com respectivas finalidades, os entes disponíveis, à
mão, sempre são remetidos a uma teia referencial, a outros instrumentos. Segundo Heidegger:
Rigorosamente, um instrumento nunca „é‟. O instrumento só pode ser o que é num
todo instrumental que sempre pertence a seu ser. Em sua essência, todo instrumento
é „algo para... ‟ Os diversos modos de „ser para‟ (N16) (Um-zu) como serventia,
contribuição, aplicabilidade, manuseio constituem uma totalidade instrumental. Na
estrutura „ser para‟ (Um-zu), acha-se uma referência de algo para algo... O
instrumento sempre corresponde à sua instrumentalidade a partir da pertinência a
outros instrumentos: instrumento para escrever, pena, tinta, papel, suporte, mesa,
41 “Heidegger faz com que essas descobertas, levem as coisas a se mostrarem a nós como elas realmente são na
lida cotidiana. E isso faz com que, de acordo com Heidegger, seja difícil, já que nas nossas relações normais com
as coisas, essas eventualmente se mostram no sentido tradicional de serem notadas ou percebidas. Na atividade
prática comum fazemos uso das coisas, mas normalmente não nos damos conta. Quando usamos a maçaneta para
abrir a porta e entrar no escritório ao lado, não focamos as suas características perceptuais. Nossa atenção, em
vez disso, direciona-se para onde estamos indo e o que faremos e desse modo a maçaneta da porta é usada tão
automaticamente familiar, quanto se retira da vista e serve à sua função instrumental de forma invisível.”
42 “Ao contrário do que uma epistemologia empirista pressupõe que, primeiro, „percebemos‟ objetos com suas
propriedades particulares e apenas secundariamente os investimos ou usamos, a sugestão de Heidegger é que
este tipo de percepção não é primária. Ver, não é simplesmente perceber as propriedades dos objetos externos
com os olhos corporais (BT 187). Em vez de interpretar o ver como investir sobre um objeto com tal ou qual
propriedade, Heidegger compreende o ver como já interpretar algo como algo (por exemplo, ver algo como um
martelo, como uma porta, ou como uma tabela).”
35
lâmpada, móvel, janela, portas, quarto. Essas „coisas‟ nunca se mostram primeiro
por si para então encherem um quarto como um conjunto de coisas reais. Embora
não apreendido tematicamente, o que primeiro vem ao encontro é o quarto, não
como o „vazio entre quatro paredes‟, no sentido de espaço geométrico, mas como
instrumento de habitação. É a partir dele que se mostra „a instalação‟ e, nela, os
diversos instrumentos „singulares‟. Antes deles, sempre já se descobriu uma
totalidade instrumental. (2005, p.110)
O que se extrai da análise heideggeriana quanto à especificidade do Dasein, em
seu caráter operativo, é decerto a certeza de que o mesmo é sempre antecedido, à maneira de
seu comportamento discursivo, pela pré-compreensão ontológica do ser do ente, de modo que
já se vislumbra o capítulo subsequente sobre o caráter existencial de ciência. Antes de
adentrarmos especificamente a questão proposta, as considerações acerca do caráter operativo
do Dasein revelam de alguma forma, o modo como o existente humano lida, enquanto ser de
compreensão, com o mundo, atuando, outrossim, como um ente que ocasiona a existência
inteligível de tudo que é, ordem do fundamento das coisas que são. Se o Dasein lida com o
mundo, e com os entes à mão, em função de uma pré-compreensão ontológica, como o
exemplo dado por Heidegger quanto à instrumentalidade do martelo43
, o que se conclui por
seu turno, é que toda e qualquer relação estabelecida pelo Dasein, advém, com efeito, da
abertura, da mundaneidade do mundo:
Se o mundo pode, de certo modo, evidenciar-se é porque ele já deve ter-se aberto.
Pelo fato do manual intramundano já se ter tornado acessível, o mundo já deve ter-se
aberto previamente para a ocupação guiada pela circunvisão. O mundo é, portanto,
algo „em que‟ (worin) a pre-sença enquanto ente já sempre esteve, para o qual
(worauf) a pre-sença pode apenas retornar em qualquer advento de algum modo
explícito. (2005, p. 119)
Ao contrário do caráter discursivo do Dasein, que compreende o ente enquanto
subsistente, enunciativo; o caráter operativo considera o ente enquanto disponível. Entre
ambos, o estofo primeiro da mundaneidade do mundo, em sua abertura, condiciona o
acontecer do conhecimento, dotando à aprioridade do mundo, a acontecência de tudo aquilo
que é apreendido pelo Dasein.
Como se afirmou anteriormente, o que pretende o filósofo em Ser e Tempo, é
buscar o sentido do ser do ente que tem como característica, a compreensão do Ser, propósito
este pretendido pela analítica existencial do Dasein. Em princípio, a analítica totaliza a
constituição ontológica do Dasein, compreendia enquanto ser-no-mundo, mostrando que o
existente compreende o Ser reiteradas vezes, dada sua condição eminentemente
compreensiva. Enquanto ente que se localiza no mundo e o mundo é a sua acolhida, o Dasein
43
“o ente intramundano só pode se mostrar porque mundo „se dá‟.” (HEIDEGGER, 2005, p. 114)
36
é constantemente alcançado pelos entes intramundanos, objetos que devem ao mesmo a rede
intencional das atribuições. Não estabelecendo relações para com os entes tão somente no
âmbito enunciativo do discurso, muito menos, na lida cotidiana da instrumentalidade, o
Dasein comporta-se ademais, como um ente investigador, ente que é essencialmente
conceitual, mensurando categoricamente o objeto que o inquieta. Segundo Harrison Hall:
This world just is the network of relations into which can be fitted the systems of
equipmental totalities with their internal relations („references‟) among the tools
they contain and their external relations („assignments‟) to the purposes of the
human who use them, and human beings with their practical ties to one another and
to the objects they deal with (…) The intentionality of practical activity is typically
directed through the objects we use toward immediate purposes for which we use
them44
. (1993, p. 127)
A partir do momento que um ente subsistente vem ao encontro do Dasein,
inquietando-o, fundam-se desse modo, as regiões ônticas, responsabilidade das ciências
especializadas. Para Heidegger, portanto, a condição de possibilidade para o surgimento das
ciências, se deve sobremaneira ao caráter projetivo do Dasein, que compreende
antecipadamente. Segundo Carneiro Leão, ao prefaciar a obra Ser e Tempo de Heidegger, na
versão brasileira:
Quando, de manhã cedo, um físico sai de casa para ir pesquisar no laboratório o
efeito de Compton e sente brilhar nos olhos os raios de sol, a luz não lhe fala, em
primeiro lugar, como fenômeno de uma mecânica quântica ondulatória. Fala como
fenômeno de um mundo carregado de sentido para o homem, como integrante de um
cosmos, na acepção grega da palavra, isto é, de um universo cheio de coisas a
perceber, de caminhos a percorrer, de trabalhos a cumprir, de obras a realizar. A luz
fala, sobretudo, de um mundo em que ele nasce e cresce, ama e odeia, vive e morre a
todo instante. Sem este mundo originário, o físico não poderia empreender suas
pesquisas, pois não lhe seria possível nem mesmo existir. (2005, p. 19)
Somente pelo fato de dispor de uma pré-compreensão, enquanto sua condição, é
que o ente se dá enquanto tal a uma investigação científica, recaindo sobre o Dasein em seu
caráter projetivo, a condição de possibilidade, enquanto fundamento para a perquirição
científica. Portanto, sem o Dasein, não há ciência e vice-versa, ademais, fica vedada a
possibilidade de haver conhecimento. Decerto em nossas considerações, poder-se-ia concluir
antecipadamente, que nas lições primeiras de Heidegger durante os anos 20, o problema do
44 “Este mundo é apenas a rede de relações em que podem ser instalados os sistemas das totalidades
instrumentais com suas relações internas („referências‟) entre as ferramentas que eles contêm e suas relações
externas („tarefas‟) para os fins de uso dos humanos com seus laços práticos vinculados entre os homens e os
objetos (...) a intencionalidade da atividade prática é normalmente direcionada através dos objetos que usamos
para fins imediatos, para os quais nós os usamos.”
37
Ser torna-se coetâneo da questão do fundamento e do Dasein, havendo, portanto, uma
similitude com a abertura, essa capacidade fáctica pré-compreensiva, o que quer dizer em
outras palavras, que Heidegger dispõe ao Dasein, a condição de possibilidade para a
problemática do conhecimento:
...não apenas entendemos algo assim como o ser, senão essa compreensão de ser,
isto é, esse entender o ser (essa compreensão de ser, em alemão: seinsverstandnis) é
tal que vai adiante, antecede a experiência do ente. (...) E vai adiante de modo que,
por assim dizer, só na claridade que assim se produz, isto é, só na claridade que se
produz porque essa compreensão de ser (porque esse entender o ser, esse Seins-
verstandnis) atua como uma luz que nos preenche, podemos encontrar o ente. (1999,
p. 204)
Do caráter compreensivo do Dasein, fica-nos a lição de que todo e qualquer
conhecimento ôntico, tem sua razão de ser, sua condição de possibilidade, radicada no
Dasein, que se comporta para com os entes intramundanos, compreendendo o Ser.
1.7 A temporalidade ekstática da cura (Sorge) como modo de fundação das ciências
ônticas
O Dasein em sua totalidade ontológica enquanto ser-no-mundo, enfeixa-se
naquilo que Heidegger considera enquanto cura, unidade que integra o todo do Dasein em sua
condição temporal. Em outras palavras, o Dasein se dá no mundo como cura45
(Sorge):
A totalidade existencial de toda a estrutura ontológica da pre-sença deve ser, pois,
apreendida formalmente na seguinte estrutura: o ser da pre-sença diz preceder a si
mesma por já ser em (no mundo) como ser junto a (os entes que vêm ao encontro
dentro do mundo). Esse ser preenche o significado do termo cura que é aqui
utilizado do ponto de vista puramente ontológico-existencial. Fica excluída dessa
significação toda tendência ôntica como cuidado ou descuido. (2005, p. 257)
Habitando no aberto da existência fáctica, o Dasein, não isolado em si mesmo,
hermeticamente fechado, mas sempre adiante de si, projetivo, portanto, caracterizar-se-ia
enquanto ekstático, ou seja, em aberto. Segundo Stephen Mulhall:
Dasein‟s thrownness (exemplified in its openness to states-of-mind) shows it
to be already in a world; its projectiveness (exemplified in its capacity for
understanding) shows it to be at the same time ahead of itself, aiming it to be
preoccupied with the world. This overarching tripartite characterization
reveals the essential unity of Dasein‟s Being to be what Heidegger calls care
45
O uso do termo Sorge enquanto cura - proveniente da presente tradução - pode por vezes vir no decurso de
outras citações, como cuidado.
38
(„Sorge‟) (…) And, by labeling that whole „care‟, Heidegger evokes the fact
that Dasein is always occupied with the entities it encounters in the world –
concerned about ready-to-hand and present-at-hand entities, and solicitous of
other human beings. The point is not that Dasein is always caring and
concerned; it is, rather, that, as Being-in-the-world, Dasein must deal with
that world. The world and everything in it is something that cannot fail to
matter to it46
. (1996, p. 112)
O Dasein enquanto ser-no-mundo, lida com os entes intramundanos estabelecendo
uma relação de proximidade, típico de sua característica aderente às coisas mundanas. Com
efeito, a cura totalizaria esses modos de evasão do Dasein enquanto sempre adiante de si
mesma, ou seja, constantemente em contato com os entes e com o mundo. Se Heidegger
considera o Dasein enquanto: “um ente que, sendo, está em jogo seu próprio ser” (2005,
p.256), o que o caracterizaria, portanto, seria a antecipação, sempre adiante de si, de sorte que
pode se lançar no mediano das relações cotidianas, através do cuidado e da preocupação,
configurando a chamada inautencidade, ou descerraria a totalidade temporal da finitude, da
morte, por intermédio de uma angústia nadificante47
:
Em nossa vida cotidiana, manuseamos objetos, estamos empenhados em resolver
problemas práticos, refletimos sobre questões teóricas, fazemos operações
matemáticas, falamos com os outros, em conformidade com a situação. Falamos,
compreendemos e agimos de modo semi-automático, sem nos darmos conta de
como esses comportamentos saem de nós. É como ser falado pela fala comum que
nos atravessa, ser agido por modelos de ação que nos comandam. O agir desliza na
familiaridade do já sempre conhecido e posto. Nascemos num mundo já interpretado
e organizado. Somos introduzidos, pela fala pública, numa dessas formas de
organização: sua lógica, seus valores, códigos de ação, esquemas prontos. Quase um
script a ser repetido. Aí dentro, submetido aos comandos pragmáticos e valorativos,
o estar-aí existe familiarmente abrigado na sua pertença ao público, ao que é de
todos. Heidegger diz que vivemos cotidianamente no modo de ser „não si mesmo‟,
isto é, na impropriedade (OLIVEIRA Dias, 1984, p. 131).
Se na cotidianidade de suas relações mais públicas, o Dasein por vezes se perde
no horizonte da inautencidade, da impropriedade, minimizando sua especificidade,
46 “O lançamento do Dasein (exemplificado em sua abertura a estados mentais) mostra que ele já é em um
mundo, a sua projetividade (exemplificada na sua capacidade de compreensão) mostra que ele é ao mesmo
tempo, à frente de si mesmo, preocupado que é com o mundo. Esta caracterização geral tripartite revela a
unidade essencial do ser do Dasein, o que Heidegger chama de cuidado ('Sorge') (...) E, por rotular „cuidado‟,
Heidegger evoca o fato de que o Dasein está sempre ocupado com as entidades que ele encontra no mundo -
preocupado com os entes disponíveis e subsistentes, solícito com os outros seres humanos. A questão não é que
o Dasein é sempre atencioso e preocupado, é, antes, que, como ser-no-mundo, o Dasein tem de lidar com esse
mundo. O mundo e tudo nele é algo que não pode deixar de lhe importar.”
47 “Um dos lugares fundamentais em que reina a indigência da linguagem é a angústia, no sentido do espanto, no
qual o abismo do nada dispõe o homem. O nada, enquanto o outro do ente, é o véu do ser. No ser já todo o
destino do ente chegou originariamente à sua plenitude.” [HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos
filosóficos; tradução e notas Ernildo Stein. – São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 51].
39
notadamente temporal, a cura, enquanto totalidade estrutural denotaria uma assunção, uma
escolha no aberto das possibilidades, dessa temporalidade que finda com a chegada da morte,
essa notícia que nos vem nenhures. Segundo Stephen Mulhall, tal mortalidade do Dasein pode
ser compreendida do seguinte modo:
The hardest lesson of our mortality is its demand that we recognize the complete
superfluity of our existence. Our birth was not necessary; the course of our life could
have been otherwise; its continuation from moment to moment is no more than a
fact; and it will come to an end at some point. To acknowledge, this about our lives
is simply to acknowledge our finitude – the fact that our existence has conditions or
limits, that it is neither self-originating nor self-grounding nor self-sufficient, that it
is contingent from top to bottom (…).48
(1996, ps. 129, 130)
Não lhe restando outra possibilidade que não a de projeção, sempre adiante de si
mesmo, o Dasein assume no intervalo de sua condição a sua existência, que se faz no mundo,
temporalmente. Portanto, da existencialidade mundana do Dasein, a sua condição é decerto
um acontecimento datado, se dá no intervalo entre vida e morte, de modo que nesse ínterim,
funda temporalmente as ciências. Para Charles Guignon, isso pode ser compreendido do
seguinte modo:
Once the framework for Newton‟s laws has been opened, of course, the laws can be
read back into the past and confirmed or disconfirmed. As retroactive in this way,
they can be understood as in some sense „eternal‟. But here they must be seen as
eternal only within the finite horizon of Dasein‟s projections and activities. What
Heidegger wants to guard against the idea that there could be some privileged „God
eyes view‟ of reality as it is „in itself‟, a view that is fundamentally denied to us
finite mortals but can nevertheless be taken as an ideal or goal for our inquiries.
There is no ultimate, final perspective toward which our discoveries are only
approximations (…) Heidegger want us to accept our own finitude without even so
much as entertaining the idea of an infinite mind to which we can only aspire (…)
The pseudo-problems of epistemology can be fully overcome only when we realize
that there is nothing we must be missing when we say that all truth is relative to the
projections of Dasein. 49
(1983, p. 201)
48 “A lição mais difícil de nossa mortalidade é sua exigência de que reconhecemos a superfluidade completa de
nossa existência. Nosso nascimento não era necessário, o curso de nossa vida poderia ter sido de outra forma, a
sua continuação a partir de um momento para outro não é mais que um fato, e ela chegará ao fim em algum
ponto. Reconhecer isto sobre nossas vidas é simplesmente reconhecer nossa finitude - o fato de que nossa
existência tem condições ou limites, que não é nem auto-originária, nem auto-justificante, nem auto-suficiente,
que é contingente de cima para baixo (... )”
49 “Uma vez que a estrutura para as leis de Newton foi aberta, é claro, as leis podem ser lidas retroativamente e
confirmadas ou refutadas. Como retroativas desse modo, elas podem ser entendidas como em algum sentido
„eternas‟. Mas aqui elas devem ser vistas como eternas apenas dentro do horizonte finito das atividades e
projeções do Dasein. O que Heidegger quer proteger contra a idéia de que poderia haver alguma privilegiada
„visão de Deus‟ da realidade em si mesma, visão que é fundamentalmente negada a nós mortais, finitos, mas
pode, contudo, ser tomada como um ideal ou objetivo para nossas investigações. Não há uma definitiva
perspectiva final já que nossas descobertas são apenas aproximações (...). Heidegger quer que aceitemos a nossa
própria finitude, mesmo sem vislumbrar a idéia de uma mente infinita a que só podemos aspirar (...). Os
pseudos-problemas da epistemologia podem ser totalmente superados somente quando percebemos que não há
nada que deve estar faltando quando dizemos que toda verdade é relativa para as projeções de Dasein.”
40
O caráter da cura enquanto uma totalidade estrutural do Dasein, em sua
constituição retroviniente-adiante de si mesma, acaba por preceder a toda entidade mundana,
concebendo-se assim, como o fundamento de tudo aquilo que passa a ser aferido do mundo,
inclusive o conhecimento, consequentemente. Para que possa conhecer, o Dasein requisita a
abertura dos entes, não havendo conhecimento, portanto, sem a antecedência de uma abertura
que projete os entes à situação desvelante do Dasein, enquanto compreensivo:
Enquanto totalidade originária de sua estrutura, a cura se acha do ponto de vista
existencial-a priori, „antes‟ de toda „atitude‟ e „situação‟ da pre-sença, o que sempre
significa dizer que ela se acha em toda atitude e situação de fato. Em consequência,
esse fenômeno não exprime, de modo algum, um primado da atitude „prática‟ frente
à teórica. A determinação meramente contemplativa de algo simplesmente dado não
tem menos caráter da cura do que uma „ação política‟ ou a satisfação do
entretenimento. „Teoria‟ e „prática‟ são possibilidades ontológicas de um ente cujo
ser deve determinar-se como cura. (2005, p. 258)
Aferindo-se ao Dasein, uma unidade sintética que lhe dota enquanto ente
projetivo, ou seja, de compreensão, da assunção de suas escolhas no aberto do mundo,
conjugado com a temporalidade ekstática, que sempre lhe antecipa, é que se pode concluir
que sua condição quanto aos modos de fundação ôntica do conhecimento científico fica a
cargo desta capacidade ontológica que sempre lança o Dasein na situação finita da existência.
41
CAPÍTULO II: A TRANSCENDÊNCIA NO HORIZONTE EKSTÁTICO/TEMPORAL
DO DASEIN
2.1 A condição transcendental do Dasein
O ensejo dispendido em Ser e Tempo, à estruturação de uma ontologia
fundamental, algo como um método angular para o exercício das demais ontologias, a partir
de um debruçamento sobre a estrutura ontológica do Dasein, em seu caráter projetivo,
assentar-se-ia a partir de uma fenomenologia-hermenêutica. Esta fenomenologia guardaria a
busca por uma fundação do conhecimento ôntico, ou entitativo, no entanto, esta fundação é
antecedida por um estrato primeiro, a abertura originária da compreensão do Ser. Segundo
Patrick Heelan, a especificidade epistemológica de tal método fenomenológico-hermenêutico,
pode ser desdobrado do seguinte modo:
Hermeneutical phenomenology shares with phenomenology a set of characteristic
concerns. Firstly, the essence of being human is defined as a practical understanding
of a historical world – Life World – an understanding that is worked out in and
through language and other signs; human existence – that is, the experience of being
a human subject – is that of being-in-the-world. Secondly, I take perception to be
that form of knowing, by a subject‟s practical bodily insertion in historical world
situations, in which reality horizons disclose themselves to subjects as referents for
language. Thirdly, there is a hermeneutical phenomenology concerned with
language and its extensions which provide both for mystery and for historical
development in the uncovering of horizons of the world. 50
(1991, p.06)
O êxito heideggeriano quanto a uma compreensão epistemológica, diferente da
tradição metafísica, decorre de uma estruturação fenomenológica e hermenêutica, portanto
metodológica, do fenômeno científico, envolvido que seria desde então, com a mundaneidade
originária do Dasein humano. Desse modo, o empreendimento científico e seu habitual
empenho via entificação do mundo natural, tão caro à tradição metafísica, cede espaço a
modalização de um como hermenêutico, endossando-se assim as possibilidades do
conhecimento, ou seja: como é possível se conhecer o mundo? Para Barbara Tuchanska, os
efeitos epistemológicos desta revisão heideggeriana, se dão do seguinte modo:
50 “Fenomenologia hermenêutica partilha com a fenomenologia um conjunto de preocupações características.
Em primeiro lugar, a essência do ser humano é definida como uma compreensão prática de um mundo histórico
– mundo da vida - um entendimento que está pautado na linguagem e através de sinais; existência humana - isto
é, a experiência de um sujeito humano - é a de ser-no-mundo. Em segundo lugar, percebo a forma de conhecer
pela inserção de um sujeito corporal prático em situações do mundo histórico, em que os horizontes de realidade
revelam-se como referentes para a linguagem. Em terceiro lugar, há uma fenomenologia hermenêutica
preocupada com a linguagem e suas extensões que proporcionam tanto o mistério, quanto o desenvolvimento
histórico da descoberta de horizontes do mundo.”
42
There‟s an important point, however, where Heidegger‟s ontological analysis of
cognition and scientific research requires modification, namely, their reduction to
the way of being of Da-sein, which he understands individualistically. For many
reasons, cognition should be understood as a (derivative) way of the being of
communities, a way of sociocultural communal being. And ontically it‟s realized in
the form of different sub-practices in which group engage. Thus, scientific research
in a way of our communal being and proceeds through interrelations that connect
scientific dialogue, scientific experience (together with reality as experienced by
scientists), and the participation of scientific knowledge in technology. These
interrelations are performed within social structures and accordingly science can be
considered as a sociocultural system. Ontologically, scientific research, as a way of
human being, has the structure of temporality and historically. 51
(2002, p. 06)
Debruçando-se na incomum busca pelo sentido do Ser, com o método descritivo
da fenomenologia, Heidegger elaboraria seu intricado pensamento, como uma ontologia
empenhada no detalhamento da revelação do ente, revelação esta que dispunha
sorrateiramente de sua contraface: a ocultação, o encobrimento. Para Heidegger esta
revelação do ente, o seu como hermenêutico, subsidiado pelo Ser, que é senão a abertura
torna-se o espaço de manifestação da verdade, espaço que, no entanto esconde ademais, a
ocultação, a não verdade. Desvendar o enigma do velamento e do desvelamento, não cabendo
a outro ente, que não o Dasein, dota esse ente de uma condição deveras privilegiada, e que
condição seria esta? Será a condição transcendental, no sentido de ultrapassagem, êxtase, de
modo que como se considerou há pouco, o Dasein abre-se no horizonte ekstático da
temporalidade, fundando o conhecimento.
2.2 A transcendência do Dasein enquanto ente ekstático de compreensão
Empreendida durante a remoçada do método fenomenológico, em seu caráter
regressivo, à cata da estrutura ontológica do Dasein finito, existente que sintetiza os dados do
conhecimento precedido pelo desvelamento do ente sua totalidade, Heidegger em Sobre a
essência do fundamento, assim considera:
51 “Há um ponto importante, no entanto, onde a análise ontológica de Heidegger da cognição e da pesquisa
científica requer a modificação, ou seja, a sua redução para o modo de ser do Dasein, que ele entende
individualisticamente. Por muitas razões, a cognição deve ser entendida como uma forma (derivada) do modo de
ser das comunidades, um modo comunal sociocultural. Onticamente é percebido na forma de diferentes
subpráticas em que o grupo se engaja. Assim, a investigação científica no modo comunal de ser, prossegue
através de inter-relações que ligam o diálogo científico, experiência científica (juntamente com a realidade
vivida pelos cientistas), e a participação do conhecimento científico em tecnologia. Estas inter-relações são
realizadas dentro das estruturas sociais e, portanto, a ciência pode ser considerada como um sistema
sociocultural. Ontologicamente, a pesquisa científica, como um modo de ser do humano, tem historicamente a
estrutura da temporalidade.”
43
„O ser-aí transcende‟ significa: ele é, na essência de seu ser formador de mundo, e
„formador‟ no sentido múltiplo de que deixa acontecer o mundo, de que com o
mundo se dá uma vista originária (imagem), que não capta propriamente, se bem
que funcione justamente como pré-imagem (modelo revelador, Vor-bild) para todo
ente revelado, do qual o ser-aí mesmo faz por sua vez parte. O ente, digamos a
natureza no sentido mais amplo, não poderia revelar-se de maneira alguma, se não
encontrasse ocasião de entrar num mundo. Por isso, falamos de uma possível e
ocasional entrada no mundo (Welteingang) do ente. Entrada no mundo não é algo
que ocorre no ente que entra, mas algo que „acontece‟ „com‟ o ente. E este acontecer
é o existir do ser-aí, que como existente transcende. Somente quando, na totalidade
do ente, o ente se torna „mais ente‟ ao modo da temporalização do ser-aí, é dia e
hora da entrada no mundo pelo ente. E somente quando acontece esta história
primordial, a transcendência, isto é, quando ente com o caráter do ser-no-mundo
irrompe para dentro do ente, existe a possibilidade de o ente se revelar. (1989, p.
106)
Dotado desta característica, porquanto, ente genuinamente projetivo, ou seja,
compreensivo, o Dasein não ultrapassa compreensivamente a totalidade desvelada dos entes,
porque os mesmos se encontram intramundanos ao derredor, muito antes os mesmos só o
afetam porque tal existente, já é previamente transcendente, de modo que compreende a si
mesmo, sabe-se no mundo.
Compreendendo a si mesmo, o Dasein, lança-se no aberto de sua possibilidade de
ser, projeta-se no solo movediço da temporalidade, daí porque insiste Heidegger em
caracterizá-lo como ekstático, ou seja, sempre adiante de si mesmo, em constante
ultrapassagem, nunca fechado monadicamente em seu mundo como ilhas distantes de si:
A ultrapassagem acontece em totalidade e nunca apenas às vezes e às vezes não,
aproximadamente como, se porventura, consistisse unicamente e, antes de tudo,
numa captação teorética dos objetos. Antes com o fato do ser-aí a ultrapassagem já
sempre está aí. Se, entretanto, não está aí o ente em direção do qual acontece a
ultrapassagem, como deve então ser determinado este „horizonte‟ (Woraufhin);
mais, como deve, em última análise, ser procurado? Nós designamos aquilo em
direção do qual (horizonte) o ser-aí como tal transcende, o mundo, e determinamos
agora a transcendência como ser-no-mundo. Mundo constitui a estrutura unitária da
transcendência; enquanto dela faz parte, o conceito de mundo é um conceito
transcendental. Com este término é denominado tudo que faz essencialmente parte
da transcendência e dela recebe de empréstimo sua interna possibilidade. E somente
por causa disso pode também a clarificação e interpretação da transcendência ser
chamada uma exposição „transcendental‟. (1989, p. 95)
Ultrapassando ekstaticamente os entes que lhe vem ao encontro no aberto do
mundo, o Dasein compreende o ser destes entes, de modo que somente porque transcendente,
compreende, tanto a si mesmo, quanto a instrumentalidade dos objetos. Nesse sentido, o que
se infere consequentemente, é a seguinte premissa: O ente só se desvela, seu como só se dá no
mundo, durante a ultrapassagem ekstática do Dasein, com efeito, a transcendência é a
condição de possibilidade da compreensão, que sempre antecede qualquer comportamento.
44
Tal ênfase quanto o caráter ekstático do Dasein e seu modo projetivo de lidar com os entes no
mundo, ultrapassando-os, habilita uma compreensão epistemológica, diferentemente da
tradição e seu veio logicista, em um plano originariamente existencial, de modo que citando
Joseph Rouse:
The important contrast was temporal: an existential conception of science
emphasized scientific possibilities, in contrast to „the logical‟ conception which
understands science with regard to its results and defines it as an „inferentially
interconnected web of true, that its, valid propositions‟. Heidegger thus focused
upon science as something people do, rather than scientific knowledge as acquired
and assessed retrospectively. Understood existentially, science is not the
accumulation of established knowledge, but it always directed ahead toward
possibilities it cannot yet fully grasp of articulate.52
(2003, p. 06)
Somente porque transcende a si mesmo, ou seja, ultrapassa ekstaticamente, é que
o Dasein se comporta desta ou daquela forma com o ente que se desvela, de modo que como
considera Heidegger no § 28 da Introdução à filosofia: “só porque a existência ou o Dasein é
no fundo seu ser, transcendente, somente por isso é possível a verdade ôntica e ontológica”.
Embora não se esgote tão somente na verdade ôntica (aqui entendido o descobrimento do
ente), muito menos ontológica (desvelamento do Ser), a transcendência funda bem mais no
aberto do Dasein. Mesmo que o desvelamento do Ser (verdade ontológica: alethéia) preceda
o descobrimento do ente (verdade ôntica), por intermédio do comportamento hermenêutico do
Dasein, ambas se correlacionam, mas se distanciam, haja vista a tão pontuada diferença
ontológica apontada por Heidegger, que assim considera no § 2 de Ser e Tempo:
O questionado da questão a ser elaborada é o ser, o que determina o ente como ente,
como o ente já é sempre compreendido, em qualquer discussão que seja. O ser dos
entes não „é‟ em si mesmo um outro ente (...) Ente é tudo de que falamos, tudo que
entendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela maneira, ente é também o
que e como nós mesmos somos. Ser está naquilo que é e como é (...) (2005, p. 32)
Já desde sempre disposto no aberto da compreensão, no ultrapassar ekstático de si
mesma, o Dasein desde há muito, diferencia Ser de ente, já no compreender hermenêutico
operado por seu ser-no-mundo. Desse modo, a diferença ontológica, essa cisão entre Ser e
52 “O contraste importante era temporal: uma concepção existencial de ciência enfatizava possibilidades
científicas, em contraste com a concepção „lógica‟ que entende a ciência em relação aos seus resultados e a
define como uma 'rede verdadeira inferencialmente interligada, ou seja, proposições válidas.‟ Heidegger, assim,
centrava a ciência como algo que as pessoas fazem, ao invés de conhecimento científico como adquirido e
avaliado retrospectivamente. Entendida existencialmente, a ciência não é o acúmulo de conhecimento
estabelecido, mas sempre focada à direção de possibilidades que ainda não pode totalmente compreender ou
articular.”
45
ente, só se efetua enquanto tal, porque desde sempre, enquanto transcendente, o Dasein
ultrapassa o ente. Assim considera Heidegger no § 28 da Introdução à filosofia:
A transcendência não é somente a possibilidade interna da verdade ontológica e
indiretamente também, portanto, ôntica senão precisamente a condição de
possibilidade (...) da conexão entre ambas, mais ainda, da possibilidade da distinção
entre ser e ente (...) (1999, p. 224).
Em linhas gerais, pode-se concluir da transcendência, enquanto modo de
ultrapassar ekstaticamente, a condição de possibilidade da compreensão do si - mesmo do
Dasein, e do ser dos entes no mundo. Para Glazebrook:
Transcendence means to understand oneself from a world, to exist beyond the here
and now of the present, to be already outside oneself among other beings. Dasein is
in a world only because Dasein anticipates a future and, in doing so, stands outside
itself. Hence the ecstatic nature of temporality, from the Latin ex, meaning „out of‟,
and sto, stare, stiti, statum, meaning „to stand‟. 53
(2000, p. 127, 128)
Do desvelamento, que antecede o próprio conhecer, a transcendência antecipa-se
enquanto ultrapassagem ekstática do Dasein, que sempre compreende o ente desta ou daquela
forma. Sem a diferença ontológica facultada pela transcendência ekstática do Dasein, que
sempre se abre a uma especificidade do ente enquanto tal, não haveria como se sustentar uma
compreensão em totalidade, muito menos, conhecer, outrossim, o existente ficaria
impossibilitado de atribuir sentido, fundamentando, as regionalidades ônticas das ciências
com seus respectivos objetos. A propósito do § 3 de Ser e Tempo, cito Heidegger:
O ser é sempre o ser de um ente. O todo dos entes pode tornar-se, em suas diversas
regiões, campo para se liberar e definir determinados setores de objetos. Estes, por
sua vez, como por exemplo, história, natureza, espaço, vida, presença, linguagem,
podem transformar-se em temas e objetos de investigação científica. A pesquisa
científica realiza, de maneira ingênua e a grosso modo, um primeiro levantamento e
uma primeira fixação dos setores dos objetos. A elaboração do setor em suas
estruturas fundamentais já foi, de certo modo, efetuada pela experiência e
interpretação pré-científicas da região do ser que delimita o próprio setor de objetos.
Os „conceitos fundamentais‟ assim produzidos constituem, de início, o fio condutor
da primeira abertura concreta do setor. Se o peso de uma pesquisa sempre se coloca
nessa positividade, o seu progresso propriamente dito não consiste tanto em
acumular resultados e conserva-los em „manuais‟ mas em questionar a constituição
fundamental de cada setor que, na maioria das vezes, surge reativamente do
conhecimento crescente das coisas. (2005, p. 35).
53 “Transcendência significa compreender a si mesmo em um mundo, de existir além do aqui e agora do
presente, já estar fora de si mesmo entre os outros entes. Dasein é em um mundo só porque o Dasein antecipa
um futuro e, ao fazê-lo, fica fora de si. Daí a natureza extática da temporalidade, do ex latim, que significa 'fora
de', e sto, olhar fixo, stiti, statum, que significa "ficar".”
46
A ênfase creditada a Heidegger, torna-se correligionária do paradigma
transcendental do Dasein, que funda ôntico-ontologicamente o conhecimento, ao desvelar o
ente, de modo que a fundação de qualquer ciência é sempre antecedida pela diferença
ontológica, a diferença fendida entre Ser e ente, entre o objeto pretendido e o previamente
aberto, no caso, o Dasein:
Conceitos fundamentais são determinações em que o setor de objetos que serve de
base a todos os objetos temáticos de uma ciência é compreendido previamente de
modo a guiar todas as pesquisas positivas. Trata-se, portanto, de conceitos que só
alcançam verdadeira legitimidade e „fundamentação‟ mediante uma investigação
prévia que corresponda propriamente ao respectivo setor. Ora, na medida em que
cada um desses setores é recortado de uma região de entes, essa investigação prévia,
produtora de conceitos fundamentais, significa uma interpretação desse ente na
constituição fundamental de seu ser. Essas investigações devem anteceder às
ciências positivas. (2005, p. 36)
As ciências empenhadas em pesquisar as regionalidades dos entes, sempre se dão
após a diferença ontológica, perpetrada pela condição transcendental do Dasein, que sempre
compreende o Ser, no solo fáctico do mundo. A propósito disto que se nos parece o que há de
mais peculiar no pensamento de Heidegger, aliás, naquilo que lhe movimenta não só em Ser e
Tempo, mas em toda a sua filosofia quanto à questão fundamental, aliás, a questão pelo
sentido do Ser no horizonte da diferença ontológica, propósito notadamente transcendental,
aqui entendido, como o antecipar ekstático do Dasein, único ente que funda
compreensivamente o conhecimento:
O questionamento, porém – a ontologia no sentido mais amplo, independente de
correntes e tendências ontológicas -, necessita de um fio condutor. Sem dúvida, o
questionamento ontológico é mais originário do que as pesquisas ônticas das
ciências positivas. No entanto, permanecerá ingênuo e opaco, se as suas
investigações sobre o ser dos entes deixarem sem discussão o sentido do ser em
geral. Assim, a tarefa ontológica de uma genealogia dos diversos modos possíveis de
ser, que não se deve construir de maneira dedutiva, exige uma compreensão prévia
do „que propriamente entendemos pela expressão „ser”. A questão do ser não se
dirige apenas às condições a priori de possibilidade das ciências que pesquisam os
entes em suas entidades e que, ao fazê-lo, sempre já se movem numa compreensão
do ser. A questão do ser visa às condições de possibilidade das próprias ontologias
que antecedem e fundam as ciências ônticas. Por mais rico e estruturado que possa
ser o seu sistema de categorias, toda ontologia permanece, no fundo, cega e uma
distorção de seu propósito mais autêntico se, previamente, não houver esclarecido,
de maneira suficiente, o sentido do ser nem tiver compreendido esse esclarecimento
como sua tarefa fundamental. (2005, p. 37)
Enquanto transcendente, sempre em ultrapassagem de si para com os demais
entes, e para com os demais entes dotados da mesma circunstância, o Dasein funda o
conhecimento ôntico-ontológico das respectivas regionalidades dos entes, em decorrência do
caráter sempre pré-concebido, da diferença ontológica que, sempre se antecipa ao pesquisado,
47
àquilo que o inquieta. Curiosamente, no âmbito metodológico de uma diferença ontológica
que, apresenta a dessemelhança originária entre Ser e ente, se move toda recusa dos modelos
epistemológicos da tradição, cindidos em realismo/idealismo. Originariamente como ser-no-
mundo, o Dasein envolve-se em uma relação projetiva que, sempre o mobiliza a mover-se em
uma certa compreensão de Ser, de forma que os objetos não se encontram independentes do
Dasein, o que faz deflacionar a tese realista de conhecimento, muito menos confundem-se
indistintamente, o que faz decair a tese de um idealismo. Para Stepanich isso se dá do seguinte
modo:
In failing to differentiate between Being and entities, realism has conflated the
independence of natural objects from human beings with the being of these objects,
and has thus portrayed these objects as being independently. Consequently, realism
has established this independence as the primary orientation of its ontology (…) Yet
where realism was guilty on conflating the independence of natural objects with
their being, idealism conversely confused the dependency of being with entities, so
that the entities themselves were seen as dependent on human understanding. 54
(1991, p. 22)
A recusa da tradição e sua postura realista ou idealista liberaria com a diferença
ontológica, uma possibilidade epistemológica insuspeita, a do pleno envolvimento ontológico
entre o Dasein e o mundo, com efeito, em um plano primário de manifestação o ente se dá
antecipadamente. Para Stepanich:
Through our practical involvement with the entities within our world, these entities
are first uncovered and made intelligible to us. Yet the entities themselves are both
prior to and apart from our encounter with them. 55
(1991, p. 20)
Percebe-se, portanto, que desta estrutura fundacional do Dasein enquanto ser de
transcendência no aberto do mundo cabe uma ontologia fundamental, ou seja, condição prévia
tanto para as ontologias que se voltam ao ser de um ente de uma determinada região, quanto
às ciências positivas, desobrigadas que são da questão do Ser:
Em geral, pode-se definir a ciência como o todo de um conjunto de fundamentação
de sentenças verdadeiras. Essa definição não é completa e nem alcança o sentido da
54 “Por não diferenciar Ser e entes, o realismo tem confundido a independência dos objetos naturais dos seres
humanos com o ser desses objetos, e tem, assim, retratado esses objetos como sendo de forma independente.
Conseqüentemente, o realismo tem estabelecido essa independência como a orientação principal de sua
ontologia (...). No entanto, onde o realismo foi culpado em confundir a independência dos objetos naturais com o
seu ser, o idealismo muito pelo contrário, confundiu a dependência do Ser com os entes, de modo que os entes
foram vistos como dependentes da compreensão humana.”
55 “Através do nosso envolvimento prático com os entes dentro de nosso mundo, os objetos são descobertos pela
primeira vez e tornam-se inteligíveis para nós. No entanto, os entes em si são primordias e encontram-se além do
nosso encontro com eles.”
48
ciência. Como atitude do homem, as ciências possuem o modo de ser desse ente
(homem). Nós o designamos com o termo pre-sença. A pesquisa científica não é o
único modo de ser possível desse ente e nem sequer o mais próximo. Ademais, se
comparada a qualquer outro, a pre-sença é um ente privilegiado (...). A pre-sença
não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrário, do ponto de vista
ôntico, ela se distingue pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo
seu próprio ser. Mas também pertence a essa constituição de ser da pre-sença a
característica de, em seu ser, isto é, sendo, estabelecer uma relação de ser com seu
próprio ser. Isso significa, explicitamente e de alguma maneira, que a pre-sença se
compreende em seu ser, isto é, sendo. É próprio deste ente que seu ser se lhe abra e
manifeste com e por meio de seu próprio ser, isto é, sendo. A compreensão do ser é
em si mesma uma determinação do ser da pre-sença. (2005, p. 38)
Após uma elucidação fenomenológica do Dasein, como se considerou acima,
resultado de sua estrutura ontológica, transcendente, ou seja, fundadora, é que pode o
conhecimento entitativo da ciência, com suas ponderações localizadas, fundamentar-se
enquanto tal, de modo que uma hermenêutica das ciências naturais, aqui compreendida
enquanto condição de possibilidade à pesquisa ôntica em geral, cabe a legitimação
fundamental do pensamento desdobrado nas ciências. Conforme Heidegger:
Se, no movimento das análises ontológico-existenciais, questionamos o
„aparecimento‟ da descoberta teórica a partir da ocupação guiada pela circunvisão,
então o que se problematiza não é a história e o desenvolvimento ôntico da ciência e
nem as suas condições fatuais ou seus fins mais imediatos. Buscando a gênese
ontológica do comportamento teórico, colocamos a seguinte questão: Quais as
condições de possibilidade, inerentes à constituição ontológica da pre-sença e
existencialmente necessárias, para que a pre-sença possa existir no modo da
pesquisa científica? Esse questionamento visa a um conceito existencial da ciência.
Deste difere o conceito „lógico‟, que compreende a ciência no tocante a seus
resultados, determinando-a como „um sistema de fundamentação de sentenças
verdadeiras, isto é, de validade universal.‟ O conceito existencial compreende a
ciência como modo da existência e, portanto, como modo do ser-no-mundo, que
descobre e abre o ente e o seu ser. Só se pode, no entanto, desenvolver de forma
plena e suficiente a interpretação existencial da ciência, caso se esclareça, a partir da
temporalidade da existência, o sentido do ser e do „nexo‟ entre ser e verdade. (2005,
parte II, p. 157).
Há uma necessidade sobremaneira de responder primeiramente à temporalidade
da condição fáctica do Dasein enquanto ser no mundo, portanto, transcendente, daí porque
Heidegger sente a necessidade de repensar a ciência no âmbito ekstático do Dasein, âmbito
existencial. Enquanto ente cujo modo de ser, abre-se ao mundo como transcendência, o
Dasein sempre funda em decorrência do caráter fáctico de sua condição ontológica, afinal a
aprioridade do ente em sua dação originária, antecede toda e qualquer pesquisa ôntica das
ontologias regionais. No § 69c de Ser e Tempo, intitulado: O problema temporal da
transcendência do mundo, assim considera Heidegger:
49
O mundo já está, por assim dizer, „muito mais fora‟ do que qualquer objeto pode
estar. Por isto, o „problema da transcendência‟ não pode ser reduzido à questão de
como um sujeito sai de dentro de si e chega a um objeto fora de si, em que se
identifica o conjunto de objetos com a idéia de mundo. A questão é: Do ponto de
vista ontológico, o que torna possível que o ente intramundano venha ao encontro e
possa, enquanto aquilo que vem ao encontro, ser objetivado? A resposta se acha no
retorno à transcendência do mundo, fundada de modo ekstático e horizontal.
Concebendo, ontologicamente, o „sujeito‟ como pre-sença o que existe e cujo ser
está fundado na temporalidade, deve-se então dizer: mundo é „subjetivo‟. Mas, do
ponto de vista transcendente e temporal, este mundo „subjetivo‟ é mais „objetivo‟ do
que qualquer „objeto‟ possível. Ao se reconduzir o ser-no-mundo para a unidade
ekstática e horizontal da temporalidade, pode-se compreender a possibilidade
ontológico-existencial desta constituição fundamental da pre-sença. Também se
esclarece que só é possível elaborar, concretamente, a estrutura do mundo e de suas
possíveis derivações se a ontologia dos possíveis entes intramundanos se orientar,
com segurança e suficiência, por um esclarecimento da idéia do ser em geral. A
possibilidade de interpretação desta idéia exige uma exposição preliminar da
temporalidade da pre-sença, a serviço da qual se acha a presente caracterização do
ser-no-mundo. (2005, parte II, p.165, 168)
No solo movediço da existência, em seu caráter ekstático, é que funda o Dasein,
em seu comportar-se teórico em face dos entes que lhe vêm ao encontro, as regionalidades das
ciências ônticas, se fazendo imprescindível, pois, a abertura do mundo, conjuntamente com a
condição transcendental deste ente de situação, único ente que disposto numa teia referencial,
é capaz de conhecer, predicar o sentido ao mundo, sem o qual, nada haveria.
Em pormenor, a consideração de Heidegger quanto ao caráter fundador do
Dasein, transcendente, esmiúça primeiramente, o manejo deste ente ocupado com os
intramundanos, os quais, sempre se abrem previamente ao Dasein, em decorrência da
condição desencobridora deste ente de privilégio ôntico-ontológico.
É necessário considerar que, a tematização ôntica envolvida com a regionalidade
de um ente cobrado a qualquer ciência, é sempre antecedida pelo caráter projetivo do Dasein,
que compreende, ajuíza acerca do ente, portanto, a ciência, bem como o conhecimento em sua
totalidade, resulta desta disponibilidade ontológica que dota tão somente os entes que nós
mesmos somos, de modo que se faz necessário, o aberto do mundo, a transcendência disposta
em seu lançar-se ekstático/temporal, para que a mesma concretize seus esforços:
Manualidade e ser simplesmente dado ainda não se diferenciam e, sobretudo, ainda
não são concebidos ontologicamente. Mas para que a pre-sença possa lidar com um
nexo instrumental, ela deve compreender, mesmo que não tematicamente, algo
como conjuntura: um mundo já se lhe deve ter aberto. Este se abre junto com a
existência de fato da pre-sença, uma vez que ela existe, essencialmente, como ser-
no-mundo. E se, por fim, o ser da pre-sença se funda na temporalidade, esta deve,
pois, possibilitar o ser-no-mundo e, com ela, transcendência da pre-sença que, por
sua vez, inclui o ser em ocupação, seja teórico ou prático, junto aos entes
intramundanos. (2005, parte II, p. 165).
50
De tudo até aqui considerado, pode-se aferir à ênfase fundamental do projeto
heideggeriano, como algo que anteceda tanto a teoria do conhecimento; em seu sentido
eminentemente parcial, objetual, quanto à ciência; em seu distanciar-se do objeto em
sobrevôo, portanto, vale fundar o princípio originário do conhecimento enquanto um modo de
ser do Dasein, na facticidade transcendental deste ente de situação, outrossim, pretende
Heidegger uma reorientação paradigmática do conhecimento enquanto tal:
Ele quer trazer à luz o que realmente acontece, quando nos colocamos numa postura
teórica, comumente dita científica em relação ao mundo. Na chamada postura
científica objetivante, nós fazemos desaparecer a significação primária, o mundo
circundante, a vivenciabilidade, despimos o algo até sua objetualidade nua, o que só
se consegue extraindo também o eu que vivencia, e erigindo um artificial novo,
secundário, que será batizado de sujeito e que então se defronta em correspondente
neutralidade com o oponente agora chamado objeto. (2000, p. 31)
A propósito é que se considera que, somente no âmbito mundano do Dasein; ente
junto aos intramundanos, que se dão fendidos na teia referencial, é que se instaura a ciência
hermeneuticamente fundada, de modo que esta é sempre antecedida por uma esfera anterior,
mais originária, lê-se: primordial, a saber: a transcendência. Em sua obra: Seis Estudos sobre
„Ser e Tempo‟, Ernildo Stein se vale do § 20 do volume 20 das Obras Completas de
Heidegger, que assim considera a especificidade da condição transcendental do Dasein, ente
que já é sempre cognoscível, portanto, fundador do conhecimento, sua condição no mundo:
Para o modo de ver corrente, quando se reflete sobre esta relação de ser entre sujeito
e objeto, é dado previamente, no sentido mais lato, um ente denominado natureza,
que é conhecido, o qual o estar-aí, pelo fato mesmo de que este é ser-no-mundo,
primeiramente também já sempre encontra, cultiva e arranja. Neste ente o
conhecimento mesmo que é conhecido não pode ser encontrado. Assim, este
conhecimento deve estar em alguma outra parte, caso realmente exista. Mas também
na coisa que é e que conhece, na coisa-homem, não está presente o conhecimento e
por isso ele não é tão perceptível, constatável como a cor e a extensão desta coisa-
homem. Mas o conhecer parece, contudo, deve estar nesta coisa; e, se não do lado de
„fora‟, então „dentro‟. Este conhecer está „dentro‟, „em‟ esta coisa-sujeito, in mente.
***
Com isto se afirma nada mais nada menos que: Conhecimento do mundo é um modo
de ser do estar-aí e um modo de ser que está onticamente fundado em sua
constituição fundamental, o ser-no-mundo. Se reproduzirmos o conteúdo fenomenal
da seguinte maneira: Conhecer é um modo de ser do ser-em, então se tende,
orientado no horizonte tradicional da teoria do conhecimento, a responder; com esta
interpretação do conhecimento é justamente destruído o problema do conhecimento.
Haverá, no entanto, uma instância que decida se e em que sentido deva existir um
problema do conhecimento, fora a coisa mesma? (...) A falha fundamental da teoria
do conhecimento reside precisamente no fato de ela não ver o que designa
„conhecer‟, no seu conteúdo originário fenomenal como modo de ser do estar-aí,
como modo de ser-em do estar-aí, para então a partir deste enfoque básico se ater ao
questionamento que parte deste fundamento (Boden). (Heidegger apud Stein, 2005,
pgs. 28, 30).
51
De tudo até aqui considerado, pode-se inferir a seguinte sentença: o problema do
conhecimento, em toda sua amplitude, se dá com a abertura originária do Dasein enquanto
ente transcendente, que já é sempre compreensivo, ou seja, projeto. Se o ente em sua entidade
maciça só se abre no aberto da finitude do Dasein, então, por conseguinte, todas as
elaborações conceituais do Dasein acerca deste ente, se dão neste âmbito fundamental, sua
condição de possibilidade.
Dada às circunstâncias deste trabalho, em seu propósito premente, que é senão
considerar a ontologia de Heidegger enquanto fundamental, ou seja, em busca do fundamento
ôntico-ontológico para a instauração das demais ciências, ou ontologias regionais, partindo,
pois, de uma analítica exaustiva do único ente que compreende o Ser, o Dasein, é que se pode
afirmar, conjuntamente com o autor em questão:
„Fundamentar‟ não será tomado aqui no estreito e derivado sentido do demonstrar de
proposições ôntico-teoréticas, mas numa significação fundamentalmente originária.
De acordo com isto, fundamentação significa tanto como possibilitação da questão
do porquê em geral. Tornar visível o caráter próprio originariamente fundador do
fundamentar, quer dizer, conforme isso, clarificar a origem transcendental do porquê
como tal. Procurados não são, portanto, os motivos da irrupção fática da questão do
porquê no ser-aí, mas procura-se a possibilidade transcendental do porquê em geral.
Por isso deve ser interrogada a transcendência mesma, na medida em que foi
determinada através dos dois modos de fundar até aqui examinado. O fundar que
erige antecipa, como projeto do mundo, possibilidades de existência. Existir
significa sempre: situado em meio ao ente, comportar-se em face dele - do ente que
não possui o caráter do ser-aí, de si mesmo e de seu semelhante – de tal maneira que
neste comportamento situado sempre esteja em mira o poder-ser-do ser-aí. No
projeto do mundo é dado um excesso de possível, em vista do qual e no ser
perpassado pelo imperar do ente (real), que de todos os lados nos cerca no
sentimento de situação brota o porquê. (1989, p. 112)
A postura preconizada por Heidegger no que diz respeito à ciência consagra-se
enquanto ontologia fundamental, não havendo, pois, para o comportamento teórico outro
encaminhamento que não o ontológico. No entanto, longe de se alicerçar em constructos
filosóficos radicados em principados atemporais, suprassensíveis, este ser move-se no claro-
escuro do tempo, velando-se e desvelando-se à proporção que o Dasein compreende suas
incidências, manifesta na particularidade dos entes.
2.3 A projeção moderna da natureza
Em sua constituição originária, o Dasein se configura como um ente de
possibilidade, afinal é um constante lançamento, ou seja, um poder-ser constante. Em função
desta capacidade antecipadora ou transcendental, é que o ente subsistente se põe a descoberto,
52
com efeito, abre-se uma possibilidade em sua tarefa cotidiana no inusitado desmantelo de sua
instrumentalidade. Tal fato, ainda há pouco tomado como transcendência, pode igualmente
ser lida como proveniente do caráter projetivo da compreensão, enquanto abertura primordial
do ser-no-mundo. Pelo fato da tradição epistemológica não ter suscitado uma investigação
acurada quanto às estruturas ontológicas do Dasein e sua modalização do mundo por meio do
conhecimento científico, é que se faz premente uma ontologia fundamental, para tanto uma
recapitulação mínima da postura metafísica, não seria de todo improfícuo.
Em linhas gerais, a metafísica teria se tornado uma doutrina do Ser, ou seja, a
eterna busca pela objetividade do objeto. Dito de outro modo é como se para tal investida
especulativa, ficasse reservada a condição de possibilidade do conhecimento objetivo em
geral, com efeito, lida com o Ser, condição primeira de tudo o que É.
Desde há muito o propósito metafísico teria se configurado como a tentativa
humana de compreender a ordem contínua da multiplicidade, de sorte que se busca a unidade
do Ser na pluralidade de suas significações. O Uno em si mesmo se diferencia: eis a tônica de
tal discurso. Para Benedito Nunes:
Diferente das outras disciplinas teóricas – a Física e a Matemática, que tratam de
partes do ente, estudando-lhes os atributos particulares -, só uma tal disciplina
poderia constituir-se em ciência dos princípios e ocupar o mais elevado posto do
conhecimento teórico (theoretiké epistéme), como sabedoria (sophía) que se busca
por si mesma. O caráter elevado de sabedoria decorre da universalidade dos
princípios. Quanto mais abstratos são, quanto mais acima da experiência sensível se
situam as causas investigadas, maior é a garantia de exatidão da ciência. Buscar as
causas superiores ou os primeiros princípios é busca a realidade a que pertencem, e
que não é uma parte do ente, mas o ente enquanto ente, considerado em si mesmo ou
em sua totalidade. (...) O ser por essência, concebido em si meso – por oposição ao
acidente -, „recebe todas as acepções indicadas pelos tipos de categorias.‟ (do verbo
kategórein: afirmar ou atribuir, de onde a versão latina predicamentum), que
correspondem a tudo o que é – às atribuições gerais de todos os seres ou do ser;
substância (ousía), quantidade (posón), qualidade (poión), relação (prós ti), lugar
(poú), tempo (poté), situação (keísthai), estado (échein), ação (poieín), paixão
(páschein), conforme a lista do Órganon. As categorias distinguem os atributos
essenciais (einaí té ti) do ser, e por sua vez se distinguem do ser absoluta ou
simplesmente considerado, na acepção de essência. De todas as categorias, somente
a ousía não é um predicamento. (1986, p. 36)
Ora, nesse sentido, é que Aristóteles no Livro IV da Metafísica se questiona:
„Qual a determinação simples e unitária do Ser que prevalece entre as múltiplas
significações de ente?‟56
Destarte, o que subjaz ao plano múltiplo do Real? Enquanto ciência
dos primeiros princípios e das últimas causas, a metafísica empenhar-se-ia em buscar, não os
atributos particulares dos entes com suas respectivas especificidades, antes a essência última 56
HEIDEGGER, M. Preface/Vorwort. In: RICHARDSON, William J.,S.J., Heidegger – through
Phenomenology to thought. 3. Ed. The Hague, Martinus Nijhoff, 1974. P. X-XI. Edição Bilíngue.
53
do ente enquanto tal, ou seja, sua inalienabilidade. Em si mesmo, o Ser opõe-se ao acidente,
tornando-se, pois, categorial, do latim: predicamentum. Tais categorias, dispostas que estão
no Órganon de Aristóteles (substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo,
situação, estado, ação, paixão), correspondem às atribuições genéricas do Ser. De todas as
categorias elencadas, apenas a substância não é passível de predicação, com efeito, subjaz à
coisa, ou seja, é o Ser primeiro, a despeito dos acidentes. Tomar a substância em tal plano é
concebê-la como a acepção primeira do ente, de modo que tudo aquilo que é, encerra em si
mesmo a substância.
Como concebe o Ser como o mais universal dos conceitos, a transcender todos os
entes, outra não teria sido a herança da metafísica senão a de um completo embotamento da
questão do Ser. Daí porque, assim considera Charles Guignon:
Generally the questions that seem „natural‟ and pressing to an age emerge out of a
world-view that has been inaugurated by key historical transformations in that
culture. In the background of Being and Time is the assumption that the whole
history of Western thought has been set on the wrong track by the Greek
interpretation of Being as ousia or parousia. Beginning „explicitly with
Parmenides‟, there was a tendency to cover up the deepest and earliest sense of
reality by interpreting Being as mere „presence‟ (Anwesenheit). 57
(1983, p. 15)
Por parecer tão trivial, quanto notório, o problema do Ser ficaria relegado a
segundo plano, engendrando assim, um esvaziamento de suas possibilidades. A herança de tal
perspectiva para a tradição ocidental vincular-se-ia à formação de um bastidor de legitimidade
apto a normatizar os fenômenos naturais, de modo que já em sua gênese, a metafísica
desdobra-se como epistheme, na ordem do que pode ou não ser conhecido. Segundo Nevvajai:
“Metaphysics distinguishes between being and the existent in the form of non-object and
object knowledge.” 58
(2000, p. 06) A seguir, essa indiferença para com o Ser e o ente, tão cara
à defesa do caráter evidente de sua natureza, resultaria em um fundamento para o
conhecimento epocal, de um limite que vai da antiguidade até a modernidade, de modo que
ciência e metafísica tornar-se-iam discursos de legitimação dos fenômenos naturais. Para
Nevvajai:
57 “Geralmente as perguntas que parecem „naturais‟ e projetam-se à posteridade como uma visão de mundo,
foram inauguradas por uma trasformação histórica chave no âmbito da cultura. No background de Ser e Tempo,
pressupõe-se que, toda a história do pensamento ocidental foi definido no caminho errado pela interpretação
grega do Ser como ousia ou parousia. Começando „explicitamente com Parmênides‟, houve uma tendência para
encobrir o sentido mais profundo e mais originário de realidade através da interpretação do Ser como „mera
presença‟ (Anwesenheit).”
58 “Metafísica distingue Ser e ente, na forma do não-objeto e do objeto cognoscível.”
54
Metaphysical thinking is called to provide the reason for any existing thing. Science,
relying on a metaphysical way of asking about being, considers any existing reality
as predetermined. The objects of scientific cognition thus emerge as those subjects
to calculation and measurement. In science, as M. Planck pointed out, only that
which can be measured is real. 59
(2000, p. 02)
Enquanto doutrina categorial, da totalidade do ente enquanto ente cabe à
metafísica delimitar o campo de atuação de cada ciência particular, o que acaba por lhe
facultar um caráter propedêutico. Para Glazebrook: “The relation between the sciences and
metaphysics goes deeper than it did for Heidegger in his earlier accounts. Metaphysics is not
simply a ground for the sciences, but, as the inquiry into their root, has a guiding function to
perform.60
” (2000, p. 39)
Como se empenha na busca pelo fundamento, outra não seria a orientação da
metafísica, senão deduzir de uma unidade inteligível, a multiplicidade, de sorte que tudo o que
É, radica-se em tal campo originário. Nesse sentido, a metafísica concebe a realidade e seus
respectivos fenômenos, passíveis de cognoscibilidade, porquanto, todo ente emane de um
fundamento em que nada é sem razão de ser (nihil est sine ratione). Segundo Nevvajai:
In scientific consciousness reality appears in the form of a thing which is external
and transcendental in relation to reason. On this basis the existence of such an
existing given is conceived. For scientific consciousness that which has a sufficient
reason exists. This is the essence of metaphysical understanding of reality. As
Heidegger pointed out, its kernel is the principle of sufficient reason. (…) Classical
metaphysics, in accordance with the principle of sufficient reason, requires that
being should have its first basis in the form of some existent. With such a
requirement, according to Heidegger, metaphysics leads thought away from the
possibility of conceiving being. In fact, being exists, but it is different from any
existent. Being consists of transcendence, a constant overcoming of any form of
object.61
(2000, p. 02).
59 “O pensamento metafísico é chamado para fornecer a razão de qualquer coisa existente. Ciência, contando
com uma forma metafísica de perguntar sobre o Ser, considera qualquer realidade existente como
predeterminada. Os objetos da cognição científica, portanto, emergem como pautas para cálculo e mensuração.
Em ciência, como M. Planck apontou, apenas o que pode ser medido é real.”
60 “A relação entre as ciências e a metafísica é mais profunda do que para Heidegger em suas análises anteriores.
Metafísica não é simplesmente um fundamento para as ciências, mas, uma investida sobre suas origens, tendo
uma função orientadora performativa.”
61 “Na compreensão científica, a realidade aparece na forma de uma coisa que é externa e transcendental em
relação à razão. Desse modo, a existência de tal dado existente é concebido. Para a compreensão científica, o que
existe, tem uma razão suficiente. Esta é a essência da compreensão metafísica de realidade. Como Heidegger
assinalou: eis o núcleo do princípio da razão suficiente. (...) A metafísica clássica, de acordo com o princípio da
razão suficiente, requer que o Ser tenha a sua primeira base na forma de alguns existentes. Com tal exigência, de
acordo com Heidegger, a metafísica afasta o pensamento da possibilidade de conceber o Ser. Na verdade, o Ser
existe, mas é diferente de qualquer outro existente. Composto de transcendência, o Ser é uma constante
superação de qualquer tipo de objeto.”
55
Levando-se em consideração o fato de que tudo o que É, tem uma razão de ser, a
multiplicidade de entes torna-se a oferta factual de um objeto em face de um sujeito a forjar
uma cadeia dedutiva de procedimentos e ulterior perda do sentido do Ser em definitivo. A
propósito, para Charles Guignon:
When the subject is interpreted as the ground of all beings, Being comes to be
understood as something merely at man‟s disposal. Nature and the world are
regarded as something on hand for fulfilling our utilitarian ends. In this process,
Being loses its gravity and weightiness. We become quiescent and complacent in
our assurance that with science and technology we will achieve full mastery and
dominance over all beings. 62
(1983, p. 19)
Dependente de tal aparato conceitual é que se percebe a vinculação entre a
metafísica, assentada que é no princípio de Razão Suficiente e a cientificidade, compreendida
aqui como a via de acesso ao mundo cognoscível 63
. O que se sobreleva é a ideia de que a
visada científica, subsidiada que é por uma licença metafísica, concebe o mundo natural como
um continuum, afinal todo fenômeno enfeixa-se num plano razoável de causalidade, como se
implicássemos necessariamente as aparições do evento X2 a X1. Segundo Igor Nevvajai:
Unlike philosophy, science always solves the question about what the existent is and
what nonexistent means. In science there are methods which allow one to answer
this question. For instance, there abound proofs of the impossibility of some
existences in the world, many of which are based on the principle of sufficient
reason. In the history of science there are numerous examples where some existence
is denied on the strength of the fact that it‟s necessary and sufficient reason is
absent. A new scientific theory is often formed on the basis of such proofs. Negative
discoveries in science are no less significant than positive ones. Einstein‟s theory of
relativity is based on the principle of the impossibility of transferring signals with
superlight velocity. The uncertainty principle in quantum physics is of this kind. In
thermodynamics there is the principle of the impossibility of a perpetuum mobile. In
its negative form the principle confirms what mobiles can exist in reality. 64
(2000,
p. 03).
62 “Quando o sujeito é interpretado como o fundamento de todos os entes, o Ser passa a ser entendido como algo
meramente à disposição do homem. Natureza e o mundo são considerados como algo à mão para o cumprimento
dos nossos fins utilitários. Neste processo, o Ser perde sua gravidade e seu peso. Tornamo-nos inertes e
complacentes com nossa certeza de que, com a ciência e a tecnologia vamos conseguir o domínio completo e
domínio sobre todos os entes.”
63 Para maior compreensão do proposto, sugere-se a leitura do artigo de Aaron Harrison: The principle of
sufficient reason, bem como Sobre a essência do fundamento de Martin Heidegger.
64 “Diferentemente da filosofia, a ciência sempre resolve a questão sobre o significado do que existe ou inexiste.
Na ciência, existem métodos que permitem responder a esta questão. Por exemplo, há abundantes provas da
impossibilidade de algumas existências no mundo, muitas dos quais são baseadas no princípio da razão
suficiente. Na história da ciência existem inúmeros exemplos onde algumas existências são negadas com a força
do fato do que é necessário e a razão suficiente está ausente. Uma nova teoria científica é muitas vezes formada
com base em tais provas. Descobertas negativas na ciência não são menos significativas do que as positivas. A
teoria da relatividade de Einstein é baseada no princípio da impossibilidade de transferência de sinais na
velocidade da luz. O princípio da incerteza na física quântica é deste tipo. Na termodinâmica, há o princípio da
56
Como consequência, o mundo natural torna-se, pois, manipulável, com a oferta
convencionada da formalização. Ao se estribar nesses limites, a ciência concebe a realidade
como um campo linear de fenômenos naturais radicados em uma razão de ser. Como tudo tem
um fundamento e desse modo, pode ser detalhado racionalmente, não há, pois, contingências
ou inauditos no mundo natural, com efeito, tudo passa a ser obra de uma providência. Para
Nevvajai:
Metaphysics supposes the existence of being as a subject of understanding of
possible rational interpretations of nature. In view of this subject, it is possible „to
translate‟ the language of one description (interpretation) of the observed picture of
phenomena into the language of another description. Metaphysics words out the
invariant rules of „translation‟ of different rational interpretation of reality.
Metaphysics thus tries to learn what lies beyond the limits of any possible
experience; it allows us to recognize justification of any reasonable „point of view‟. 65
(2000, p. 07)
Dito de um modo peremptório é que afirmamos: uma metafísica pressupõe uma
física, de maneira que o debruçamento sobre os fenômenos naturais traz consigo um bastidor
prévio de inteligibilidade. Nesse sentido é que Glazebrook assim considera:
Heidegger does not relinquish the idea that science is the mathematical projection of
the nature, but he has untangled that thesis from a second thesis central to his early
view: that metaphysics is itself a science (…) Explication of this early view entails
laying out his account of the relation between metaphysics and natural sciences66
.
(2000, p. 14)
Desse modo, já com os pré-socráticos, o Ser enquanto fundamento último seria
compreendido como physis. Tal imbricação entre Ser e physis, traria a reboque uma
metafísica subjacente, em que verdade e natureza pertencem à esfera do logos, noção
premente à consecução de uma postura ontológica de verdade como adequatio. A
compreensão filosófica de natureza em sua feição pré-socrática implicaria a manifestação do
logos como a relação imediata do homem com o Ser, de modo que haveria em tal impossibilidade de um perpetuum mobile. Em sua forma negativa o princípio confirma que os móveis podem
existir na realidade.”
65 “A metafísica supõe a existência do Ser como um sujeito de compreensão das possíveis interpretações
racionais da natureza. Tendo em vista este sujeito, é possível „traduzir‟ a linguagem de uma descrição
(interpretação) de um fenômeno observado por outra descrição. As palavras metafísicas extravasam as regras
invariáveis de 'tradução' de diferentes interpretações racionais da realidade. A metafísica, assim, tenta aprender o
que está além dos limites de qualquer experiência possível, o que nos permite reconhecer justificativas razoáveis
de qualquer „ponto de vista‟”.
66 “Heidegger não abandona a idéia de que a ciência é a projeção matemática da natureza, mas ele desembaraça-
se da tese de uma segunda tese central para a sua visão inicial: que a metafísica é uma ciência em si (...).
Explicação dessa visão antecipada implica expor a sua conta com a relação entre metafísica e ciências naturais.”
57
manifestação um elemento de mediação. Enquanto médium nos termos da relação:
homem/physis, o logos manifestar-se-ia como alethéia, o que habilitaria a natureza ao
desvelamento, à desocultação67
. Desse modo, a natureza, espaço de revelação da
multiplicidade, se dá a conhecer por meio da disponibilidade fundamental do logos. Nesse
sentido, a physis seria a abertura do acontecimento do ente em sua mostração, um pôr-se à luz.
Com qual propósito Heráclito teria afirmado: a natureza ama ocultar-se, senão o de atestar
este estado clarividente da physis, por ser revelada? Em linhas gerais, a análise de Heidegger
com ênfase à cientificidade ocidental, abalizada em sua gênese grega e sua natureza
eminentemente contemplativa, pode ser compreendida, segundo Glazebrook do seguinte
modo:
Heidegger, unlike these analytics, is not strictly interested in the history of science.
Rather, his concern is with the history of being, and with human being as the
location of such a history. He thinks that history as a sequence of three epochs: the
ancient, the medieval, and the modern. The latter is determined by science, as the
Greeks were by philosophy and the medieval by religion. (…) Hence his
contribution to the history and philosophy of science is not an analysis of the
epochal history of science, but rather of the epochs of being.68
(2000, p. 66)
No panorama da postura científica do mundo grego e a específica vinculação com
a noção de physis é que se tem como revisão, a filosofia de Platão. Ao interpretar de um modo
decisivo o Ser enquanto ideia, Platão desloca toda potencialidade pré-socrática a um acirrado
idealismo, o que faz com que os fenômenos naturais sejam tomados como cópias secundárias
de um modelo arquetípico, o que acaba por cindir a realidade em um nível essencial em
detrimento de um nível fáctico. A mudança paradigmática que, desloca o Ser enquanto physis
e logos à noção de ideia trazem consigo um declínio que acarreta a sobreposição da imagem à
coisa mesma. Desse modo, o microcosmo passa a ser compreendido como um constructo
matemático, em um nível eminentemente formal, o que dispõe uniformidade à natureza. Para
Glazebrook:
67 “Verdade: que quer isto dizer? É verdadeiro aquilo que tem validade, vale aquilo que concorda com os fatos...
A verdade é, portanto, conformidade com as coisas. Certamente, não são apenas as verdades particulares que se
devem conformar com as coisas particulares, mas a própria essência da verdade. Quando a verdade é
conformidade, dirige-se para..., isto, sem duvida, deve em primeiro lugar, valer para a determinação da verdade:
ela deve conformar-se com a essência das coisas. (coisalidade)” (HEIDEGGER, p. 42, 1992)
68 “Heidegger, ao contrário destes analíticos, não é estritamente interessado na história da ciência. Ao contrário,
sua preocupação é com a história do Ser, e com o ser humano como o espaço de tal história. Ele compreende a
história como uma seqüência de três épocas: a antiga, a medieval e moderna. A última é determinada pela
ciência, como os gregos eram pela filosofia e o medievo pela religião. (...) Daí a sua contribuição para a história
e para a filosofia da ciência, não como uma análise da história epocal da ciência, mas sim da historicidade do
Ser.”
58
When Plato interprets being as idea, he preserves the pre-Socratic notion of being as
presence, but abolishes being as physis, such that the stability of the idea over and
against the transience of physis contains the origin of the medieval distinction
between existentia and essentia. Plato reconciles being with idea in essence, a
synthesis out of which existence emerges as antithesis. 69
(2000, p. 67)
O que há por detrás do idealismo de Platão ao tomar o Ser por ideia, é sem mais,
uma consequência à compreensão de verdade, tida originariamente como desvelamento à
franca substituição pela noção de correspondência. O que daí se depreende é a consecução de
um modelo de representação decisivo para a ciência moderna, de sorte que a física torna-se
um sucedâneo aplicado da metafísica. Para Heidegger:
In what way does modern metaphysics arise out of the spirit of the mathematical? It
is already obvious from the form of the question that mathematics could not become
the standard of philosophy, as if mathematical methods were only appropriately
generalized and then transferred to philosophy. Rather, modern natural science,
modern mathematics, and modern metaphysics sprang from the same root of the
mathematical in the wider sense. Because metaphysics, of these three, reaches
farthest- to beings in totality- and because at the same time it also reaches deepest
toward the Being of beings as such, therefore it is precisely metaphysics which must
dig down to the bedrock of its mathematical base and ground… 70
(2008, p. 273)
Endossando-se o fato anteriormente esboçado, de que haveria uma vinculação
entre ciência e o princípio de Razão Suficiente, como atestado metafísico de causalidade, é
que se pode aferir já com a compreensão grega de physis, mutatis mutandis, as insinuações do
projeto moderno de natureza, compreendido que seria nos termos mecânicos da
funcionalidade. Desse modo, cito Oskar Becker:
Este fato não é diminuído por esse outro, que no decurso do século XVIII se
descobriram processos matemáticos que permitem estabelecer leis de caráter integral
e aparentemente teleológico, os chamados „princípios extremais‟ (leis integrais).
Trata-se do cálculo das variações, concretamente do problema da curva do percurso
do menor tempo („braquistócrona‟, de que se ocuparam Leibniz e Jakob e Johann
Bernoulli); do princípio mais curto para a luz (Fermat) e dos resultados mínimos
(Leibniz e Maupertius). Para Leibniz esses princípios maximais e minimais, têm
uma significação básica, filosófico-teológica: Deus, que criou o melhor de todos os
mundos possíveis, produz o máximo com os menores meios, solve todos os
69 “Quando Platão interpreta o Ser como idéia, ele preserva a noção pré-socrática do Ser como presença, mas
abole o Ser como physis, de tal forma que a estabilidade da idéia sobre e contra a transitoriedade da physis,
contém a origem da distinção medieval entre existentia e essentia. Platão reconcilia o Ser com a idéia em
essência, uma síntese na qual a existência surge como antítese.”
70 “De que forma a metafísica moderna desvincula-se do espírito da matemática? É evidente que, a partir da
forma da questão de que a matemática não poderia se tornar a referência da filosofia, como se os métodos
matemáticos fossem generalizados apropriadamente e em seguida, transferidos para a filosofia. Pelo contrário, a
ciência natural moderna, a matemática moderna e a metafísica moderna surgiram a partir da mesma origem da
matemática em um sentido mais amplo. Porque a metafísica, dessas três, alcança mais longe - os entes em sua
totalidade - e porque ao mesmo tempo, ela também se aprofunda em direção ao Ser dos entes como tal, pois cava
precisamente o fundamento de sua base matemática...”.
59
problemas da maneira mais econômica, como Arquiteto perfeito do universo. (1965,
p. 35, 36)
Por que se manifesta inteligivelmente por meio do fundamento inconcusso do Ser
e por isso pode ser desdobrada conceitualmente, a natureza seria vista, desde a gênese grega,
como a inscrição velada de um texto em vias de ser esmiuçado por uma exegese físico-
matemática. Ao imprimir cômputos e variáveis na ordem ensimesmada da natureza, a
modernidade consumaria todo o propósito da metafísica e sua sanha por uniformizar a
diferença. Segundo Glazebrook:
Since Being and Time, Heidegger has argued that modern science projects an
understanding onto nature. In that understanding, nature consists in spatiotemporally
extend bodies subject to efficient causes. (…) Only once nature has been rendered
devoid of final causes- that is, devoid of end and purpose- by the modern scientific
confinement to efficient causes, is nature available ideologically for appropriation to
human ends and purposes in technology. Accordingly, the revealing of nature as a
standing-reserve at the disposal of human being that is the essence of technology is
made possible by modern science. 71
(2000, p. 07)
A principal característica da compreensão de natureza na modernidade é,
sobretudo, a ênfase creditada à técnica, de modo que com antiguidade, o conhecimento
restringia-se a um nível puramente teórico. Segundo Heidegger, no tocante a tal diferenciação
entre a contemplatio antiga e a hipotetização de uma lei natural, de extração moderna:
The old contemplation of nature would have proceeded with the problem of fall such
that it would have tried though observation of individual cases of falling phenomena
to bring out what was now common in all cases, in order then starting from here to
draw conclusions about the essence of falling. Galileo does not start with the
observation of individual falling phenomena, on the contrary with a general
assumption (hypothesis) which goes: bodies fall- robbed of their support- so that
their velocity increases proportional to time (v = g . t), that is, bodies fall in
uniformly accelerated motion. 72
(Heidegger apud Glazebrook, 2000, p. 54)
71 “Desde Ser e Tempo, Heidegger argumenta que a ciência moderna projeta um entendimento sobre a natureza.
Nesse entendimento, a natureza consiste em organismos estendidos espaço-temporalmente, sujeitos a causas
eficientes. (...) Uma vez que a natureza se torna desprovida de causas finais, isto é, desprovida de uma finalidade
e de um propósito por parte do confinamento científico moderno para causas eficientes, está se torna disponível
ideologicamente para a apropriação de fins e propósitos humanos tecnológicos. Assim, a revelação da natureza
como uma reserva de disponibilidade para o ser humano, que é a essência da tecnologia é possível graças a
ciência moderna.”
72 “A antiga contemplação da natureza, teria procedido com o problema da queda, de tal forma que seria pensado
ainda a observação de casos individuais do fenômeno, para saber, em ordem, o que era comum em todos os
casos, e a partir de então, tirar conclusões sobre a essência da queda. Galileo não começaria com a observação de
fenômenos individuais, pelo contrário, com uma suposição geral (hipótese) que diz: os corpos caem-destituídos
de apoio, de modo que sua velocidade aumenta proporcionalmente ao tempo (v = g t.), isto é, os corpos caem em
movimento uniformemente acelerado.”
60
Desse modo, o que há de mais decisivo é o emprego deliberado da
experimentação, o que acarreta por sua vez, uma antecipação em face da natureza. Daí,
porque, segundo Glazebrook:
Accordingly, the historical rise of modern physics is for Heidegger not just a
moment in the history of physics, but also a moment in the history of metaphysics.
(...) Because metaphysics reaches the farthest, to beings as a whole, and the deepest
into the being of beings as such, it is metaphysics that must inquire into its
mathematical basis. 73
(2000, p. 61)
Se se suscitarmos a compreensão de Kepler, paradigmática à ciência moderna,
para quem esmiuçar a natureza por meio da geometria seria relacionar-se com Deus, veremos,
pois, um aguçado senso concordacional entre os fenômenos naturais, artífices supremos, e as
leis matemáticas, arquétipos divinos. Buscar compreender a natureza torna-se, destarte,
verificar as causas de certas ocorrências, o que é decerto, sondar a harmonia do universo.
Na esteira do projeto criptográfico de equacionar as incógnitas da natureza, outro
vulto na história das ciências naturais, viria a ser Galileu Galilei (1564-1642). Detendo-se na
análise dos fenômenos físicos, por exemplo, a queda livre dos corpos, Galileu conclui que,
determinados fenômenos da natureza são passíveis de definição por meio da geometria. Ora,
em tal nível há uma inter-relação fundamental entre as hipóteses e a experiência, de modo que
o que é pressuposto por um viés lógico-matemático, antecipa-se à natureza, surgindo assim,
do bojo da cientificidade moderna sua principal característica: o projeto prévio. Nesse
sentido, as observações direcionadas à natureza, são determinadas por princípios apriorísticos,
passíveis de concordância com a prévia concepção teórica e a experiência. Para Glazebrook:
He argues that the mathematical projection in Galileo‟s free-fall experiment is of the
concepts of space and time. Space is understood as „endless, each space-point equal
to any other, likewise each direction to any other.‟ Time also „has become a
homogeneous positional order- a scale, a parameter.‟ Space and time in modern
science are a coordinate system in which objects are locate. (…) Galileo‟s
experiment in free-fall is decisive for modern science in the sense that he establishes
physics as the search for laws of nature. 74
(2000, p. 54)
73 “Assim, a ascensão histórica da física moderna é para Heidegger, não apenas um momento na história da
física, mas também um momento na história da metafísica. (...) Porque a metafísica alcança mais longe, para os
entes como um todo, até a profundeza do Ser dos entes, como tal, é a metafísica, que deve investigar a suas bases
matemáticas.”
74 “Ele argumenta que a projeção matemática, no experimento da queda livre de Galileu, é o conceito de espaço
e tempo. O espaço é entendido como „interminável, onde cada ponto no espaço equipara-se a qualquer outro, da
mesma forma que em qualquer outra direção‟. O tempo também „tornou-se uma ordem posicional homogênea,
um parâmetro. ‟ Espaço e tempo na ciência moderna são coordenadas sistêmicas nas quais os objetos estão
locados. (...) O experimento da queda livre de Galileu é decisivo para a ciência moderna no sentido de que ele
estabelece a física como a busca das leis da natureza.”
61
Todo o caráter de necessidade e universalidade que, imputa validade a uma
conclusão científica, vincula-se então a uma prévia concepção teórica, de maneira que as
hipóteses precisam ser confirmadas por meio de verificações experimentais, tendo o cálculo
matemático como fundamento. No instante de sua concordância com a natureza, as
pressuposições matemáticas tornam-se desse modo, leis universais, o que acarreta aos
fenômenos físicos o confinamento à regularidade, previsibilidade e causalidade. Nesse
sentido, segundo Charles Guignon:
Mathematical physics becomes the prototype for all sciences, then, because it
provides a way in which the unitized variables and constants within the theoretical
framework can be systematically mapped onto the quantifiable units projected by
the theory. Permutations within the world can be systematically modeled by the
theory only if the quantitative aspects of nature are raised to prominence and the
qualitative aspects are played down. As a result, the view arises that only that which
is quantifiable can be counted as real. Heidegger quotes Max Planck, who says,
„Wirklich ist, was sich messen lasst‟, „Reality is what can be measured.‟
Quantifiability also comes to be the criterion used to distinguish the „hard sciences‟
from such „soft sciences‟ as history, philology, and literary criticism. 75
(1983, p.
163).
Em conjunção com Galileu, outro nome decisivo para a instauração da ciência
moderna seria Isaac Newton (1643-1727). A especificidade do projeto newtoniano relaciona-
se com um aguçado senso metodológico, com efeito, a ênfase quanto à validade universal das
leis físicas torna-se um pressuposto. Acirrando-se o fato de que uma autêntica investigação
científica deve deduzir leis naturais, Newton alcança objetivamente as leis do movimento e da
gravidade, mobilidade, força de propulsão, forjando assim, um campo investigativo que
grassa inclusive os corpos celestes, ou seja, níveis universais. Para Heisenberg76
, à formulação
de seus postulados, haja vista, inércia, massa, força, movimento, Newton torna-se o primeiro a
sistematizar a natureza, o que leva, por meio de teoremas gerais e proposições
matematicamente dedutíveis, a um mapeamento arquimédico do universo. O que se depreende
a partir de então é uma representação da natureza como um livro cifrado em caracteres
matemáticos, em vias de ser catalogado descritivamente. Cito Charles Guignon:
75 “A física matemática torna-se o protótipo de todas as ciências, afinal, fornece uma forma em que as variáveis e
constantes no quadro teórico, podem ser sistematicamente mapeadas em unidades quantificáveis projetadas pela
teoria. Permutações dentro do mundo podem ser sistematicamente modeladas pela teoria somente se os aspectos
quantitativos da natureza, são proeminentes e os aspectos qualitativos são menosprezados. Como resultado,
surge a visão de que somente o que é quantificável pode ser cotado como real. Heidegger cita Max Planck, que
diz: 'Wirklich ist, foi sich messen lasst', 'A realidade é o que pode ser mensurado.‟ Quantificabilidade também
vem a ser o critério utilizado para distinguir as ciências sólidas, das tais ciências flexíveis como a história ,
filologia e crítica literária.”
76
(1980, p. 12,34)
62
So long as the intelligibility of natural processes is seen as lying in the interpretation
of the „concealed qualities, powers and capacities‟ in things, it is natural to see
nature as like a text that expresses a divine plan. Within this kind of picture,
understanding is rooted in a correct interpretation of a structure of symbols
according to the key made accessible in revelation and Scripture. When nature is
projected as a homogeneous domain of units with no hidden powers or internal
relations, however, intelligibility must reside not in the meaningful text of nature
itself, but in the system of laws that make up the theoretical nexus.77
(1983, p. 163)
Enquanto a cientificidade clássica buscava as causas últimas dos fenômenos
naturais, tendo por fundamento uma unidade imprincipiada, o projeto moderno caracterizar-
se-ia por uma antecipação prévia à natureza, com sua respectiva oferta metodológica.
Ademais, toda a ciência a partir de então seria a formulação de uma projeção matemática a
fim de concordar com o fenômeno a ser elucidado. Ao contemplar a natureza nos termos de
uma prévia concepção teórica, a ciência moderna realiza de maneira exitosa uma objetivação
de campos específicos de entes determinados, o que leva por sua vez a uma projeção
previamente matemática. Segundo Benedito Nunes, em caráter decisivo:
O sentido do conhecimento científico que, como teoria, nasce da experiência
antrepredicativa modificada, é extracientífico. Em primeiro lugar, os conceitos
fundamentais de uma ciência, que enfeixam a compreensão prévia do domínio
entitativo por ela descoberto, não são deslindáveis nem instaurados pela própria
ciência. As descobertas da investigação incidem sobre o já aberto do ser dos entes,
no modo de compreender afeto à projeção, que predelineia, tematicamente, a
experiência constitutiva do respectivo domínio, ou, para empregarmos a linguagem
de Kant, que articula as condições a priori pelas quais os objetos são pensados, e a
experiência se torna possível. Em segundo lugar uma vez que a projeção, que
tematiza a experiência antepredicativa, é uma possibilidade do Dasein, de seu poder-
ser livre, a modalidade de abrimento correspondente é um acontecer histórico.
Assim, por exemplo, a projeção matemática da Natureza está na gênese da Física
moderna. Dentro da perspectiva articuladora dominante que aí tematiza o ente como
mensurável. (...) A historicidade das ciências expressa-se, portanto, nos conceitos
fundamentias em que elas assentam e que traçam o horizonte compreensivo de uma
projeção. (1986, p. 187)
2.4 O conceito existencial de ciência
A reboque de uma ontologia fundamental, empenhada que é na busca pelo sentido
do Ser a partir da peculiaridade originária do Dasein em sua constituição compreensiva, é que
77 “Enquanto a inteligibilidade dos processos naturais é vista como radicada na interpretação das „qualidades
ocultas, poderes e capacidades‟ nas coisas, é natural que se veja a natureza como um texto que expressa um
plano divino. Dentro desta perspectiva, o entendimento está enraizado em uma interpretação correta de uma
estrutura de símbolos de acordo com a chave acessível na revelação e nas Escrituras. Quando a natureza é
projetada como um domínio homogêneo de unidades, sem poderes ocultos ou relações internas, no entanto, a
inteligibilidade deve residir não no texto significativo da natureza em si, mas no sistema de leis que compõem o
nexo teórico.”
63
Heidegger elabora uma descrição do fenômeno científico, tomado enquanto comportamento
existencial. Enfeixando categorias formais ao privilégio projetivo do Dasein, Heidegger verte
ontologia em hermenêutica, de tal modo que integra sob tal panorâmica, o modo teórico da
tematização regional dos entes, concebido como um comportamento do Dasein no mundo.
Tal comportamento resulta em uma modalização empreendida como pesquisa científica,
abrindo regiões objetuais específicas. Para Heidegger: “ Every sort of thought, however, is
always only the execution and consequence of a mode of historical Dasein, of the
fundamental position taken toward Being and toward the way in which beings are manifest as
such, i.e., toward truth. 78
” (2008, p.270) No aberto de tal comportamento teórico, o Dasein
descerra certas particularidades a serem afixadas categorialmente, o que habilita a fundação
de uma rede de compreensibilidade. Como se dão ao largo do mundo, o ente, bem como o
Dasein, compatibilizam-se mutuamente na temporalidade da existência fáctica, o que
ocasiona uma perspectiva existencial de ciência. De um modo preciso, assim considera
Charles Guignon:
Instead of viewing science as a system of propositions, he suggests that we see it as
a human activity. His interest is in „an existential conception of science‟ in which the
sciences are grasped as „ways in which man behaves [Verhaltungen]‟. To grasp the
„meaning of science, we must work out an „ontological genesis of the theoretical
attitude‟. The account of the genesis of science is not a report on the actual series of
events that led to the development of modern science. Instead, Heidegger is
concerned with „those conditions implied in Dasein‟s composition of Being [that]
are existentially necessary for the possibility of Dasein‟s existing in the way of
scientific research‟. Since „the existential conception [of science] understands
science as a way of existence and thus as a mode of Being-in-the-world‟, its aim is
to show how this highly refined and specialized way of discovering entities arises
out of our everyday modes of dealing with things.79
(1983, p. 151)
Diferentemente de uma conceituação eminentemente metafísica, em seu
desdobramento lógico-epistemológico e consequente estabelecimento de critérios de validade
78 “Todo tipo de pensamento, entretanto, é sempre a execução e a consequência de um modo do Dasein
histórico, da posição fundamental tomada em direção ao Ser e a maneira pela qual os entes se manifestam como
tal, ou seja, em direção à verdade.”
79 “Em vez de ver a ciência como um sistema de proposições, ele sugere que nós a vejamos como uma atividade
humana. Seu interesse é quanto uma „uma concepção existencial de ciência‟, na qual as ciências são apreendidas
como „maneiras em que o homem se comporta [Verhaltungen] '. Para compreender o „significado da ciência,
temos de suscitar uma 'gênese ontológica da atitude teórica‟. A questão da gênese da ciência não é um apanhado
sobre a atual série de eventos que levaram ao desenvolvimento da ciência moderna. Em vez disso, Heidegger se
preocupa com 'essas condições implícitas na composição do ser do Dasein [que] são existencialmente
necessárias para a possibilidade de existir do Dasein no caminho da pesquisa científica‟. Uma vez que 'a
concepção existencial [da ciência] entende a ciência como uma forma de existência e, portanto, como um modo
de ser-no-mundo', o seu objetivo é mostrar como essa forma altamente refinada e especializada, ao desvelar os
entes, surge de nossos modos cotidianos de lidar com as coisas.”
64
universal, o que daqui se estabelece é o como da desocultação do objeto e seus modos de
acesso, o que acaba por efetuar condições de possibilidade à pretensão científica. Segundo
Charles Guignon (1983, p. 64):
Every science presupposes some conception of the Being of the entities that are the
objects of its inquiry. The ontologies of the regional sciences, Heidegger says, have
already been worked out „roughly and naively‟ on the basis of our prescientific ways
of interpreting and experiencing domains of Being.80
Desse modo, a questão epistemológica orienta-se da seguinte forma: como se dá o
objeto em abandono à famigerada entificação o que é o objeto. Sob tal pressuposição
hermenêutica, o ente passa a ser visto à luz de variados modos de aparição, o que implica, por
sua vez, em um campo de ressignificação, de modo que tudo o que for científico é passível de
reabilitação.
2.5 O comportamento científico como modalização existencial
Como o Dasein comporta-se no mundo projetando-se, o acesso a determinados
domínios de entes, funda-se em uma visada prévia de sentido, o que dota ao comportamento
científico a especificidade de uma pré-visualização. Nesse sentido, a ciência apresenta-como
uma mudança de orientação em face do mundo circundante, no estabelecimento deliberado de
critérios nomológicos que subsumem a manualidade do ente à unilateralidade conceitual.
Segundo Charles Guignon:
Heidegger therefore leads us to see that the theoretical attitude of scientific inquiry
arises from the collapse of our most primordial ways of being involved in the world.
What does the theoretical attitude consist in, according to Heidegger? Here it would
be easy for him to say that it consists either in the complete loss of praxis or in the
fact that the subject matter of science is the present-at-hand. (…) What distinguishes
the theoretical attitude from everydayness is not the loss of practice or the priority of
the present-at-hand, then, but the fact that the entities studied by the scientist have
been „decontextualized‟ or „released from their set‟ (entschrankt) in the scientist‟s
environment. 81
(1983, p. 156, 157)
80 “Toda ciência pressupõe uma concepção do Ser dos entes que são os objetos de sua investigação. As
ontologias das ciências regionais, diz Heidegger, já antecipam „ingenuinamente e a grosso modo‟ as bases de
nossos caminhos pré-científico de interpretar e vivenciar domínios do Ser.”
81 “Heidegger, portanto, nos leva a crer que, a atitude teórica da investigação científica surge a partir do colapso
de nossas formas mais primordiais de envolvimento com o mundo. Em que a atitude teórica consiste, de acordo
com Heidegger? Aqui seria fácil para ele dizer que ela consiste tanto, na perda completa da práxis ou no fato de
que a matéria da ciência é o ente subsistente. (...) O que distingue a atitude teórica do cotidiano não é a perda de
prática ou a prioridade do ente subsistente, posteriormente, mas o fato de que os entes estudados pelo cientista
têm sido „descontextualizados‟ ou „liberados de seu conjunto‟ (entschrankt) no ambiente do cientista.”
65
A partir dessa antecipação do Dasein perante o ente é que surge a investigação
teórica, de modo que essa se revela tética em sua investida, ou seja, no pleno exercício da
positividade. Como é positiva em seu empenho, a ciência desloca o foco da manualidade
eminentemente operativa em nome de uma presentificação objetual do ente, como teria
ocorrido a partir do caráter antecipador do projeto matemático da natureza durante a
modernidade. Nesse sentido, segundo Oskar Becker:
Portanto, um traço característico e fundamental da ciência natural exata, a partir do
século XVII, é que ela decompõe em seus elementos, muitas vezes invisíveis, os
fenômenos pré-científicos e cotidianos, para depois novamente reuni-los; por aí se
exerce igualmente uma crítica sobre a observação ingênua dos sentidos. Pense-se,
por exemplo, na ingênua concepção de Aristóteles, e de outros, que velocidade e
força motora são proporcionais entre si; a doutrina da física clássica moderna, ao
contrário, ensina a proporcionalidade da força e da aceleração. O caráter matemático
da física moderna repousa precisamente sobre esse traço construtivo, próprio da
ciência exata moderna. Da tendência moderna para a análise segue, antes de mais
nada, a construção de aparelhos e seu uso para observações sempre mais exatas. (...)
O homem antigo encontrava os „modelos‟ dos fenômenos naturais na própria
natureza ou na ocupação manual e não os empregava para fins científicos
(excetuados mais uma vez os modelos astronômicos, as „esferas‟). (1965, p. 34, 35)
Endossando-se o fato de que a matemática sustenta-se sobre bases que prescindem
dos dados singulares da experiência, com efeito, determina-se a priori, é natural que
Heidegger deduza a partir de tal conhecimento, toda a cientificidade moderna, em seu esforço
reiterado de forjar de um modo prévio, domínios a serem objetificados. Segundo Charles
Guignon: “Mathematical physics is the paradigm of the sciences, according to Heidegger, not
because it applies mathematics to nature, nor because it attains greater exactitude, but rather
because of „the way in which nature itself is mathematically projected.‟” 82
(1983, p.161)
Feitas as devidas considerações e tendo em vista o alcance do projeto moderno da
natureza é que nos perguntamos: de que forma a positividade da ciência se relaciona com o
Dasein. De que modo especificamente se dá a ciência? Como a ciência é um tipo específico
de desvelamento que surge como um modo da existência fáctica do Dasein, toda pretensão
científica encerra, outrossim, uma possibilidade existencial, tendo o caráter ante-judicativo
como pressuposto. Desse modo, cita-se Charles Guignon:
When Heidegger says that the theoretical attitude of science is a „founded mode‟ of
Being-in-the-world, he means that the whole constellation of ideas that make up the
scientific viewpoint- language as statements, the world as consisting of objects, the
priority of a disinterested attitude, the concern with technological domination- is
82 “A física matemática é o paradigma das ciências, segundo Heidegger, não porque se aplica a matemática à
natureza, nem porque ela alcança maior exatidão, mas sim por causa da „maneira pela qual a própria natureza é
matematicamente projetada.”
66
possible only for a specialized mode of concern that characterizes the community of
interpreters in the world of the theoretical attitude. As a mode of Being-in-the-world,
however, scientific activity must be understood as situated in the attunement of a
culture as projecting entities in terms of relevance conditions laid out in advance by
our communal interests and purposes. The situatedness and projection of science are
parasitic on the grasp of what it is to be which is articulated by the logos of our
historical culture. For this reason, the sciences cannot claim to have a privileged
access to the ultimate truth about the world which is denied to our pre-ontological
understanding. 83
(1983, p. 160)
Se todo comportamento ôntico tem a antecedência primária de uma determinada
compreensão pré-ontológica, é mister haver na positividade científica resquícios de
mundaneidade, não enquanto totalidade de entes, antes como transcendência. O projeto
antecipador do comportamento teórico da ciência, só logra êxito em sua atividade descritiva
de objetivação, em função da transcendência originária do Dasein, sempre adiante de si
mesmo em sua condição irreversivelmente temporal.
Condicionada que é pela transcendência, a ciência não dispõe de elementos
capazes de uma auto-elucidação, de maneira que se torna injustificado seu fundamento. De tal
modo que, segundo Glazebrook: “For example, no experiment in physics can show what
physics is; nor can what mathematics is itself be calculated. The essence of a science is
inaccessible from within that science.” 84
(1983, p.141). Tal apanágio nos põe diante os
limites da atividade científica, intrinsicamente relacionada com a possibilidade existencial da
finitude do Dasein. Como não pode elucidar o que é condição de possibilidade para a própria
representação, a menos que o Dasein se pusesse sobre o mundo, a ciência encontra-se, desse
modo, vinculada à originariedade insuspeita da existência, daí porque, finita em seu alcance.
De um modo igualmente decisivo, assim considera o filósofo da matemática Oskar Becker:
“Bertrand Russel diz uma vez jocosamente que a matemática trata de coisas das quais ela não sabe o
que são, e consta de princípios dos quais não se sabe se são verdadeiros ou falsos.” (1965, p.118).
83 “Quando Heidegger diz que a atitude teórica da ciência é fundada no modo do ser-no-mundo, ele quer dizer
que toda a constelação de idéias que compõem o ponto de vista científico como declarações de linguagem; o
mundo como composto de objetos, a prioridade de uma atitude desinteressada, a preocupação com o domínio
tecnológico, só é possível para um modo especializado de preocupação que caracteriza a comunidade de
intérpretes no mundo da atitude teórica. Como um modo de ser-no-mundo, no entanto, a atividade científica deve
ser entendida como situada na sintonia de uma cultura como projeção de entidades em termos de condições de
relevância estabelecidas previamente por nossos interesses comuns e nossos propósitos. A contextualização e
projeção da ciência são parasitárias da compreensão do que é articulado pelo logos da nossa cultura histórica.
Por esta razão, as ciências não podem pretender ter um acesso privilegiado à verdade última sobre o mundo que
é negado à nossa compreensão pré-ontológica.”
84 “Por exemplo, nenhum experimento em física pode mostrar o que é a física, muito menos pode a matemática
em si ser calculada. A essência de uma ciência é inacessível a partir desta ciência.”
67
Conceber a atividade científica como uma modalização do ser do Dasein, em seu
caráter projetivo, suscita entrementes, a originariedade do comportamento teórico, fundado na
ocupação do Dasein para como os entes em um âmbito primário de desocultação. Dispondo
de transcendência, o que lhe abre um campo de possibilidades, o Dasein lida com os entes
intramundanos em uma ocupação pré-temática decisiva, no primado da cotidianidade, de sorte
que a quebra da manualidade enceta a possibilidade de teorização. Daí, porque, segundo
Charles Guignon:
The ontological genesis of the theoretical attitude is designed to lead us to see the
sciences as specialized modes of projection which are conducted within the
framework of the intelligible world of everydayness. The sciences, of course, have a
legitimate and valuable role to play as human forms of life. In decontextualizing
entities from their ordinary situations, they provide us with a capacity for
generalization not obtained in everydayness. But their greater generality in
decontextualization is possible only by virtue of the fact that, at a deeper level, their
objects are recontextualized within the projection of objectiveness laid out in
advance by the blueprint of a theory. Consequently, the regional modes of scientific
activity must be understood as parasitic on our everyday pre-ontological
understanding of the world. Only for human who have already mastered the shared
intelligible world of equipment and Being-with can there be anything like the „pure
discovery‟ of what is merely present-at-hand.85
(1983, p. 167)
No instante primeiro da cotidianidade, o ente com o qual o Dasein lida
imediatamente é um ente simplesmente dado, acentuando-se, desse modo, o caráter pré-
temático de tal relação, modo mais comum do ser-em e ser-com. A estrutura ontológica dos
entes simplesmente dados em sua manualidade relaciona-se com o Dasein por meio do ser-
para que, ao contrário de dispor um nível substancial à coisa mesma, desdobra-se como
instrumento no horizonte de uma totalidade referencial. Nesse sentido, o ente se dá
prioritariamente na ocupação, não como substância, antes como instrumento.
O que primariamente vem ao Dasein, não é o em si da coisa, porquanto, a
totalidade instrumental há muito se antecipe. De certa feita é o como de um campo referencial
originário que, dispõe ao ente em si, tematizado em domínios específicos, com efeito, em si
mesmo um ente é destituído de sentido. Desse modo, para Charles Guignon:
85 “A gênese ontológica da atitude teórica é projetada para levar-nos a ver as ciências como modos
especializados de projeção que são realizados no âmbito do mundo inteligível do cotidiano. As ciências, é claro,
têm um papel legítimo e importante a desempenhar como formas de vida humana. Ao descontextualizar os entes
de sua situação normal, elas nos fornecem uma capacidade de generalização não obtida na cotidianidade. Mas a
sua maior generalidade na descontextualização só é possível em virtude do fato de que, num nível mais
profundo, seus objetos são recontextualizadas dentro da projeção de objetividade estabelecida previamente pelo
plano de uma teoria. Conseqüentemente, os modos regionais da atividade científica devem ser entendidos como
parasitários do nosso entendimento cotidiano do mundo pré-ontológico. Apenas para os homens que já dominam
o mundo inteligível compartilhado dos instrumentos e do ser-com, pode haver algo como uma „pura descoberta‟
do que é meramente subsistente.”
68
What we come across in this articulation of the world into the hermeneutic „as‟ is
not discrete, interchangeable objects with properties, but rather ready-to-hand
equipment tied up into a mesh of internal relations generated by our purposes, aims,
and objectives in the context. (…) The ontological genesis of science begins by
showing how this hermeneutic „as‟ of everydayness changes over into the kind of
explicit thematizing of entities according to the apophantic „as‟ of statement-making
which characterizes the theoretical attitude.86
(1983, p. 152)
O que se mostra em si mesmo do ente é a sua manualidade, referido assim, a uma
totalidade referencial subjacente, jamais o ente simplesmente dado, de modo que não existe a
essência do martelo enquanto tal, antes o martelar.
Por meio da circunvisão, que nada mais é senão a visualização do Dasein em
ocupação com os entes intramundanos, é que se dá a totalidade referencial, o que acarreta à
mundaneidade o modo originário de uma teia conjuntural. O êxito fenomenológico da
ontologia fundamental imputa ao ente, não uma essência última, mas uma totalidade
referencial apreensível na manualidade.
Como os instrumentos não se dispõem a uma substancialização, daí porque não
têm uma essência, o que sobrevém é um como modalizado na ocupação do Dasein com os
entes intramundanos. Nesse sentido, a manualidade se sobrepõe ontologicamente à quididade,
acirrando-se assim, a tese de que ao nos surpreender de um modo adverso, como por exemplo,
ao quebrar-se, é que o sentido do ente se revela, liberando por sua vez, um como apofântico e
ulterior predicação. Nesse sentido, cita-se Charles Guignon:
When the equipmental context breaks down completely, however, the entities we are
dealing with can first obtrude as mere present-at-hand objects. The complete
collapse of a world of significance opens the possibility of encountering entities in
terms of the „limiting cases of statements‟ that are taken as paradigmatic examples
of language in logic and ideal science. The hammer, no longer of use, just stands
there as a brute object that can fall under different interpretations but no longer has
any particular role. In this case an utterance like „The hammer is heavy‟, whether
audible or silent, may express the apophantic „as‟ of mere assertion. Here the
utterance indicates that and object- the hammer-has a weight; it has the „property‟ if
heaviness; it exerts downward pressure; it falls if it is unsupported. In the
predication of the mere statements, the hammer comes to be taken as „a corporal
thing subject to the law of gravity‟. 87
(1983, p. 154)
86 “O que nos deparamos nesta articulação do mundo enquanto um „como hermenêutico‟ não é simplesmente,
objetos intercambiáveis com propriedades, mas sim instrumentos disponíveis dispostos em uma rede de relações
internas geradas por nossos propósitos, objetivos e objetidades no contexto. (...) A gênese ontológica da ciência,
começa por mostrar como esse „como hermenêutico‟ cotidiano muda para um tipo de tematização explícita de
entidades de acordo com um „como apofântico‟ discursivo que caracteriza a atitude teórica.”
87 “Quando o contexto instrumental se desfaz completamente, no entanto, os entes que lidamos primeiramente
aparecem como meros objetos subsistentes. O completo colapso de um mundo de significado abre a
possibilidade de encontrar entes em termos de 'casos limites de declarações‟ que são tomados como exemplos
paradigmáticos da linguagem na lógica e na ciência ideal. O martelo, sem uso, apenas está lá como um objeto
bruto que pode cair sob diferentes interpretações, mas não tem mais nenhuma tarefa em específico. Neste caso,
69
Em si mesmo o instrumento não é um ser simplesmente dado, afinal é um ser-
para, desvelado em sua instrumentalidade. No instante de uma quebra de manualidade, o que
acarreta uma lise da tarefa cotidiana, o instrumento revela-se como simplesmente dado, ou
seja, manifesta-se como é. Na modalidade dessa relação colapsada, da quebra da manualidade
é que se dão os variados modos do comportamento teórico, encetando-se assim, o
estabelecimento de nomenclaturas, propriedades e toda sorte taxionômica de conceitos. O que
daí advém é a certeza de que um como hermenêutico fundamenta o caráter enunciativo de um
como apofântico, de sorte que uma circularidade inextrincável nos termos relacionais: pre-
sença, compreensão e enunciado se faz presente. Segundo Heidegger:
Esse círculo da compreensão não é um cerco em que se movimentasse qualquer tipo
de conhecimento. Ele exprime a estrutura-prévia existencial, própria da pre-sença.
O círculo não deve ser rebaixado a um vitiosum, mesmo que apenas tolerado. (...)
Ela deve, na elaboração da posição prévia, da visão prévia e concepção prévia,
assegurar o tema científico a partir das coisas elas mesmas. Porque a compreensão,
de acordo com seu sentido existencial, é o poder-ser da própria pre-sença, as
pressuposições ontológicas do conhecimento histórico ultrapassam, em princípio, a
idéia de rigor das ciências exatas. (...) O „círculo‟ da compreensão pertence à
estrutura do sentido, cujo fenômeno tem suas raízes na constituição existencial da
pre-sença, enquanto compreensão que interpreta. O ente que está em jogo seu
próprio ser como ser-no-mundo possui uma estrutura de círculo ontológico. (2005,
p. 210)
Tal circularidade enfeixa uma unidade desdobrável em uma posição prévia, visão
prévia e concepção prévia. Por meio de uma posição prévia, o Dasein encontra-se em face da
significatividade do mundo, no âmbito originário de uma pré-compreensão de Ser. De modo
que: “A proposição necessita de uma posição prévia do que se abriu a fim de demonstrá-lo
segundo os modos de determinação.” (2005, p.214). Posteriormente, a visão prévia abre um
campo pré-temático de entes, no enfoque da circunvisão em sua articulação de sentido, afinal:
“A proposição necessita de uma visão prévia que desloque, por assim dizer, o predicado a ser
explicitado e indicado, incluindo-o implicitamente no próprio ente.” (2005, p.214). Por fim,
uma concepção prévia verte a mundaneidade do ente em um espaço conceitual enunciativo,
tão afeito à positividade científica, destarte: “A concepção prévia sempre presente em toda
proposição permanece, na maior parte das vezes, sem surpresas, pois toda língua já guarda
em si uma conceituação elaborada.” (2005 p. 214, 215). As repercussões do anteriormente
um enunciado como „o martelo é pesado‟, seja audível ou em silêncio, pode expressar o „como apofântico‟ de
simples afirmação. Aqui a expressão indica que o objeto -o martelo- tem um peso, que tem a „propriedade‟
quando pesa; que exerce pressão para baixo, que cai, quando não sustentado. Na predicação das meras
declarações, o martelo passa a ser considerado como „uma coisa corporal sujeita às leis da gravidade. ‟”.
70
referido se dão de um modo decisivo, atestando assim, o caráter hermenêutico do
conhecimento científico, a despeito de seu apelo lógico ou epistemológico. Desse modo, para
Heidegger: “O que a lógica tematiza como proposição categórica, por exemplo, „o martelo é
pesado‟, já é entendido logicamente antes de qualquer análise.” (2005, p. 215).
71
CAPÍTULO III: O MUNDO ENQUANTO O COMO TRANSCENDENTAL DO
DASEIN
3.1 Implicações ontológicas do comportamento científico
Interessa enquanto trabalho que se pretende uma investigação acerca do fenômeno
do conhecimento, compreender sua procedência originária e condição de possibilidade. De
onde advém o conhecimento, como o Dasein enquanto ser compreensivo conhece a totalidade
dos entes do mundo? Eis a pergunta. Portanto, naquilo que nos reporta ao conhecimento é
que longe de se tentar fundar uma epistemologia, uma ontologia fundamental deve muito
antes, voltar-se ao fenômeno revelador do Dasein, buscando nos limites temporais do mesmo,
o problema da cientificidade. Citando Ernildo Stein:
Portanto, a ontologia fundamental tem caráter transcendental. Este se realiza através
do método. Este método é o método transcendental, o método da analítica. O método
fenomenológico heideggeriano é, portanto, transcendental. Nesse sentido, Heidegger
garante o transcendental, de modo definitivo, na questão da finitude. Transcendental
é finitude. Enquanto condição de possibilidade, é chamar de volta para a finitude, o
que significa apresentar um espaço que precisa ser descrito, que é o espaço da
analítica existencial, via método fenomenológico. (1993, p. 296)
Só há conhecimento porque há Dasein, que é sempre no mundo, portanto,
temporal. Eis em linhas gerais uma máxima que resume a especificidade do projeto
fundamental da filosofia heideggeriana em meados dos anos 20, na linha ascendente que vai
de Ser e Tempo até Sobre a essência do fundamento, culminando os esforços naquilo que
considera Ernildo Stein, em sua nota enquanto tradutor da aula inaugural de Heidegger na
Universidade de Freiburg: O que é metafísica? , que desde há muito se caracterizaria
enquanto uma analítica do Dasein:
Mostra, pelo próprio movimento da interrogação, o fato de que o homem não está ao
lado da pedra, da flor ou da estrela, mas que as envolve pela compreensão numa
estrutura referencial, abre um espaço antecipador a partir do qual tomam sentido.
Isto é a característica primeira da existência humana e que lhe dá a distância do
mundo natural e a faz ser transcendentalmente na cotidianidade. (1989, p. 28)
Se somente o Dasein funda, porquanto, compreenda o Ser, novamente recai sobre
o solo antepredicativo da mundaneidade do mundo enquanto abertura o estofo de fundação de
todo e qualquer saber, o que se nos ocasiona a tese do caráter não meramente sintético do
Dasein, mas, sobretudo, transcendental. Se antes advindo de todas as teorias da consciência,
aliás, de toda metafísica propriamente, a noção de que o conhecimento, portanto, a
72
razoabilidade, resultava de potentados transcendentais, haja vista: o primeiro motor imóvel,
Deus, a substância egóica do cogito, a vontade de potência, a partir de Heidegger, a mudança
de paradigma na filosofia, acompanhará uma mudança de método, necessariamente. Segundo
Ernildo Stein, à guisa de comentário àquilo que pretende a superação metafísica de
Heidegger:
A racionalidade que Heidegger procura desenvolver se apóia no segundo modo
fundamental de ser do estar-aí: o lidar com o ente disponível, modo que situa o
homem no mundo, através de um compreender que antecede a compreensão teórica
e sua explicitação pela enunciação: O “como hermenêutico” que funda o “como
apofântico”. A racionalidade instituída pela “hermenêutica da facticidade” é capaz
de dar conta de si, através da racionalidade das diversas áreas do saber (da
racionalidade cognitiva, produzida discursivamente) que a ela remetem, numa
relação circular: é o círculo hermenêutico – a boa circularidade. Esta circularidade,
no entanto, não seria possível sem o compreender-se do estar-aí, em vista de sua
existência que é o terceiro modo fundamental do ser do estar-aí. Ser-no-mundo
significa ter como seu ser o cuidado (a cura), cujo sentido é a temporalidade
ecstática, não a linear, objetivável, dos diversos princípios epocais da tradição
metafísica. O estar-aí já é sempre se compreende em vista da existência, da
facticidade e da decaída. O “mundo” do estar-aí se estrutura a partir do cuidado que
tem uma forma específica de temporalidade que se manifesta na morte. Somente a
partir da morte se compreende um poder-ser-total que, entretanto, nunca se realiza:
ou ainda não somos totais, ou então, quando totais, não mais nos podemos
compreender. A racionalidade que Heidegger propõe em Ser e tempo é atravessada
pela dupla dimensão do que cessa de não se inscrever (contingência) e do que cessa
de inscrever-se (possibilidade). A morte é esta dimensão em que algo não cessa de
não se inscrever: a impossibilidade e, como tal, a última possibilidade do estar-aí:
para cada estar-aí mortal, a dimensão em que algo cessa de inscrever-se. (2005, p.
78)
Assegurada a mudança orientada por Heidegger, no tocante a uma revisão da
metafísica é que se fará a seguir uma explanação acerca da questão metodológica proposta
pelo filósofo, daquilo que se pôde perceber outrora, relacionada intimamente com a
mundaneidade do Dasein, e sua constituição fundadora consequentemente.
3.2 O método fenomenológico-hermenêutico: a abertura e o encobrimento do Ser no
horizonte da facticidade do Dasein
A pretensão de Heidegger com o método fenomenológico-hermenêutico é
enfatizar o caráter do ser do ente, sempre em vias de ser desvelado no âmbito da diferença
ontológica 88
. O que surpreende na análise fenomenológica de Heidegger é sua ênfase quanto
88 Com o método fenomenológico-hermenêutico, há uma abertura que permite o questionamento pelo sentido do
Ser. O Ser mostra-se se ocultando, naquilo que em seu próprio ato de manifestação se vela. O Ser se manifesta
velando-se, daí porque se enfatiza a diferença ontológica, a despeito da compreensão metafísica e sua entificação
via presença constante (Anwesenheit).
73
o caráter encobridor do Ser, ou seja, sua tendência para se ocultar, portanto, é diante desta
certeza, que se movem suas considerações metodológicas, de modo que tanto os entes
intramundanos, quanto a abertura do Dasein, são encobertos, são velados. No percurso aberto
em Ser e Tempo, Heidegger se nos apresenta os respectivos termos: verdade (Wahrheit),
desvelamento (Enthüllung), desocultação (Unverborgenheit), todos relacionados àquilo que se
mostra por si mesmo, a saber: o Ser. A problemática da fenomenologia em Heidegger ocupa
um lugar de destaque, resultado, com efeito, de seu empenho para buscar o sentido do Ser,
que se dá como velamento e desvelamento no horizonte da temporalidade, aliás, funda-se uma
ontologia da finitude, antecedida por uma hermenêutica estrutural do Dasein. Segundo
Heidegger:
Com a questão diretriz sobre o sentido do ser, a investigação se acha dentro da
questão fundamental da filosofia em geral. O modo de tratar esta questão é
fenomenológico. Isso, porém, não significa que o tratado prescreva „um ponto de
vista‟ ou uma „corrente‟. Pois, enquanto se compreender a si mesma, a
fenomenologia não é e não pode ser nem uma coisa nem outra. A expressão
„fenomenologia‟ diz, antes de tudo, um conceito de método. Não caracteriza a
quididade real dos objetos da investigação filosófica mas o seu modo, como eles o
são. Quanto maior a autenticidade de um conceito de método e quanto mais
abrangente determinar o movimento dos princípios de uma ciência, tanto maior a
originariedade em que ele se radica numa discussão com as coisas em si mesmas e
tanto mais se afastará do que chamamos de artifício técnico, tão numerosos em
disciplinas teóricas. A palavra „fenomenologia‟ exprime uma máxima que se pode
formular na expressão: „às coisas em si mesmas!‟ – por oposição às construções
soltas no ar, às descobertas acidentais, à admissão de conceitos só aparentemente
verificados, por oposição à pseudoquestões que se apresentam, muitas vezes, como
„problemas‟, ao longo de muitas gerações. (2005, p. 56, 57)
A fenomenologia hermenêutica é um método. Método esse que se volta à
manifestação, abertura do objeto pretendido, diametral aos procedimentos causais, que se
distanciam do objeto de estudo, sua pretensão metodológica é uma volta à coisa mesma, aliás,
ao Ser, que para Heidegger, é, sobretudo, a mundaneidade do mundo enquanto fundadora da
apreensão do conhecimento, a fonte antepredicativa do conhecimento enquanto tal. Para
Ernildo Stein:
Emergindo da explicitação das tarefas da ontologia, a necessidade de uma ontologia
fundamental, cujo tema é a analítica existencial do ser-aí, a ser realizada de tal modo
que leve ao problema central da questão do sentido do ser, qual será o método a
comandar essa empresa? Heidegger responde com o método fenomenológico
concretizado na hermenêutica. A analítica do ser-aí será realizada por meio da
descrição fenomenológica como explicitação. „O logos da fenomenologia do ser-aí
tem o caráter de hermeneuein que anuncia à compreensão do ser, incluso no ser-aí, o
sentido autêntico do ser em geral e as estruturas fundamentais de seu próprio ser‟
(2001, p. 187).
74
A fenomenologia hermenêutica se mostra, assim, como um método que suscita o
desvelamento parcial do Ser, onde o mesmo revela-se ante a compreensão do Dasein, que é
essencialmente projetivo, portanto, fica sob seus critérios metodológicos a necessidade de se
encetar a busca pelo sentido do Ser, a partir do ente dotado do privilégio ôntico-ontológico. O
método fenomenológico acontece no pensamento de Heidegger, no ínterim de sua ontologia
fundamental com o caráter investigador, daí porque hermenêutico, ou seja, predecessor, tanto,
do sentido do Ser em geral, quanto da estrutura ontológica elementar do Dasein, o que
possibilita consequentemente, enquanto fundamento as investigações ônticas das demais
ontologias, com efeito, o que pretende a fenomenologia hermenêutica é a compreensão fáctica
do Dasein, a existencialidade da vida, outrossim, sua finitude, sua temporalidade. Os efeitos
disso se dão, segundo Robert Crease, do seguinte modo: “Hermeneutical philosophy supplies
the philosophical foundation for reintroducing history and culture into the philosophy of the
natural sciences.”89
(1997, p. 01)
Decerto, a fenomenologia hermenêutica enquanto método torna-se a condição de
possibilidade para todas as investigações ônticas dos entes que vêm ao encontro do Dasein,
em outras palavras, a todo e qualquer conhecimento resultante desta relação. O que torna
peculiar o método fenomenológico-hermenêutico de Heidegger é sua tentativa de fundar a
temporalidade historial do Dasein, condição ôntico-transcendental de todo e qualquer
conhecimento aferido pelo existente, conhecimento que só se ocasiona, pela originariedade da
desocultação, do desvelamento facultado pelo ser-no-mundo. Esse desvelamento só é possível
se algo se põe àquele que compreende, ou seja, quando algo se mostra ao Dasein. Esse algo
que se mostra ao é o ente, aquilo que será nomeado, valorado, estigmatizado, enfim. Esse
ente, portanto, não entra no Dasein, nem tampouco é reproduzido na consciência do sujeito do
conhecimento, o que acaba por contrariar o modo como até anteriormente se fizera reinante
no discurso filosófico, a crença de que o conhecimento seria subsidiado por alguma
substância, mediado sinteticamente por algo Absoluto. Esse ente apenas toca o Dasein, lhe
vem ao encontro, provocando nela a compreensão, o desvelamento do Ser. Vê-se, assim, que
não há representação, o Dasein não é uma unidade sintética que medeia o mundo. Por força
de uma abertura ôntica se dá o conhecimento, como conseqüente, antecedido pelo mundo,
solo fundador do mesmo. Segundo Macdowell, a propósito desta imbricação entre o método
fenomenológico e a mundaneidade do mundo, nos diz:
89 “A filosofia hermenêutica fornece o fundamento filosófico para a reinserção da história e da cultura na
filosofia das ciências naturais.”
75
A análise fenomenológica do eis-aí-ser (pre-sença), guiada pela idéia de existência,
revela, contudo, a estrutura fundamental do ser-no-mundo. Daí se segue, que
pertence essencialmente ao eis-aí-ser algo como „mundo‟. Portanto, o eis-aí-ser não
pode ser considerado como um eu ou sujeito isolado, que, de quando em quando, se
relaciona com o ente, que se lhe opõe. Pertence à própria essência do eis-aí-ser,
enquanto compreender, a patência de sua estrutura total como ser-no-mundo. Nesta
patência manifestam-se, com a mesma originalidade, o mundo, como totalidade de
referências, em função da qual o eis-aí-ser se compreende, e o „eu mesmo‟ (Selbst),
como último „por causa de‟ (worumwillen) do projeto do mundo. Ora, no seio deste
mundo já está, desde sempre, descoberto o ente intramundano no seu conjunto e é só
porque o eis-aí-ser existe necessariamente como ser-no-mundo, que ele pode,
ocasionalmente, entrar em contato com este ou aquele ente. O conhecer não é senão
um dos modos de ser, fundados na estrutura, permanente do ser-no-mundo. (1970, p.
225, 226)
A fenomenologia hermenêutica no pensamento de Heidegger, em linhas gerais
pretende-se enquanto um arrazoamento acerca da finitude, portanto, dada à temporalidade
ontológica do Dasein, ser do ente que enquanto projetivo, ou seja, hermenêutico, só
compreende nos limites de seu tempo, todo e qualquer conhecimento, toda fundação ôntica
das ontologias regionais, sempre se dá no jogo barroco entre o velamento e o desvelamento,
na fissura desta relação, que ora manifesta o ente, alvo das análises das ontologias, ora, oculta
sua mostração. De sorte que, segundo Patrick Heelan:
Human inquiries by a species of a philosophical reflection discover themselves to be
contingently „located‟ at some place and at some time in human history not by their
choices but, as it were, as „having-been-thrown‟ into the lifeworld conscious of
having no more than a finite lifespan. 90
(1998, p. 05)
O que resulta a partir deste método, é a ciência de que enquanto finita, o Dasein
enquanto ser de abertura, somente compreende o Ser no âmbito de sua ruína, de sua
mortalidade, portanto, o signo da incompletude, do inacabamento se torna o horizonte em que
se esbarram suas pretensões. Por mais que o Dasein busque sondar os fundamentos últimos de
todos os entes, algo se ocultará, por força da temporalidade da compreensão. A propósito, é
que vale recapitular a forma como o conhecimento se funda, sempre vinculado primeiro ao
modo como o ente se mostra. Ele nunca se mostra sozinho, isolado e descontextualizado. O
que se mostra do ente, instrumental, sempre vem acompanhado de um contexto, de uma
situação, como acima se referiu quanto ao caráter referencial do ente intramundano. O ente,
portanto, sempre se mostra como um fenômeno que se aclara na abertura do Ser, ou seja, o
ente só dá-se em função da abertura compreensiva do Dasein:
90 “Os pesquisadores humanos, por uma espécie de reflexão filosófica, descobrem-se contingentemente
'localizados' em algum lugar e em algum momento da história humana, não por suas escolhas, mas, por assim
dizer, terem sido lançados no mundo da vida, conscientes de que não têm mais que um tempo de vida finita.”
76
Heidegger fala desde um outro paradigma da Filosofia. A fundamentação da
possibilidade de uma posição filosófica que se expõe em sua efetividade é
impossível, desde que compreendido o homem como ser-no-mundo, revelação e
cuidado („cura‟, Sorge), a partir do tempo. O autor move-se neste mundo, mundo da
compreensão, da compreensão do sentido, mundo hermenêutico, definitivamente
cortado para a filosofia, da totalidade metafísica, onto-teo-lógica, critológica e
natural. A posição filosófica se dá sobre um plano que há apenas o homem. (1997, p.
22)
Vale considerar ademais, enquanto característico do fenômeno do conhecimento,
a diferença ontológica, que se apontou acima, e a complexidade do mesmo, acossados em um
ir e vir do ente revelado ao desvelamento do Ser. Como essa relação não se dá em um mesmo
ponto – a consciência – mas em pontos diferentes, esse ir e vir gera uma relação de
circularidade, denominada de círculo hermenêutico. Segundo Ernildo Stein:
A circularidade no método que vai contra toda a tradição e sobretudo quando se trata
da existência e do ser deve operar, então, numa espécie de solidão teórica, porque
ele não parte de uma proposição da qual se deduziriam outras proposições, conforme
regras formais de justificação. O pre-supor tem aqui no caso o „caráter do projetar
compreensivo‟, que é característica do próprio estar-aí. É uma justificação que
resulta da estrutura compreensiva do ser-no-mundo (...) O conjunto dos
„pressupostos‟ para chegar a justificar o método adequado à investigação do estar-aí
é denominado „situação hermenêutica‟. „ No estar-aí, enquanto ele é, sempre ainda
algo está por ser: o que pode ser e será‟. Por isso a pergunta fundamental: „Mas
afinal, pode o estar-aí existir propriamente de maneira total?‟ A circularidade só não
se torna inconsistente se o estar-aí puder existir de maneira total. Esta maneira total
era dada na tradição pelo „pensamento do pensamento‟, pela situação de Deus antes
da criação do mundo‟, pela „identidade da identidade com a não-identidade‟, pela
„autoconsciência‟, pelo „saber que se sabe a si mesmo, sabendo‟ e outros modelos da
metafísica usados como metáforas para o „querer ser total do homem‟. (2005, p. 59,
60)
Sem embargo, aquilo que pretende o método de investigação, seu propósito,
enfeixa-se na busca pelo sentido do Ser através do único ente que o compreende, ente que é
sendo na assunção de sua existência fáctica, como se vem referindo: Dasein sentido este que
se vela, ou seja, se oculta num jogo de claro-escuro. A fundação ocasionada pelo Dasein,
enquanto ser-no-mundo, incluso aqui, as ontologias regionais, que lidam com a
particularidade dos entes, longe de legitimar-se por intermédio de substâncias transcendentais,
o que pressupunha a supra-temporalidade, por conseguinte, é resultado do caráter temporal do
Dasein, que sempre se compreende de um modo, em decorrência da instância finita de sua
condição. Em seu escrito intitulado: Sobre a essência do fundamento, assim considera
Heidegger, ao enredar o aclaramento fenomenológico do ente, portanto, sua manifestação a
priori, com o caráter mundano e conseqüente fundação ôntica das demais ciências, no aberto
compreensivo-temporal do Dasein:
77
A prévia determinação do ser (que-ser e como-ser da natureza em geral se fixa nos
„conceitos fundamentais‟ da respectiva ciência. Nestes conceitos são, por exemplo,
delimitados espaço, lugar, tempo, movimento, massa, força, velocidade; todavia, a
essência do tempo, do movimento não é propriamente problematizada. A
compreensão ontológica do ente puramente subsistente é aqui reduzida a um
conceito, mas a determinação conceitual de tempo e lugar, etc., as definições, são
reguladas, em seu ponto de partida e amplitude, unicamente pelo questionamento
fundamental que na respectiva ciência é dirigido ao ente. Os conceitos fundamentais
da ciência atual não contêm, nem já os „autênticos‟ conceitos ontológicos do ser do
respectivo ente, nem podem estes ser simplesmente conquistados por uma
„adequada‟ ampliação daqueles. Muito antes, devem ser conquistados os originários
conceitos ontológicos antes de toda definição científica dos conceitos fundamentais,
de tal modo que, a partir daqueles, se torne possível estimar de que maneira
restritiva e, em cada caso, delimitadora a partir de um ponto de vista, os conceitos
fundamentais das ciências atingem o ser, somente captável em conceitos puramente
ontológicos. (1989 p.91, 92)
Portanto, em linhas gerais o que se pode extrair do método fenomenológico-
hermenêutico de propensão heideggeriana, é sua inserção em uma ontologia da finitude, onde
o Dasein enquanto ente de fundação, porquanto, compreensivo, se oculta e se desvela no
próprio Ser, o que lhe faculta, por conseguinte, o caráter temporal, a salvaguarda da totalidade
de tudo o que é. Segundo Benedito Nunes, a propósito da temporalidade, enquanto
fundamento do Dasein, seu como de atuação:
O tempo originário, como fundamento, torna possível a compreensão do ser. É nele
que assenta o princípio „genealógico‟ do conhecimento historicamente constituído
das Ontologias. Por isso, completada com a temporalidade, em que as estruturas
existentivas são abrangidas num novo e definitivo nível de interpretação, a Analítica
do Dasein converte-se numa Ontologia Fundamental, isto é, numa Ontologia que
recorre ao fundamento – o tempo originário, princípio das Ontologias. Ora, o tempo
originário nos devolve à existência, que é a essência de um ente que se conduz
relativamente ao ser, compreendendo-o sempre de certa maneira. Daí o caráter
ôntico-ontológico do Dasein: a compreensão do ser determina-o como ente. E daí
também o caráter derivado das Ontologias, porquanto na compreensão pré-
ontológica que constitui o ser desse ente, e que a Analítica explicita, está a gênese
do conhecimento ontológico, ou seja, de todo conhecimento ostentado pela „ciência
do ser‟, pela Metaphysica generalis. (1986, p.153)
Se a ênfase até agora, quanto à questão do conhecimento científico no seio do
pensamento de Heidegger, enfoca reiteradas vezes, a proximidade entre a mundaneidade finita
do Dasein; enquanto ser de compreensão, existente que desencobre o velamento do ser do
ente com a facticidade, com o estar - lançado no mundo, nas intermitências dos entes
intramundanos em sua feição prática-instrumental, o que se pode concluir é tão somente uma
questão, que certamente, coloca Heidegger numa posição diferenciada entre seus pares, qual
seja? Uma reorientação quanto à compreensão de cientificidade em seu caráter mais
operativo, mais temporal. Desse modo, cita-se Patrick Heelan: “The hermeneutic turn in the
philosophy of science is necessary to study aspects of science for which the traditional
78
philosophy of science is not well equipped. These are the dynamic, narrative, historical, and
lifeworld aspects of science.” 91
(1998, p. 17).
Lá onde se dá o acontecer pré-ontológico do Dasein, em sua atuação primária, em
seu fazer-se enquanto tal, na concretude da existência, no âmbito pré-discursivo do mundo, é
que se avulta o método fenomenológico-hermenêutico, acirra um certo círculo hermenêutico,
no pressuposto da existência fáctica do Dasein, condição de possibilidade, que sempre se
move numa certa compreensão de ser:
Na comprovação de alguma coisa, a analítica existencial jamais pode „evitar‟ um
„círculo‟ porque ela não faz, de modo algum, comprovações segundo as regras da
„lógica de conseqüência‟. Para pretensamente satisfazer o máximo rigor de uma
investigação científica e evitar o „círculo‟, a compreensibilidade coloca de lado nada
menos do que a estrutura fundamental da cura. Originariamente constituída pela
cura, a pre-sença já sempre precede-a-si-mesma. Sendo, ela sempre já se projetou
para determinadas possibilidades de sua existência, projetando também, de forma
pré-ontológica nesses projetos existenciários, a existência e o ser. Pode-se então
recusar esse projetar-se essencial da pre-sença à pesquisa que sendo, pre-sença, quer
elaborar e conceituar a compreensão ontológica constitutiva da existência? (2005,
Parte II, p.108)
Para quem parte do caráter primário da compreensão e da cura, enquanto modos
de ser do Dasein, enquanto ser-no-mundo, a circularidade acontece necessariamente imanente
ao caráter antecipador, ou seja, prévio do Dasein. Porque primeiro, ou seja, antecipador, o
Dasein sempre está implicado com o caminho pretendido pelo conhecimento, na antecedência
destas pretensões, portanto, no horizonte deste pressuposto.
Considerando que a hermenêutica heideggeriana não está diretamente voltada para
a compreensão de textos, mas para a existência do Dasein enquanto ente que compreende o
Ser no mundo, o círculo hermenêutico tomará uma feição existencial, no âmbito
fenomenológico de desencobrir aquilo que se oculta, daquilo que se vela:
Em seu conteúdo, a fenomenologia é a ciência do ser dos entes - é ontologia. Ao se
esclarecer as tarefas de uma ontologia, surgiu a necessidade de uma ontologia
fundamental, que possui como tema a pre-sença, isto é, o ente dotado de um
privilégio ôntico-ontológico. Pois somente a ontologia fundamental pode-se colocar
diante o problema cardeal, a saber, da questão sobre o sentido do ser em geral (...).
Fenomenologia da pre-sença é hermenêutica no sentido originário da palavra em que
se designa o ofício de interpretar. Na medida, porém, em que se desvendam o
sentido do ser e as estruturas fundamentais da pre-sença em geral, abre-se o
horizonte para qualquer investigação ontológica ulterior dos entes não dotados do
caráter da pre-sença. A hermenêutica da pre-sença torna-se também uma
„hermenêutica‟ no sentido de elaboração das condições de possibilidade de toda
91 "A virada hermenêutica na filosofia da ciência é necessária, pois, estuda aspectos da ciência que a tradicional
filosofia da ciência não estaria bem equipada. Estes são aspectos dinâmicos, narrativos, históricos e mundanos da
ciência.”
79
investigação ontológica. E, por fim, visto que a pre-sença, enquanto ente na
possibilidade da existência, possui um primado ontológico frente a qualquer outro
ente, a hermenêutica da pre-sença como interpretação ontológica de si mesma
adquire um terceiro sentido específico – o sentido primário do ponto de vista
filosófico - a saber, o sentido de uma analítica da existencialidade da existência.
(2005, pg. 68, 69)
Para Heidegger o círculo assume a totalidade existencial do Dasein, ou seja, cada
etapa de experiência vivida no âmbito da fundação do conhecimento, passa pelo todo da
compreensão, de modo que tudo se encerra na abertura do Dasein enquanto ente de
compreensão, que sempre se move num certo sentido de ser. A compreensão do mundo só é
possível porque o Ser encontra-se velado no Dasein, vindo a ser desvelado, gera uma
compreensão provisória e assim sucessivamente na circularidade em espiral, estando aqui, o
elemento fundador do Dasein, enquanto ente que compreende o Ser, dimensionando assim,
um movimento circular que se caracteriza pela prévia estrutura do Dasein, que é sempre
anterior, ou seja, se antecipa a toda e qualquer entidade, e previamente projetada a qualquer
ontologia regional.
O todo do fenômeno auxilia a compreensão de um ente, na medida em que a
simples presença desse ente auxilia a compreensão do todo, o todo não se autonomiza da parte
e nem a parte se autonomiza do todo, eis em linhas gerais o que há de mais elementar na
estrutura ontológica do Dasein, enquanto ente de compreensão. Segundo Heidegger:
A compreensão enquanto abertura do pre sempre diz respeito a todo o ser-no-
mundo. Em toda compreensão de mundo, a existência também está compreendida e
vice-versa. Toda interpretação, ademais, se move na estrutura prévia já
caracterizada. Toda interpretação que se coloca no movimento de compreender já
deve ter compreendido o que se quer interpretar (...). Se, porém, a interpretação já
sempre se movimenta no já compreendido e dele se alimentar, como poderá produzir
resultados científicos sem se mover num círculo, sobretudo se a compreensão
pressuposta se articula no conhecimento comum de homem e mundo? (2005, p. 209)
Ademais, o resultado dessa interação que gerará a compreensão, passa a ser
agregado a uma pré-compreensão que se integrará ao mundo do Ser, sendo a justa medida de
sua finitude e, dentro dela, proporcionando outras compreensões, de modo que o todo da
compreensão ôntica dos entes, é sempre antecedida por uma pré-compreensão, antecessora
por excelência. Vale ainda considerar que, nessa interação entre círculos, é que perceberemos
em Heidegger a distinção entre compreensão e interpretação, que por mais que se
assemelhem, diferenciam-se em alguns aspectos:
Na compreensão, a pre-sença projeta seu ser para possibilidades. Esse ser para
possibilidades, constitutivo da compreensão, é um poder-ser que repercute sobre a
pre-sença as possibilidades enquanto aberturas. O projetar da compreensão possui a
80
possibilidade própria de se elaborar em formas. Chamamos de interpretação essa
elaboração. Nela, a compreensão se apropria do que compreende. Na interpretação a
compreensão se torna ela mesma e não outra coisa. A interpretação se funda
existencialmente na compreensão e não vice-versa. Interpretar não é tomar
conhecimento do que compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas na
compreensão. (2005, p. 204)
A interpretação, portanto, é concebida por Heidegger como uma antecipação, ou
seja, um projetar-se no todo. A compreensão representa o ponto culminante e consecução
desse projeto que visava à própria compreensão. Esse projeto de todo, no entanto, na medida
em que é um antecipar-se em busca da compreensão pode se mostrar falho diante do
desvelamento das partes ao longo do processo. A propósito, cito Gadamer:
Quando se realiza a compreensão, o círculo do todo e das partes não se dissolve;
alcança ao contrário sua realização mais autêntica. O círculo, portanto, não é de
natureza formal. Não é objetivo nem subjetivo, descreve, porém, a compreensão
como o jogo no qual se dá o intercâmbio entre o movimento da tradição e o
movimento do intérprete. A antecipação de sentido, que guia a nossa compreensão
de um texto, não é um ato da subjetividade, já que se determina a partir da
comunhão que nos une com a tradição. Mas em nossa relação com a tradição essa
comunhão é concebida como um processo em contínua formação. Não é uma mera
pressuposição sob a qual sempre já nos encontramos, mas nós mesmos vamos
instaurando-a na medida em que compreendemos, na medida em que participamos
do acontecer da tradição e continuamos determinando-o a partir de nós próprios.
(1997, p. 388, 389)
Diante dos conceitos até então trabalhados, é possível concluir que a compreensão
se dá em decorrência do caráter revelador da mundaneidade do mundo. Essa compreensão só
é possível, em função da antecedência de um ente que se mostra. O Dasein, visando à
compreensão do todo, estabelece um projeto e a partir daí, em um ir e vir ao fenômeno obtém,
mesmo que pela consecução de um projeto modificado no curso do processo, a compreensão
dos entes. Essa descrição representa o processo ou, como prefere Heidegger, o método
fenomenológico-hermenêutico. O resultado da tal circularidade pode assim ser dimensionado
segundo Glazebrook:
Indeed, both Heidegger and more recent philosophers of science have had to come
to terms with the fact the price paid for self-grounding of the science is a
hermeneutic circularity. (…) 92
(2000, p. 98, 99)
A investida epistemológica de tal caráter fenomenológico-hermenêutica e o êxito
metodológico de uma certa circularidade pré-compreensiva, viabiliza de todo modo, uma
92 “Na verdade, tanto Heidegger, quanto os mais recentes filósofos da ciência, tiveram que chegar a um acordo
com o fato de que o preço pago pela auto-fundamentação da ciência é uma circularidade hermenêutica. (...)”
81
possibilidade deveras existencial à consecução científica, vinculando assim, a temporalidade
do Dasein ao como da postura teórica. Esmiuçar a especificidade do projeto epistemológico
de viés fenomenológico-hermenêutico e posterior promoção de uma hermenêutica das
ciências naturais, eis o que se objetiva com o capítulo subsequente.
3.3 A compreensão fenomenológico-hermenêutica de ciência
Toda a compreensão metafísica de natureza, a subsidiar um circuito de
inteligibilidade à ciência, traria como tônica a determinação matemáticos dos entes delineados
como objetos, de modo que o que não pode ser objetivado, não pode ser elucidado. Daí
porque, para Glazebrook: “For everything that is, is only to the extent that human being sets it
up and represents it, that is, only to be extent that it is picturable. Likewise, what is not
available to be represented in experiment, simply is not for science.93
” (2000, p. 115).
Ademais, para Tuchanska: “Indeed, an epistemic approach radically objecties both the
subject and the object and clearly presupposes that what cannot be objectified cannot be
studied.94
” (1999, p. 09)
Em função dessa característica fundamental, que o põe no nível da objetividade,
não pode a ciência determinar ontologicamente o ser de um ente, lhe restando, assim o
alcance ôntico do ser simplesmente dado, vertido esquematicamente em um projeto prévio.
Toda a construção epistemológica do Ocidente apresenta-se via entificação do mundo natural,
pelo simples fato de que não se detêm ao modo de acesso ao ser de um ente, de maneira que a
quididade se antepõe ao como, a objetividade se sobrepõe ao Ser. Desse modo, segundo
Glazebrook: “Heidegger is suggesting, then, that theory takes its truth from an obscure
source, a source that remains veiled to science. That source is being. 95
“(2000, p. 237)
Por desconhecer que o desvelamento de um ente traz consigo um ocultamento de
outras possibilidades do ser do ente, de modo que um mostrar-se é igualmente um não
mostrar-se, a metafísica em comunhão com a ciência, substancializaria a natureza a uma
recorrência matematicamente computável, compreendida que seria enquanto continuum. Para
93 “Para tudo aquilo que é, o é apenas na medida em que o ser humano define e representa, isto é, apenas o que
pode ser mensurado é representável. Da mesma forma, o que não está disponível para ser representado no
experimento, simplesmente não cabe à ciência.”
94 “De fato, uma abordagem epistemológica objetifica radicalmente, tanto o sujeito, quanto o objeto e pressupõe
claramente que, o que não pode ser objetivado não pode ser estudado.”
95 “Heidegger está sugerindo, então, que a teoria tem a sua verdade a partir de uma fonte obscura, uma fonte que
permanece velada para a ciência. Tal fonte é o Ser.”
82
Glazebrook: “For Heidegger, science is not just one phenomenon among several: it is the
determination of the metaphysics of modernity.” 96
(2000, p.208). O que daí advém é uma
compreensão físico-matemática da natureza, o que subsume a multiplicidade dos fenômenos à
unidade prescritiva de uma lei universal, de forma que há assim uma axiomatização dos
fenômenos naturais. Porquanto, seu propósito seja muito mais que metodológico Heidegger
habilita no âmbito de uma fenomenologia-hermenêutica a exaltação de uma diferença
ontológica desconhecida para a metafísica que, franquearia por sua vez uma releitura do
fenômeno epistemológico. Suscitar uma diferença ontológica é promover decerto uma
superação do modelo substancialista da tradição metafísica a despeito de categorias ou
constructos sistêmicos que jamais compreenderam o Ser no fluxo do
velamento/desvelamento, o que acarretaria no seu tão propalado olvidamento. Segundo
Glazebrook:
A science can know the objects that appear in its sphere, but every science has
another side which it cannot reach. (…) Heidegger‟s claim is that when the one-
sidedness of the sciences is lost to sight, then the other side is also lost. On the other
side is being. The one-sidedness of the sciences is a preoccupation with but a single
side of the ontological difference: beings. The erection of a science consists in the
delimitation of its sphere of objects, that is, in Husserlian terminology, in a regional
ontology. 97
(2000, p. 217)
Havendo, pois, a chancela fenomenológico-hermenêutica de uma diferença
ontológica que toma o Ser em tal jogo barroco de revelação/ocultação, a pergunta que se
arvora à essencialidade do que é ciência, antes se orienta ao modo de acesso à cientificidade,
o que acarreta por sua vez a pergunta: como é possível a ciência? Como desdobra uma postura
normativa, com vistas a uma estrutura conceitual da natureza, com efeito, reduz o Ser em sua
condição transcendental à maneabilidade do objeto cognoscível, a metafísica em conjunção
com a ciência, torna-se desse modo, o discurso altaneiro de razoabilidade, alçando-se à esfera
autossuficiente de um logocentrismo. Criticar tal pretensão última libera por sua vez, tanto a
cientificidade enquanto ancila metafísica e sua promoção corrente do princípio de Razão
Suficiente, quanto impõe limites criteriológicos à empresa científica, porquanto, não se
empenha mais à entificação do mundo natural, por sabê-la fenomenologicamente
96 “Para Heidegger, a ciência não é apenas um fenômeno entre vários: é a determinação da metafísica da
modernidade.”
97 “A ciência pode conhecer os objetos que aparecem na sua esfera, mas toda ciência tem outro lado que não
pode alcançar. (...) Afirma Heidegger que quando a unilateralidade das ciências se perde em sua alçada, então o
outro lado também se perde. Do outro lado está o Ser. A unilateralidade das ciências é uma preocupação com um
único lado da diferença ontológica: os entes. A construção de uma ciência consiste na delimitação de sua esfera
de objetos, isto é, na terminologia husserliana, em uma ontologia regional.”
83
indisponível. O que resta é a abertura de uma hermenêutica das ciências naturais, em seu
propósito eminentemente metodológico. Segundo Heelan: “Interpretative work of this kind is
clearly historical, cultural, and anthropological, multidisciplinary in character and in need of
a philosophical foundation which hermeneutical philosophy tries to provide.” 98
(1998, p. 08)
Enquanto lançado no mundo, como ente que é de abertura, o Dasein por ser
compreensivo manifesta-se ontologicamente modalizando o Ser, seja via cotidianidade, seja
via conhecimento teórico. Qualquer constructo especulativo é um modo de conhecimento
pautado no caráter ontológico do compreender que, por sua vez é um modo de ser do Dasein,
de maneira que suscitar uma teoria do conhecimento é descerrar um círculo hermenêutico,
afinal o conhecimento ao partir da compreensão, já traz primariamente um conhecimento
específico de mundo, com efeito, o todo está nas partes, na proporção que as partes estão no
todo. Para Tuchanska:
Conceiving understanding in an ontological and historical way, Heidegger replaces
the search for ultimate foundations with the unfolding of the hermeneutic-
ontological circle. As we before we begin to understand the sense of being, so
likewise we understand our world before we begin to cognize it. As being gives rise
to understanding and conditions it, so pre-understanding gives rise to thoughts and
conditions it. The hermeneutic circle of understanding is not a logical or
methodological circle, but the ontological structure of understanding (interpretative)
that underlies the subject/object distinction, in terms of which logic and method
operate. 99
(1999, p. 05, 06)
Nesse sentido, é que se afirma: como modalização da relação originário
Dasein/mundo, o conhecimento teórico, de monta científica, pauta-se, não por um
esquematismo metodológico, de proveniência metafísica, mas por um círculo hermenêutico
de compreensão, o que dota à cientificidade uma postura transcendental.
O que a ciência moderna conceberia como objetivação de regiões específicas de
entes, não obstante vinculava-se à atuação categorial da metafísica e sua incapacidade de
contemplar uma diferença ontológica no plano da natureza, cede lugar a uma circularidade
hermenêutica que, passa a circunscrever o conhecimento científico à mundaneidade da
98 “Trabalho interpretativo deste tipo, é claramente histórico, cultural e antropológico, em caráter
multidisciplinar em que precisa de uma base filosófica que a filosofia hermenêutica tenta prover.”
99 “Concebendo a compreensão de uma forma histórica e ontológica, Heidegger substitui a busca de
fundamentos últimos com o desdobramento do círculo hermenêutico-ontológico. Como nós, antes de
começarmos a entender o sentido do Ser, assim também nós entendemos nosso mundo, antes de começar a
conhecê-lo. Como o Ser dá condições para a compreensão, então a pré-compreensão condiciona o pensamento.
O círculo hermenêutico de compreensão não é um círculo lógico ou metodológico, mas a estrutura ontológica de
entendimento (interpretação) que sustenta a distinção sujeito/objeto, em termos do que a lógica e o método
operam.”
84
compreensão, ou seja, antes de esquadrinhar conceitualmente um fenômeno qualquer, o
mesmo se dera pré-categorialmente no mundo. Destarte, o conhecimento é ontológico na
medida em que antecipa primariamente uma pré-visualização de um ente específico, em seu
modo de aparição. Enquanto que para a modernidade em seu afã fundacionalista, conhecer
seria a concordância representacional do sujeito em face do objeto à evidência de uma certeza
apodítica e irrefutável, para Heidegger, por um modo como ente pode se mostrar, o
conhecimento torna-se o como da circularidade hermenêutica, na possibilidade ou modalidade
da manifestação do ente.
O círculo hermenêutico, radicado que é na constitutividade ontológica da
compreensão, manifesta-se, não como um círculo lógico ou metodológico, mas enquanto
estrutura que subjaz à clivagem: sujeito/objeto, bem como soçobra o contencioso do
realismo/idealismo. Por alijar toda carga substancialista da tradição metafísica, concebendo
assim, a mundaneidade do Dasein, Heidegger expõe à noção epistemológica as implicações
de uma rede semântica de linguagem sedimentada pela historicidade originária do Dasein, de
modo que vem à tona um apelo holístico à cientificidade. Nesse sentido, segundo Hubert
Dreyfus, em alusão a um realismo deflacionado:
Thus we arrive at a deflationary view that repudiates both metaphysical realism and
transcendental idealism. Once the deflationary realist has argued that one cannot
make sense of transcendental idealism or of metaphysical realism. (..) Moreover,
Heidegger seems to agree with the deflationary realists that, while entities show up
as independent of us, the being or intelligibility of entities depends on our practices.
So any talk of things in themselves must be put in scare quotes. 100
(2001, p. 04, 05)
3.4 Ciência e historicidade: uma hermenêutica das ciências naturais
Como advém de um modo de ser da relação ontológica Dasein/mundo, o
conhecimento científico funda-se em um âmbito movediço entre o velamento e desvelamento
do ente, portanto, no lusco fusco da diferença ontológica. Desse modo, ciência configura-se
não como uma entificação de determinadas regionalidades, antes como temporalização
compreensiva de entes que se dão no mundo. O que se tem a partir daí, é uma perspectiva
ontológica de ciência que, propõe às ontologias regionais uma descrição ôntica do modo como
100 “Assim, podemos chegar a uma visão deflacionária que repudia tanto o realismo metafísico, quanto o
idealismo transcendental. Uma vez que o realista deflacionário argumentou que não pode fazer sentido nem o
idealismo transcendental, nem o realismo metafísico. (...) Além disso, Heidegger parece concordar com os
realistas deflacionários que, apesar dos entes aparecem independentes de nós, o Ser ou a inteligibilidade dos
entes depende de nossas práticas. Assim, qualquer conversa sobre as coisas em si, deve ser colocada entre
aspas.”
85
os entes se nos revelam, o que descamba para uma modalização fáctica do Dasein em
ocupação com o mundo. Cito Charles Guignon:
The influence of the hermeneutic point of view has important implications for
Heidegger‟s ontology of being human his methodology in Being and Time. Since
human existence is regarded as like a meaningful text, Heidegger is led to portray
our everyday life-world as a holistic field of „internal relations‟ in which we find
ourselves most originally as place-holders in a wider field of significance relations.
And, insofar as philosophy itself has a hermeneutic structure, Heidegger‟s method
breaks with traditional philosophy to the extent that it is concerned less with
discovering obvious truths and providing proofs than with unearthing na underlying
meanings in what is manifest in our normal lives.101
(1983, p. 03)
Para a tradição metafísica, a ciência seria um empenho descritivo à cata das
propriedades substanciais dos entes simplesmente dados, de modo que haveria, pois, a
instauração de uma aspiração à totalidade, ou seja, ao esvaziamento da particularidade
mundana do ente enquanto tal. Ao incorrer em tal empenho, a metafísica teria se constituído
como desmundanização do mundo, encerrado em um plano eminentemente objetual ou
espacial, destituído assim, das incidências originárias do tempo.
A indisponibilidade de acesso ao ente em sua totalidade, não se deve a uma
incapacidade concordacional de um sujeito em face de um objeto, em tal nível cognitivo,
antes se refere à existencialidade do Dasein, ente que em falta com seu próprio ser, depara-se
intermitentemente com a iminência de sua própria finitude. Como o Dasein nunca é uma
totalidade, ao não ser no desfecho de seu poder-ser mais próprio, com a intermitência da
morte, toda compreensão se torna a inscrição de uma possibilidade, a consecução de uma
provisoriedade. Conhecer em nível científico, determinar algo em tal postura ôntica é decerto
credenciar à temporalidade do velamento do ente, todo alcance da suficiência epistemológica.
Certificar-se de tal entrevero, conduz a pesquisa científica a uma delimitação metodológica
nos limites de sua pretensão última. Segundo Benedito Nunes:
O pontear dessa abertura desloca para a transcendência e, por conseguinte, para fora
do universo científico institucionalizado, que é parte do mundo circundante público
do cotidiano, e quese tornará, na época moderna, uma força organizadora da
existência, o sentido da prática teórica da ciência enquanto possibilidade, entre
101 “A influência do ponto de vista hermenêutico tem implicações importantes para a ontologia do ser humano de
Heidegger na metodologia de Ser e Tempo. Uma vez que a existência humana é considerada como um texto
significativo, Heidegger é levado a retratar o nosso mundo da vida cotidiano como um campo holístico de
„relações internas‟ em que nos encontramos mais originalmente como titulares de um campo mais vasto de
relações significativas. E na medida em que, a própria filosofia tem uma estrutura hermenêutica, a quebra de
Heidegger com o método da filosofia tradicional, estende-se até se preocupar menos com a descoberta de
verdades óbvias e fornecer provas de significados velados e subjacentes que se manifestam em nossas vidas
normais.”
86
outras, da conduta do Dasein. Daí a emergência do proto factum metafísico da
finitude, ligado ao enfrentamento do Nada, no conhecimento científico
problematizado enquanto modalidade de existência. (1986, p. 188)
Por já chegar tarde demais aos entes, afinal o mundo antecipa-se prioritariamente
como ante-judicativo, a postura científica encerra continuamente uma pressuposição, tendo a
historicidade como bastidor de inteligibilidade. Desse modo, Heelan se faz providencial, com
efeito: “Science, from this perspective, is a human, social – and fallible entreprise.” 102
(1991,
p. 01).
Compreendido nestes termos, endossando-se aqui a antecedência originária do
mundo e a finitude da visada teórica, o que sobrevém é a instauração de uma impostação de
ciência como uma possibilidade existencial do Dasein. Como ente que desvela, compreensivo
que é, o Dasein sempre antecipa projetivamente modos de ser, reservando à ciência
especificamente, um setor prévio de objetividade já pressuposto e inquestionado. Para Oskar
Becker, em se tratando de matemática:
A matemática na realidade é uma ciência humana – o que se esquece
frequentemente-em nada diferente das outras ciências. E isto é amiúde esquecido
porque ela não depende de observações empíricas, e aparentemente provem da força
criadora do espírito humano. Assim, para Gauss, o número era „simples produto de
nosso espírito‟, e Dedekind explicava os números como „criações livres de nosso
espírito. ‟ Hoje em dia à luz da „analítica existencial‟ de Heidegger, precisamos ir
mais longe. O tempo não só é a forma do sentido interior, mas a estrutura
fundamental da existência humana. Como homens somos essencialmente temporais
e nossa própria existência pode ser caracterizada como temporalidade. O tempo não
é uma simples forma que nos cerca, mas penetra no mais profundo de nosso ser e
essência. Isto também se manifesta na matemática, embora frequentemente seja
ignorado este fato. Não no sentido que o pensamento matemático seja limitado ou
tolhido pela temporalidade e pela limitação humana daí decorrente; muito ao
contrário: ele se torna possível por meio dela. Podemos e devemos numerar e
calcular unicamente porque somos seres temporais e finitos. Um ser eterno e infinito
não numera. Não precisa numerar, nem pode numerar. A ação de contar e calcular
não faz sentido para tal ser. (1965, p. 174, 175)
Dito de outro modo se conclui que, todo comportamento científico implica uma
mudança focal em face do mundo, com respectiva gradação em níveis conceituais, que é
decerto, a passagem de uma visualização prévia à positividade específica de um ente. Desse
modo é que se torna exemplar a projeção físico-matemática de extração moderna, com efeito,
efetiva o propósito gênico de ciência como determinação prévia do ente enquanto ente, o que
acarreta uma intervenção antecipadora e consequente matematização dos fenômenos naturais.
Nesse sentido, segundo Babette Babich: “Modern science limits or reduces reality to its
102 “Ciência, a partir dessa perspectiva, é um empreendimento humano, social - e falível.”
87
scientifically measurable, calculable, or quantifiable properties, taking reality here in the
common-sense (but still counter-intuitive) meaning of scientific realism.” 103
(2010, p.279)
Toda proposição científica ulterior, pressupõe uma proposição pré-científica originária ou
fundamental, radicada que é no mundo. As incidências desta certeza revalida a posição
científica ao conciliar: mundaneidade/temporalidade/compreensão, abalizando assim, uma
hermenêutica das ciências naturais. Segundo Tuchanska:
The hermeneutic character of an ontology and epistemology indicates that they are
an understanding of ourselves as elaborated by ourselves, influenced as we are by
the historically limited structures of our being. In other words, there is an
interrelation between (our) epistemological views and the ontological conditions of
our situation, they are involved in an hermeneutic-ontological circle. 104
(1999, p.
09).
Sendo um comportamento existencial de natureza antecipadora, como pode a
ciência preterir, em nome de uma pretensa objetividade os desdobramentos históricos de seus
próprios pressupostos, sedimentados que estão nas práticas, hábitos e encaminhamentos da
pauta científica vigente? Não há, pois, ao comportamento científico outra orientação senão os
indícios imanentes do mundo, solo antepredicativo de todo e qualquer conhecimento. Com
isso, o engajamento epistêmico é menos cognitivo que histórico, com suas respectivas práticas
entre comunidades científicas específicas. De um modo não menos elucidativo, assim
considera Patrick Heelan: “Its position is: if reality is the world, then the world is
presupposed by science, and science inevitably returns – not to theory – but to the world for
its concrete reference.105
” (1991, p. 04).
Desse modo, a pesquisa se torna a inter-relação de procedimentos em diálogo com
estruturas sócio históricas previamente asseguradas, de modo que enquanto um
comportamento existencial, de veio ontológico, ciência se torna, pois, um modo específico de
temporalização de entidades. Por que temporaliza, toda postura científica é sem mais, uma
assunção histórica. Sendo assim, torna-se infundada a tentativa ex nihilo de empreendimento
103 “A ciência moderna limita ou reduz a realidade às suas propriedades cientificamente mensuráveis, calculáveis
ou quantificáveis, tendo a realidade aqui no senso comum (ainda assim contra-intuitivo) do significado do
realismo científico.”
104 “O caráter hermenêutico de uma ontologia e de uma epistemologia, indica que eles são uma compreensão de
nós mesmos, enquanto são elaborados por nós mesmos, influenciados que são pelas estruturas historicamente
limitadas do nosso ser. Em outras palavras, há uma inter-relação entre os (nosso) pontos de vista epistemológicos
e as condições ontológicas da nossa situação, envolvidos que estão em um círculo hermenêutico-ontológico.”
105 “Sua posição é a seguinte: se a realidade é o mundo, então o mundo é pressuposto pela ciência e a ciência
inevitavelmente retorna – não à teoria - mas para o mundo à sua referência concreta.”
88
científico, circunscrita que é à sedimentação de problemas em andamento. Para Heelan, isso
se dá da seguinte forma:
Where does this leave the account of explanation in the natural sciences? It shows
that if explanation is limited. i.e., to the causal, nomological and deductive
relationship among phenomena and their descriptions, then the phenomena in
question cannot be natural pre-scientific phenomena as Logical Positivism and much
of Logical Empiricism assumes, but naturalized scientific phenomena constituted by
institutionalized processes of preparation and measurement. However, if the notion
of explanation is enlarged (as it should) to include, i.e., how scientific phenomena
are constituted in local media, then explanation is no longer just computational or
derivational, but it is historical, social,artistics, and hermeneutical. 106
(1991, p. 15)
Como não totaliza em função de sua estrutura ontológica, sempre adiante de si
mesmo, ao Dasein não é dada a possibilidade de enfeixar categorialmente um ente, o que o
expõe a um adiamento de propósitos. O que escapa de um ente, no entrechoque do
velamento/desvelamento, temporaliza-se como uma possibilidade no mundo.
Torna-se peremptório, por exemplo, o caso da chamada lei da entropia, ou
segunda lei da termodinâmica. Para a entropia, a energia do universo tende a se dissipar, de
modo que tudo se dá a regressar ao seu estágio primordial. Ora, quando desta descoberta, o
defensor do progresso contínuo, tão afeito ao positivismo, Herbert Spencer, teria se
angustiado. A angústia de Spencer é sintomática, vinculada que é a uma metafísica do ente
puramente subsistente, ensimesmado e estático às categorizações de um sujeito cognoscente,
como se o conhecimento teórico fosse a suspensão de uma ordem temporal. Segundo Babich:
Incorporated in the second law of thermodynamic as expressed in 1865 by Rudolf
Clausius (...) culminated in the concept of entropy, one of the most profoundly
philosophical scientific notions of the nineteenth century. (...) which stated that in a
close or bounded system all events return, infinitely many times, to their initial
state.107
(2010, p.272)
Como hipostasia a temporalidade à universalidade de uma lei objetiva, a ciência
distancia-se sobremaneira do ente em análise, com efeito, o engessa em uma rede taxionômica
106 “Onde reside a reserva de explicação nas ciências naturais? Isso mostra que se a explicação é limitada, isto é,
se a relação causal, nomológica e dedutiva entre os fenômenos e suas descrições, então o fenômeno em questão
não pode ser um fenômeno natural pré-científico como assume o positivismo lógico e o empirismo lógico, mas o
fenômeno científico naturalizado é constituído por processos institucionalizados de preparação e medição. No
entanto, se a noção de explicação é alargada (como deveria) para incluir, ou seja, como os fenômenos científicos
são constituídos no âmbito local, então a explicação não seria apenas computacional ou derivacional, mas
histórica, social, artística e hermenêutica.”
107 “Incorporadas na segunda lei da termodinâmica, expressa em 1865 por Rudolf Clausius (...) culminou com o
conceito de entropia, uma das noções mais profundamente filosóficas e científicas do século XIX. (...) que
afirma que em um sistema fechado ou limitado, todos os eventos retornam infinitas vezes, ao seu estado inicial.”
89
de antecipação. Daí, porque, cotejar a metafísica, com o exercício fenomenológico-
hermenêutico é dispor ontologicamente condições de possibilidade ao comportamento
existencial do como epistemológico, circunscrito aos limites da finitude da compreensão.
Segundo Oskar Becker, em um tom deveras providencial: “Chegamos, portanto, ao seguinte
resultado: sempre que a matemática, saindo de questões mais simples, tem diante de si o
problema capital do domínio do infinito, ela por natureza e por essência fica totalmente
entregue à finitude do homem. Pois somente para um ser finito tem razão o pensar num
domínio do infinito.” (1965, p.176). Esquematicamente tais implicações se dão de tal forma:
A) Por ser categorial, a metafísica se torna uma doutrina via entificação,
sintetizando a multiplicidade por meio de uma proto-substância;
B) Se tudo é mediado pela disponibilidade de tal proto-substância, logo tudo se
fundamenta em tal oferta, de modo que tudo tem uma razão de ser;
C) Ao regionalizar-se em campos ônticos específicos, a metafísica dispõe à
ciência, o princípio de Razão Suficiente e posterior inteligibilidade aos
fenômenos naturais;
D) Culminando na modernidade como projeto antecipador, a ciência passa
mensurar a natureza como representação de um sujeito em face de um objeto;
E) Por focar o ente subsistente em um projeto prévio, a ciência não possui
condições ao modo de acesso ao ser do ente, sobrepondo a essência ao como
de qualquer mostração;
F) Por se dar no fluxo intérmito do velamento/desvelamento, a diferença
ontológica não se arvora via essencialização, antes como modalidade
existencial;
G) Como tudo se dá no aberto da diferença ontológica do
velamento/desvelamento, um como hermenêutico sempre se antecipa a uma
visada teórica, de modo que todo conhecimento ôntico se apresenta como pré-
científico, o que põe o mundo como pressuposto;
H) A antecipação da mundaneidade à cognição implica um círculo hermenêutico
que, passa a se vincular ao alcance teórico do comportamento científico;
I) As repercussões desta mudança paradigmática franqueiam uma hermenêutica
das ciências naturais e consequente implicação de certos expedientes à
questão científica;
90
J) Como consequência do anteriormente dito, ciência como comportamento
existencial do Dasein no mundo, circunscreve-se aos limites da finitude
originária, de forma que se desdobra temporalmente.
A despeito de pretensões últimas de alcance irrestrito, pensar a cientificidade em
termos ontológicos é arrolá-la a delimitações eminentemente determinantes, o que a põe na
circunscrição de uma provisoriedade fundamental, no aberto de uma ressignificação. Ciência
se torna, destarte, a inserção em um puzzle com regras previamente asseguradas, mas com
intérmitas resoluções.
3.5 A visada finita do comportamento científico
O Dasein possui em seu comportamento enquanto ser-no-mundo, a possibilidade
privilegiada de conhecer e concomitantemente, fundar o arranjo teórico das demais
ontologias, das demais ciências, no entanto, essa mesma fundação ôntica se dá condicionada
pela esfera finita, portanto, temporal do Dasein, ente ekstático, em constante lançamento,
sempre adiante de si mesmo. Nesse sentido, como acima se considerou, enquanto ente dotado
de um privilégio ontológico, porque compreensivo, o Dasein sempre se move fundando,
atribuindo sentido à totalidade dos demais entes intramundanos, os que não possuem a
disponibilidade hermenêutica de compreender, desse modo, somente o Dasein conhece e é
capaz de aferir, inteligentemente, atributos ao mundo, aferição contida nos limites temporais
deste ente condicionado:
O conhecer finito é conhecer do ob-jeto. Ora, não pode haver objeto senão para um
sujeito como tal. Do mesmo modo, o sujeito como sujeito implica o objeto como
objeto. Não se pode conceber nem um sujeito constituído à espera do ente da
experiência, para recebê-lo como objeto, nem, ao contrário, que o ente da
experiência se oponha como objeto, ao conhecente e, então, o constitua como
sujeito. A única possibilidade de explicar o conhecimento finito é admitir nele uma
estrutura cognoscitiva a priori, i.e., anterior (não temporalmente) a qualquer
experiência, na qual objetividade e subjetividade possam condicionar-se
mutuamente. Esta estrutura é, justamente, a essência do pensar como representar a
unidade. Este representar é o próprio eu transcendental (...) que se constitui enquanto
opõe a si mesmo a unidade capaz de unificar a multiplicidade da experiência. Esta
unidade oposta a priori ao eu puro é, por sua vez, a estrutura do objeto como objeto,
o horizonte da objetividade como tal. Assim se explica a transcendência, i.e., a
passagem do sujeito finito, que não é criador do ente que ele conhece, a este mesmo
ente distinto, através do conhecimento. A manifestação do ente como ente supõe que
o sujeito abra, diante de si, um horizonte no qual o ente possa aparecer. Destarte, a
finitude do sujeito humano é o fundamento da necessidade da transcendência prévia
para o ser, como condição de possibilidade do conhecimento do ente enquanto tal.
(1970, p. 211, 212)
91
Enquanto projeto que se propõe uma ontologia fundamental, com o recurso
metodológico de uma fenomenologia hermenêutica, o que se pretende, portanto, são as bases
para as teorizações ulteriores, de modo que gravite ao redor da condição transcendental do
Dasein, o fundamento das demais ontologias. A compreensão enquanto um modo de ser do
Dasein que, lida com Ser ao se compreender, projetando-se funda o estrato inteligível do ente
que se abre, o que pressupõe uma abertura, certa claridade. Segundo Heidegger:
Um tal aparecer acontece necessariamente em uma certa claridade. Somente através
dela pode mostrar-se aquilo que aparece, isto é, brilha. A claridade, por sua vez,
porém, repousa numa dimensão de abertura e de liberdade que aqui e acolá, de vez
em quando, pode clarear-se. A claridade acontece no aberto e aí luta com a sombra.
Em toda parte, onde um ente se presenta em face de um outro que se presenta ou
apenas se demora ao seu encontro; mas também ali, onde, como em Hegel, um ente
se reflete no outro especulativamente, ali também já impera abertura, já está em
jogo o livre espaço. Somente esta abertura garante também à marcha do pensamento
especulativo sua passagem através daquilo que ela pensa. (1989, p. 76, 77)
A importância do debate desta problemática se dá primordialmente na questão da
fundamentação na filosofia. Não se trata de uma mera mudança de abordagem que toma seu
lugar. Há uma reviravolta paradigmática que não apenas transforma o ponto de
fundamentação em filosofia, mas, refere-se ao conhecimento em geral. É a própria filosofia
que está em jogo. Qual é o seu lugar, diante da supressão da teoria do conhecimento e da
expansão do caráter de cientificidade estendida as mais diversas áreas do saber? A filosofia
deve tornar-se ciência? Ser o limite da ciência? Qual o lugar do homem, da subjetividade na
perda de seu locus de fundamentação e centralidade do saber? Ora, percebe-se, pois, que na
esteira do propósito heideggeriano de viés hermenêutico, o problema da fundação do
conhecimento, gira ao redor da temporalidade ekstática do Dasein, que se projeta ante os
entes intramundanos, com a disponibilidade fáctica, de modo que tão somente é o ente
privilegiado apto a desvelar os demais entes. Daí, porque, afirma Joseph Rouse: “while
Heidegger insists that scientific research as a way in which human beings exist or behave
must be considered more fundamental than science as a logical structure of statements or
propositions.”108
(1981, p. 272). Na pergunta sorrateira: como se dá o conhecimento
científico? se esconde algo que sub-repticiamente também é uma mudança paradigmática,
que sob a tutela heideggeriana, também se faz uma crítica calorosa contra a metafísica, aliás,
sobre seu método, historicamente falando, o usufruto da entificação do Ser:
108 “enquanto Heidegger toma a pesquisa científica como um modo como os seres humanos existem ou se
comportam, isso deve ser considerado mais fundamental do que a ciência como uma estrutura lógica de
declarações ou proposições.”
92
Face ao questionamento histórico de um conceito cientificamente reduzido de
racionalidade metódica, parecemos estar próximos de colocar em questão o
paradigma do método científico em geral, e de, em vez dele, ter em vista – como
caminho determinativo para uma transformação da filosofia – uma forma
fenomenológica de pensamento que se aproveite das discrepâncias entre o conceito
moderno de método e a experiência pré-científica de vida [Leben] e de mundo
[Welt] (ou seja, a experiência que ainda não chega a ser metódico-abstrativa). Ao
lado da fenomenologia do „mundo da vida‟ [Lebenswelt], que tem como ponto de
partida a fase tardia de Husserl, pode-se contar aqui sobretudo com a
„fenomenologia hermenêutica‟ ... Em primeiro lugar, a „fenomenologia
hermenêutica‟ pode requerer para si a vantagem de estabelecer um liame entre duas
emancipações: de um lado, a emancipação da experiência da metafísica dogmática e
da filosofia das visões de mundo e, de outro, a emancipação das restrições
científicas. Na filosofia tardia de Heidegger, a reconstrução e destruição crítica da
metafísica ocidental parece mesmo estabelecer um contínuo distanciamento crítico
da ciência e da técnica modernas, nas quais o ser humano „dispõe‟ [stellt] do mundo
e, retroativamente, a partir desse próprio mundo, de si mesmo. Agora algumas
coisas parecem ficar mais claras quanto ao método da disponibilização matemática
e experimental do ente, tão progressivo na confrontação do ser humano com o
mundo da natureza: é possível compreender melhor porque tal método, nessa
circunstância, e ao ser reaplicado à esfera social, pode tornar-se um instrumento de
dominação cuja modulação funcional é praticamente imperscrutável ou impassível
de sofrer crítica. (APEL: 2005, p. 26, 27)
A grande orientação deste trabalho, seguindo aquilo que se firmou logo na
Introdução, que se estabeleceria uma espécie de leitura hermenêutica do fenômeno
epistemológico, recai, com efeito, sobre a mudança paradigmática da questão do
conhecimento científico enquanto tal, desde há muito sustentado sobre a tutela de principados
metafísicos, ou seja, estribada no horizonte supratemporal dos fundamentos. Com Heidegger,
como se pôde ver até aqui, longe de se buscar o Ser nos esquemas de uma inteligibilidade
altaneira, Absoluta, a própria busca se vê delimita no lusco-fusco da facticidade mortal do
Dasein, portanto, a própria sanha de conhecer, típica do Dasein, desde já, é turvada pelo
signo da impossibilidade, da finitude de sua condição. Todo o propósito de uma
cientificidade absoluta, dotada de toda suficiência do conhecimento, porque detentora de um
fundamento imprincipiado, desmorona em face da temporalidade ekstática do Dasein, que
funda em face de sua condição finita. Segundo Oskar Becker:
De fato, até mesmo uma capacidade cognoscitiva idealizada, possuída por algum
„demon‟ como „‟conceito limite da teoria do conhecimento‟ não estaria em
condições de decidir, por exemplo, se todos os números pares podem ser
representados como a soma de dois números primos diversos (como pensava
Goldbach), ou se existem exceções a esta regra. Mesmo um matemático que vivesse
indefinidamente não poderia decidir tais problemas não resolvidos da teoria dos
números, percorrendo sucessivamente „toda‟ a série dos números; nunca chegaria ao
fim. (...) Além disto, o matemático humano se distingue dos matemáticos
„demoníacos‟ em outro ponto. Existem, por exemplo, muitos problemas na física
que „em si‟ poderiam ser resolvidos se fosse possível executar a imensa soma de
trabalho que requer o cálculo dos mesmos. Até mesmo na matemática pura este
aspecto desempenha seu papel. As modernas máquinas calculadoras podem ajudar
em algumas situações; mas sempre permanece o fato básico de que a capacidade
93
humana é, no terreno matemático, não só finita, mas também „pequena‟, isto é, está
contida dentro de determinados limites. Também este ponto desempenha um papel
na técnica do pensamento matemático: os métodos de solução devem ser escolhidos
de tal maneira que o trabalho de calcular fique dentro dos „pequenos‟ limites
humanos. Como resultado de nossas considerações podemos dizer em resumo: A
finitude do homem está estreitamente ligada à estrutura da matemática. Ela é a
condição da possibilidade de toda matemática. Isto significa que a matemática não
é, menos fundamentalmente que as outras ciências, uma coisa do homem e somente
do homem (se abstrairmos dos hipotéticos habitantes, semelhantes ao homem, dos
outros astros). Nem Deus nem os animais, podem fazer matemática; isto é uma
possibilidade do ser intermediária, o homem. (1965, p. 176, 177, 178)
Portanto, o conhecimento ôntico do mundo, é o resultado de um olhar desvelador
que um dia deixará inacabado suas considerações. Da experiência aclarada de desocultar, o
Dasein conhece, afere, atribui sentido ao mundo, ensimesmado, arbitrariamente sem nexo
assegurado, conhecimento que se faculta, não por meio de um fundamento soberano,
atemporal, mas, sim desta disponibilidade fáctica, duplamente trágica e iluminada. O Dasein
só conhece porque se temporaliza.
Originariamente envolvida com esta condição pré-objetiva, ante-predicativa, o
Dasein desde sempre se move numa certa compreensão de ser, aliás, move-se
compreensivamente, atribuindo aos entes as relativas características, caracteres, arrancando-os
da nulidade. Em torno dessa significação intencional, que se dá nos limites do e no mundo, o
conhecimento ôntico ganha sua dimensão conceitual, daí porque, se torna passível de
modificações no decurso do tempo. Todo e qualquer conhecimento, aferido de um ente
qualquer, de uma determinada ontologia, é sempre em aberto, não havendo, pois, a conclusão
definitiva das questões respectivas a estes entes analiticamente esquematizados. Segundo
Dulce Mara Critelli:
O aparecer dos entes em seu ser é um movimento fenomênico, que consiste nos
entes mostrarem-se e ocultarem-se para um olhar, segundo aquilo que eles são e
segundo aquilo que eles não são. Fenômeno é o ente mesmo trazendo-se à luz de
uma iluminação. Esta luz, ou iluminação em que, exclusivamente, o ente pode se
expor é constituída simultaneamente pelo ente mesmo e pelo olhar que se institui
como sua clareira (ou seu lugar de aparecimento). O aparecer dos entes depende
dessa condição ontológica dos homens perceberem o ser e corresponderem a ele. É
de fundamental importância que não se perca de vista que o olhar humano, elemento
estrutural do aparecer fenomênico do ente, é ele mesmo originariamente constituído
por condições de ser (ontológicas) nas quais a vida é dada ao homem. (2006, p. 73,
75).
Pode parecer um truísmo, mas é notório que para se efetivar o conhecimento de
um ente qualquer, é preciso a antecedência do ente mesmo, ou seja, é preciso que o mesmo se
dê, manifeste suas especificidades, não havendo consequentemente, conhecimento sem
manifestação, desvelamento:
94
Para que fossem expostos à luz do mundo e aí se desenvolvessem, foi preciso que
alguém se desse conta, por exemplo, da energia contida na força da água; da madeira
contida no tronco das árvores; do alimento contido nas frutas; do amor contido no
beijo; da generosidade contida num gesto; da justiça contida numa lei, ou num
sistema político etc. Enquanto não fossem „vistos‟ como tais, o tronco da árvore
permaneceria apenas sendo um tronco de árvore, e a queda d‟água, apenas uma
queda d‟água. Mas, depois que a madeira e a energia foram desveladas, podemos
falar que elas estão ali na árvore e na água, mostrando-se a princípio no modo de um
velamento. Tudo o que há, enquanto não é desvelado, pertence ao reino do nada, do
oculto. Esse reino do nada, ou do oculto, é apenas o modo ou a condição de ser de
tudo o que há, mas ainda recebeu nenhuma iluminação, não se trouxe à luz. O que é
trazido à luz não tem, por determinação, de permanecer desvelado para sempre, nem
de uma mesma maneira. (2006, p. 76)
Investida que é pela dação originária dos entes, o Dasein conhece porque conhecer
é senão sua condição de possibilidade, não se efetivando no mundo sem essa disponibilidade
ontológica. No aberto, na clareira de sua condição, o mundo revela-se intencionalmente
significado, como acima se considerou, endossando-se o caráter transcendental do Dasein, no
entanto, essa mesma abertura tem em sua contra-face, o velamento, obnubilando suas
possibilidades, isso quer dizer, portanto, que conhecer é compartimentar, parcializar os dados
arbitrariamente lançados no mundo, em uma unidade significativa:
Uma ameixeira, por exemplo, jamais deixa de ser uma ameixeira (sua identidade,
seu ser do ponto de vista da metafísica), mas o que e como ela é (do ponto de vista
fenomenológico) estão dependendo do jogo do mostrar-se para um olhar-no-mundo.
Um homem cansado descobre a ameixeira na sua possibilidade de lugar de
descanso; o madeireiro vê nela a madeira, o material para seu trabalho; uma doceira
vê na ameixeira uma fonte quiçá inesgotável para seus doces e alimentação. Ora, a
mesma ameixeira para cada um destes homens é uma coisa diferente. Se se quiser
fazer recair seu ser no seu conceito essencial, dizendo que ela é uma árvore, da
família das..., que dá um fruto „x‟ etc., estar-se-á lidando apenas com seu conceito
mais formal, universal e genérico (a de um sujeito/substantivo com seus predicados).
Mas, se a ameixeira nos mostrar seu ser no horizonte existencial, tendo o ser-no-
mundo como seu lugar originário de manifestação, veremos que o ser, seu ser, varia
incessantemente. A coisa mostra-se no horizonte existencial: só ali pode ser o que
ela é. O que as coisas são não está nelas mesmas, em si mesmas, mas nesta relação
inextirpável entre um olhar e as coisas. (2006, p. 61, 62)
Conhecer, portanto, é temporariamente aferição de sentido, significando, pois, o
instante localizado em que o ente se desoculta ao Dasein. Diante tudo isto, como se pôde
observar, há decerto na dação intramundana dos entes, na luminosidade de sua manifestação,
a face retroativa do velamento, de modo que o conhecimento fica confinado nesse intervalo
entre Luz e Sombra, Abertura e Ocultamento.
Heidegger ambiciona, com efeito, uma nova ontologia, desvencilhando-se, pois,
do legado histórico de entificação do Ser, para tal, premente se faria outra tarefa para a
filosofia, quiçá, mais ambiciosa.
95
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O programa epistemológico da tradição metafísica é de cunho fundacionalista,
muito bem expresso no argumento de Rudolf Carnap: “reduzir todo conhecimento à base da
certeza109
.” Por conseguinte, se pode afirmar que, a postura normativa do conhecimento
científico daria luz à estrutura conceitual da natureza, de modo que fica a cargo da ciência,
legitimar os fenômenos naturais. De modo lacônico se afirma que, tal propósito, sendo
essencialista, pretende revelar o que se esconde em níveis manipuláveis, daí porque, ciência
está diretamente relacionada com a visualidade, ou seja, fazer ciência é corrigir os dados
objetuais ao talante do sujeito cognoscente110
.
Mas uma questão se antecipa: o que é ciência? Em uma aula de 1954, publicada
anos mais tarde com o título: Ciência e Reflexão, Heidegger é pontual ao nos assegurar:
“Ciência é a teoria do Real.111
” Nesse sentido, se vê que lhe é própria a estrutura imagética da
representação. Ora, endossando-se a tese de Max Planck, para quem, Real é apenas o que
pode ser mensurado, veremos que o caráter operacional da ciência é da ordem mesma do
princípio da Razão suficiente, pautada que é por uma compreensão metafísica. Logo,
asseveramos: ciência é a ancila da metafísica. Mas de que modo a metafísica mensura o
mundo natural?
A compreensão metafísica concebe a realidade como passível de entendimento,
enfeixando assim, qualquer fenômeno em um raio de causalidade, afinal tudo passa a ser
deduzido de uma unidade inteligível desdobrável na multiplicidade. Ao nos atestar que ainda
que, múltipla a realidade radica-se em um fundamento absoluto, a metafísica dispõe ao real, o
signo da racionalidade, de modo que tal discurso encerra o espanto de Hölderlin: “Como o
Uno em si mesmo se diferencia?” (Hölderlin apud Heidegger, 1989) De todo modo, é como
se pensássemos o turbilhão de coisas ao redor, desdobrável em uma unidade imprincipiada,
que em seu Ser sustém a diversidade de entes. Se tudo é Um, como nos faz crer a metafísica,
logo toda a realidade circunscreve-se em sua intermitência e as coisas, ou entes participam de
sua natureza. Ser e ente, o uno e o múltiplo, prolongam-se indiferenciadamente a uma quase
identidade. Destarte, se afirma que, a metafísica reduz o Ser ao ente, como se partícipe, fosse
109
Carnap, R., 1963.
110
A compreensão da visualidade em conjunção com a ciência é discutida mais especificamente por Babette
Babich em seu artigo: The problem of science in Nietzsche and Heidegger, bem como no § 69 B de Ser e Tempo.
111
Heidegger apud Babich in „The problem of science in Nietzsche and Heidegger.‟ (2007)
96
passível de predicação. Se tudo existe por absoluta necessidade, como nos faz crer o princípio
de Razão suficiente, logo toda a realidade é concebível nos termos do fundamento inconcusso
do Ser que, se manifesta na variedade de entes, com efeito, o Ser é tudo o que se mostra,
presença constante (Anwesenheit).
Desse modo, a concepção metafísica nos assegura que, ainda que em movimento
no múltiplo, o Ser presenta-se como essência, substância, idéia, conceito. De somenos
importância, posto que ardilosa, a aparência encobre o ente, turvando a sua manifestação,
entretanto, por detrás de suas insinuações, o Ser encontra-se em essência, ensimesmado e
esférico112
. De modo esquemático, o Ser para a metafísica é concebido como aquilo que
subjaz genericamente, ente puramente subsistente, apreensível que é por meio da via
ascescional da dialética como nos faz crer Platão, ou por meio da via do juízo ao modo de
Aristóteles. Se no Ocidente nascemos platônicos ou aristotélicos como nos diria Coleridge 113
,
é razoável ver na Metafísica de Aristóteles todo o testamento de um discurso essencialista,
com efeito, é nesse constructo que se encontra em estado germinal a onto-teologia e sua sanha
por tentar empreender a reconcialição entre história/natureza, homem/Deus, em esforço de
identidade absoluta. Metafísica, portanto, se constitui como totalidade, forjando assim um
campo homogêneo sob o qual, em sua extensão tudo pode ser racionalizado:
Deus/Alma/Mundo.
Enquanto ciência dos primeiros princípios e das últimas causas, que busca estudar
o ente enquanto ente, a metafísica se põe a elucidar, não atributos particulares, mas as causas
superiores de tudo o que se mostra restando por seu turno, a velha inquietação de Aristóteles:
“Qual a determinação simples e unitária do Ser que prevalece dentre as múltiplas
significações do ente?” Resposta: a ousia, ou seja, a susbtância, o Ser primeiro. Ora, ao
esboçar o Ser como substância, Aristóteles dispõe à metafísica o caráter da entificação, afinal
objetifica o Ser a uma quase indiferenciação para com os entes. Dito de outro modo há a partir
de então a indiferença para com a máxima universalidade equiparada ao objeto maximamente
universal, ou seja, Ser confunde-se com ente em uma ordem de acirrada racionalidade. Como
não visualiza a realidade no plano da diferença ontológica entre Ser e ente, para a metafísica
não há encobrimento, ocultação, tudo é tético e continuamente catafático, haja vista, o Deus
da teodicéia medieval. Se o real é um continuum, subsidiado por uma causa primeira
fundamental; Deus, o cogito, a Vontade, etc, não por acaso tudo é racional, não há, pois, o 112
“O Ser é semelhante à massade uma esfera bem arredondada, cuja força é constante em qualquer direção a
partir do centro.” (Parmênides de Eléia, Sobre a Natureza.)
113
(Coleridge apud Borges, 2005, p. 47)
97
arbítrio da contingência, o que dota a ciência enquanto condição de possibilidade da
compreensão da realidade, na ordem das coisas existentes ou não. Para Heidegger, eis o pano
de fundo da cientificidade, radicada que é em uma metafísica essencialista. A defesa galileana
que compreende a natureza inscrita em caracteres matemáticos, figuras geométricas, ou como
Pascal, para quem a mesma é uma esfera cujo centro está em toda parte e a circunferência em
nenhuma 114
, reforça o caráter objetificador da metafísica, de modo que para Heidegger:
“Ciência é a nova religião.” (Heidegger apud Babich, 2007, p.212). Realidade se torna, pois,
o limite dos dados empíricos nos confins da consciência e ciência, o bastidor de legitimação
dos fenômenos naturais.
Como repensar o papel da ciência em detrimento de uma metafísica altaneira, em
sobrevôo à realidade? Para Heidegger isto se enceta por meio de uma ontologia fundamental,
assentada que é no método fenomenológico-hermenêutico. Ao contrário da objetivação,
representada pelos níveis de compreensão das respectivas ontologias regionais, e sua busca
pela estrutura categorial do objeto, faz-se necessário sondar a especificidade daquele que
pesquisa, a saber, nós seres humanos, mutatis mutandis, Dasein. Com um constitutivo
privilégio ontológico, o Dasein apresenta-se como compreensão do Ser, e, por conseguinte,
do ente enquanto tal, que oscila na extremidade: manifestação/encobrimento, tendo o tempo
como horizonte originário. Heráclito há muito, em seu fragmento 123 anteciparia: “A
natureza ama esconder-se”, à maneira do desassossego de Goethe em face do crepúsculo:
“tudo o que está próximo se distancia.”.
Ao empreender metodologicamente um encurtamento hermenêutico que suspende
os fundamentos últimos, esvaziando-os (§ 43 e § 44 de Ser e Tempo), Heidegger libera a
filosofia de encargos metafísicos à sua própria sorte, implicando assim, a condição de
possibilidade da compreensão à facticidade do Dasein. Enquanto abertura, o Dasein transita
primeiramente no mundo em um âmbito originário de manualidade, no entrechoque com os
entes intramundanos, o que nos põe a endossar a idéia de que toda e qualquer compreensão
funda-se em um plano radicalmente ante-judicativo ou pré-reflexivo. No mundo, no instante
mesmo de seu projetar-se, o Dasein já opera pragmaticamente por um viés existencial,
fáctico, o que nos leva à defesa de que há uma antecedência da manualidade primordial à
episteme propriamente. O modo originário de perceber as coisas – a circunvisão (§ 69 de Ser e
Tempo), por meio de seu empenho na ocupação, nos faz crer no caráter contextual ou
114
(Pascal apud Borges, 2005, p.17)
98
holístico115
em que o ente se abre, porquanto, como nos diz Heidegger: “Todo „trabalhar‟ e
pôr mãos à obra não significa vir de um nada e deparar-se com instrumento isolado,
preliminarmente dado. Ao contrário significa provir de um mundo de obras já sempre aberto,
ao se lançar mão de um instrumento.” (§ 69 A de Ser e Tempo). Dotado desse caráter
ekstático, sempre em fuga de si mesmo no mundo, o Dasein só efetiva sua condição
desencobridora, empreendendo a postura científica, no instante em que a ocupação com o
mundo, guiada pela circunvisão, foca categoricamente um ente específico, nesse sentido,
ciência se torna a modificação focal em face do ente disponível (Zuhandenheit), reconsiderado
em seu nexo instrumental. Ciência é correção do que se vê, entretanto, longe de compreendê-
la como adequatio do oculto a revelar-se em fórmulas dedutíveis, um mundo eminentemente
referencial já se antecipa, o que nos faz endossar a crítica de N.R.Hanson às pretensões
últimas do positivismo científico e sua controversa neutralidade116
. Para uma fenomenologia-
hermenêutica, a ênfase recai sobre o atestado temporal do Dasein, circunscrito que é a uma
teia prévia de visadas históricas, de modo que para a ciência restam os inauditos das soluções
e a temporalidade das questões. De um modo conclusivo assim elucida Reis, sobre a
especificidade do projeto heideggeriano de extração epistemológica:
De um ponto de vista construtivo, porém, a ontologia fundamental procura
estabelecer uma tese sobre as condições gerais da compreensão de ser, ou seja, que a
projeção de ser presente na intencionalidade é regulada e construída por um
elemento temporal. Trata-se da tese de que o sentido do ser é o tempo, cuja acepção
hermenêutica e transcendental significa que a compreensão de ser é sempre regulada
pela temporalidade, fazendo com que os diferentes sentidos de ser sejam todos
temporalmente estruturados. (2006, p. 483)
Enquanto formação histórica, proponente de certos condicionantes à postura
científica, a ontologia fundamental heideggeriana, assentada metodologicamente na
fenomenologia-hermenêutica e sua respectiva defesa do caráter barroco do mundo, entre
revelação e ocultamento (diferença ontológica), se põe a contrariar qualquer arroubo
metafísico na compreensão do real, tão bem expresso na célebre frase de um matemático da
115
Dreyfus, Hubert. Holism and hermeneutics, Rev. Metaph. 34 (1980), p. 3-24.
116
A tese theory-ladenness, fora desenvolvida por Norwood Russell Hanson, atestando que, há uma lacuna entre
termos teóreticos e fatos observados, o que decerto ocasionaria uma indeterminabilidade entre ambas as
instâncias. De longe a theory ladenness apresenta-se como uma refutação do Posivitimo Lógico, em uma
tentativa de: “reportar observações numa linguagem teoreticamente neutra.” (HANSON. 1958, p.
171) Dito de outro modo: não existem fatos, muito menos teorias neutras. A theory-ladenness de N.R.Hanson é
minunciosamente analisada por Patrick. A. Heelan no artigo: The scope of hermeneutics in natural science,
1998.
99
escola francesa neoformalista Bourbaki: “Deus existe porque a matemática é consistente. 117
”
Em se tratando de metáforas, lembro-me de Leopold Kronecker: “Deus criou os números
naturais; o resto é obra do homem.118
” Ou seja, cabe a nós repensarmos ontologicamente a
ciência em uma era pós-metafísica, levando em consideração a finitude humana em sua
originária condição.
117
BOYER, 2001, p25.
118
Ibidem, p. 37.
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