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PSICOTERAPIA EXISTENCIAL FUNDAMENTOS E PRÁTICA WALMIR MONTEIRO PRIMEIRA PARTE ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA SARTRIANA SEGUNDA PARTE A PRÁTICA DA CLÍNICA EXISTENCIAL Aos meus filhos William e Desirée São Paulo, 2009 - Clube de Autores

PSICOTERAPIA EXISTENCIAL (FP)

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PSICOTERAPIA EXISTENCIAL FUNDAMENTOS E PRÁTICA

WALMIR MONTEIRO

PRIMEIRA PARTE

ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA SARTRIANA

SEGUNDA PARTE

A PRÁTICA DA CLÍNICA EXISTENCIAL

Aos meus filhos William e Desirée

São Paulo, 2009 - Clube de Autores

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“A idéia que jamais deixei de desenvolver é que ao fim das

contas cada um é sempre responsável por aquilo que foi feito de si;

mesmo se ele não puder fazer mais que assumir essa

responsabilidade. Acho que um homem pode sempre fazer alguma

coisa daquilo que fizeram dele. É a definição que eu daria, hoje em

dia, de liberdade, este pequeno movimento que faz de um ser social

totalmente condicionado, uma pessoa que não reproduz mais a

totalidade daquilo que recebeu em seu condicionamento; o que faz de

Genet um poeta, por exemplo, enquanto ele tinha sido rigorosamente

condicionado para ser um ladrão?” (Sartre – “O Existencialismo é um

Humanismo”)

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ÍNDICE PRIMEIRA PARTE

INTRODUÇÃO, 4

I – INTENCIONALIDADE, 11

II – FENOMENOLOGIA E TEMPORALIDADE, 16

III - EGO E CONSCIÊNCIA, 33

IV - A CONSTITUIÇÃO DO EGO, 39

V- EM-SI E PARA-SI, 50

VI- SER-PARA-OUTRO, 55

VII - SER-NO-MUNDO, 60

VIII - O EXISTENCIALISMO, 64

IX - A SOCIOFENOMENOLOGIA DE MAFFESOLI, 77

SEGUNDA PARTE

X - PSICOTERAPIA, 90

XI - O PROJETO EXISTENCIAL, 110

XII – PROPEDÊUTICA PSICOLÓGICA, 117

XIII - DINÂMICA DA TERAPIA EXISTENCIAL, 129

XIV - TRABALHANDO COM SONHOS, 144

XV - A DROGADICÇÃO NA VISÃO EXISTENCIAL, 149

XVI - O ATENDIMENTO INFANTIL, 158

CASOS CLINICOS, 180

CONCLUSÃO

BIBLIOGRAFIA

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INTRODUÇÃO Para Sartre é o indivíduo que, pessoalmente, se constitui. Não resultamos de determinações universais ou familiares como sempre acreditamos, nem mesmo somos continuadores de qualquer história que nos preceda. Cada um de nós constrói sua própria existência. Este é o cerne do existencialismo e isto nos concede maior liberdade para a construção da nossa singularidade. O ser e o nada, as coisas e a consciência, o em-si e o para-si, são áreas ontológicas nas quais Sartre estabelece que a realidade se estrutura como resultante da relação dialética entre a subjetividade e a objetividade. E diferencia consciência de conhecimento quando diz que é a consciência que permite que se estabeleçam relações de conhecimento, fora da idéia de saber apriorístico, e como resultante de uma produção cotidiana do próprio homem. Dessa forma a ontologia sartriana rompe com as predominâncias idealistas e racionalistas da filosofia, quando repõe a epistemologia em um estágio que reconhece o homem como sujeito do conhecimento. Ao buscarmos no homem uma identidade, encontramos na verdade um não-ser, e é dessa nadificação que surge a liberdade. Mas liberdade e angústia aparecem ao mesmo tempo nessa ausência de conteúdo da consciência, sendo, então, a existência humana “consciência de angústia”. A angústia da sua própria liberdade e missão de ser alguém. Se o homem é liberdade, e se essência é aquilo que se é, poderíamos dizer que identificamos a essência do homem na sua liberdade. Contudo, mais claramente, compreendemos que a liberdade humana é anterior a qualquer essência, porquanto a existência humana é uma existência de liberdade, o ser da “realidade humana”.

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Quando Sartre diz que somos liberdade, isto quer dizer que a liberdade não é uma coisa que a gente tem ou conquista ou produz, mas uma coisa que a gente é. Por outro lado, todavia, é igualmente verdade que em certo sentido temos conquistado (ou perdido) a liberdade de demonstrarmos, de afirmarmos que somos liberdade. Porque, qual seria o contrário da liberdade? Se compreendermos, dentro do pensamento existencial, que o homem é liberdade e não pode deixar de ser, então não existirá o contrário da liberdade, já que não se pode tratar do que não se pode achar, do que não há. Sim, não há contrário de liberdade, porque a ausência do fundamento liberdade tornaria o homem uma impossibilidade. Não há o que seja o contrário de liberdade, mas há o que é contrário à liberdade. Tratemos, então, da liberdade em outro sentido: Se sou obrigado a escolher entre, por exemplo, subordinar-me a um ditador ou ser condenado à morte, eis o contrário da liberdade: essa força que me faz escolher entre coisas que não desejo: a subordinação ou a morte. Aqui, o que é contrário à liberdade é a escravização, a subjugação por meio da força, da ameaça fatal. Mas posso ser uma liberdade exercida em todas as ações em que não há o que chamo de contingência fatal, que é a escravização tal como encontramos em alguns povos e épocas. Faz parte da condição humana a liberdade de fazermos o que quisermos com a nossa vida, inclusive com a nossa liberdade. Se sou explorado e não reajo, exerço a liberdade de permitir-me ser explorado sem reagir. Mas se não reajo e escravizo-me à exploração, deixo de manifestar que sou livre inclusive nesse sentido, o sentido de não admitir nenhuma forma de escravização, tomando aqui a escravização como o contrário da liberdade. Ao concluirmos que nossas escolhas nos constituem, somos tentados a perguntar: e o que constitui nossas escolhas?

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Nossa liberdade. Esta é a resposta automática já que pensamos existencialmente. Todavia, convidados a problematizar, coloquemos entre parênteses essa resposta óbvia para prosseguirmos indagando se nossas escolhas em geral são feitas baseadas em nossos desejos ou em nossas possibilidades. Esta questão não nos afasta do raciocínio existencial, porquanto nossa Liberdade se manifesta no contorno das nossas possibilidades “que não são poucas”, acrescentaria Sartre, que acentua que todo homem é livre para aceitar ou rejeitar cada uma de suas limitações. Se por um lado é verdade que aceitamos muitas coisas por não termos nada melhor a fazer, também é verdade que não somos obrigados a aceitá-las e podemos definir que o melhor a fazer é rejeitar. Se rejeito, escolho, e assim exerço a liberdade de forma plena. O fato é que há plenitude em minha liberdade, para dizer sim ou não, a qualquer coisa, a qualquer um, a qualquer momento. É fato também que certas contingências acompanham muitas das nossas opções. Contingências estas que sempre surgem mescladas às oportunidades. Vale dizer que há oportunidades que simplesmente surgem, outras nós criamos, buscamos, procuramos. E o que nos faz criar, buscar, procurar? A Liberdade. Em relação às contingências que contornam a nossa liberdade, e portanto também contornam as nossas escolhas precisamos ser cautelosos, porque há uma necessária análise das forças dessas contingências para entendermos o tanto de vontade pessoal que há na escolha e o tanto de contingência, e como resultado dessa equação, por extensão, o tanto de má-fé. Cabe lembrar que Sartre em sua primeira fase filosófica olhava a liberdade como algo absoluto, mas depois começou a admitir as contingências. A proeminência dessa liberdade absoluta e de sua fatalidade ele colocou de modo bem enfático em “A Náusea”, onde Roquentin não pôde fazer outra coisa a não ser reconhecer a contingência absoluta das coisas (do em-si) em contraste com sua

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liberdade. As coisas têm o que Sartre chama de “facticidade” e disto conclui que sua existência é, em certo sentido, absurda. O absurdo do mundo é simplesmente uma função de sua contingência bruta e isto produz a náusea. Sartre estava na guerra e escreveu para Simone de Beauvoir: “Esta guerra é uma escolha minha, porque eu poderia abandonar a França ou até me matar, mas escolhi estar aqui”. Um filho de lavrador não é obrigado a seguir a profissão do pai, caso queira coisa diferente. A contingência que acompanha esta realidade será a possível dificuldade de fazer essa mudança, mas ele (re)criará sua realidade, porque sua vida não terá que ser necessariamente a mesma vivida por seu pai. Na fenomenologia-existencial não olhamos a liberdade como uma coisa boa, como uma benesse que está aí para ser usada, consumida e comemorada como algo maravilhosamente bom. Não. A liberdade envolve responsabilidade, e isto faz com que ela quase sempre nos traga mais angústias do que prazer. E se as minhas escolhas não são justificadas pelo meu passado, torno-me totalmente solitário e único responsável por elas, o que também me angustia. Sei que jamais me livrarei dessa angústia, posto que ela é fundamento do meu ser. Posso ter amigos, família, religião, um ótimo terapeuta, recursos para fazer incríveis viagens e maravilhosas compras, e tudo isso pode atenuar minha angústia. Mas jamais eliminá-la. Sempre estaremos com uma sensação de que algo anda errado, de que algo poderia (e deveria) ser diferente, e que em algum momento temos cometido erros fatais em relação a determinadas escolhas. E tal sensação não significa necessariamente que estamos perdidos na condução da nossa vida, pelo contrário, significa que estamos de posse dessa condução em liberdade. Em “O ser e o nada” a angústia é explicada como a tomada de consciência da liberdade, ou o modo de ser da liberdade como

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consciência de ser. Porque “é na angústia que a liberdade está em seu ser, colocando-se a si mesma em questão”1. Diante de tal sentimento ela aparece com o mesmo sentido retratado por Kierkegaard, que consiste em diferenciá-la do medo, visto que este, geralmente, surge de um fator externo, enquanto que aquela corresponde a algo inerente ao ser humano. Na segunda parte desta obra apresentamos a realidade da terapia de um modo geral, independente de linhas ou abordagens, focando naquilo que é comum e necessário a qualquer trabalho psicoterapêutico. Um lado trata especificamente da psicoterapia existencial, aprofundando os estudos sobre os fundamentos fenomenológicos, o existencialismo, o projeto existencial, a dinâmica da clínica existencial, o trabalho com os sonhos e a visão fenomenologico-existencial da drogadicção; além de um capítulo sobre o atendimento infantil. O outro lado trata da psicoterapia de um modo geral, apresentando seus fundamentos, a relação terapêutica, a propedêutica do atendimento psicológico e diversos casos clínicos para discussão. A evolução da psicoterapia fenomenologico-existencial (ou: análise existencial) depende muito de uma compreensão mais clara do que ela efetivamente é.

Alberti e Figueiredo erram quando reafirmando as diferenças que acham entre psicanálise e psicoterapia, tratam toda psicoterapia como comportamental, demonstrando total desconhecimento da prática existencial; e ainda afirmam que a psicoterapia (que psicoterapia?) tem em sua origem a proposta de confortar os homens de sua angústia. Todavia, o tema “angústia” é tratado pela fenomenologia-existencial como o cerne da análise da existência compreendendo-a como um necessário componente da existência humana que não é alvo de tratamento e sim de aproveitamento e 1 P. 72

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contemplação na forma como surge, impondo-se como uma oportunidade do ser mergulhar compreensivamente nos sentidos de suas angústias que não são vistas como sintomas e sim como a própria oportunidade de autoconhecimento e apropriação da sua visão de mundo, do seu modo de ser.

Também a psicoterapia existencial não se dispõe a tratar ninguém nos termos da psicoterapia comportamental e muito menos afirmar-se como “promessa de apaziguar o mal-estar inerente ao sujeito através da eliminação do sintoma”[1].

Parafraseando Alberti e Figueiredo ao se referirem aos objetivos da psicanálise, também afirmamos que a prática existencial igualmente não visa eliminar a angústia do sujeito, pois é a partir dela que o ser tem a possibilidade de atribuir um sentido à sua vida. A análise existencial, da mesma forma, não promete dissipar o mal-estar, não promete nenhum bem e sim um meio diferenciado de posicionamento do sujeito frente ao seu (dito) mal-estar.

Podemos pensar no existencialismo como uma corrente filosófica que apresenta fundamentos para entender o homem em sua estrutura, sua angústia e o seu modo de ser e de se relacionar com o mundo. É, portanto, a teoria que embasa a prática nessa abordagem. Fenomenologia por sua vez, é o caminho que seguimos para encarar as sessões de terapia e vivenciar o nosso encontro com o cliente. É, portanto, a Fenomenologia, o nosso método.

A proposta existencialista é a de conhecer as fundamentações do homem, analisando as questões que ele coloca em pauta e que revelam a estrutura desse ser-no-mundo. Existir é simplesmente você ser afetado por aquilo que vem ao seu encontro, e o homem só existe enquanto “ser abertura” e “ser-com”, aquele que se relaciona e é afetado pelo mundo, pelos outros homens, seres e coisas. Assim, vemos o ser humano a partir de suas relações e da maneira como ele é afetado por elas, como lida com os fenômenos.

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O psicólogo existencial não procura algo por trás do que se diz, mas entende o próprio dizer e as pequenas manifestações como sendo em si mesmas reveladoras do sujeito, buscando analisar o modo do seu cliente se relacionar com o mundo e de estabelecer vínculos. Coisas que revelam a sua estrutura. Isto possibilita tanto o esclarecimento de sua essência, como o processo de constituição dessa estrutura de ser, sua identidade.

No momento do encontro com o cliente, não há julgamento, nem valores, uma vez que a teoria entrará num segundo momento (epoché). Cabe ao terapeuta estar presente e disponível a esse encontro, e cabe ao cliente apresentar o que há de importante, evidenciando o que deve ser trabalhado. O papel do analista existencial é seguir esse caminho, iluminando-o e revelando-o.

Nós, psicólogos existenciais nos esforçamos em encontrar o outro onde esse outro está, buscando compreender o que ele entende da forma como entende, para que ele se reconheça e assuma as responsabilidades de suas escolhas e do que continua escolhendo como sua forma de ser, porque o homem é um ser livre, capacitado a escolhas e ao delineamento de sua própria vida. O homem, sim, é livre para escolher, mas isto não significa que suas possibilidades são ilimitadas. O campo existencial do homem revela limites relacionados a aspectos culturais, condições corporais, historicidade e sua ambiência, sendo que esse conjunto define suas possibilidades de escolha. Mas, por mais que se estreitem os nossos graus de liberdade, sempre teremos uma faixa de escolha e nela desfrutaremos da possibilidade de mudar a nossa existência.

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I – INTENCIONALIDADE Nunca me é interior: tudo o que viso é mundo transcendente. Em alguma dispersão ou intencionalmente, consciência de algo que vejo: uma flor, um abraço, um beijo. Fora de mim está meu desejo. (Walmir Monteiro)

A ontologia fenomenológica de Sartre é o conjunto de estudos onde ele demonstra sua concepção de ser. Antes, todavia, é preciso que compreendamos a questão da intencionalidade da consciência. Husserl disse que toda consciência é consciência de alguma coisa e isso quer dizer que a minha consciência existe porque percebe objetos, porque capta esses objetos com sua atenção e também pode se dispersar em relação a eles. E se, porventura, a consciência não pudesse “ter consciência” de algum objeto, ela simplesmente não existiria, porque “ser consciência de” é a única forma de a consciência acontecer. A intencionalidade da consciência é um conceito proveniente de Franz Brentano (1838-1917), psicólogo austríaco e professor de Husserl e Freud. Brentano refere-se à consciência enquanto ato, em oposição à consciência enquanto conteúdo. Para a psicologia mentalista, derivada de Wundt, analisar a consciência era identificar o que ela era em termos de percepções, imagens, lembranças e vontades. O problema era descobrir uma via de acesso a estes “conteúdos internos”, ao que estava dentro de cada mente. A solução então veio pelo método introspectivo. Brentano, porém, veio mostrar o inverso disso: a consciência não está dentro do sujeito, ela é apenas mediadora entre o sujeito

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e o mundo. A consciência é um ato que visa um objeto e não um invólucro de conteúdos. Como compreender então a relação entre consciência e objeto? Como compreender o que é intencionalidade? Você, por exemplo, neste momento, é consciência do texto que está diante de você. Mas daqui a pouco pode ser consciência de uma campainha que toca, do telefone que chama ou de alguém que passa e atrai sua atenção. E quando você se dispersa do texto para prestar atenção em algo fora da sua leitura, então você é consciência dessa dispersão. Então, tudo que a sua consciência toma como objeto, está fora dela. O texto, o telefone, a pessoa, nada disso está no interior da consciência, porque todo objeto da consciência está no mundo transcendente, já que na consciência nada cabe e o mundo lhe é exterior por essência. Se nada há no interior da consciência, também o Eu não habita na consciência. A análise da consciência se divide em dois níveis: consciência de primeiro grau e consciência de segundo grau. A consciência de primeiro grau é aquela que ultrapassa a si mesma para atingir determinado objeto e esgota nessa posição. Trata-se de uma consciência perceptiva que ignora a si mesma para ter consciência de um objeto ou de um ato. Sartre a denominou cogito pré-reflexivo ou consciência irreflexiva. É irreflexiva, pois não depende do conteúdo psíquico do eu. O que é psíquico só pode ser apreendido pela reflexão. O segundo nível de consciência, nas palavras de Sartre, “é a consciência que é consciente de ser consciente do seu objeto”. Existe um eu que é consciente daquilo que tem consciência. Chamou-a, por isso, de consciência reflexiva. É específica do ser humano. Vamos a um outro exemplo: Carlos passeia de bicicleta pela orla de uma praia no Rio de Janeiro. A tarde praiana está repleta, e ele sabe que precisa dirigir com atenção. Carlos procura se concentrar nos movimentos, observa

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as curvas da ciclovia, os obstáculos do caminho e também fica atento aos demais ciclistas. Contudo, sente o cheiro da maresia, sente a brisa do mar que bate em seu rosto, distingue que está circulando por uma orla belíssima e também percebe aquele mar de lindas ondas com montanhas de pedras às suas margens. Ele ouve um carro de som que passa tocando músicas de carnaval e se dá conta que o carnaval está próximo. Volta sua atenção à bicicleta mas logo diminui a velocidade quando se interessa em contemplar o mar buscando o infinito para notar que o sol resiste forte e cintilante apesar de já passar das quatro da tarde. Ao retornar seu olhar para o calçadão se dá conta de que sua atenção não está na bicicleta, mas na paisagem. Carlos se assusta e segura firme o guidão preocupado com crianças que às vezes atravessam desatentas a ciclovia. Ele, notando que as pessoas frequentam mais o calçadão e passeiam a essa hora, fica admirando a beleza do bronzeado das moças que passam, além de rir de alguns tipos bem excêntricos que roubam a sua atenção. Algumas pessoas gritam ao longe e ele tenta saber o que está acontecendo pelo movimento que se cria na rua. Carlos quase cai da bicicleta quando não percebe uma interrupção no leito da ciclovia. Ele se dá conta que novamente dispersou sua atenção que fora desviada para os passantes e também para uma altíssima onda que pegou um grupo de turistas desprevenidos e os derrubou na praia. Carlos se preocupa com a cena, mas logo percebe que eles se divertiram com o próprio susto. E, admirando-se de não ter caído, volta outra vez sua atenção para a bicicleta, notando que uma porção de coisas diferentes foram objetos de sua consciência e constata a sua dispersão em relação ao mais importante que era a direção da bicicleta. Vejam que a consciência de Carlos durante esse passeio teve como objeto pessoas, crianças, ondas do mar, turistas, músicas, o sol, e outras coisas. A consciência foi, de fato, durante todo esse tempo, consciência de alguma coisa. Não se detectou consciência sem

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objeto em nenhum momento desse passeio e mesmo em qualquer outra experiência em que haja uma rigorosa descrição da mesma, não se achará em nenhum momento, uma consciência sem objeto, porque ser “consciência de” é a única forma de a consciência ocorrer. Não se pode recusar que quando o ciclista era consciência da onda do mar derrubando banhistas, ele era consciência dessa onda sendo consciência de ser; enquanto ele era consciência das moças bronzeadas que passavam, ele era consciência de estar sendo consciência das moças; quando ele se deu conta de sua dispersão, ele era consciência de ser consciência de sua dispersão, ou seja, a consciência é necessariamente consciência-si. E, neste sentido, não podemos deixar de destacar que tudo o que a consciência tomou como objeto, estava na praia, no mar, no calçadão, na ciclovia ou na rua, mas nada era “interior” a ela, tudo o que a consciência tomou por objeto, estava no mundo transcendente. Está sempre fora de mim o meu desejo. E se tudo que tomo como objeto está no mundo transcendente, nenhum desses objetos depende de mim para existir e nenhum deles é conteúdo de minha consciência, apenas são objetos para a minha consciência sem nela habitarem, já que por essência o mundo é exterior à consciência. A consciência pela própria forma de se dar, não tem como conter alguma coisa, e sendo assim não tem como conter o Eu. Isso não é uma questão lógica. Não estamos dizendo que o Eu não está no interior da consciência, porque senão não dá para usar o conceito de intencionalidade, estamos constatando que a realidade mesma da consciência, verificável por cada um de nós, impossibilita que um eu a habite. Constatamos desta forma que a consciência, ou seja, o nada, é essa intencionalidade que escapa a cada momento, é comprovável, visível e descritível que nada a governa, a consciência dos gritos ao longe é a pura relação a esse objeto que se impõe: o grito. Nada determina a consciência a ser consciência do grito. Neste sentido,

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como coloca Sartre, essa não determinação da consciência torna-se uma característica essencial de sua existência: “A consciência é uma plenitude da existência, e essa determinação de si por si é uma característica essencial dela.” Sartre diz que se perguntarmos se há um lugar para um “Eu” na consciência a resposta será claramente “não”, pois quando se introduz a opacidade de um “Eu” na consciência, se contradiz a definição tão fecunda que nos damos a todo instante, em fenomenologia, esquecendo de que ela é uma espontaneidade: ao contrabandear para dentro dela aquele germe de opacidade. Enfim, somos forçados a abandonar a constatação original e profunda onde a consciência se evidencia um absoluto não-substancial: pura translucidez. Neste sentido, ao compararmos a realidade com a tradição filosófica, temos constatado o primeiro grande problema na relação do Eu com a consciência: o ego não “cabe” na consciência, a própria descrição desta o constata. Se ignorarmos essa evidência, podemos elocubrar “n” causas para esta consciência, e a tese fundamental da fenomenologia: a intencionalidade, passará a ser um detalhe bem adaptado às elucubrações filosóficas forçadas. Queremos marcar com isso, que com a descrição da consciência, evidencia-se já o fato que rompe com as filosofias e conseqüentes psicologias metafísicas: O Eu não pode habitar a consciência pelo simples fato de que ela não tem interior para ser habitado. Assim, se levarmos a sério o fato que é a intencionalidade, ou em outros termos, se levarmos em conta a realidade da consciência, ficaremos “dispensados do Eu - interior porque finalmente tudo está fora, até nós mesmos: fora, no mundo, entre os outros. Então não será em nenhum refúgio que nos encontraremos, será na rua, na cidade, no meio da multidão, coisa entre as coisas, homem entre os homens”

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II – FENOMENOLOGIA E TEMPORALIDADE Acerca da idéia de fenômeno, Sartre falava da antagonia entre dualismos e monismo, acreditando que os dualismos embaraçavam a filosofia e sugeria que fossem substituídos pelo monismo do fenômeno. E reflete que quando o pensamento moderno, em comparação ao vigente na antiguidade, reduziu o existente à série de aparições que o manifestam, visava suprimir certo número de dualismos (causa-efeito, por exemplo) que embaraçavam a filosofia, substituindo-os pelo monismo do fenômeno (causa em si mesmo), e alcançou nisto considerável progresso. E prossegue considerando a eliminação do dualismo existente na oposição interior-exterior: “Não há mais um exterior do existente, se por isso entendemos uma pele superficial que dissimulasse ao olhar a verdadeira natureza do objeto”2 A supressão do dualismo interior-exterior torna-se possível desde que se reduza o existente à série de aparições que o manifestam, ou seja, o existente é aquilo que aparece diante de mim. E aqui ele já começa a dar uma idéia de sua ontologia, que seria a de que o ser é aquilo que aparece em série de aparições que manifestam esse ser: “As aparições que manifestam o existente não são interiores nem exteriores: equivalem entre si”3. Sartre então se utiliza do fenômeno força (no sentido de energia elétrica) para comparar o que é o ser (ou o existente) dizendo que a força é o conjunto dos seus efeitos: o conjunto das ações físico-químicas que a manifestam. Nenhuma das ações individuais e parciais da força é suficiente para revelá-la. 2 O ser e o nada. P.15 3 Opus cit. P.15

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Então, “a aparência remete à série total das aparências e não a uma realidade oculta que drenasse para si todo o ser do existente”. Considerando Kant e o conceito de noumeno como aquilo que nunca se apresenta à sensibilidade nem ao entendimento e, logo, não pode ser conhecido já que é objeto da metafísica, Sartre discute que nesse nível kantiano a aparência mostra-se negativa, “aquilo que não é o ser”, ou seja, a aparência não revelaria o ser. Igualmente, Sartre propõe que nos desvencilhemos daquilo que Nietzsche denominava “a ilusão dos trás-mundos”, que não acolhamos a idéia do ser-detrás-da-aparição para que a aparência torne-se plena positividade, porque “o ser de um existente é exatamente o que o existente aparenta” para que cheguemos à idéia de fenômeno tal como é encontrada em Husserl e Heidegger. Ressalva, porém, que o fenômeno se mantém na relatividade já que o “aparecer” pressupõe em essência alguém a quem aparecer, sem, entretanto, a dupla relatividade do fenômeno kantiano que é constituído de fenômeno e noumeno, ou seja, o que nos é dado conhecer e o que não nos é dado conhecer. Em mais uma reflexão constante em “O ser e o nada”, Sartre refere-se ao fim da dualidade de potência e ato: “Tudo está em ato. Por trás do ato não há nem potência nem hexis (hábito), nem virtude.”4 Sartre diz que uma pessoa é genial não por aquilo que ela produz de genial nem por sua genial capacidade de produzir, mas pela “obra considerada como o conjunto das manifestações da pessoa”. E com esta reflexão ele rejeita o dualismo aparência-essência: “A aparência não esconde a essência, mas a revela: ela é a essência. A essência de um existente já não é mais uma virtude embutida no seio deste existente: é a lei manifesta que preside a sucessão de suas aparições, é a razão da série”. Sartre acrescenta às suas reflexões sobre a teoria do fenômeno observações complementares e pertinentes acerca da aparição do 4 Opus cit. P.16

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objeto e da série de aparições desse objeto que designam o ser, lembrando que na aparição o que aparece é somente um aspecto do objeto que se manifesta totalmente neste aspecto e também totalmente fora dele, simplesmente porque ao mesmo tempo em que se manifesta indicando-se a si mesmo como estrutura da aparição, também depende que esta aparição surja em uma série para que isto resulte na concepção do ser. O FENÔMENO DO SER E O SER DO FENÔMENO Para fazer uma clara distinção entre “fenômeno do ser” e “ser do fenômeno”, recorramos a um exemplo concreto: - O psicoterapeuta está diante do seu paciente. Nesse momento ele se depara com o “fenômeno do ser” que lhe é imediato, visual, e muito do cliente vai ser rapidamente conhecido através de suas aparências (o que ele mostra, o que ele fala, o que faz, sua história, etc.) e tudo isto ajuda o psicólogo a identificar o fenômeno que é o seu cliente. Todavia, existe uma transfenomenalidade desse cliente, desse “ser do fenômeno”, e para que eu, terapeuta, possa compreender de modo mais amplo e profundo esse cliente, preciso colocá-lo em uma ótica mais ampla e mais crítica, e isto corresponde ao “ser do fenômeno”. RIBEIRO (2002) exemplifica bem isto com uma frase: “Talvez possamos dizer: as aparências não nos enganam, elas apenas não nos dizem tudo, não revelam tudo”5 É que em relação às coisas que vemos - todas as coisas – sejam materiais, físicas, humanas e até espirituais, não podemos nos limitar ao que vemos, porque ali pode existir uma condição além, algo que transcende o que se apresenta aos nossos sentidos de visão e audição, por exemplo. É que estando diante do “fenômeno do ser”, preciso aspirar o acesso ao “ser do fenômeno”.

5 Gestalt-terapia – RIBEIRO, Jorge Ponciano – P. 50.

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‘ Então, como vimos, a aparição do ser - a manifestação do ser exatamente como ocorre é o “fenômeno do ser”: aquele que a mim aparece, o ser que a mim se revela. Mas tal manifestação seria “da mesma natureza do ser dos existentes que me aparecem?”6 Sartre nos lembra que Husserl resolveu tal questão aludindo à redução eidética que nos permite ultrapassar o fenômeno concreto até sua essência; acrescentando uma comparação dessa solução husserliana com o conceito de “realidade humana” de Heidegger que é ôntico-ontológica, ou seja, que permite que o fenômeno seja ultrapassado até o seu ser. E isto se realiza de modo até simples, considerando que o conjunto objeto-essência constitui um todo organizado: “A essência não está no objeto, mas é o sentido do objeto, a razão da série de aparições que o revelam. Mas o ser não é nem uma qualidade do objeto captável entre outras, nem um sentido do objeto (...) o ser é simplesmente a condição de todo desvelar: é ser-para-desvelar, e não para ser desvelado”7. Em suma, o ser não está para ser desvendado totalmente. E Sartre exemplifica ser do fenômeno e fenômeno do ser quando mostra que em um objeto qualquer – mesa ou cadeira – identifico o fenômeno-objeto (fenômeno-mesa) sem indagar o que é ser mesa, pois se o faço, quando o faço, transcendo do fenômeno-mesa para o fenômeno-ser. Então, “o ser dos fenômenos não se soluciona (não se desvenda) em um fenômeno de ser”. O ser do fenômeno nos remete a uma profundidade maior, porque o ser acolhe o ente: “O fenômeno do ser mora no ser do fenômeno”, e assim como o fenômeno transcende a aparência, o ser do fenômeno transcende ao fenômeno do ser.

6 Opus cit. P.19 7 Opus cit. P.20

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FENOMENOLOGIA O termo fenomenologia foi utilizado por Aristóteles, Kant e Hegel com diferentes significações. A fenomenologia kantiana pensava o ser como o que limita a pretensão do fenômeno enquanto ele próprio permanece fora de alcance, já na fenomenologia hegeliana o fenômeno é reabsorvido num conhecimento sistemático do ser. Verificaremos neste capítulo a fenomenologia de Edmund Gustav Albert Husserl (1859-1938) que deu um conteúdo novo a essa antiga palavra que se origina do verbo grego phaínesthai, que significa "mostrar-se", enquanto fenômeno, como vimos anteriormente, quer dizer “aquilo que se mostra em si mesmo. O que se revela". Embora discordantes em aspectos centrais, Kant, Hegel e Brentano foram fontes que de algum modo contribuíram à formação do pensamento de Husserl. Verifiquemos, pois, alguns pontos da temática fenomenológica segundo os filósofos citados: Immanuel Kant (1724-1804) defendeu a idéia de que não podemos conhecer inteiramente as coisas, porque nem todos os sinais que delas recebemos são receptivos à nossa mente, e em função disso não podemos conhecer inteiramente o real, mas apenas o “fenômeno”, que é aquilo que a mente pode assimilar. Assim, o que podemos conhecer “a priori” são os fenômenos, e não as coisas em si, ou seja, em linguagem kantiana, os “noumenos”. O centro de argumentação é o seguinte: uma coisa é a realidade tal como ela é, e outra coisa é a maneira como essa mesma realidade aparece diante de mim enquanto sujeito do conhecimento. A realidade, tal como ela é, em sua essência (noumeno), é incognoscível, ou seja, não podemos conhecê-la. Contudo, eu posso conhecer o modo como ela me aparece (fenômeno), posto que o modo de seu aparecimento não dependerá só dela, mas de mim também. Portanto, jamais conhecemos as coisas em si (noumeno), mas somente tal como elas nos aparecem (fenômeno).

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O noumeno é aquilo que nunca se apresenta à sensibilidade nem ao entendimento, mas é afirmado pelo pensamento puro, logo não pode ser conhecido já que é objeto da metafísica. Husserl mais tarde iria reformar essa visão kantiana, dizendo que não se pode separar fenômeno e noumeno que constituiriam, em conjunto, a coisa em si, o próprio fenômeno. Hegel (1770-1831) para quem as coisas só existem para a consciência na medida em que se manifestam. O mundo é fenômeno, e o fenômeno é o conhecimento que temos dele. A consciência é aquilo que une sujeito e objeto, ou seja, a consciência é a relação entre sujeito e objeto, sendo assim, qualquer alteração em um dos dois altera o outro. Para Hegel, “voltar às coisas mesmas” significa que o fenômeno esgota toda a realidade, pois a essência do fenômeno é o próprio fenômeno na sua manifestação. Para ele, a realidade é apreendida como se manifesta, não há essência anterior ou em sua base. Hegel defendeu a essência como algo simultâneo à existência. Sem embargo, essa fenomenologia é apenas uma propedêutica à ontologia, ciência sistemática do ser; todavia, no lugar de revelar a impossibilidade dessa ontologia, fornece todo o seu arsenal ao filósofo que não tem senão que pensar sua ordem oculta e dizer sua significação absoluta. Brentano (1838-1917) fundou a psicologia do ato, argumentando que o fenômeno psíquico se constitui como atividade e não como conteúdo. As idéias de Brentano serão as bases para as concepções da Fenomenologia de Husserl (consciência de) e vão dar início a uma psicologia que irá buscar as propriedades da consciência através da experiência interna. A partir da sistematização de sua teoria vão surgir a psicologia da Gestalt, a teoria de Lewin e a psicologia fenomenológica. Enfim, toda a psicologia cuja ênfase recaia sobre a consciência com sua característica essencial: a intencionalidade. Brentano rejeitou a consciência como algo permanentemente real, afirmou que a consciência só existe se for

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direcionada por algum objeto, “existência dentro de”, propondo a intencionalidade como a principal característica da consciência. Assim, o sujeito passa a ser visto como construtor de significado por meio de sua percepção de mundo, já que a consciência é uma intenção dirigida para o objeto. Era interesse de Husserl conceder à filosofia um fundamento de racionalidade que lhe conferisse uma condição científica, e por ser a mais fundamental das ciências, a filosofia deveria manter-se livre de suposições. Surge, então, a fenomenologia, inicialmente como uma ciência da experiência, chamada de “psicologia rigorosa descritiva”. Em "Investigações Lógicas", Husserl demonstrou que a psicologia não pode ser fundamentada por leis lógicas, já que o psíquico é para ele um fenômeno e não uma coisa física e palpável, compreendendo o fenômeno como consciência, fluxo temporal de vivências, e tendo a intencionalidade como estrutura, consciência de algo. A fenomenologia surge, então, com o objetivo de examinar a experiência humana de forma rigorosa, por meio de uma ciência da experiência. Assim, a reflexão se faz necessária a fim de tornar possível observar as coisas como se manifestam em sua pureza original e descrevê-las. É a investigação daquilo que é genuinamente possível de ser descoberto e que está potencialmente presente, mas nem sempre visto, através de procedimentos próprios e adequados. Um encontro com as coisas mesmas. Para tanto, Husserl propõe a suspensão de qualquer julgamento, abandonando os pressupostos em relação ao fenômeno que se apresenta. A isto ele denomina “suspensão fenomenológica” ou epoché. Phenomenom + logos, ou seja, fenomenologia, é o discurso sobre aquilo que se mostra como é, caracterizando-se como a ciência que está em contato direto com o ser absoluto das coisas, dirigindo o conhecimento para o que há de essencial nas coisas. É a filosofia do inacabado, do devir, do movimento constante onde o vivido aparece e

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é sempre ponto de partida para se chegar a algo. A Fenomenologia de Husserl propõe o método que dá início ao conhecimento compreensivo, não mais o explicativo-causal-dedutivo, mas o fenomenológico-descritivo-compreensivo. A lógica para Husserl, ou seja, a teoria das ciências, necessita também de um embasamento na sua própria essência de teoria. Fundamentar a lógica e fundamentar a filosofia são expressões equivalentes para este pensador, que crê que este alicerce só se torna possível por meio da fenomenologia. Sua teoria iria influenciar diversos pensadores que, de alguma forma acabam divulgando esta filosofia e atribuindo a ela outros rumos, como: Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Gabriel Marcel, e outros. Deve-se ainda à fenomenologia influências sobre outras ciências como: psicologia, psiquiatria, antropologia e filosofia da religião. Husserl, portanto, funda a sua Fenomenologia como uma atitude e um método, dizendo que é necessário avançar para as próprias coisas, e esta é a regra primeira e fundamental do método fenomenológico. Por coisas entenda-se simplesmente o dado, aquilo que temos diante da nossa consciência. A Fenomenologia, dessa forma, visa exclusivamente o dado, sem querer decidir se este dado é uma realidade ou uma aparência, apenas consistindo em “mostrar” o que é dado e em esclarecer este dado, sustentando como tema apenas aquilo que se constitui como objeto da experiência possível: os fenômenos. Para ele as evidências apodíticas às quais a Fenomenologia deve se ater, e a respeito das quais ela pode se constituir como ciência rigorosa serão apenas os atos da consciência intencional (consciência de) e seus respectivos objetos imanentes. A fenomenologia será então a ciência descritiva destes objetos, a que se chega através da intuição pura, numa apreensão imediata da “coisa mesma” enquanto pura essência. Também é objetivo da fenomenologia compreender as estruturas formais que operam de forma encoberta na organização da

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experiência, segundo os diferentes modos da consciência visar seus objetos. O conhecimento da obra de Brentano fez Husserl despertar para a insuficiência das ciências do homem tais como elas se desenvolveram sob seus olhos por volta dos anos 1900. O que ele nelas questionou, especialmente na psicologia, é terem extraído seus métodos das ciências naturais, aplicando-os sem o cuidado de observar que seu objetivo é diferente. Essa crítica já se fazia presente em Dilthey, cujas Idéias Concernentes a uma Psicologia Descritiva e Analítica (1894), Husserl leu, ratificando o fato de que a vida psíquica é um dado imediato que não exige reconstruções, apenas uma descrição. “Explicamos a natureza e compreendemos a vida psíquica” é uma afirmação de Dilthey, filósofo responsável pela equiparação e distinção entre ciências naturais e ciências do espírito (humanas). As ciências naturais explicam o objeto, enquanto as ciências humanas compreendem o objeto. No compreender não ocorre uma distinção clara entre sujeito e objeto (já que o sujeito do conhecimento toma a si mesmo como seu objeto de conhecimento). Para Ricoeur, por exemplo, compreender é mais que um modo de conhecer, é um modo de ser: “O problema hermenêutico torna-se assim uma pronúncia da Analítica deste ser, o Dasein, que existe compreendendo” (Ricoeur, 1969). O fato é que cada vez mais a realidade deixa de ser uma coisa concreta, uma coisa dada e acessível aos sentidos para tornar-se algo construído pelo homem, de natureza representativa, essencialmente produzido na linguagem e nela reconstruído. A Fenomenologia irá então servir como base metodológica da Psicologia Existencial, sabendo-se que nada é definitivo, mas transitório e mutável, e que a força da nossa disposição de escolha é bem maior e mais decisiva que supúnhamos, fazendo com que resgatemos a fé numa dimensão bem maior, quando nos damos conta que são muitas as possibilidades que podem se postar à nossa frente,

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caso invistamos mais em nós mesmos, no sentido de “assumir a responsabilidade” pelo que nos acontecerá, já que somos autores da maioria dos nossos fatos. Edmund Husserl (1859-1938) ao apresentar a intencionalidade da consciência adotou o lema de que “toda consciência é consciência de alguma coisa” Assim, a percepção é percepção de um percebido, o desejo é desejo de um desejado e a imaginação é imaginação de um objeto imaginado. É que, por outro lado, o sujeito, tal como Descartes o concebia, não se relacionava diretamente a coisas e objetos. Ele só se relacionava diretamente a idéias que ele sustentava acerca dessas coisas. Assim, afirmar que “toda consciência é consciência de alguma coisa” é dizer que ela se relaciona diretamente ao mundo, não está fechada sobre si mesma, mas abre-se imediatamente ao “exterior”. É esse resultado, sobretudo, que Sartre aplaudirá, já que ele lhe permitirá dizer, contra seus velhos mestres da Sorbonne, que nossa consciência nos lança diretamente no mundo, no meio da multidão. Husserl com este postulado fenomenológico da intencionalidade (ou responsabilidade) da consciência faz surgir uma reflexão diante do sujeito cartesiano com seu estoque de idéias inatas, ou o sujeito (segundo Locke) mera tabula rasa na qual o mundo inscreverá suas “idéias”. Nos dois casos a consciência ou a subjetividade só entra em cena como uma instância essencialmente passiva, que não contribui em nada para a constituição do mundo da nossa experiência. O ato intencional da consciência será chamado de “apreensão” ou “noese” – termo derivado do nous grego, que designa o momento específico do pensamento, ato responsável pela doação de sentido, que vai animar aquele conjunto de sensações opacas, fazendo com que a consciência se torne “direção” a um objeto transcendente, um fenômeno, diante de mim. E será justamente esse conceito de fenômeno que exigirá o reconhecimento de outras figuras da

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intencionalidade. Se as sensações e os atos intencionais são habitantes da interioridade da consciência, o fenômeno, ao contrário, não está “em mim”, mas “diante de mim”. É esse conceito de fenômeno que leva Husserl a falar em uma fenomenologia, certa lógica dos fenômenos. E o que é um fenômeno? É a apresentação de um objeto para a consciência. É ele que determina essa consciência, porque ela (a consciência) sem um objeto intencionado não é nada. A consciência só é consciência quando sustenta a consciência de alguma coisa. Daí afirmarmos que é o fenômeno (o objeto) que faz existir a consciência.

TEMPORALIDADE O tempo, matematizado como é, dividido nos pretensos elementos passado, presente e futuro - é pura convenção, disse Sartre, que compreende a temporalidade em termos de uma “síntese original” de seus “pretensos elementos” passado-presente-futuro, acolhidos como momentos estruturados, porque o passado não é mais, o futuro ainda não é e o presente instantâneo “é o limite de uma divisão infinita, como o ponto sem dimensão”8. Mesmo considerando-a um tanto quanto vaga, Sartre faz referência à Teoria das Impressões Cerebrais, aquela que diz que a melhor definição para o passado é “passou”, que sustenta que a partir da constatação do desvanecimento desse passado, ele não é mais que as lembranças que temos dele, considerando ainda que tais lembranças não ocorrem no passado, mas no presente, é preciso que ocorra apenas a título de modificação presente de nosso ser. Essa teoria defende que toda recordação, toda lembrança impressa em nossa mente, tudo do passado que nos acompanha na verdade é

8 O ser e o nada. P. 158

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presente. O passado que te acompanha, não passou. E se não passou, não é passado, é presente. Na verdade nós escolhemos esse passado presentificado, há uma seleção. Há coisas que não importam, que não visitam nossas memórias e interesses atuais – estas são as coisas que efetivamente passaram. Outra teoria lembrada por Sartre em “O ser e o nada” e igualmente considerada imprecisa é a concepção de que o passado teria uma espécie de existência honorária. Ser passado, para um acontecimento, seria simplesmente estar recolhido, perder a eficiência, sem perder o ser. Como observou Bergson: “Entrando no passado, um acontecimento não deixa de ser, apenas deixa de agir, mas permanece “em seu lugar”, em sua data, para toda a eternidade”. Sartre entende que o passado não produz o presente, já que a cada dia, a cada etapa, a cada situação, escolhemos as nossas direções e não realizamos um simples “follow-up” de retomada do ponto em que deixamos alguma coisa, ainda que, nada impede que a minha escolha seja uma escolha de retomada, de prosseguimento, mas nem aí há qualquer determinação de que o meu passado tenha me condicionado a utilizá-lo em minhas decisões. Por outro lado, não rejeitamos a historicidade – que não pode nem deve ser anulada. Não pode porque seria impraticável a adoção de uma atitude amnésica em relação ao tempo vivido e às experiências acumuladas; não deve porque o passado – ainda que não nos dê direção determinada – o seu conteúdo é um arquivo cultural que nos permite renovar nossas vivências ou mesmo repetir as vivências que merecem nossa reescolha. Em suma, sou livre do meu passado, mas não temos porque sustentar em relação a ele qualquer obsessão de esquecimento. Sartre faz o alerta de que quando tentamos anular o passado e só nos relacionamos com o presente, nos colocando no meio do mundo “perdemos toda a possibilidade de distinguir o que não é mais daquilo que não é” e toca nessa questão se referindo ao fato de que o

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que ocorreu no passado (o que não é mais) sustenta um nexo com o ser, já o que nunca ocorreu (o que não é) jamais me chegou, jamais chegou a (o) ser. Por outro lado, o que é ser? – O ser é. E o ser se manifesta com sua presença de ser. Daí entendermos que aquilo que é temporalmente ausente, não tendo como se manifestar de alguma maneira, não tem como ser, porque “o ser que é esgota-se inteiramente no ato de ser; nada tem a ver com o que não é e com o que não é mais. Sartre propõe que se considere o fenômeno temporal em sua totalidade. E que se comece por uma substituição conceitual importante já que a expressão “ter” um passado supõe passividade em relação ao passado, devendo ser substituída por “ser seu próprio passado”. O ser presente é, pois, o fundamento de seu próprio passado. Seguindo essa resolução conceitual Sartre propõe reflexões a partir de uma frase: “Paulo era aluno da Escola Politécnica”. Neste contexto, o que significa “era”? Sartre responde que aqui o termo “era” designa o salto ontológico do presente ao passado e representa uma síntese original desses dois modos de temporalidade. E a basilar diferença é que considerando o termo “era” como um modo de ser, quando refiro “eu era” estou dizendo que eu sou o meu passado no lugar de dizer que “eu tenho o meu passado”. E neste sentido uma importante justificativa é que eu não tenho como negar minha solidariedade com o meu passado: “Aquilo que dizem acerca de um ato que pratiquei ontem ou de um estado de espírito que manifestei, não me deixa indiferente: fico magoado ou lisonjeado, reajo ou pouco me importo, sou afetado até a medula. Não me desassocio de meu passado”9. 9 O ser e o nada. P. 167

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Sartre acrescenta que sem dúvida, e secundariamente, diante de novas escolhas, novos interesses, novos tempo, a tendência é que nos desassociamos do passado alegando mudança, desenvolvimento, etc. Mas isto não é negar solidariedade a um passado que é minha presença. Finalmente, compreendemos que Sartre, ao contrário do que muitos pensam, não nega o passado e nem prega a concentração do homem no seu presente. Sua idéia é que o passado não determina o que nos tornamos, mas o nosso ser é presença de modo indubitável nesse passado que deve ser visto a partir da presença original, ou seja, na conjugação uníssona de todos os elementos que “constituem” a temporalidade. O grande enigma do presente é a dificuldade de localizá-lo, e isto nos parece amplamente paradoxal, porque em uma primeira reflexão o presente sendo aquilo que é, em oposição ao passado que não é mais e o futuro que ainda não é, deveria o presente ser visto de modo mais legível, já que ele é tudo o que há diante de mim, aqui e agora. Mas não é tão simples assim, embora seja simples convencer-se de que o instante presente é sobremaneira fugaz. E isto nos leva a um raciocínio estranho que é concebermos o presente como sendo o que é mas ao mesmo tempo admitir o presente como sendo aquilo que praticamente não existe. Isto em função da fugacidade do presente. Sartre diz: “quanto ao presente instantâneo, todos sabem que não existe: é o limite de uma divisão infinita, como o ponto sem dimensão”10. Assim, se formos separar do presente tudo o que não seja presente, restará apenas um instante infinitesimal. O presente é o mais volátil dos três elementos que designam a temporalidade. Desta forma, diferenciamos o presente do agora. Como? Presente, diz Sartre, é estar presente a alguma coisa. Agora, por exemplo, estou presente diante de um teclado, de um monitor, de um “mouse”, de um aparelho telefônico que agora toca e de uma 10 Opus cit. P.158

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garrafa Dágua e um copo. O aluno que está “presente à aula” quando é feita a chamada, responde “presente”. Isto mostra que a característica fundamental do presente é ser presente diante de alguma coisa ou de alguém. O celular pisca e avisa que há mensagem. Isto me torna presente à mensagem, mas não à pessoa que a enviou. Se o celular toca e é uma ligação da pessoa que enviou a mensagem, estou presente diante da sua voz que ouço. O agora, de modo diferente, assinala a temporalidade no que diz respeito ao tempo (e somente ao tempo) em que as coisas acontecem. Agora, por exemplo, gaúchos tomam chimarrão, maranhenses dançam o boi-bumbá e há uma roda animada em minas com rabeca, viola e pandeiro. No Rio praia lotada nesta manhã, e a tarde promete maracanã cheio. Este é um agora que acontece em lugares próximos e distantes de mim, sem necessidade de que o agora para ser precise de alguma presença. As coisas acontecem no agora, com presença ou com ausência, sendo que o depois que aparece agora em minha expectativa (a tarde promete...) faz com que o agora seja o agora da expectativa e não do que poderá acontecer depois. O Passado é Em-si porque ele é completo, acabado, não pode ser modificado. O Presente é Para-si porque está por se fazer e pode ser modificado. Sartre diz que “O Para-si é presente ao ser em forma de fuga”, isto porque o presente desaparece desatrelado do passado e do futuro. Quando digo que agora é uma hora em ponto, quando acabo de dizer já não é mais, pois se passaram alguns segundos. Mas o presente não é só dilema, porque ele enquanto Para-si está fora de si, tanto no passado quanto no futuro. Podendo-se dizer do presente que ele não é o que é (passado) e é o que não é (futuro). O que é o futuro? Sartre diz que o futuro é o que tenho de ser na medida em que posso não sê-lo. A princípio surge como contradição, pois como

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tenho de ser se, ao mesmo tempo, posso não sê-lo? Mas esse tem-de-ser corresponde à falta que a extrai, enquanto falta, do Em-si da presença”. O futuro é prerrogativa do para-si, e opera como um em-si, no sentido de que brota como possibilidade, mas irrealizável. Definimos o futuro como o que eu seria se eu não fosse livre, e o que devo ser porque sou livre. O problema para uma compreensão mais fluida da ontologia da temporalidade sartriana particularmente no que diz respeito ao futuro é que sempre tentamos considerar o futuro objetivamente, como algo homogêneo, regrado, cronológico, constituído de momentos que virão. A tentativa de ver as coisas assim visa simplificar e também diminuir nossa angústia frente ao absurdo que é o ser da temporalidade, mas é uma tentativa fadada ao fracasso. Já foi demonstrado que o futuro não-é, mas adota as características do em-si: um ser concluído, imóvel e imodificável. Este mesmo futuro, modo de ser da consciência, ligado às características do ser em busca dos possíveis. E o futuro sou eu mesmo, que me aguardo como presença para além do ser. Projeto-me no futuro, para me juntar àquilo que me falta e que, sinteticamente acrescentado no meu presente, fará com que eu seja aquilo que sou. Sartre fala em porvir referindo-se ao tempo espacializado. O porvir é uma noção prisioneira desse tempo espacializado. O porvir se refere aos acontecimentos que estarão lá naquele tempo por vir. Já o devir trata do movimento de construção desses acontecimentos, ele (o devir) remete à qualidade da existência quando ela se projeta para o futuro. O devir, ou tempo-devir, ou ainda: o vir-a-ser é ao mesmo tempo objetivo e subjetivo. Ele se impõe (claro: não escolhemos envelhecer), mas o diferenciador é que se é verdade que o envelhecer se impõe a nós, é preciso lembrar que existem várias maneiras de envelhecer.

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Da mesma forma muitos outros exemplos acerca dos conteúdos da nossa vida que escolhemos tratar com habilidade para produzir qualidade em todas as coisas que fazemos e que nos vão acontecendo, porque na medida, por exemplo, que o envelhecimento é uma mutação, podemos escolher a orientação do nosso envelhecer, dando-lhe vitalidade, dignidade, alegria e prazer. Somos sim, responsáveis pelo nosso próprio devir.

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III – EGO E CONSCIÊNCIA

Para muitos filósofos, o Ego é um “habitante” da consciência, com sua presença formal no seio das experiências vividas como um princípio vazio de unificação. Outros pensam descobrir sua presença material, como centro dos desejos e dos atos, em cada momento de nossa vida psíquica. Aqui esperamos mostrar que o Ego não está nem formal, nem materialmente na consciência: ele está fora, no mundo; é um ser do mundo, como o Ego de outrem.

Sartre observa que “toda consciência é posicional na medida em que se transcende para alcançar um objeto” e ela se esgota no fato de que “tudo quanto há na minha consciência atual está dirigido para o exterior”11, portanto, o que há na consciência? Nada. Para Sartre a consciência é um “eu - nada” e por isso critica o substancialismo de Descartes com o seu “Eu penso” na medida em que esse “penso” é substância do “eu”.

É esse “nada” da consciência que remete o homem a uma liberdade, a um fazer-se (essência) através das suas escolhas, criando essência. Assim, a liberdade é que pode “encher” a consciência fazendo dela (liberdade) o ser da consciência, porque a consciência só é alguma coisa quando (por causa da liberdade) transcende, visa algo, e é absoluta nisso porque é ela própria a experiência, o fenômeno, a aparição.

Se toda consciência é consciência de alguma coisa, num vetor de intencionalidade, não há nada na consciência (ou no eu) que lhe seja próprio (ao eu), e tudo que a consciência visa, visa fora de si, porque em si mesma ela não é nada.

11 O ser e o nada. P.22

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E a consciência se unifica na medida em que ela própria se transcende para alcançar os objetos. Mas a consciência não assimila o objeto, ela apenas desliza sobre ele sem apreendê-lo como conteúdo, porque o ser não é entificado por apreensões. A entificação significaria a atribuição de conteúdo ou essência ao ser, e isto no homem não é definitivo porque ele não se entifica enquanto ser para-si. Isto explica que somos um constante vir-a-ser, nos transformamos, somos metamórficos.

Esta visão constante no parágrafo anterior destitui a idéia de um Eu na consciência, afastando essa presença egológica na consciência e aproximando a idéia de uma consciência aberta, sem essência interior, mas a consciência como consciência posicional do mundo.

O homem não pensa a si mesmo, porque se o fizer se depara com o vazio do seu ser. O ser é para-si e o seu pensamento é o cogito do para-si que envolve o ser e a sua existência ou a sua consciência eivada de intencionalidade.

Então, o Eu (ou a consciência) “é o que não é” na medida em que só pode ser fora de si (na relação intencional com objetos) e “não é o que é” na medida em que essas relações que o fazem ser não são apreendidas em seu interior como conteúdo para dar-lhe qualquer permanência.

Assim, o cogito existe num contínuo transcender a si mesmo, ou seja, para a exterioridade, com menor foco no pensamento e maior foco na experiência. Efetivamente, a definição da consciência sartriana corresponde ao fato de que o foco sobre o pensamento deve ceder lugar à experiência existencial. É importante termos presente as possibilidades de a consciência ocorrer, pois, como podemos verificar, há consciências totalmente absorvidas no objeto, onde o Eu não aparece, e consciências onde o Eu aparece. Esta compreensão é fundamental para elucidarmos em que consiste o ser do ego, ou em outros termos,

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qual a consistência de ser da personalidade. É precisamente esta questão que trabalharemos aqui. Consciência do grito ao longe, consciência de crianças que brincam na areia, consciência das montanhas de pedras. Estas consciências quando se deram, eram consciências totalmente absorvidas nos seus objetos. Eram consciências de seus objetos, sendo consciência de sê-lo. Elas não se tomaram a elas mesmas como objeto, não são consciências posicionais de si, são simplesmente consciências de si. Essas consciências, no momento em que ocorreram eram consciências irrefletidas eram, consciências de primeiro grau. O que queremos destacar aqui é que no plano irrefletido, ou nas consciências de primeiro grau, o Eu não está presente. Ou, em outros termos, ao descrevermos a consciência que ouve um carro de som que passa, a consciência que percebe o sol forte, a consciência que se absorve nas montanhas de pedra, constatamos que não há Eu nessa consciência. Destacamos aqui um aspecto central essencial: constatamos com as descrições acima que no plano irrefletido não há o Eu, e isso implica termos muito claramente o fato de que não é o Eu que nos possibilita refletir. Constatamos isso, quando conversamos com o outro sobre o outro e suas questões, quando eu não sou meu objeto de consciência, no entanto há uma consciência refletindo, discutindo sobre o outro e suas questões. Então o Eu não aparece em todas as consciências que temos. Não aparece nas consciências irrefletidas. Constatamos que o Eu não estando presente nas consciências de primeiro grau, isto não impossibilita a reflexão, ou seja, refletimos sem ter a necessidade de tomar o Eu como objeto de consciência, a consciência que reflete não precisa de Eu para refletir. E aí concluímos que a consciência precisa ser considerada autônoma, pois, constitui uma experiência que não demanda outra consciência. Um exemplo de surgimento da consciência de Eu:

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A praia está deserta à noite e Carlos senta em um banco de cimento no calçadão e se põe a contemplar as ondas que se quebram na praia. Carlos admira a preamar, em silêncio, simplesmente fica olhando e imaginando os fatores que causam a preamar. De repente um amigo toca-lhe o ombro e pergunta o que Carlos está fazendo. Nesse momento Carlos se dá conta do que faz e responde: “pesquisando”. Notemos que as consciências de mar, de ondas, de conjeturas sobre as causas da preamar, eram consciências de primeiro grau, ou seja, eram totalmente absorvidas no objeto, e o eu não aparecia para elas, eram consciências irrefletidas. Entretanto, depois que perguntaram o que Carlos estava fazendo, ele voltou sua consciência para essas consciências até então irrefletidas, tomou-as como objeto e constatou: “Eu estou pesquisando”. Essa segunda consciência que tomou como objeto as consciências irrefletidas é uma consciência de segundo grau. Ela se caracteriza exatamente por tomar como objeto outra consciência. E com este ato de segundo grau, surge um objeto que não estava presente nas consciências de primeiro grau: o Eu. O que Sartre denomina “circuito da ipseidade” é justamente esse ir e vir entre “je” e “moi” – que explicaremos adiante -, ou seja a alternatividade entre consciência de primeiro grau (pré-reflexiva) e de segundo grau (reflexiva). O Eu (no estado “je” - presença ausente) é o nada, ou seja, o estado anterior à transcendência egóica, onde não pode haver consciência, e havendo consciência esse estado nadificado é preenchido pelo objeto de consciência. “Na ipseidade, meu possível reflete-se sobre minha consciência e a determina como aquilo que é. A ipseidade representa um grau de nadificação mais avançado que a pura presença a si do cogito pré-reflexivo, no sentido de que o possível que sou não é pura presença ao Para-si e sim presença ausente”12.

12 Opus cit. P. 156

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Desta forma, concluímos que o Eu somente tem condições ontológicas de aparecer para a consciência titular, ou seja, para a própria pessoa que se vê no que faz, quando ela retoma uma experiência anterior ou quando põe uma consciência irrefletida como objeto de reflexão. Fica compreendido, então, que Carlos não se via pesquisando até que tomou sua consciência de mar como objeto, e encontrou o seu Eu. É contrariando Husserl que Sartre faz a conexão entre Je e Moi, pronomes cujo emprego na ontologia fenomenológica explicaremos logo a seguir. O primeiro seria o aspecto ativo e o segundo o aspecto concreto unificador destes aspectos distintos do ego. O próprio Sartre alude a essas expressões assim:

“Sabeis como concebo o moi – não mudei: é um objeto que está diante de nós. Isto é, o moi aparece para a reflexão quando ela unifica as consciências refletidas: há então um pólo de reflexão que chamo o moi, o moi transcendente e que é um quase-objeto.” (Sartre, 1976, p. 100).

Segundo Sartre, o campo transcendental de que fala a fenomenologia de Husserl deve ser caracterizado como impessoal, ou melhor, como pré-pessoal, ou seja, sem eu. O eu é, como as outras coisas do mundo, um objeto para a consciência. Ele é uma unidade noemática, não uma unidade noética. O ego é, assim, constituído, na reflexão impura, como sujeito dos estados e qualidades (trata-se do Moi) e das ações (trata-se do Je). No esquema abaixo vemos a diferença entre a adoção do Je (Eu) e do Moi (Eu) por parte de Sartre. Comecemos por recordar que o Ego (Eu) somente existe em relação de intencionalidade, e que fora da intencionalidade o Ego é uma impossibilidade. Então, a transcendência do ego se dá mediante a intencionalidade, reafirmando que o Ego somente existe na situação de transcendência e é aí que o denominamos MOI que é um pronome

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da língua francesa, assim como JE que é reservado para designar o Eu na condição não-transcendente.

Fazemos também referência nesse esquema do que Sartre denomina consciência de primeiro e de segundo graus. Em primeiro grau está o irrefletido, não posicional de si porque consciência de si enquanto consciência de um objeto transcendente. Em segundo grau está a consciência refletidora (réfléchissante) enquanto não posicional de si mas posicional da consciência refletida (atos irrefletidos de reflexão). Em terceiro grau (ato tético em segundo grau) está a consciência refletidora enquanto posicional de si. Segundo SASS, Sartre define a estrutura do Je da seguinte maneira:

a) O Je é um existente. Ele se dá como transcendência. b) Ele se entrega a uma intuição de gênero especial. c) Aparece somente através de um ato reflexivo Seu processo de constituição se dá do seguinte modo: 1) Há um ato irrefletido de reflexão sem Je que se dirige sobre

uma consciência refletida. 2) Este torna-se objeto da consciência refletidora, sem cessar de

afirmar seu objeto próprio (cadeira, verdade matemática, etc). Como na ontologia fenomenológica a ausência de transcendência, de consciência e de intencionalidade caracteriza de certa maneira o Em-si, e como o Eu nessa mesma falta é denominado JE, então adotou-se o JE como designação do Eu na condição Em-si.

A TRANSCENDÊNCIA DO EGO Ego: objeto intrapsíquico transcendente

JE MOI EU

em-si para-si

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EM-SI

consciência de primeiro grau

intencionalidade

tomada de consciência

consciência de segundo grau

formação egóica

PARA-SI

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IV - A CONSTITUIÇÃO DO EGO

Podemos afirmar que há ego porque há consciência, e jamais o contrário. Antecipamos também que o ser do ego se constitui como um pólo de estados, ações e facultativamente qualidades. Isso, a princípio pode não dizer muita coisa, mas o nosso objetivo é que no decorrer desta trajetória constatemos que o ego está no mundo, na realidade transcendente, queiramos ou não. Podemos dizer que há pelo menos dois níveis de sentimentos: um mais casual, outro mais permanente; ou um mais superficial, outro mais profundo. Estes sentimentos podem ser positivos ou negativos, em relação ao outro ou em relação a si mesmo. Sãos os “estados” referidos por Sartre, que aparecem à nossa consciência reflexiva e se constituem objeto de uma intuição concreta”: “Se odeio a Pedro o meu ódio por ele é um estado que posso apreender pela reflexão. Ele está ante a consciência reflexiva como seu objeto real” (Sartre, 1965). É por meio da reflexão que me dou conta do meu ódio pela pessoa A ou B, ou seja, o meu estado se coloca como objeto ante a minha consciência reflexiva crítica. Mas há uma diferença entre o sentimento mais profundo que sinto por um, de uma experiência mais simples que sinto por outro. Posso ter experiência repulsiva quando sinto raiva de alguém em um dado momento, por um motivo presente, numa consciência imediata daquele objeto que se posta diante de mim. E este sentimento pode ser apenas momentâneo ainda que este “momento” leve semanas ou até meses. O que importa não é o tempo em que este sentimento fica tomando conta de mim, mas a sua profundidade e gravidade. Este é um estado. Outro estado, explicado por Sartre, mais profundo, é quando alguém sente um ódio que transcende a situação em si, porque assimila a idéia de que a pessoa é assim e vai continuar sempre sendo.

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Ou seja, trata-se de um sentimento que comprometendo um passado e um futuro, escapa à instantaneidade de uma consciência. E talvez aqui esteja a chave que elucida essa diferença: a consciência imediata de um sentimento ou sensação que em mim se desperta diante de um fenômeno casual, passageiro, que me concede um estado (negativo ou positivo) que não veio para ficar, fica na superfície, e isto não refere ao tamanho do sentimento, mas ao tempo em que ele permanece vigente. Já em um nível mais profundo, um sentimento qualquer, ultrapassa o instante, a superfície, a imediatez do contato da consciência com o fenômeno e se aprofunda e permito que o meu sentimento seja o mediador da relação com a pessoa que odeio ou amo ou sinto qualquer outra coisa. Sempre que a vejo, vejo-a através do meu ser odiante ou amante. O meu sentimento por ela passa a fazer parte do meu ser. Sabemos que, nesse caso, o sentimento, além de fazer parte de mim, se faz presente também por características do ser da pessoa a quem o dirijo, ratificando sua permanência para além de cada experiência de gosto ou desgosto. Parece que o processo é que inicialmente tenho uma experiência de repulsão (ou atração), mas esse ódio, ou esse amor, seja que sentimento for, transcendendo à experiência imediata, não se limita a ela: “O sentimento me vem e (...) ao mesmo tempo afirma sua permanência para além dele”. (Sartre, 1965). Mas eu não penso o tempo todo na pessoa que odeio (ou amo). Só penso nela quando alguma coisa me remete a ela: quando alguém me fala dela, ou quando ela aparece. Compreendemos, portanto, que o sentimento se dá exatamente na relação com o objeto, impõe-se como mediação entre mim e a pessoa, cada vez que a vejo. Assim, quando ela se torna meu objeto de consciência o meu sentimento se impõe por inteiro, impõe-se todo novamente. Como

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assinala Sartre, o sentimento “implica por ele mesmo uma distinção entre ser e aparecer, visto que se dá como continuando a ser, mesmo quando estou absorvido por outras ocupações e nenhuma consciência o revela. Eis o suficiente para se afirmar que o sentimento - quando profundo - transcende a intensidade da consciência e não se submete à sua lei absoluta, para a qual não há distinção possível entre a aparência e o ser. Um sentimento de profundo ódio, por exemplo, é um objeto transcendente. A diferença exata entre o estado daquilo que sinto pela pessoa que (por exemplo) odeio, e a simples repulsão que experimento por uma outra é que eu não apareci para minha consciência, o meu ser não estava implicado no futuro. Tratava-se de uma consciência irrefletida perante um objeto repugnável, essa qualidade de repugnável encontrava-se naquela pessoa naquele momento. O que ocorreu foi uma consciência sem Eu, que tomou como objeto aquela pessoa desagradável. Não há aqui a implicação do meu ser no futuro. Quando tenho uma experiência de repulsão com essa pessoa, não são essas experiências desagradáveis presentes na repulsão que medeiam a minha relação com ela. Assim, mesmo que nessa situação de cólera (ou paixão) eu dissesse que a odeio (ou amo), isso não seria verdade, pois o estado não depende da minha idéia, o estado, diferentemente da experiência de repulsão ou paixão, exige tempo para se consumar, e é transcendente ao que eu penso dela. Semana passada, para mudar de objeto de consciência, alterar um pouco sua rotina, Carlos, de férias no Rio, levou diversos alimentos para uma Instituição de Caridade que fica no bairro de Botafogo. Queria fazer uma higiene mental, mudar de objeto de consciência em relação ao trabalho. Carlos ajudou na cozinha e atuou servindo comida a centenas de pessoas que procuraram naquele dia aquele restaurante público beneficiente. No final do dia Carlos se sentiu orgulhoso por aquela ação, sentia-se bem ao ver pessoas

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carentes se beneficiando daquela ação. O fato é que olhando aquelas pessoas felizes após a refeição, Carlos também se sentia feliz e podia se ver na felicidade de cada rosto, de cada pessoa que ali esteve. Fica fácil neste exemplo observar que ‘servir refeições’ foi uma ação que Carlos realizou. Mas, do mesmo modo que os estados, as consciências irrefletidas que eram consciências de-refeições-sendo-servidas, precisam ser tomadas como objeto de uma consciência reflexiva para serem unificadas e apropriadas por mim: ações minhas. Verdade que nem todas as ações são tão evidentemente transcendentais quanto “servir refeições”. Queremos com isso destacar apenas que: “as ações puramente psíquicas, como duvidar, raciocinar, meditar, pôr uma hipótese, devem elas também ser concebidas como transcendentes”. Enquanto isso, do outro lado da cidade, Sheyla trabalhando no escritório observa que a nova secretária tem recebido muitas deferências especiais do chefe, tratamento gentis que ela que está ali há mais de cinco anos, jamais recebera. Sheyla, então, arquiteta um plano: envia flores para o chefe, para a residência dele, em nome da nova secretária. No cartão agradece o passeio de barco e o almoço na ilha. Tudo ficção, tudo invenção. Uma confusão é criada no casamento do chefe, e a nova secretária é demitida. Com este exemplo iniciamos a análise das ações de má-fé. Sheyla agiu de má-fé numa típica conduta popularmente conhecida como má-fé. Ela foi movida por ciúmes e pretendendo angariar mais atenção e afeto usou um recurso desonesto para criar uma situação insustentável que geraria, como gerou, uma demissão. Mas um outro exemplo, exposto pelo próprio Sartre em “O ser e o nada” capta melhor a atitude de má-fé que ocorre com mais sutileza. Trata-se da mulher que é convidada por um homem para jantar. O que procuramos ininterruptamente é escapar da angústia. Encontrar garantias, alguma segurança, é como se invejássemos a definição total do ser-em-si. Sartre chegar a tratar do ser-para-si-em-si

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como o grande alvo fantasioso do para-si que é dispor de uma essência e de escapar da angústia da existência que se faz e se refaz a todo tempo, gostaríamos de ter algo pronto que nos orientasse – valores, regras rígidas de conduta –, enfim, encontrar uma identidade definitiva, um porto seguro a partir do qual eu creia que aquilo vai continuar sendo sempre, e aí não preciso mais ter de escolher minha vida a cada momento porque já sou o que jamais deixarei de ser. Este é o sonho. Historicamente o mundo viveu isto. Esta é talvez a principal diferença de paradigmas entre a Era Moderna e a Pós-Moderna. O mundo vivia a prevalência da lógica racional binária de separação com determinismos absolutos, onde se via tudo compartimentado: alma ou corpo; razão ou misticismo; certo ou errado, etc. O paradigma que surgiu com a pós-modernidade chegou criticando as verdades absolutas dos positivistas, declarando que toda verdade é relativa. Mas as crenças absolutas da Era Moderna eram como muletas que nos ajudavam a ir levando a vida. Sem autenticidade, porém. E muitas vezes baseado no que Sartre chama de má-fé. Má-fé significa construir uma imagem de você e do mundo e se apegar àquilo. Como se aquilo fosse você. É uma tentativa de mentir para você mesmo. A partir daí se constrói alguma coisa com a qual você se identifica. Isso dá certa segurança, certa estabilidade nesse processo de existência. Todo mundo de uma maneira ou de outra tenta realizar isso para poder ter uma vida mais segura, mais estável, mais previsível e com menos conflitos porque a cada momento de escolha inevitavelmente se têm conflitos. A teoria da personalidade em Sartre, como não poderia deixar de ser, dá mais ênfase à ação do que a qualquer outra coisa. Para exemplificar como que Sartre compreende o processo de formação da personalidade, vamos aqui nos referir a um exemplo do campo da aprendizagem:

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Um dos processos pedagógicos de ensino de idiomas defende que é preciso falar para aprender e não aprender para falar. Quer dizer: você deve aprender um idioma da mesma forma como uma criança aprende a falar o idioma do país onde nasceu: ela ouve, repete, erra e aprende. Primeiro ela fala, depois aprende. Primeiro aprende a conversar, depois aprende a gramática, as normas cultas do idioma e etc. É mais ou menos assim, que segundo Sartre, a nossa personalidade se constitui: entrando em contato com as nossas ações, com as nossas experiências que depois serão consolidadas (ou não) na personalidade. Erlich apresenta assim essa questão em Sartre: “Se observarmos como a personalidade se constitui, notaremos que primeiramente ocorrem as experiências, e que estas, uma vez totalizadas constituem os estados e as ações e que as totalizações destes possibilitam as qualidades. É um caminho que vai sempre do concreto para o abstrato, da existência para a essência”. E prossegue esclarecendo que não nascemos com o ego constituído, mas ele vai constituir-se ao longo da nossa existência. É que primeiramente existimos, para depois nos essencializarmos. Portanto, estados e ações, em Sartre, são experienciados concretamente e vividos concretamente como uma mediação na relação com as pessoas, com as coisas que faço e assim demarcam minha identidade. As qualidades, por outro lado, são abstrações, totalizações dos estados e das ações. Elas são objetos transcendentes, mas não são experimentadas concretamente numa relação. Sou colérico, sou rancoroso, sou antipático, sou gentil, sou estudioso; estas são totalizações de estados e ações. As qualidades devem ser vistas por dentro, ou seja, como a própria pessoa unifica, totaliza estados e ações dela no mundo. Nesse sentido, as qualidades são facultativas,

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pois as pessoas podem ser estudiosas objetivamente, mas não se totalizarem como tal. Uma qualidade advém não da ação em si, mas da totalização que o sujeito faz de sua ação que torna algo. E o que significa se totalizar? É algo como se identificar com a ação e permitir que aquela ação (ou série de ações) fale por mim. É fundamental compreender que os estados e ações não decorrem das qualidades, mas, ao contrário, as qualidades são totalizações de estados e ações concretas no mundo. Vimos até agora que o ego é um objeto transcendente constituído por estados, ações e facultativamente por qualidades. Mas como esses elementos são articulados? Tem alguma coisa por detrás desses elementos que os organiza em forma de ego? Ou seriam já esses elementos os constitutivos do ser do ego? Pensemos essas questões mais concretamente. Será Carlos aquele que foi passar férias no Rio de Janeiro? Aquele que gosta de andar de bicicleta, aquele que admira ciclovias, que estava aprendendo a servir ao próximo como uma forma de melhorar como pessoa, isso tudo articulado constituindo o ser Carlos ou haverá por detrás dos seus sentimentos e ações alguma razão ou inteligência organizadora destes elementos? Se nos dedicarmos a perguntar o que será que governa os meus sentimentos e ações, cairemos no mesmo caminho dos metafísicos. Da mesma forma se começarmos a indagar como se dá a formação da intencionalidade, que é uma bela e instigante questão, mas que nos fará cair no mesmo lugar de onde quisemos sair ou onde não quisemos entrar. Então, pensemos em termos concretos. Sartre, nas suas investigações compara o ego a uma melodia e interroga se uma melodia necessitaria de um suporte para suas notas para que seja uma melodia, ou se antes, uma melodia não é exatamente a articulação direta das notas que a constituem.

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Assim, assinala Sartre que “é inútil, por exemplo, se considerar que uma melodia implicaria um X que lhe servisse de suporte às diferentes notas. A unidade vem aqui da indissolubilidade absoluta dos elementos que não podem ser concebidos em separado, salvo por abstração. O sujeito do predicado seria aqui uma totalidade concreta e o predicado seria uma qualidade abstratamente separada da totalidade, que só toma o seu sentido se a religarmos à totalidade”. Então, como não tem sentido, nem mesmo necessidade alguma de pensarmos que há um suporte para as notas de uma melodia, tampouco tem razão de ser, tendo como parâmetro a realidade, pensar que tem de haver um suporte que organizasse os estados, as ações e as qualidades, tal como as constatamos. Carlos é ciclista porque anda de bicicleta, Admira as pessoas que caminham pela orla porque gosta de pessoas assim. Carlos é exatamente isso, e não há nada objetivamente comprovável que demonstre alguma razão por detrás disso, que estivesse articulando esses estados, ações e qualidades. A articulação vem de tomar as experiências, estados, ações e qualidades como objeto de reflexão e ir constituindo-me, reconhecendo-me num processo como um ser que sente tal sentimento de ódio ou de amor, faz isto ou aquilo. Qualquer razão subjacente, anterior, qualquer suporte, seria alguma coisa que não é o que aparece: Carlos não é o que ama, odeia, anda de bicicleta, etc., etc, mas ele estaria por detrás de tudo isso, não se comprometeria com o que aparece. Por isso, “nós nos recusamos a conceber o ego como uma espécie de pólo que suportaria os fenômenos psicológicos, pois o ego não é indiferente aos seus estados: ao contrário, está todo comprometido neles.(Sartre). Se acatássemos a suposição de que há um articulado dos nossos estados, ações e qualidades, não poderíamos mais entender que sou aquilo que faço, que sinto, que sou. Sem dúvida o homem não é somente aquele que odeia, ou que ama, ou que isso ou aquilo. Mas é integralmente cada uma dessas

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coisas, cada um desses aspectos, para dar-nos conta de que fora da totalidade concreta dos estados e das ações que o constituem, o ego não existe. Porque o ego é uma totalidade transcendente, e cada componente desse objeto dá-se somente enquanto faz parte dessa totalidade. Trata-se de uma articulação de estados, ações e qualidades e não de um amontoado desses elementos. O ego não é mais do que a articulação desses elementos. Sim, o ego é um objeto transcendente à consciência que aparece na consciência reflexiva crítica. E a nossa questão é compreender de que forma ele se constitui como esse pólo articulador de estados, ações e qualidades. Constatamos que a consciência irrefletida independe totalmente da reflexão para existir. Desse modo, como o ego somente aparece por ocasião do ato reflexivo, fica verificada a sua descartabilidade para que a consciência irrefletida ocorra. Vimos também que, para que nos reconheçamos numa intervenção no mundo, ou nos qualifiquemos de determinada forma, primeiramente é necessário que ocorram consciências irrefletidas que possam ser totalizadas pela reflexão. Compreendemos, desta forma, que a consciência é na verdade a sustentação ontológica do ser do ego; que ela é anterior a ele e o constitui. E também compreendemos que o ego como pólo das ações, dos estados e das qualidades, é realizado pela criação contínua da consciência. As consciências se absorvem na relação com o mundo, que são autônomas em relação ao Eu, que não dependem deste, nem do seu julgamento para ocorrerem. De que forma compreendemos o EGO como um objeto psíquico transcendente, e o que vem a ser isso? Sabemos com Sartre que consciência para o existencialismo refere-se a “um ser para o qual, em seu próprio ser ergue-se a questão do seu ser enquanto este ser implica um outro ser que não si mesmo”, porque o principal ato de consciência de um ser é a consciência da existência de um outro ser. Sendo que o ser humano tem solidão porque é capaz de ter a

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consciência da existência de um outro ser humano (ser-para-outro). Uma pedra não tem consciência da existência de outra pedra.

Outra fórmula dessa mesma questão: “A consciência é um ser para o qual, em seu próprio ser, acha-

se a consciência do nada de seu ser”. Então: a consciência é consciente de nada ser, uma vez que em seu próprio ser ergue-se a questão de que ser implica necessariamente o outro e a consciência desse outro.

O “nada do ser” aponta para a sua natureza nadificada, o nada em aporte ou suporte, mas com um amplo campo de possibilidades à sua frente. O nada é um campo de possibilidades. Partimos sempre do nada em direção à busca da essência. Todo projeto existencial parte do nada.

O “não” é impossibilitador, negativador da possibilidade, negando transcendências futuras. Existem homens cuja realidade social é unicamente a do Não e viverão e morrerão sem ter sido outra coisa sobre a terra.

Quando o homem nadifica aquilo que ele mesmo diz; faz crer para não ser acreditado; afirma para negar e nega para afirmar; cria um objeto positivo que, no entanto, não possui outro ser senão seu nada.

Há consciências totalmente absorvidas no objeto. Há situações em que o EU não aparece e situações outras em que o EU aparece, e isto vai diferenciar consciência irrefletida e consciência reflexiva. No plano irrefletido não há EU e isto nos demonstra que não é o EU que nos possibilita refletir, e sim a consciência, porque o EU não aparece em todas as consciências que temos. Posso ter agora consciência de um barulho lá fora, um carro que passa, e o EU não se faz presente, apenas a consciência, então nesse caso não há participação da minha liberdade de escolha. O que queremos aqui é deixar clara a separação entre EU e CONSCIÊNCIA. Nas consciência de primeiro grau o EU não está presente, mas isto não impossibilita a reflexão, pois

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refletimos sem a necessidade de tomar o EU como objeto de consciência, pois a consciência que reflete não precisa do EU para refletir. SARTRE(1965) diz que “assim chegamos à conclusão de que a consciência deve ser considerada autônoma, pois não tem necessidade alguma de ser completada por outra consciência. E precisamos reconhecer por fim que a propriedade do desejo irrefletido consiste em a consciência se transcender para o objeto experimentando nele a qualidade de desejável”. Compreendemos, então, que o EU somente se faz em contato com seus objetos transcendentes, quando se dá a consciência intencional. O Eu nessa condição é denominado MOI (pronome da língua francesa). Antes disso o EU é denominado JE (outro pronome francês). Sem a possibilidade de consciência intencional o homem não exerceria liberdade e assim não estabeleceria como ser consciente, porque O HOMEM É.

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V - EM-SI E PARA-SI EM-SI A expressão Em-si (en-soi) significa que o mundo das coisas é

imutável, pleno em essência. Relaciona-se ao fenômeno com sua propriedade de completude e imutabilidade, ausência de consciência e de qualquer possibilidade de transcendência.

Sartre exemplifica o em-si assim: quando avistamos uma nuvem escura no céu, isto é prenúncio de chuva. E sabemos que em algum momento ela poderá ser levada pelos ventos para longe de nós, ou poderá se desfazer ali mesmo. Tanto indo embora quanto se desfazendo acima de nós nada disso vai significar que ela mudou, mas que ocorreu uma sequência do mesmo fenômeno, da mesma nuvem, que naturalmente e “sem vontade própria” se desfará em chuva, em algum lugar.

Uma nuvem, uma casa, uma roseira ou uma pedra, não mudam, pois não possuem consciência para isso. E onde não há consciência, não há existência. Sartre desenvolveu muitas das idéias de Heidegger entre elas a que conceitua como existência o conjunto das relações entre ela e o ser (o homem existe antes de ser), e entre a existência e todos os entes, através de um ente privilegiado, que é o homem, acrescentando que só o homem existe; as demais “coisas” simplesmente são, mas não existem. O homem é privilegiado por ser Liberdade, por possuir consciência e o dom da existência. Tudo isso lhe acarreta responsabilidade. E a fenomenologia-existencial vai ligar o tempo todo liberdade com responsabilidade, lembrando que quanto maior a consciência, maior a liberdade; quanto maior a liberdade, maior a responsabilidade.

O homem, portanto, só pode ser compreendido a partir da sua existência, da possibilidade (que lhe é própria) de ser ou não ser ele mesmo. Já as coisas são o que são, e não podem deixar de ser. Uma

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montanha é essencialmente uma montanha, assim como todos os objetos e também os animais: não transcendem.

Em meu livro “Crônica Existencial” (p. 24) explico que os animais não amam, mas instintivamente compartilham afetos próprios a uma natureza instintiva que carece de proteção, cuidado e presença. Por outro lado, o ser humano busca no amor mais que cuidado, proteção e presença, busca transcendência, e os animais não transcendem, já que a natureza é em-si.

Crianças de tenra idade são seres em-si porque, como os animais, requerem apenas cuidados primários de alimentação e proteção, requerem também afeto e amor, mas sem transcendência. Os bebês não amam como os adultos. Os bebês não transcendem, apenas demandam cuidado e quando recebem cuidado amam, seja lá quem for.

Contudo, as crianças desenvolvem consciência e esse desenvolvimento de consciência faz com que elas sejam naturalmente transportadas para a esfera da existência humana onde vão conhecer a Liberdade de fazer escolhas conscientes. Então, a presença da consciência é que afirmará a fundamental diferença entre as escolhas instintivas dos bebês e dos animais e as escolhas conscientes daqueles que amadurecendo desenvolvem consciência.

O “em-si” é o mundo, o mundo das coisas materiais. O “em-si” é o ser. Ele é idêntico a si mesmo. O “em-si” se esgota em ser o que ele é, e isso de um modo tão radical que consegue escapar à própria temporalidade e também se exclui da existência (ativa e passiva), já que esta atividade são formas humanas atinentes ao comportamento humano. Segundo Gerd Bornheim, o “em-si” está além da negação e da afirmação, que são produtos da consciência e possuem como pressupostos a relação com a consciência.

Finalmente, para Sartre, “o ser não é relação a si, ele é ele mesmo”. É uma imanência que não se pode realizar, uma afirmação que não se afirma, uma atividade que não pode agir, porque é

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empastado de si mesmo. Clarifica-se assim o sentido daquilo que é chamado de “ser-em-si”, o idêntico a si próprio.

PARA-SI

A expressão Para-si (pour soi) significa que do mundo, do contato com o mundo o homem, ser-no-mundo, extrai aquilo que irá constituí-lo. Como isto se dá? Sartre extraiu da filosofia de Heidegger a concepção da consciência como um nada e também o fundamento que distingue o para-si do em-si, ainda que as categorias de “ser-para-si” e “ser-em-si” contenham também reflexões hegelianas. O “ser-para-si”, no qual se consiste a consciência que envolve a consciência de si mesma é um nada no sentido de não ter essência e corresponde ao Dasein heideggeriano. Os seres humanos, enquanto seres conscientes, constituem-se a si mesmos por livre escolha, e a existência aliada ao inevitável livre-arbítrio, formam elementos fundamentais da filosofia de Sartre, e qualquer atitude de evitá-las implica naquilo que Sartre denomina de “má fé”, e o que constitui o para-si é a falta: se nada nos faltasse, nada seríamos. Mas não apenas a falta como necessidade de transcendência, mas sobretudo a falta como base identificatória daquilo que é, fundamentalmente, o para-si ou a consciência. A consciência de falta, a angústia da consciência da falta, isto é, do nada, reafirma diante de nós que a única possibilidade de existência é a ação. Então, posso dizer que sou o que não sou, à medida que aquilo que não sou (e que desejo ser)constitui o meu Projeto. Efetivamente não sou o que já fui. Sou o que quero ser. Eu deixaria de ser (ser-para-si) se deixasse de querer, ou melhor, se me fosse possível deixar de querer.

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O que somos? somos as nossas buscas, e o que nos constitui é o nada, porque ele é a minha base, essa condição de vazio cheio de possibilidades. Trata-se, propriamente, de um raciocínio filosófico, contudo fácil de entender, porque é como se chovesse depois de anos de seca e eu não tivesse nenhuma vasilha para recolher a água que cai e se esvai. O mundo acontece diante de mim, e nele me constituo como ser, sempre a partir desse nada que sou. Um nada que é expectativa de preenchimento. Portanto, o para-si é existência, é consciência, e tem o nada como fundamento.

O ser “em-si” se contrapõe ao ser “para-si”, pois o primeiro é o “ser do fenômeno” enquanto o segundo é o “ser da consciência”. Desse modo, ambos são diferentes. Daí a afirmação: “O ‘em-si’ é incriado e atemporal, o para–si autocria-se continuamente no tempo. Enquanto que o primeiro é sempre idêntico a si próprio, o segundo “não pode coincidir consigo”. Sartre, ao estudar o sujeito, ou seja, o “para-si”, o faz de maneira excepcional. O homem, grande tema de suas obras é aquele que introduz o não ser no mundo, aquele que modifica as coisas, contrário ao pensamento kantiano para o qual a origem do nada se daria através da negatividade, mas concordando com a posição heideggeriana de que é o nada que fundamenta a negação.

O nada não se pode anular senão na base do ser, se do nada pode seguir o ser, tal não acontece nem antes nem depois do ser, nem, de modo geral, fora do ser, mas, no próprio seio do ser. Sendo assim, o próprio homem decide o seu caminho. E o fato de Sartre afirmar que a existência precede a essência significa que, num primeiro instante, o homem existe, se descobre, aparece no mundo; e somente depois se define.

Em relação à temporalidade do para-si Sartre diz que as dimensões do tempo em termos de passado, presente e futuro devem

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ser compreendidas a partir de uma “síntese original”, pois o passado inexiste, a não ser quando existe ligação com o presente. O passado é vivido no presente. Daí a afirmação. O passado é marca do ‘em-si’. Enquanto o homem é consciente de si mesmo, no presente, ele vive segundo o modo do “para-si”, contudo, o seu passado tem todas as características do ‘em-si’.

E é dessa maneira que eu vivo o passado: inserido em mim e sem possibilidade de transformá-lo, já que ele “foi”, maciçamente “foi”, e em razão disso “está-ali”, pleno de características não modificáveis e sem qualquer possibilidade de variação. Portanto, eu não “sou” o passado, da mesma forma que o “era”.

Já o presente, para ele, é o absoluto “para-si”, a absoluta “presença” do sujeito diante do “em-si”; e consoante a natureza do “para-si”, isto reafirma e constitui a negação do ser, esta evasão para fora do ser enquanto o ser está lá, tal como aquilo que se evade.

A Parte 4 de O ser e o nada contém uma vívida descrição dos perigos de se permitir que o para-si seja dominado pelo em-si, o risco de deixar que a Liberdade seja usurpada por um mundo de coisas supostamente estável. O mundo de alguém que faz isso, diz ele, é viscoso, ou pegajoso e, na verdade, instável e falso. Sartre escreve a este respeito em termos do que chama de psicanálise existencial. É contra a psicanálise comum por dois motivos: em primeiro lugar, porque a postulação freudiana de um inconsciente é a postulação de algo incoerente, de uma consciência inconsciente (crítica esta que é válida apenas se são aceitos os termos de referência de Sartre – que o indivíduo é uma consciência); em segundo, porque tenta pôr em termos psicológicos, incluindo a sexualidade, o que é realmente matéria metafísica, ou ontológica – a solidão necessária do indivíduo em um mundo de fatos brutos, sem um Deus, em relação ao qual ele tem que exercer o livre-arbítrio.

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VI- SER-PARA-OUTRO Sartre descrevendo a questão da “existência do outro” chama a nossa atenção para uma dimensão da realidade humana constituída não pelo para-si mas pelo para-outro. E toma como exemplo o sentimento de vergonha. Ele diz que obviamente a vergonha é algo que sentimos diante de alguém. Não tenho vergonha se não sou visto. Por isto a vergonha não é reflexiva porque “no campo da minha reflexão só posso encontrar a consciência que é minha”13 Ele desenvolve então a idéia de que o outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo: “Sinto vergonha de mim tal como apareço ao outro. E, pela aparição mesmo do outro, estou em condições de formular sobre mim um juízo igual ao juízo sobre um objeto, pois é como objeto que apareço ao outro”. Sartre prossegue considerando a vergonha como um sentimento súbito, um “arrepio imediato” como diz em “O ser e o nada” Na ontologia fenomenológica sartriana, portanto, o outro surge como aquele que me constitui, o que me revela quem sou. Porque para além do sentimento de vergonha, de qualquer sentimento de inadequação que me sobrevenha no contato com o outro, o fato é que, segundo Sartre, necessitamos do outro para podermos captar plenamente todas as estruturas do nosso ser. É assim que o Para-si remete ao Para-outro. Mas quando Sartre quando trata do “obstáculo do solipsismo” neste mesmo capítulo “A existência do outro” reafirma que “só encontramos nas coisas aquilo que nelas colocamos” não estaria dizendo que aquilo que vejo (de vergonhoso ou honroso) em mim (despertado pelo meu encontro com o outro) seria algo que 13 O ser e o nada. P.290

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eu mesmo coloco (nos olhos, no juízo) do outro? E seria possível a mim colocar no outro algo que eu não tivesse em mim? O orgulho ou a vergonha que sinto quando o outro olha para mim é um orgulho ou uma vergonha que já existem em mim? Por que preciso do outro para entrar em contato com juízos e sentimentos que já são meus é o que trataremos a seguir. Sartre diz que a vergonha não existe sem a presença do outro, referindo que esta é necessariamente uma condição intermonadária, e o mesmo ocorre com a noção de vulgaridade, que desaparece quando se está só. Apesar de tudo isso, contemplemos o exemplo abaixo: Uma jovem senhora tinha uma cicatriz na nuca, um sinal de corte de faca, resultante de uma lamentável agressão que sofrera no final do seu primeiro casamento. Ela olhava a nuca no espelho e entrava em depressão. Muitas vezes ao se arrumar para ir ao trabalho, já pronta, se resolvesse dar mais uma olhada nos cabelos, e se virasse e inclinasse o rosto para ver a parte de trás, ao visualizar a cicatriz, perdia toda a disposição de sair para trabalhar, pois sabia que seria vista. Já havia feito algumas cirurgias mas o sinal permanecia. Até que lhe foi sugerido que usasse algum adereço, um lenço, uma gargantilha, enfim, algo que cobrisse a cicatriz para que não fosse vista sempre que seus cabelos, providencialmente longos, saíssem do lugar por causa do vento, por exemplo. Ela dizia que não sentia nada em relação aquela cicatriz, mas entrava em depressão se alguém visse. E mesmo antes de alguém ver, se ela mesma visse, sofria uma vergonha antecipatória e desistia de sair à rua. Ela, portanto, sentia vergonha diante do olhar do outro, mas apenas a remota hipótese de que esse olhar pudesse acontecer, já era suficiente para que ela sofresse, mesmo sem ser vista. Podemos concluir que o Para-outro está incluso no Para-si? Sartre responde a essa questão considerando que o outro aparece a

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mim como objeto à minha consciência e que “eu sou aquele que constitui o outro no campo de sua experiência”14 O meu corpo ao me colocar face a outro me possibilita ver como sou visto. Já aludimos no fundamento de consciência intencional que a consciência só se manifesta a partir da relação que mantém com outras consciências. Se, como disse Sartre em “O existencialismo é um humanismo”, quando eu escolho, o faço por todos os homens, isto fará com que o Para-si entre em permanente conflito com outras consciências, ratificando a famosa frase da peça “Entre quatro paredes” “o inferno são os outros”. De certo modo aquela mesma angústia vivida no Inferno de Sartre aparece sempre que sinto vergonha do meu corpo diante do olhar reprovador do outro (que possivelmente já era o meu próprio olhar). E mesmo diante do olhar que me honra e me envaidece a angústia pode advir da constatação de que preciso da aprovação do outro, já que além de ser um ser-no-mundo sou um ser-para-outro. Sartre coloca todo o fundamento do homem na sua autoconstrução. Tomando uma ilustração que ele faz em “O existencialismo é um humanismo” a respeito do homem covarde, vamos substituir pela palavra “criminoso”: “Quando o existencialista descreve um homem criminoso, este criminoso é responsável por seus crimes. Ele não é criminoso em função de seu pulmão, coração ou cérebro. Ele é criminoso por seus atos criminosos. Não há temperamento criminoso, há temperamentos agitados, ansiosos, nervosos. Ele é criminoso porque se construiu como um criminosos pelos seus atos. O que assusta as pessoas é que o criminoso que apresentamos é culpado de ser criminoso, porque o que querem é que digamos que um nasce criminoso, outro nasce bondoso. As pessoas querem pensar assim: “se você nasceu criminoso fique tranqüilo por que você nada poderá fazer contra isso e será cobrado durante toda a vida, independente do que você fizer; mas se você nasceu bondoso 14 Opus cit. P.301

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também fique tranqüilo porque você será bondoso a vida toda”. O que o existencialista diz é que o criminoso SE FAZ criminoso e o bondoso se faz bondoso. Há sempre uma possibilidade de o criminoso deixar de ser criminoso e de o bondoso deixar de ser bondoso. “Não há doutrina mais otimista do que o existencialismo visto que o destino do homem está em suas mãos.”15 15 O Existencialismo é um Humanismo, p.246

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VII- SER-NO-MUNDO O mais característico da expressão ser-no-mundo é sua unicidade, a precisa idéia de uma coisa única, de dois pólos que acontecem ao mesmo tempo, reunindo duas partes que criam uma unidade inseparável em sua concepção e funcionamento. O homem é um ser-no-mundo porque não há outra forma de se constituir a não ser no contato direto com o mundo das coisas, dos homens, e de tudo que existe no universo. Passamos muito tempo pensando que seria dentro de nós que nos encontraríamos e acharíamos o sentido maior da nossa existência, mas descobrimos que nada acontece enquanto não saímos de nós mesmos para ir ao encontro da vida. Descobrimos que a vida está no mundo, fora de nós, e que de modo algum poderia ser diferente, porque todas as nossas necessidades são externas. Interno é o pensamento, mas mesmo o pensamento pensa a respeito do que está fora de quem pensa. Quando repetimos que o homem é um ser-no-mundo isto não é uma mera reflexão filosófica ou um jogo retórico, porque se pensarmos adequadamente e com bastante simplicidade veremos que, rigorosamente, nada existe “em nós” que não esteja fora de nós. O desejo humano é que faz com que o homem se desenvolva, queira viver e não queira se deixar arrastar pela depressão. O desejo humano, a vontade humana é uma das molas propulsoras da vida, da ciência, da tecnologia, da fraternidade, do amor, da vida em sociedade e de tudo o mais que se possa pensar como crescimento e realização nesse momento. O homem não é um “ser desejante” no sentido de ter esse desejo como conteúdo de consciência. Não. Todo o desejo humano está fora dele, no mundo, e o homem somente deseja a partir de uma consciência intencional, de um ego transcendente que vai ao encontro desse mundo das coisas que operam desejo.

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Citando Sartre: “Não é em nenhum refúgio que nos descobriremos, é na rua, no meio da multidão, coisa entre as coisas, homem entre os homens”. É no mundo, é fora, que o homem encontra sentido para a existência. É no mundo que descobrimos coisas fundamentais como o fato de que temos grandes responsabilidades porque somos uma grande Liberdade, que vivemos num mundo decadente que todavia nos oferece tantas oportunidades de fazermos valer a nossa liberdade de escolha e as nossas potencialidades - que não são poucas - para alcançarmos realização, crescimento e dignidade. No mundo nos angustiamos, mas a angústia é também consciência de liberdade. Mesmo a morte é alavancadora quando nos traz a consciência de que é ela que dá sentido à vida. Uma forma de compreender Heidegger quando ele conceitua o ser-para-a-morte, é que ao descobrirmos que tudo na vida (a própria vida) tem um fim, em vez de nos afundarmos em angústia, nos voltamos para o afã de viver de forma plena. Se não fosse a morte, se não fosse o fim, certamente vivenciaríamos a letargia da falta de objetivo em um mundo estupidamente eterno. Portanto, o próprio homem cria sentido existencial para o seu ser-no-mundo, isto é, para si-mesmo, a partir das suas experiências existenciais no contato com esse mundo. A rigor não existe o sentido da vida fora daquilo que criamos como sentido. Não existe um sentido que se anunciará a nós, e nenhum sentido chegará até você. Primeiro porque há tantos sentidos na vida quanto homens há no mundo. Segundo porque será você mesmo o autor do sentido da sua própria existência. Quando vamos ao encontro da vida, do mundo, nos envolvemos em muitas experiências e sensações, positivas e negativas. As positivas achamos que é a obrigação da vida nos trazer, já as negativas nos levam a reclamar da vida e quase querer levá-la a um Tribunal por não cumprir inteiramente sua promessa de perene

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felicidade feita a nós. Dificilmente refletimos que todos os nossos sentimentos são causados naturalmente pelo movimento da vida e que muitos deles são simples decorrências dos nossos próprios e livres envolvimentos. E mais: o mundo é muito grande, cheio de belezas e horrores. Somos seres nesse mundo. É nele que vivemos e crescemos. Precisamos aprender a aceitar. Durante a vida experimentamos muitas alegrias e prazeres, mas há sentimentos que nos trazem dor. Aqui vou destacar dois desses sentimentos: decepção e culpa. Sartre não admite as causas inconscientes dos fatos psíquicos, para ele tudo está na mente consciente (consciência intencional e ego transcendente como já vimos exaustivamente até aqui) então, quando falamos de qualquer sentimento que temos, de decepção, por exemplo, precisamos refletir acerca do nosso papel na criação desse sentimento, porque se se fala em decepção é porque alguma expectativa minha foi frustrada. Toda decepção é contraponto de uma expectativa, e toda expectativa é resultante de uma escolha livre e consciente. Se sou eu que escolho minhas expectativas, não seria demais concluir que eu mesmo escolho minhas decepções. E mesmo que seja difícil admitir, continuo consciente e escolhendo e às vezes repetindo as mesmas escolhas decepcionantes. Mesmo na decepção que sofro, eu sei que sou eu aquele que me decepciona. Possivelmente o que mais nos machuca em uma decepção é a ilusão de que poderíamos evitá-la fazendo uma escolha diferente. Nem sempre é assim. Quanto mais prepotentes mais profundamente sofremos com decepções, pois se nos convencêssemos que não somos perfeitos e nem capazes de prever o resultado das nossas escolhas, seríamos mais tolerantes conosco mesmos. Metade do tamanho da dor da nossa decepção chama-se intolerância própria. Analisei o sentimento de decepção na ótica sartriana, mas gostaria de examinar a questão da culpa na descrição de Heidegger.

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Inicialmente é preciso relembrar o conceito de decadência em Heidegger que a tem como uma determinação existencial do homem lançado ao mundo. Decadência se refere à facticidade do homem que se encontra o tempo todo exposto à volatilidade e imprevisibilidade do cotidiano mundano sem garantias de qualquer natureza. Decadência é o estar-no-mundo, ainda que o homem conte com a possibilidade de sair da decadência (sem sair do mundo) e imergir para a intimidade do seu ser edificando continuamente essa sua existência fáctica na cotidianidade.

A culpa, por seu turno, é um determinante (fundamento) ontológico do homem decadente. Fundamento das situações de queda e de falta do dasein fático; um determinante ontológico do homem como ser-no-mundo, no existencial da facticidade mundana. É, portanto, um modo de ser do dasein fático e, neste sentido, é o modo de ver, receber e se portar existencialmente diante daquilo (a culpa) que não lhe é possível escapar, já que não se pode ser sem culpa, não enquanto vivemos, enquanto somos no mundo. Entendo que não há porque sentir culpa da culpa, já que ela está no mundo onde homem está e não pode deixar de estar em nenhum sentido. Contemplo a culpa como possibilidade de reedificação, fortalecimento e crescimento

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VIII – O EXISTENCIALISMO O existencialismo é uma corrente filosófica que destaca a liberdade individual, a responsabilidade e a subjetividade do ser humano, considerando cada homem um ser único, senhor dos seus atos e do seu destino. É um movimento filosófico nascido na Alemanha com a influência inicial da fenomenologia de Husserl. O existencialismo coloca no centro da sua reflexão a existência humana na sua dimensão concreta e individual. Sartre é o principal pensador existencialista, embora não o tenha fundado. O marco inicial está em Kierkegaard, mas a filosofia da existência enraíza-se numa distante descendência de pensadores. Mas podemos tomar Kierkegaard e Sartre como os principais construtores do pensamento existencial. A máxima existencialista é que a existência precede a essência, ou seja, o homem existe, se descobre, surge no mundo e só depois se define. Ele não é mais do que aquilo que ele próprio faz.

As bases do existencialismo encontram-se na obra do pensador dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855), florescendo como movimento filosófico na Europa durante o período compreendido entre as duas guerras mundiais e nos anos cinqüenta e sessenta, com Martin Heidegger (1889-1976) e Jean-Paul Sartre. Trata-se, então, de uma corrente filosófica e literária que evidencia como fundamentais ao homem a liberdade individual, a responsabilidade e a subjetividade, pois cada um é senhor dos seus atos e do seu destino.

A princípio se pode pensar que há um desprezo à coletividade, mas na verdade o existencialismo apenas não toma a coletividade como fundamento principal do crescimento individual, embora se saiba que tanto Sartre quanto Heidegger compreendiam que a natureza e o percurso de vida de um indivíduo não pode desgarrar-se da natureza e percurso da sociedade à qual pertence. Heidegger

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entende que o ser da realidade humana define-se como ser-no-mundo (que enfoca o aspecto interdependente entre um pólo que é o indivíduo (ser) e a sociedade em que ele vive (mundo)16 Ou seja, "a realidade humana não pode se desgarrar do mundo".17 Por volta dos 20 anos de idade, um dos principais interesses do jovem Jean-Paul era travar apaixonados debates sobre o tema “liberdade do indivíduo”, e fazia isto nos corredores da Sorbonne (Escola Normal Superior de Paris). Em salas e páteos, amigos de Sartre costumavam se reunir para discutir filosofia e foi neste ambiente que ele conheceu Simone de Beauvoir ao debater problemas como “o papel do homem e suas idéias na história”, e “a interação homem-sociedade”; questões que refletiam o estado de espírito da geração do pós-guerra. O primeiro conflito mundial (1914-1918) originou na juventude um sentimento de angústia que se exprimia em perguntas como: até que ponto o homem pode agir sobre a realidade e influenciar, com seu pensamento, a marcha da história? Em que medida a realidade segue um caminho independente, esquivando-se ao controle dos indivíduos? Respostas eram buscadas na filosofia de Kierkegaard, onde a díade existência-realização é uma questão pessoal (e não coletiva como queria Marx), com os homens sozinhos e perdidos no mundo, procurando soluções individuais para a angústia e o desespero de viver. Kierkegaard pensava que o mundo precisava mais da ação individual que da coletiva, e isto se tornou um dos pilares do existencialismo. Tal preocupação com o resgate da importância da ação individual junto com o interesse por uma filosofia do cotidiano, do homem, da existência, fizeram com que Sartre manifestasse insatisfação com a filosofia que então se apresentava excessivamente idealista, ou demasiadamente realista, sendo o idealismo a "visão que sustenta que a realidade consiste de algo não-material, seja mente, 16 SARTRE. O Existencialismo é um Humanismo. p.59 (1947). 17 Opus cit.

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seja espírito18", e o realismo, em sua forma concreta, como surge na filosofia do irlandês George Berkeley (1685-1753), "O que existe é o que vemos e tocamos. O que não vemos e não tocamos não existe"19. Surge então, então, mais tarde, o existencialismo, como um caminho alternativo entre essas duas filosofias. Assim, em torno de 1931, num Café de Montparnasse com Raymond Aron (1905-1983), ex-colega da Escola Normal, Sartre começa a delinear seu existencialismo. Aron voltava de Berlim onde estudara a fenomenologia do filósofo Edmund Husserl (1859-1938). Simone de Beauvoir20, presente na ocasião, relata o encontro em suas memórias: “Está vendo, meu amigo, afirmara Aron apontando seu copo; ‘se você é fenomenologista, pode falar deste coquetel e estará falando de filosofia21’”. Sartre foi tomado de emoção ao ouvir essas palavras, pois era exatamente isso que ambicionava havia anos: falar das coisas tais como as tocava, e que isso fosse filosofia. Aron convenceu-o de que a fenomenologia atendia exatamente a suas preocupações: ultrapassar a oposição do idealismo e do realismo. O realismo a que se refere Simone de Beauvoir é o materialismo, que vê nas “coisas” (na economia, na sociedade) o essencial, enquanto o idealismo vê esse mesmo "essencial" no pensamento e na consciência do indivíduo. Sartre cita Husserl para mostrar como ele eliminou essa oposição, ao afirmar: “Toda consciência é consciência de alguma coisa” 22, isto é, as idéias só existem porque são idéias sobre coisas.

18 MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes, SP, 1998.

19 Opus Cit. 20 BEAUVOIR, Simone. Memórias de uma moça bem comportada.

São Paulo: Difel, 1960. 21 Opus cit, p. 58 22 HUSSERL, Edmund apud SARTRE, Jean-Paul, 1943, p. 22.

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Idéias e coisas não podem ser separadas e constituem, para o filósofo alemão, um único fenômeno, um único processo. Atraído pela fenomenologia, Sartre resolveu passar um ano estudando em Berlim (1933). Além da doutrina de Husserl, também investigou as teorias existencialistas de Heidegger e Jaspers, que aprofundavam idéias de Kierkegaard sobre a angústia e o vazio da existência humana. No espírito de Sartre, começava a amadurecer uma nova filosofia, misto de existencialismo e fenomenologia. "A Náusea" foi o primeiro trabalho, em que Sartre expôs idéias e sentimentos acerca do homem e da vida.23. Antoine Roquentin, protagonista, é como Sartre, um intelectual do pós-guerra, solitário e sem raízes. Mora sozinho em local imaginário da província francesa, sem amigos, sem mulher. Nada para ele importa; nem os outros homens, nem ele mesmo. Freqüentemente, sua angústia leva-o a uma sensação de náusea. Nestes momentos, descobre certas "verdades existenciais": o mundo não tem razão de ser e “tudo é gratuito: este jardim, esta cidade, eu mesmo” – afirmação característica da doutrina existencialista, que, refletindo a descrença da juventude na vida e no futuro, não encontra sentido em nada, e considera o homem uma simples “coisa” que “existe”, tão importante quanto uma pedra ou uma árvore. Aqui cabe reesclarecer um fundamento do existencialismo que é a existência da consciência que dá ao homem a condição especial de homem, e o diferencia das coisas sem consciência. Mas, como sem consciência não há liberdade, o homem sem liberdade torna-se uma coisa, um objeto qualquer. A geração que aqui citamos, traumatizada pela guerra, preparar-se-ia para enfrentar outro conflito. Ainda em Berlim, Sartre presenciara a ascensão de Adolf Hitler (1889-1945) e do nazismo. De volta à França, encontra uma atmosfera agitada e pouco depois, 23 SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. Nova Fronteira, 1977.

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assistia à vitória da Frente Popular e à crise social e política de 1936. Neste mesmo ano, explode na Espanha a guerra civil (1936-1939) cujo cenário serviria mais tarde à inspiração do seu “A idade da razão”. Enquanto muitos jovens se engajavam como voluntários na Revolução Espanhola, os existencialistas reuniam-se nos cafés, exprimindo seu ódio ao nazismo e ao fascismo, mas permanecendo fundamentalmente preocupados com problemas individuais e questões abstratas. Neste período Sartre procurava transpor suas idéias filosóficas para o terreno da psicologia. Em 1936, publicou “A Imaginação” e “A Transcendência do Ego”. Três anos mais tarde, apresentou “Esboço de uma teoria das emoções” (1939). Nestas obras apresenta a sistemática da doutrina existencialista, segundo a qual os homens simplesmente existem. Isto, porém não implica uma total liberdade, pois não há existência abstrata, e sim concreta, num momento determinado, numa situação determinada. E tal “situação”, que limita e condiciona a existência dos indivíduos, nada mais é que a sociedade com suas regras e sua moral. Normalmente, no cotidiano, o homem a suporta, sem mesmo percebê-la, entorpecido pela rotina. Mas, “existir” no sentido etimológico é "sair de". Conforme diz Sartre (1932) em ”A Náusea": “Por definição, a existência não é a necessidade; existir é simplesmente estar presente” e "Sei muito bem que não quero fazer nada: fazer alguma coisa é criar existência” 24. A definição de existência é compreendida como movimento, mesmo no contexto desse livro em que o protagonista expressa seu nauseante pessimismo e desânimo diante da vida. E isto fica claro ao admitir que, apesar de sua evidente indisposição, a existência se cria no fazer. Sartre sinaliza, assim, para a importância de se movimentar a existência, ainda que as circunstâncias favoreçam a imobilidade. Há 24 SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. São Paulo:Círculo do Livro S.A., 1987 pp. 199 e 260

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consciência nesse movimentar, nesse seguir em frente, independente das circunstâncias, uma vez que nada surgirá no homem e para o homem que não tenha sido feito por ele mesmo. Assim, esse homem está por sua consciência, sempre além de si mesmo (e das suas circunstâncias), ainda que seja verdade que há limitações à liberdade, especialmente em função da cultura política e social25. Eis o sentido do 'ex-istencialismo'." Conhecida como a mais radical filosofia do homem na época contemporânea, a corrente existencialista assimilou forte influência da Fenomenologia de Edmund Husserl, que propunha a descrição dos fenômenos tais como eles se apresentam, sem nenhum pressuposto de como eles sejam na verdade. Para o existencialismo, a fenomenologia de Husserl significou um interesse novo no fenômeno da consciência. Então, a partir dela, os principais postulados do Existencialismo vão apontar para a visão do ser humano em sua dimensão subjetiva, como indivíduo, e não com teorias gerais sobre ele, dando relevo a uma preocupação com o sentido ou o objetivo da vida humana, mais do que com conhecimentos apriorísticos sobre ele. Há também o entendimento de que o ser humano não foi planejado para uma finalidade ou destino, como se fosse um objeto, porque na verdade ele se constitui em sua própria existência, mediante suas escolhas. Tanto a falta de sentido quanto a liberdade, conseqüências da indeterminação aqui aludida, mais a permanente angústia e o desespero da descrença em si mesmo; apontam para a ênfase do existencialismo na liberdade dos indivíduos como a propriedade humana mais importante, da qual ele não poderá fugir. O existencialismo sartreano herdou do pensamento de Kierkegaard a rejeição ao determinismo lógico hegeliano (tudo está logicamente predeterminado para acontecer). 25 Sobre essa limitação sociopolítica à liberdade, ver SARTRE, Jean. O Ser e o Nada (1943) P. 538

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É de Kierkegaard a idéia original existencialista de que não existe qualquer predeterminação em relação ao homem, e que esta indeterminação e liberdade o leva a uma permanente angústia26 e que o homem tendo diante de si várias opções possíveis, é inteiramente livre e não se conforma a um predeterminismo lógico, ao qual, segundo o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich HEGEL (1770-1830), estão submetidos todos os fatos e também as ações humanas. Conseqüentemente não se pode, também, fazer qualquer afirmativa sobre o homem, porque cada um se define a si mesmo, numa verdade “para si”. Eis porque o existencialismo afirma que a existência precede a essência, e que o homem está totalmente livre e é o único responsável pelo que faz de si mesmo, influenciando diversos filósofos franceses, entre os quais Gabriel Marcel, filósofo católico, que se tornou um expoente do existencialismo cristão27, acolhendo, portanto, tendências diversas numa mesma filosofia. Evolução importante do existencialismo sartreano referiu-se à diferença entre um primeiro período, de exaltação à liberdade individual (que em seus estudos da época dava à liberdade certo valor autônomo), e um segundo, que após as lições da guerra, voltou-se mais para o conceito de responsabilidade social. Nessa nova visão Sartre escreveu "Os Caminhos da Liberdade", trilogia literária que inicialmente se comporia de quatro livros, mas em lugar do quarto volume quis fortalecer a dramaturgia, área em que já havia trabalhado durante a guerra. Apesar de tais peças fazerem uma abordagem 26 Ver KIERKEGAARD, S. O conceito de angústia. São Paulo: Hemus, 1968. 27 Sartre especifica a diferenciação entre as duas escolas do existencialismo, a dos existencialistas cristãos Jaspers e Marcel e os ateus Heidegger e o próprio Sartre, afirma que a única coisa que une estas duas correntes é que a existência precede a essência. Ou se preferir é necessário partir da subjetividade. O existencialismo ateu afirma que, se Deus não existe há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito. Este ser é o homem, ou melhor, a realidade humana.

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pessimista do relacionamento humano, enfatizando a hostilidade natural do homem para com seu semelhante, sempre deixava antever, contudo, uma possibilidade de remissão e salvação. No ensaio "O existencialismo é um Humanismo", (1946), Sartre esclarece o significado ético de sua filosofia como consta em “O ser e o nada”, respondendo a críticas e dúvidas relacionadas à sua principal obra. Aqui queremos destacar a crítica advinda do marxismo que o acusou de isolar o homem, trancando-o numa subjetividade egoísta e burguesa, a qual Sartre respondeu com a chamada “tese da solidariedade universal”, destacando a universalidade da condição humana, que acentua seus limites apriorísticos no mundo; e pelo caráter universal do projeto humano, indicativo de que, o homem, ao se escolher, escolhe a própria humanidade. Então, toda ação individual humana é também social e universal, na medida em que todo homem representa a coletividade da realidade humana.

Na década de 1950, entretanto, Sartre adota um posicionamento político mais intenso, e adere ao comunismo, tornando-se um ativista e posicionando-se publicamente em prol da libertação do povo argelino do colonialismo francês. O flerte com o marxismo inicia a segunda parte da sua vida filosófica, buscando a conciliação entre idéias acerca da autodeterminação humana (princípio caro ao existencialismo) e postulados marxistas. Como ilustração disso se pode citar a admissão de que forças socio-econômicas, que escapam ao nosso controle individual, fazem parte do elenco de limitações à nossa liberdade de escolha e por isso possuem a força de modelar em grande parte as nossas vidas. A partir dessas idéias Sartre publica em 1960 sua segunda obra filosófica de grande expressão: "A crítica da razão dialética", na qual faz apologia de valores humanos marxistas, e introduz uma versão adaptada do existencialismo que ele entendia resolver as contradições entre essas duas doutrinas.

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Visto por muitos como símbolo do intelectual engajado, Sartre costumava adaptar sua prática às suas idéias, como um ato político. Em 1952, em uma de suas muitas alternações de relações com o comunismo, ingressa no Partido Comunista Francês, para em 1956 romper essa aliança e escrever "O Fantasma de Stálin", no qual condena veementemente a intervenção soviética e a submissão do Partido Comunista Francês aos ditames de Moscou. Essa atitude crítica ensejou um livro aqui já citado: "Crítica da Razão Dialética", obra sobre afinidades do existencialismo com o marxismo. social e universal, na medida em que todo homem representa a coletividade da realidade humana.

Na década de 1950, entretanto, Sartre adota um posicionamento político mais intenso, e adere ao comunismo, tornando-se um ativista e posicionando-se publicamente em prol da libertação do povo argelino do colonialismo francês. O flerte com o marxismo inicia a segunda parte da sua vida filosófica, buscando a conciliação entre idéias acerca da autodeterminação humana (princípio caro ao existencialismo) e postulados marxistas. Como ilustração disso se pode citar a admissão de que forças socio-econômicas, que escapam ao nosso controle individual, fazem parte do elenco de limitações à nossa liberdade de escolha e por isso possuem a força de modelar em grande parte as nossas vidas. A partir dessas idéias Sartre publica em 1960 sua segunda obra filosófica de grande expressão: "A crítica da razão dialética", na qual faz apologia de valores humanos marxistas, e introduz uma versão adaptada do existencialismo que ele entendia resolver as contradições entre essas duas doutrinas.

Visto por muitos como símbolo do intelectual engajado, Sartre costumava adaptar sua prática às suas idéias, como um ato político. Em 1952, em uma de suas muitas alternações de relações com o comunismo, ingressa no Partido Comunista Francês, para em 1956 romper essa aliança e escrever "O Fantasma de Stálin", no qual

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condena veementemente a intervenção soviética e a submissão do Partido Comunista Francês aos ditames de Moscou. Essa atitude crítica ensejou um livro aqui já citado: “Crítica da Razão Dialética” obra sobre afinidades do existencialismo com o marxismo.

Provavelmente Sartre se colocava como marxista, crítico, porém. Parece que ele não se sujeitava docilmente a tudo que emanava de Moscou para ser cumprido pelo resto dos países comunistas, além das claras e insistentes diferenças entre as doutrinas. O que sempre ficou de impressão era que, se fosse possível, Sartre criaria o marxismo existencialista, que faz referência a uma subjetividade existencial, na qual o homem não atinge apenas a si mesmo, mas aos outros homens, como condição de sua existência. O que o cogito revela é a intersubjetividade, na qual o homem decide o que é e o que são os outros. Não há natureza, mas condição humana. O homem é sempre "situado e datado", embora o conteúdo de sua situação varie no tempo e no espaço. A liberdade não se exerce no abstrato, mas na situação. O homem é um "para si", que a rigor não é nada, uma vez que a consciência não tem conteúdo e, portanto, não é coisa alguma. Mas esse vazio é a liberdade fundamental do "para si". É a liberdade, movendo-se, através das possibilidades, que poderá criar-lhe um conteúdo. É partir da aceitação dessa liberdade que gera responsabilidade que o homem vê sentido e propósito na vida, afinal se depara com a verdade final de quem o constituirá é ele mesmo. Contudo, ao vivenciar essa liberdade, ao sentir-se como um vazio, e ao experimentar essa angústia da escolha o homem pode não suportá-la. Muitas pessoas não suportam essa angústia e fogem dela aninhando-se na má fé, entrando numa condição em-si. A má fé é a atitude característica do homem que finge escolher, sem na verdade escolher. Imagina que seu destino está traçado, que os valores são dados; aceitando as verdades exteriores, "mente para si mesmo", que é o autor dos seus próprios atos. Não se

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trata propriamente de uma mentira, pois esta supõe os outros, para quem mentimos. A má fé se caracteriza pelo fato de o indivíduo dissimular para si mesmo, a fim de evitar fazer uma escolha, da qual possa se responsabilizar. Torna-se “salaud” (safado), segundo curiosa expressão sartriana. Com efeito, safado é aquele que “se safa”, nesse caso via má-fé, representando o homem que recusa a si mesmo aquilo que fundamentalmente o caracteriza como homem, ou seja, a liberdade. Nesse processo recusa a dimensão do "para si", torna-se um "em si", semelhante às coisas. Perde a transcendência, reduz-se a facticidade. Sartre também chama esse comportamento de “espírito de seriedade”. O homem sério é aquele que recusa a sua liberdade para viver o conformismo e a "respeitabilidade" da ordem estabelecida e da tradição. Esse processo é exemplificado no conto "A infância de um chefe". Um tipo de má fé descrito por Sartre é do garçom que age não como um "para si", mas como um "ser para o outro", comporta-se como deve comportar-se um garçom, desempenhando o papel de garçom, de tal forma que ele se vê com os olhos dos outros. É assim que Sartre descreve em "O ser e o Nada": "consideremos esse garçom do Café. Ele tem um gesto vivo e apurado, preciso e rápido, dirige-se aos consumidores num passo demasiado vivo, inclina-se com demasiado zelo, sua voz e seus olhos experimentam um interesse demasiado cheio de solicitude para o pedido do freguês (...), ele representa, brinca. Mas representa o que? Não é preciso observá-lo muito tempo para perceber: ele representa ser garçom de café". Outro tipo de exemplo de má fé é o da mulher que, estando com um homem, dissimula para si mesma o caráter do encontro, deixando-se "seduzir" por ele. Desde o momento em que ele a convida para um jantar à luz de velas ela finge que não entende a conotação do encontro. O ápice é quando ele toma-lhe a mão e em vez de retirar a mão ela a “abandona” num movimento típico de má-

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fé: não deu a mão nem a retirou, como um ser-em-si, não se comprometeu, deixando toda a responsabilidade do que estava acontecendo com o cavalheiro. Estes dois exemplos constam em “O ser e o nada”, ensaio de ontologia fenomenológica, onde Sartre propõe sua filosofia baseado na ontologia existencialista de Martin Heidegger. O ponto de partida é o "projeto" de vida do indivíduo, que se choca com os projetos dos outros. Não existe a humanidade, a não ser como característica dos indivíduos humanos que embora diferentes todos uns dos outros, são humanos porque contém a humanidade ou dela participam. O indivíduo, enquanto tal, naquilo que apresenta de particular, é o objeto de percepção sensível e não de apreensão intelectual. Dizer-se de determinada flor que é uma rosa vermelha, é designar o particular por meio do universal, pois o termo “rosa vermelha” não pertence apenas à flor atualmente percebida. No entanto, tal designação se prende ao fato de que é essa rosa e nenhuma outra que existe aqui e agora como conteúdo ou objeto da minha percepção. Não há como expressar em palavras uma individualidade. A menos que se fotografasse a rosa e a apresentasse, não há nomes ou termos que exprimam adequadamente o indivíduo. Essa é a razão pela qual, Aristóteles dizia que o indivíduo é "inefável" (o que não pode ser dito), o que equivale a dizer que a realidade é irredutível ao conceito ou a existência irredutível à essência.

Conclui-se que o existencialismo é uma filosofia da ação, já que a única coisa que define o homem é o seu ato. Ato livre por excelência, mesmo que o homem esteja sempre situado num determinado tempo e lugar. Não importa o que as circunstâncias fazem do homem, "mas o que ele faz do que fizeram dele".

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Em suma, alguns dos pontos centrais do existencialismo sartreano:

1) O homem surge primeiramente no mundo (existência), depois é que constituirá sua essência (o que virá a ser), porque não há essência prévia para o ser humano, um ser para si, livre e capaz de definir sua essência.

2) O homem se constitui em contato com o meio, numa relação dialética entre o ser e o mundo, a realidade objetiva na qual está inserido, e isto é entendido como intersubjetividade.

3) Ao negar a sua liberdade o homem não apenas age de má-fé, como também renuncia à sua própria natureza livre e consciente, agindo numa condição em-si.

4) A condição em-si é o que caracteriza aquilo que é desprovido de consciência: as coisas e os animais, por exemplo. "As coisas não existem, as coisas são".

5) A existência é o caminho do ser consciente. E é nessa mediação de caminhada no percurso da existência, que o ser constrói a sua essência.

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IX - A SOCIOFENOMENOLOGIA DE MAFFESOLI

CARACTERÍSTICAS DA SOCIALIDADE Tribalidade – Uma subjetividade comum, a paixão partilhada. A tribalidade surge para promover a desindividualização. A fase tribal (metáfora da tribo) faz surgir um novo paradigma cultural: um ponto de vista mais emotivo em relação ao mundo. As tribos são fluidas, cooperativas, práticas e casuais. São redes de amizades pontuais: reafirmação do sentimento. Comunidades emocionais - Aspecto efêmero, composição provisória, inscrição local, ausência de organização, estrutura cotidiana. Maior emotividade no modo de ver o mundo, dando maior lugar ao prazer, à emoção, à sensibilidade. A socialidade de Maffesoli é fenomenológica porque tem por objetivo olhar aquilo que é dado, vivido, aquilo que é, e não o que “deveria” ser, E porque insiste na dimensão do presente, caracteriza um conceito chave que é o presenteísmo: “viva o presente sem perspectivas futuristas”,

Neste capítulo trazemos os estudos da personalidade numa abordagem sócio-fenomenológica a partir das pesquisas do sociólogo francês Michel Maffesoli que estudou o comportamento humano e social a partir dos impactos causados pelas invenções e inovações tecnológicas da Era Pós-Moderna. Tais impactos transformaram o ser humano e os seus modos de relacionamento social. Aqui veremos por que a obra de Maffesoli é tão decisiva para uma abordagem fenomenológica da sociedade contemporânea ocidental, nós que somos testemunhas oculares e vivenciais de uma

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era de magnífico avanço tecnológico que revolucionou completamente a nossa forma de ver e viver a vida. O mundo viu o seu desenvolvimento técnico ocorrer de modo admirável. O objeto de estudo de Maffesoli são as radicais transformações ocorridas no comportamento psicossociológica a partir de uma série de revoluções tecnológicas ocorridas nos últimos trinta anos, mas ele toma para análise toda a época da pós-modernidade, que Bauman chama de “modernidade líquida”. Não há como definir o início exato da pós-modernidade e há até quem denomine nossa era de moderna, ignorando o prefixo pós, mas para efeitos destas reflexões vamos considerar que a pós-modernidade teve o seu início na década de 70, como alguns autores consideram. Na verdade as grandes invenções já começam na alvorada do século XX com a invenção do automóvel em 1901, o ar-condicionado em 1911, o gravador em 1938 e o computador em 1946 (quem em nada se compara com as máquinas atuais). Em 1950 uma genial invenção: a televisão e em 1968 a máquina fotocopiadora. Se olharmos o dado “invenções tecnológicas” e como tais invenções revolucionaram nossas vidas, vamos verificar que a partir de 1970 foram criados vários itens que surgiram como grandes novidades, sendo que alguns, admiravelmente, já estão obsoletos. Aliás, a obsolescência e a descartabilidade passaram a ser a tônica das próprias invenções “que não são feitas para durar”, mas para surpreender. E as pesquisas tecnológicas nunca param, pois o objetivo é sempre inovar. Em 1970 surgiu o vídeo-cassete, assim como o vídeo-game e a calculadora de bolso. O surgimento desses itens não significa que já estavam à venda nesse mesmo ano e nem significa que já estavam disponíveis no Brasil. Algumas invenções eram a princípio criações primárias não-comercializadas porque ainda não tinham sido produzidas em escala industrial. Em 1973 o forno microondas e o primeiro computador pessoal fabricado pela Microsoft. Em 1978 a

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aviação ficou mais moderna com a chegada do primeiro Boeing 767 e em 1979 surge o walkman, grande novidade que se tornou o assunto de todos, especialmente dos jovens, no mundo todo. Nesse mesmo ano chegam ao Brasil para comercialização os primeiros vídeo-cassetes. Em 1980 é inventada a Internet, mas ainda por muitos anos ninguém a teria, já que surgiu neste ano apenas como estudo tecnológico e aplicação muito restrita. Neste mesmo ano é criada a Tv a cabo e o controle remoto que também virou febre. Todos queriam ter uma TV com controle remoto para não levantar do sofá na hora d emudar o canal, ademais surgia como um comportamento chic a divertida novidade de controlar a TV à distância. 1988 - ano de invenção do Fax e no ano seguinte os primeiros vidros elétricos começavam a ser instalados nos carros. Também em 1989 começaram a ser fabricados os ultra-modernos aviões MD-11. 1991 – Surge uma grande novidade: o CD (Compact Disc) que começa a substituir os enormes discos de vinil. A partir de 1993 começa a funcionar a Internet no Brasil, a princípio ainda modo “discado” lidava-se com alguns problemas de conexão, mas oito anos após foi inaugurada o acesso “banda larga” transformando totalmente a maneira de comunicação entre as pessoas, modificando os hábitos de pesquisa e criando os contatos instantâneos à distância. UOL (Universo Online), AOL (America Online) e TERRA são os principais provedores. Logo após surge o IG (Internet Grátis). 1995 - Câmera digital e 1998 – Aparelho DVD para aposentar o utilíssimo vídeo-cassete. 1999 – Disc Man para substituir o já clássico Walkman. 2004 - MP3 e popularização do uso de Webcams. 2005 – MP4. Em 2006 surge o Ipod e em 2007 a TV brasileira se torna TV Digital. 2009 – Brasil: 63 milhões de Internautas, destes, 39 milhões possuem Internet em casa. 2010 – 68 milhões de Internautas no Brasil.

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Estas são apenas algumas das criações tecnológicas que ocorreram nestas últimas décadas. Em síntese o que queremos mostrar é que em toda a história do universo nunca tivemos tantas invenções em tão pouco tempo. Se considerarmos, apenas para fins didáticos, que temos 8.000 anos de pré-história e história, desde a Idade da Pedra até à Era Pós-Moderna, o grande impacto constatado é que destes 8.000 anos, apenas os últimos 50 anos constituem um período que teve a maior quantidade de inovações tecnológicas em toda a história da humanidade. A pré-história que engloba a Idade da Pedra, a Idade do Bronze e a Idade do Ferro, constituiu-se pelas explorações e descobertas de materiais minerais que possibilitaram a fabricação artesanal de ferramentas, jóias e armas de pedra, bronze e ferro. A Idade da Pedra foi assim chamada em função dos artefatos de pedra e também eram utilizados instrumentos feitos de ossos para caçar, melhorar as habitações e também para a defesa contra ataques animais e intempéries. Não havia ainda a escrita, nem a família, e toda propriedade era coletiva. Dois mil anos após surge a Idade do Bronze com a descoberta de minas de ouro e cobre, gerando o apefeiçoamento das armas e dos utensílios e a produção de jóias de ouro. Mil e quinhentos anos depois ocorre o advento da Idade do Ferro em função da descoberta de jazidas de ferro, advindo a metalurgia de ferro, um metal superior ao bronze em função da dureza e da abundância de jazidas. O fim da pré-história se dá com os avanços na agricultura e a descoberta da escrita. É o início da História. A História engloba o Período Clássico, a Idade Média, a Era Moderna e a Era Pós-Moderna. O Período Clássico compreende os quatorze primeiros séculos, caracterizado por maior conforto, sofisticação e refinamento

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das relações sociais por causa da escrita e da comunicação, mas sem ainda as facilidades da mecânica e da eletrônica. Quase tudo era manual. A Idade Média, caracterizada pelos avanços na agricultura, engloba os séculos XV e XVI e na verdade é uma continuação do período clássico acrescido de novidades como o feudalismo (e as classes sociais, a partir dos senhores feudais), o teocentrismo católico, a economia de troca e a agricultura que já citamos. Duas novidades tecnológicas surgiram na intermediação entre a Idade Média e a Idade Moderna: o primeiro relógio mecânico inventado no ano de 1600 e a primeira máquina de escrever em 1714. A Era Moderna caracterizou-se pelo grande avanço tecnológico e pela revolução industrial, englobando os séculos XVII, XVIII, XIX e a metade do Século XX. A revolução industrial, grande marco da Era Moderna ocorreu no século XVIII. Os grandes inventos foram: a geladeira em 1834 que funcionava a combustível, o fogão a gás em 1836, a máquina de costura em 1846 e o telefone em 1876. A Era Pós-Moderna iniciou-se entre 1950 e 1970, não há uma data precisa e caracterizou-se pelo estrondoso avanço tecnológico principalmente a partir de 1980. Maffesoli começa suas reflexões acerca de todos esses dados pontuando o fim de uma lógica individualista tópica da modernidade, de um Eu fechado sobre si mesmo. Talvez a maior referência que este sociólogo faz sobre o novo comportamento da sociedade pós-moderna seja o “tribalismo” – maior representante dessas alterações nas relações sociais que se traduz em grupos bem diferenciados e caracterizados pela pulsão de “estar junto”, tribos que se reúnem conforme suas afinidades e interesses do momento, que não possuem outra finalidade a não ser reunir-se. O paradigma da modernidade foi o grande modelo europeu firmado em duas grandes obsessões: a razão e o progresso, motores

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da organização das sociedades, onde a vida social é organizada de forma racional. Na modernidade prevaleceu uma lógica racional binária de separação, onde há o determinismo absoluto, onde se vê tudo compartimentado: alma ou corpo, razão ou magia, etc. Dessa forma, as idéias de progresso, racionalismo e vitória do homem sobre a natureza exerceram todo o seu encanto sobre a mentalidade da época. O positivismo de Émile Durkheim (1858-1917) acreditava que a sociedade poderia ser analisada da mesma forma que os fenômenos da natureza e a partir dessa suposição, utilizava em seus estudos os mesmos procedimentos das ciências naturais. Este autor, evolucionista, queria fundar uma ciência experimental baseada na observação, experimentação e explicação dos fatos sociais para poder chegar às grandes leis e fazer da Sociologia uma ciência autônoma distinguindo-a da Filosofia, da Biologia, da História e da Psicologia. Ao longo de toda a sua obra Durkheim tentou sempre estabelecer relações de causalidade entre dois fenômenos. Para ele a Sociologia tinha por finalidade encontrar remédios para a vida social e sustentava uma visão otimista da sociedade industrial, achando que a divisão do trabalho que ocorria velozmente na sociedade européia no final do século traria, em vez de conflitos sociais, maior solidariedade entre os homens. Na atualidade, Edgar Morin (2002), faz uma crítica à ciência tecida nos moldes clássicos positivistas. Ele procura uma nova forma de relacionamento entre ciência e natureza, e tem uma concepção diferente de progresso, criticando as verdades absolutas dos positivistas e declarando que existem várias verdades, ou melhor, que toda verdade é relativa. Quanto à verdade absoluta Morin (1998) aponta que: “O conhecimento precisa ter consciência da sua biodegradabilidade”, pois, “a crença numa verdade absoluta provoca obtusidade do conhecimento e racionalização”.

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Esse novo paradigma da pós-modernidade revela a saturação desse modelo racional. A lógica “irracional”, conhecida como a lógica complexa da pós-modernidade fundamenta-se na verdade relativa e tem como base não a separação, mas a ligação: religião e ciência, corpo e mente, ou seja, na pós-modernidade a lógica racional não é mais binária, mas há uma conjugação que nos introduz numa espiral sem fim. Nesse caminho, Morin (2000a) aponta que o pensamento complexo e a transdisciplinaridade são os possíveis caminhos nesta nova empreitada. Ele diz que o pensamento complexo é aquele que une e distingue: “apto a unir, contextualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo a reconhecer o singular, o individual e o concreto”. O pensamento complexo engloba o linear e o sistêmico, e é assim que une e distingue as coisas. O pensamento linear ou cartesiano trata das relações próximas, óbvias e diretas de causalidade, estabelecendo linearmente as relações de causa-efeito sem a coexistência de fatos e fenômenos que permanecem estanques. Já no pensamento sistêmico as relações e ligações entre sujeitos, fatos e fenômenos se dão como “sistemas de contatos circulares” em que o que acontece a um repercute em outro, e as causas não são necessariamente próximas, nem únicas. A Transdisciplinaridade refere-se à transversalidade dos saberes, onde qualquer Disciplina ou tema pode articular-se com determinada Disciplina outra, independente da sua posição de proximidade com este saber ao qual procura se agregar. Para Max Weber (1864-1920) o verdadeiro ponto de partida da Sociologia é a compreensão da ação dos indivíduos e não a análise das instituições sociais ou dos grupos sociais, sem negar a existência e importância dos fenômenos sociais como o Estado e o empresariado, mas ressaltando a necessidade de compreensão das intenções e motivações dos indivíduos que vivenciam certas situações sociais. De modo que, com Weber se estabelece, de vez, na

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Sociologia a abordagem de subjetividade do sujeito com o reconhecimento das suas ações singulares e individuais. Em Weber, inversamente ao pensamento de Karl Marx, encontramos ainda a prioridade à compreensão da ação individual e não à análise institucional. A partir dos dados referentes ao comportamento social e humano nas Eras Moderna e Pós-Moderna, considerando as questões propostas por estes e outros autores, e contemplando as transformações operadas pelos avanços científicos da pós-modernidade, Maffesoli reconhece esta fase tribal: o advento de um novo paradigma cultural e uma volta a valores que a modernidade julgava enterrados. E diz que os homens agora estariam adotando um ponto de vista mais emotivo em relação ao mundo e resgatando uma sensibilidade diferente entre as novas gerações, baseados na necessidade de solidariedade e proteção que caracteriza o conjunto social e diminuindo o individualismo na compreensão da sociedade contemporânea. As tribos surgem das ações naturais de indivíduos e promove essa desindividualização, valorizando o papel que cada pessoa é chamada a desempenhar dentro da tribo, fenômeno caracterizado pela fluidez, pelos ajuntamentos pontuais (cooperação prática, espontânea e casual) e pela dispersão. Fundamentalmente, o que inaugura, dirige e sustenta uma tribo é a subjetividade comum, a paixão partilhada. Maffesoli de certa forma se “apropria” de algumas idéias de Durkheim e de Weber para explicar essas mudanças no interior das sociedades contemporâneas, e diz que na pós-modernidade, os homens adotam um ponto de vista mais emotivo em relação ao mundo, dão lugar ao prazer e à emoção, resgatando uma sensibilidade diferente entre as novas gerações. A proposta de Maffesoli é de que este novo paradigma venha substituir completamente o paradigma do individualismo na compreensão da sociedade, “baseando-se na

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necessidade de solidariedade e de proteção que caracterizam o conjunto social”. Desta forma, a metáfora da tribo da qual o autor se utiliza nos permite dar conta do processo de desindividualização e da valorização do papel que cada pessoa (persona) é chamada a representar dentro dela. Essas novas tribos são caracterizadas pela fluidez, pelos ajuntamentos pontuais e pela dispersão, onde o ethos comunitário é designado pelo conjunto de expressões que remete a uma subjetividade comum, a uma paixão partilhada. A adesão a esses grupamentos é sempre fugaz, não há um objetivo concreto para estes encontros que possa assegurar a sua continuidade, trata-se apenas de redes de amizade pontuais que se reúnem ritualisticamente com a função exclusiva de reafirmar o sentimento que um dado grupo tem de si mesmo (MAFFESOLI 1987). As características dessas “comunidades emocionais” são: o aspecto efêmero, a composição provisória, a inscrição local, a ausência de uma organização e a estrutura cotidiana. Características dadas por Maffesoli à metáfora neotribalista, que ainda aponta a comunidade aberta e a emoção partilhada que suscita a multiplicidade de grupos que chegam a constituir uma forma de laço social bem sólido. E diz que o neotribalismo é uma constatação empírica, ou seja, as pessoas estão se reagrupando em microtribos e buscando novas formas de solidariedade, referindo-se à vontade de “estar - junto” para o compartilhamento de emoções em comum: “cultura do sentimento” que tem única preocupação o presente vivido coletivamente. O conjunto de conceitos que compõem a socialidade maffesoliniana nos ajudará a compreender os fenômenos recentes da cultura eletrônica global (Internet e o fenômeno das comunidades virtuais, multimídia de massa). A fenomenologia se dedica aos "estudos de fenômenos, ou seja daquilo que aparece à consciência, daquilo que é dado. Nesse sentido a sociologia maffesoliniana é uma fenomenologia do social. Ela tem por objetivo olhar aquilo que é dado, aquilo que “é”, e não

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aquilo que “deve ser” uma sociedade; insistindo na descrição das formas atuais das relações sociais. A vida cotidiana contemporânea vai insistir na dimensão do presente. Isso vai caracterizar um conceito chave da socialidade: o “presenteísmo”, a ênfase no presente em detrimento de perspectivas futuristas. A socialidade pós-moderna, por colocar ênfase no presente, não investe mais no “dever ser”, mas naquilo “que é”, afirma Maffesoli que mostra também, no conjunto de seu trabalho, como a modernidade insistiu numa assepsia social marcada por uma racionalidade instrumental. Ela buscava domesticar (ou aniquilar) as “imperfeições” da vida, como as emoções desmedidas, a violência e o imaginário simbólico. Entretanto, a contemporaneidade, vai ser marcada por um imaginário dionisíaco (sensual, tribal). E a técnica vai desempenhar um papel muito importante nesse processo. Ao invés de inibir as situações lúdicas, comunitárias e imaginárias da vida social, as novas tecnologias vão agir como vetores potencializadores dessas situações. O ciberespaço é ao mesmo tempo, limite e potência dessa estrutura social de conexões táteis que são as comunidades virtuais e outras agregações eletrônicas. Em um mundo saturado de objetos técnicos, será nessa forma técnica que a vida social vai impor o seu vitalismo e reestruturá-la. Se na modernidade o indivíduo tinha uma função, a pessoa pós-moderna tem um papel, mesmo que efêmero ou hedonista. Maffesoli propõe analisar a nova ambiência comunitária pós-moderna a partir do que ele chama de “paradigma estético”. Para ele, a socialidade tribal, gregária e empática contemporânea, que se apóia sobre as multi-personalidades (as máscaras do teatro cotidiano), age a partir de uma ética da estética e não a partir de uma moral universal. A sociedade elabora assim um “ethos”, uma maneira de ser, um modo de existência. Tal “ética da estética” vai impregnar todo o ambiente social e contaminar o

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político, a comunicação, o consumo, a publicidade, as empresas, ou seja, a vida cotidiana no seu conjunto. A ética da estética é assim, mais um conceito chave para nos ajudar à melhor discernir sobre o conjunto desordenado e versátil daquilo que Michel Maffesoli chama de “socialidade”.

A explosão da comunicação contemporânea deve-se à nova mídia que vai potencializar essa pulsão gregária, agindo como vetor de comunhão, de compartilhamento de sentimentos e de aliança comunitária. Isso mostra que a tendência comunitária (tribal), o presenteísmo e o paradigma estético podem potencializar e ser potencializados pelo desenvolvimento tecnológico.

O “presenteísmo” surge como valorização daquilo que é presente, a realidade tal como se apresenta a nós e não como um ideal. O conceito de presenteísmo surge a partir da valorização da descrição das formas atuais das relações sociais, sempre focando o presente, com ênfase no presente em detrimento de perspectivas futuristas. A socialidade pós-moderna por enfatizar o presente não investe mais no “dever ser”, mas naquilo que é.

Podemos ver nas comunidades da internet a aplicabilidade do conceito de socialidade, definido por ligações orgânicas, efêmeras e simbólicas. A cibercultura, em todas as suas expressões é, precisamente, esta aliança social potencializada pela tecnologia microeletrônica. A socialidade pode efetivamente, “... caminhar lado a lado com o desenvolvimento tecnológico, ou mesmo ser apoiada por ele”. Essas comunidades virtuais do ciberespaço encaixam-se bem no que U. Hammerz, chama de “communauté sans proximité” (comunidade sem proximidade), instituindo não um território físico, mas um território simbólico (embora o pertencimento simbólico não seja exclusividade das comunidades eletrônicas). As comunidades virtuais se agregam em torno de interesses comuns, independentes de fronteiras ou demarcações territoriais fixas.

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Os esquemas modernistas são normatizadores, rígidos, deterministas e racionais. Já os esquemas pós-modernistas são flexíveis, mediadores, plásticos e indeterminados.

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Diferenças esquemáticas modernismo _____ pós-modernismo

propósito...............................................................jogo projeto.................................................................acaso hierarquia.........................................................anarquia

dominio/logos........................................exaustão/silêncio objeto de arte/obra acabada...............performance/happening

distância......................................................participação síntese...............................................................antítese presença...........................................................ausência centração.........................................................dispersão gênero/fronteira........................... ...........texto/intertexto semântica.................................... .....................retórica paradigma............................................. ..........sintagma metáfora........................................................metonímia

raiz/profundidade...................................rizoma/superfície interpretação/leitura............contra a interpretação/desleitura

significado....................................................significante narrativa/grande histoire............antinarrativa/petite histoire

sintoma..............................................................desejo tipo............................................ .....................mutante

origem/causa...........................diferença-diferença/vestígio determinação............................................indeterminação transcendência.................................................imanência

Fonte: Hassan (1985, 123-4)

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“Três virtudes se tornam essenciais

para a realização da tarefa de cada um: o amor, a alegria e a humildade”.

(Martin Buber, Eu e Tu)

X – PSICOTERAPIA/ANÁLISE EXISTENCIAL Aqui vamos tratar da psicoterapia de um modo geral, além da prática existencial. Antes, contudo, queremos sublinhar que a clínica existencial não se propõe a eliminar sintomas nem a promover adaptações. O seu foco é a análise do existir, ou seja, o modo como o sujeito expressa o seu ser-no-mundo com seus desejos, sentimentos, inquietações, expectativas, e sua autenticidade em relação às suas escolhas e o modo como lida com a liberdade, com a responsabilidade, enfim, com a vida. De modo geral, sabemos que o que leva uma pessoa à psicoterapia são fatores pessoais, relacionais, conjunturais, ou uma combinação deles. Mas em cada momento do processo terapêutico constatamos que um desses fatores em vigência prepondera. Vamos então ao detalhamento: Pessoais – Quando eu mesmo, por necessidade pessoal, vejo na psicoterapia um caminho que poderá me ajudar a realizar objetivos voltados principalmente ao meu crescimento pessoal e a partir desse crescimento mirar novas conquistas, principalmente a de me sentir mais preparado para lidar com mais eficiência e equilíbrio com as diversas situações da minha existência. Relacionais – Quando mais propriamente a partir das minhas relações familiares, profissionais, sociais e afetivas torno-me consciente da oportunidade de ter na terapia o resgate de uma ou mais dessas relações, seu fortalecimento ou a sua construção.

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Conjunturais – Quando uma ou mais situações relacionadas à saúde (física ou emocional) incluindo estresse pós-traumático, problemas sociais, problemas legais, crises financeiras ou abalos repentinos de qualquer natureza, me fazem recorrer à terapia. Cada situação que chega à terapia tem uma gênese pessoal, extra-pessoal ou conjuntural. João, 32 anos, é dependente químico, mora com os pais, não trabalha, trancou pela segunda vez o curso universitário e faz terapia há seis meses. Ele nunca admitiu fazer qualquer tipo de tratamento, mas chegou à terapia após ter passado por uma hospitalização de emergência em função de uma ingestão excessiva de anfetaminas. Isto poderia nos levar à imediata conclusão de que João foi à terapia por uma questão conjuntural, mas não é verdade. Ele pouco se importou com a overdose, e apesar do susto momentâneo – principalmente com a falta de ar e perda de sentidos - o fato de não ter morrido fez com que se imaginasse, de certa forma, “inatingível”. João foi para a terapia por uma questão relacional, quando o seu pai lhe impôs como condição para permanecer em casa, fazer terapia. A partir do terceiro mês de tratamento, já tendo diminuído bastante o uso, João começou a admitir ter passado por diversas situações perigosas, inclusive esta última, quando “por milagre” não morreu de overdose na saída de uma festa “rave”. Só então começou a levar à terapia questões mais conjunturais, refletindo sobre a sua compulsão à drogas. Agora, por volta do sexto mês João começa a trazer temas mais pessoais.

Mas, o que é psicoterapia? Diante dessa questão, diferentes e complementares respostas são encontradas. Eis algumas:

● Psicoterapia é um processo conduzido por especialistas no qual o indivíduo amplia a consciência que tem de si mesmo, aprendendo com seus sintomas e se desenvolvendo como pessoa.

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● Psicoterapia é um processo que visa a ampliação de nossa autoconsciência e o desenvolvimento dos nossos recursos interiores para melhor lidarmos com questões de nossa existência, como crises pessoais e profissionais, conflitos conjugais e familiares, transtornos psicopatológicos, distúrbios físicos de origem psicológica e importantes transições de papéis.

● Psicoterapia é uma experiência que objetiva possibilitar à pessoa melhor qualidade de vida, considerando diferentes aspectos (sociais,afetivos, familiares) e, principalmente, plena capacidade de enfrentar mudanças que possam gerar ansiedade.

● Psicoterapia vem de “therapia” - que significa tratar, cuidar e “psiqué” que se refere à mente, portanto, psicoterapia é um processo de ajuda, de busca de conhecimento e de desenvolvimento pessoal.

● Psicoterapia é um processo de autoconhecimento que promove maior desenvolvimento da percepção que o indivíduo tem de si mesmo, de seus comportamentos, pensamentos e sentimentos.

● Vejam a definição de psicoterapia proposta por Franz Rúdio que nos parece mais completa: “Psicoterapia é um processo relacional, que assume a forma de um encontro entre pessoas, onde um profissional, o psicoterapeuta, presta a alguém que o procura, o cliente, uma ajuda psicológica para que descubra, com seu próprio esforço, a sua identidade como ser humano, vença as alienações em que se encontra e forme uma auto-imagem e uma auto-estima adequadas e dinâmicas, que lhe permita assumir-se como realmente é e entrar em um processo de existência percebida por ele como produtiva para si e para os outros, satisfatória e realizadora das potencialidades que possui.”

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Das definições aqui citadas, cinco se referem à psicoterapia como processo e uma refere como experiência. Quando se diz que a psicoterapia é um processo, faz-se alusão ao que é processo de ajuda, processo relacional, processo de autoconhecimento e processo de ampliação da consciência. O aspecto processo a identifica como um tratamento que envolve uma sequência de sessões, de preferência com o mesmo profissional. Também é um processo porque trabalha diversas fases que começa no conhecimento da queixa ou das questões centrais que criaram a necessidade da terapia, a construção do vínculo entre o psicólogo e o cliente, o (às vezes longo) desenvolvimento do trabalho analítico e interventivo, seguido do desfecho ou conclusão do tratamento. Este processo obviamente não segue esses passos sempre dessa forma, pois não há um processo psicoterapêutico idêntico a outro.

O aspecto experiência refere-se ao fato de ser algo único e incomparável, de não ser previsível, e também por ser algo que geralmente se incorpora à biografia do cliente.

Uma segunda questão igualmente pertinente é: psicoterapia ou

psicanálise? Alguns autores dizem que a diferença entre psicoterapia e

psicanálise é que a primeira tem um caráter interventivo-normativo e a segunda um caráter analítico. Acrescentam que a psicoterapia tem como origem a psicologia, a grande ênfase é na relação terapeuta-cliente, e o inconsciente é cognoscível. Dizem ainda que as psicoterapias atuam submetidas a um critério de cura normativa, objetivando adequar o indivíduo a uma demanda social.

Esclarecem que na psicanálise a ênfase é na palavra e não na relação analista-analisando e que o inconsciente, incognoscível, só pode ser acessado por suas formações em atos falhos, chistes, sonhos

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e sintomas e – ainda – que o tratamento psicanalítico não visa promover qualquer adaptação no sujeito.

Todavia, não é possível falar de uma psicanálise, são muitas. Mesmo entre os freudianos há múltiplos entendimentos do que seja ou do que deveria ser a psicanálise freudiana. E há diferenças de enfoques e atuações entre lacanianos. Parece que existiram muitos Freuds e muitos Lacans. Então não se pode dizer: “a psicanálise é assim”, sem esclarecer a que psicanálise se está referindo.

Em segundo lugar há muitos modos diferentes de se trabalhar com a “psicoterapia”, também por esta razão não se pode dizer “psicoterapia é isso”, “psicoterapia é assim”.

Ao definirem de forma tão pobre as diferenças entre terapia e análise, começam dizendo que a psicoterapia serve a um trabalho de adequação social do sujeito, e a psicanálise não. É desse modo mal explicado e irônico que tentam dar a entender que a psicoterapia objetiva adequar o indivíduo a uma demanda social, como se os psicoterapeutas trabalhassem em função do sistema social, adaptando todo mundo aos modelos definidos pela sociedade.

Há muitos equívocos nisso. Primeiro que não existe, em nosso caso, e em nossa época, qualquer modelo social ao qual o cidadão deva se adaptar. Segundo que - mesmo que existisse isto – os psicólogos em sua maioria trabalham com a demanda do próprio sujeito sem qualquer preocupação ou necessidade de adaptar quem quer que seja à sociedade, senão primeiramente ajudar a pessoa a adaptar-se a si mesma e aos grupos sociais que ela escolha pertencer.

Falar em adaptação forçada à sociedade nos faz lembrar os tempos da ditadura militar no Brasil e suas relações com a psicanálise, conforme denúncia ocorrida em 1980 feita por Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas, dois dos mais conhecidos psicanalistas brasileiros de então, que entre outros escândalos trouxeram à tona a existência do psicanalista Amílcar Lobo que atuava no quartel da Polícia do Exército, DOI-CODI, um dos mais

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terríveis centros de repressão na época, como torturador de estudantes, artistas e intelectuais contrários à ditadura militar que imperava no Brasil.

A preocupação da psicoterapia é com a saúde e com o respeito à subjetividade no desenvolvimento das potencialidades de cada um.

Quando se diz que na psicanálise a ênfase NÃO é a relação, não se deve estar fazendo referência à atualidade, porque a cada dia é mais escassa a figura do analista distante. Hoje, praticamente, todo psicanalista, enfatiza a relação. O que está havendo é um distanciamento entre a velha teoria e a nova prática que aliás a cada dia mais se aproxima da fenomenologia.

E quando dizem que o tratamento psicanalítico não visa promover qualquer adaptação no sujeito, o que isto significa? Nada, porque toda relação produz adaptações e readaptações o tempo todo. Não é possível viver sem se adaptar. A psicanálise é uma relação profissional entre duas pessoas, e sempre que você contempla duas pessoas em relação (qualquer relação) você estará vendo um processo dinamicamente adaptativo. E se o psicanalista alega que as adaptações ocorridas no setting analítico não são sociais, eu diria que não é possível que dois sujeitos se encontrem fora do contexto social. Todo encontro humano é social, portanto, adaptativo.

Muitas outras contradições, além destas,são encontradas mas não é necessário mencionar todas.

Resumindo, a psicanálise, na prática, é um método diferente de outras psicoterapias, mas em última instância, por outros caminhos, busca atingir a mesma coisa: que o cliente alcance um meio de melhor manejar sua vida, sua realidade e suas experiências.

Freud e seus seguidores ou dissidentes não são proprietários das expressões ‘análise’ e ‘psicanálise’. Análise não é uma palavra monopólio da psicanálise, não é de modo algum uma expressão que somente possa ser usada pela psicanálise. Existem inúmeras formas de análise.

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O behaviorismo (ou a terapia cognitiva comportamental) forma mais respeitada de psicoterapia nos EUA é conhecido como “Análise Funcional”. Sartre em “O ser e o nada” da página 682 à página 702 fala da psicanálise existencial. Já a psicanálise criada por Freud é conhecida como “clássica”.

O nome psicoterapia existencial-humanista, teve sua gênese nos Estados Unidos, no fim da Segunda Guerra, quando o “behaviorismo” - primeira força da psicologia, predominava totalmente. Já na Europa imperava a psicanálise - segunda força da psicologia. Então, contestando a visão de “homem doente” sustentada pela psicologia de então, várias posições discordantes se levantaram, propondo novas direções, como: ênfase total na experiência consciente, crença na globalidade do ser humano e em sua conduta, valorização do livre arbítrio, no poder criativo individual e na espontaneidade, e abrangência global de todo os aspectos relevantes para o homem.

Boris (1990), ao analisar as aproximações e divergências entre a Terapia Gestáltica e a Abordagem Centrada na Pessoa, assinala que o ponto comum entre essas duas perspectivas seria a vinculação à fenomenologia existencial, que se manifestaria nos seguintes aspectos: ênfase na experiência vivida no presente, valorização dos sentimentos, refutação das explicações causais, visão holística do ser humano, entre outros. E segundo Cury (1987), pode-se identificar como denominador comum das várias linhas teóricas e terapêuticas humanistas-existenciais:

- O respeito à pessoa; - O reconhecimento da totalidade e unicidade do outro; - A intolerância frente a todas as manifestações de tendências

deterministas; - A ênfase na relação humana como uma forma de

crescimento.

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Assim, Abraham Maslow, Rollo May, Victor Frankl, Carl Rogers, Fritz Perls e outros propuseram uma concepção alternativa que valorizasse as forças e virtudes positivas do homem. Foi assim que, em 1961 foi inaugurado esse novo movimento que ficou conhecido como Psicologia Existencial–Humanista, que em menos de dez anos se tornaria a “terceira força” da Psicologia.

A Psicoterapia fenomenologico-existencial, assim chamada em virtude da ênfase no reconhecimento da fenomenologia como principal matriz da Psicoterapia Existencial, destaca que a relação técnica e histórica da Existencial é com a Fenomenologia e não com o Humanismo. Há quem diga que a Fenomenologia de Husserl não é matriz da Psicoterapia Existencial e sim a Fenomenologia Eidética, o que nos parece uma contradição, já que a Fenomenologia de Husserl se volta ao estudo das essências, e “eidética” significa “essência”. É claro que esta não era a intenção inicial de Husserl, pois embora ele traçasse um paralelo entre Fenomenologia e Psicologia, não supunha uma identidade entre essas duas disciplinas.

Com efeito, Fenomenologia não é Psicologia, mas serviu como matriz do método que consagrou a psicoterapia existencial e a gestalt-terapia, porque a significação subjacente ao comportamento demanda uma interpretação. E era a isso, a essa interpretação do sentido que o pai da Fenomenologia chamava de tarefa da psicologia eidética. E é assim que "a fenomenologia constitui o essencial fundamento eidético da psicologia e das ciências do espírito" (Husserl, 1913/1986, p. 47).

Em “O ser e o nada” – Capítulo 2 (Fazer e Ter), Sartre trata de questões fundamentais em relação ao modo analítico-existencial de abordar o sujeito. Sartre trata dos “fins que perseguimos”, ele busca um estudo aprofundado de toda a nossa intencionalidade já que somos definidos por nossos desejos.

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Na psicanálise existencial o desejo não é conteúdo de consciência, como na psicanálise clássica, mas algo transcendente, algo que habita fora de mim, e sustenta que somos nós próprios decidimos nossas existências, nossas escolhas e até mesmo nossas emoções. De fato, não somos vítimas dos acontecimentos porque existem modos diferentes de reagirmos diante das coisas, diante do mundo e diante da história. Somos responsáveis até mesmo pela maioria das nossas características de personalidade porque se “somos assim” podemos deixar de sê-lo, ou pelo menos podemos deixar de agir continuamente desse ou daquele modo.

Mesmo entendendo por facticidade aquilo que é dado ao homem, sobre o qual ele não tem poder de mudança - mesmo assim - isto que é fáctico - será recebido de modo diverso por cada sujeito. E esta recepção é que vai fazer toda a diferença no modo como concebemos o mundo e nos relacionamos com ele.

Sartre disse que “são os nossos atos que nos definem”, e prossegue dizendo que nós mesmos desenhamos nosso próprio retrato. As ilusões e imaginações que sustentamos a nosso próprio respeito e a respeito daquilo que poderíamos ter sido, são decepções auto-infligidas acerca do que – na verdade - não quisemos fazer dentro das nossas possibilidades, que não são poucas.

É contínua a nossa autoconstituição. Cada ato nosso é um tijolo da autoconstrução, e nem assim estamos atados a ela, porque a qualquer instante podemos começar a agir diferente e refazer nosso caminho. Temos, sim, o poder de nos transformar indefinidamente, e o instrumento proposto por Sartre para isto é a Análise Existencial, que pode nos proporcionar, além do autoconhecimento, instrumentos de fortalecimento que nos possibilitem coragem e obstinação suficientes à transformação desejada.

A Análise Existencial fornece uma abordagem mais humana, fugindo dos parâmetros da metapsicologia freudiana que é historicista, determinista e nos coloca como vítimas do passado,

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vítimas daquilo que os outros fizeram (ou tentaram fazer) de nós. Recusar o fato de que somos responsáveis pelo que nos tornamos é um ato de má-fé. Por outro lado, a adoção desse viver autêntico envolve formas diferentes de agir e inclui uma forma de “pensar” diferente, denominada por Heidegger como “modo meditante”.

Martin Heidegger no seu texto “A serenidade” nos chama à uma reflexão sobre a essência daquilo a que chamamos pensar, e diz: “não tenhamos ilusões, porque acontece a todos nós sermos pobres em pensamentos, mesmo aos que fazem do ofício de pensar – dever profissional. A carência de pensamentos é um hóspede inquietante que se insinua por todo lado no mundo de hoje onde tudo se aprende de maneira mais rápida e mais econômica possível, e no momento seguinte é rapidamente esquecido.”

Uma das características presentes na análise existencial é o seu desprendimento da técnica. A serenidade admite a técnica sem se deixar engolir por ela. Esta libertação, por paradoxal que pareça, não significa ausência de técnica, mas independência de qualquer procedimento que vise assegurar ações, garantir resultados e proporcionar-nos certezas, entre elas a de que mesmo trabalhando com emoções passemos “a largo” do desespero do outro. A técnica existe para (tentar) nos assegurar (em vão) de que procedimentos iguais resultem em resultados idênticos ou próximos ao idêntico, para estabelecer efetiva separação entre o técnico e o seu instrumento de trabalho, e que o padrão no emprego da técnica faça com que os resultados independam da pessoa do técnico. Desprendimento e independência são as palavras que privilegiamos quando, na existencial, discutimos o lugar da técnica. Podemos utilizá-la, com desprendimento, porém. Isto significa que na ausência da técnica o trabalho continuará sendo possível. Portanto, não nos prendemos à técnica, embora possamos utilizá-la com independência. Então, podemos dizer que a presença da técnica no atendimento fenomenologico-existencial é casual.

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Não precisamos de qualquer técnica para saber que a melhor maneira de ajudar a uma pessoa é acreditando nela e na sua capacidade de crescimento e mudança. Não se pode usar isto como técnica, é preciso crer nisso. E também é preciso crer que todo ser humano possui uma capacidade inata para se desenvolver e se desembaraçar dos problemas. Estes são princípios caro à psicoterapia existencial. Igualmente importante é vermos a psicoterapia como um encontro autêntico e empático onde o outro não é objeto, mas intersujeito. Se vemos a relação terapêutica como uma relação de parceria, um encontro de dois, fica mais fácil entender que ambos (terapeuta e cliente) possuem fortes responsabilidades no sucesso da mesma.

RELAÇÃO TERAPÊUTICA

“A compreensão de si fundamenta-se no reconhecimento da coexistência, e ao mesmo tempo constitui-se como ponto de partida para a compreensão do outro”28 A relação que se estabelece entre psicoterapeuta e paciente é diferente das demais por ser de caráter estritamente profissional, ser protegida pelo sigilo, ocorrer de modo voluntário, e possuir um objetivo específico que geralmente é a recuperação psicológica do paciente ou o seu fortalecimento emocional visando a uma melhor qualidade de vida. É uma escuta qualificada, técnica, atenciosa, que se diferencia da escuta cotidiana. Na psicoterapia existencial desenvolvemos uma escuta compreensiva e fenomenológica. A compreensão envolve o ato de “visitar” o referencial particular do paciente, olhando a sua história na mesma perspectiva 28 AUGRAS(1978)

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que ele, com paciência, aceitação e boa-vontade, sobretudo compreendendo a dor do outro, suas inquietações, contradições e conflitos; respeitando o tempo e o ritmo da sua autocompreensão e da compreensão da realidade que o cerca. Fundamentalmente a relação terapêutica é um lugar de catarse, de escuta atenciosa, de compreensão e de estímulo. É também um lugar de desenvolvimento da crítica e da autocrítica. O sucesso dessa relação depende em grande parte do empenho e do interesse do paciente e também da sua seriedade e compromisso com o tratamento, mas também, por outro lado, depende da capacidade do terapeuta em trabalhar adequadamente o desenvolvimento dessa relação, com o objetivo de alcançar as metas propostas. Para tanto, é necessário que o terapeuta goste do que faz, e esse “gostar” - que a princípio aparenta ser tão subjetivo - na verdade se constitui de talento e vocação para a atividade. O talento se refere a algo que nasce com a pessoa, é uma certa habilidade que brota espontaneamente – a habilidade de estabelecer relações voltadas a fins terapêuticos – é ter o jeito, a tendência incontornável, a necessidade de compreender e ajudar. Talento é a habilidade que não se aprende, e só se desenvolve após surgir de modo natural. Já a vocação é esse “chamado” para a função, é poder desfrutar de satisfação naquilo que faz. Gostar do que faz. Podemos ter vocação para muitas coisas diferentes, mas nem sempre habilidade (talento). Mesmo que tenhamos habilidade e vocação para diferentes áreas sempre haverá uma que será desempenhada de modo melhor, mais eficiente, revelando melhor habilidade na área. Discordo da posição teórica e ideológica que ensina que não existe vocação, que todo mundo nasce capaz de realizar qualquer coisa e que só depende das oportunidades de desenvolvimento. Essa idéia tão imprecisa nasce de uma certa teoria humanista radical que

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defende que todos os seres humanos nascem com iguais capacidades e que - se receberem oportunidade de aprendizado e treinamento - poderão fazer qualquer coisa. Trata-se de uma idéia absolutamente imprecisa, que contraria um princípio importante que é o fato de nascermos com tendências temperamentais que irão orientar tanto os nossos comportamentos como algumas das nossas escolhas. Além disso, as habilidades também se relacionam à dimensão “nature” que combinadas com nossas escolhas, nossa criação e a ambiência onde nos desenvolvemos (“nurture”), irão constituir nossa personalidade. Sartre fala de “condição humana” se referindo à capacidade de nos constituirmos a partir de uma consciência intencional, da ação de um ego transcendente; mas também fala da “condição natural” que se volta ao conjunto de propriedades que trazemos para o mundo quando nele somos lançados. Assim, o trabalho do psicólogo terá sua qualidade definida a partir de uma série de fatores aqui tratados, incluindo o seu talento, sua vocação e sua dedicação acadêmica e intelectual. Ressaltamos, a tempo, q-ue o terapeuta não é modelo a ser seguido. Essa falsa concepção de que o terapeuta tem de ser exemplo talvez seja proveniente da cultura religiosa, que muitas vezes é a nossa principal base conceitual, e nos faz ver as profissões de ajuda como um sacerdócio. Ora, o sacerdote tem essa missão de canal intermediário, mas o trabalho do psicólogo não é sacerdotal. A Psicóloga Verônica Mautner(1985) esclarece bem isso quando diz: “Freira e Sacerdote funcionam em tempo integral (...) mas quando eu viajo eu esqueço. Quando eu tiro um mês de férias, três dias depois eu esqueço até os nomes dos meus pacientes. Eu realmente me desligo. E tenho necessidade de desligar”29. É claro que se espera do terapeuta que ela tenha equilíbrio emocional, bom-senso, congruência e habilidade de lidar de modo construtivo com as situações em geral, mas isto não impede que uma 29 MAUTNER, Ana Verônica. In: SER TERAPEUTA (1985).

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vez ou outra ele se aborreça, se exceda, se emocione de um modo mais exacerbado. Afinal, ele é um ser humano. E dentro da concepção existencial acolhemos a idéia de que interessa ao paciente saber que o seu terapeuta é um ser humano como ele, e não um fingimento de máquina. Em determinadas fases da terapia o terapeuta funciona para o paciente como uma espécie de “estaca” que permite ao atendido propulsão em direção às suas buscas. Nesse estágio o paciente funciona com o ‘motor’ do terapeuta, até que se veja em condições estruturais que lhe possibilitem andar sozinho. Às vezes nos sentimos como o andaime, que é um recurso que faz parte da construção, mas não faz parte do prédio. Logo que o prédio é construído, retiramos os andaimes. Seguindo nessa mesma linha metafórica, a planta depois que firma o seu caule não precisa mais de uma estaca junto a si.

MÉTODO A fenomenologia é o método que fundamenta a psicoterapia existencial, principalmente porque não poderíamos utilizar nas ciências humanas a mesma metodologia empregada nas ciências naturais que se dedicam a explicar o objeto enquanto as humanas se dedicam a compreendê-lo. A fenomenologia é um método de conhecimento que propõe uma volta às coisas mesmas, buscando a descrição dos fenômenos tais como se mostram em si mesmos, sem qualquer pressuposição acerca do como são ou do como deveriam ser. A filosofia de Husserl tem como tema apenas o que se constitui como objeto da experiência possível: os fenômenos. Para Husserl as evidências apodíticas às quais a fenomenologia deve se ater, e a respeito das quais pode se constituir como ciência rigorosa, são apenas os atos da consciência intencional (consciência de) e seus respectivos objetos imanentes. A fenomenologia é a ciência descritiva

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destes objetos, aos quais se chega através da intuição pura, numa apreensão imediata da “coisa mesma” enquanto pura essência, ou seja, enquanto objetos ideais. As evidências apodíticas dão ao método fenomenológico o mesmo rigor da objetividade científica. Elas se referem ao fenômeno tal como se apresenta, e significa que a evidência não pode ser posta em questão. O método fenomenológico consiste em tomar como ponto de partida os dados imediatos da experiência vivida, exigindo, para tanto, do observador uma suspensão, uma ruptura em relação às experiências passadas. Pretendendo, através deste procedimento, alcançar a essência do que é observado. Esta suspensão confere ao método fenomenológico um novo tipo de legitimidade, inédita no campo filosófico, relacionada à proximidade de seus ritos com as exigências (ou aparências) da objetividade científica, denominadas na fenomenologia, como falamos, de Evidências Apodíticas. O contato com o fenômeno requer a suspensão fenomenológica que reduz todo o conhecimento (científico ou de senso comum) que possuo do fenômeno ao que nele e por ele é manifesto, esta suspensão é temporária, uma vez que não significa desconsideração do conhecimento. Cria-se uma época, um tempo em que o objeto (ou fenômeno) será abordado sem esses conhecimentos apriorísticos, que só irão ser incorporados depois, caso necessário. A atitude fenomenológica se diferencia da atitude natural, mais apropriada às ciências naturais, privilegiando – entre outras coisas – a relação causa-efeito em um mundo existente em si, independente da consciência; um mundo regido por leis próprias advindas da física, da biologia e da química. Já na atitude fenomenológica privilegio o que vejo, o que a mim se manifesta quando abordo o objeto, resultado de certo contágio que existe em meu olhar que fecunda o fenômeno e o torna uno comigo. O que a psicologia recebe da fenomenologia, entre outras coisas fundamentais, é essa idéia de conhecer, de o sujeito se

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constituir. É a consciência compreendida como intencionalidade, possibilitando ao homem sair de sua intimidade para conhecer o mundo real em meio a tudo que não é interioridade da consciência.

FENOMENOLOGIA E CAUSALIDADE

“Existir é coexistir. Não haverá, portanto, possibilidade de um indivíduo ser normal para si e tornar-se ao mesmo tempo incomunicável para os demais. Da mesma maneira que o existir, o coexistir se constrói dialeticamente.” (Monique Augras, O ser da compreensão) A compreensão organísmica do funcionamento humano aponta para a indivisibilidade da pessoa, de modo que não se separa mente, corpo e alma, já que há um todo no existir humano. Desse modo, não posso dizer que meus ombros sofrem e a minha mente não, já que a mente forma uma unidade com o meu corpo. Fala-se então de organismo referindo-se ao todo da pessoa, a esse conjunto de funções inseparáveis que constituem o ser humano. Antes de prosseguirmos lembremos que a psicopatologia tradicional acolhe a nomenclatura de “estruturas” quando se refere aos diversos níveis patológicos que atingem a mente humana, defendendo que existe uma estruturação na constituição do sujeito, que pode se dar de três formas diferentes: estrutura neurótica, estrutura psicótica e estrutura perversa. A função da estrutura, então, não seria a de simplesmente gerar sintomas; na verdade se trata de um “modo de funcionamento estrutural” que não se modificará em seu núcleo, independente do tratamento que for feito, embora possa melhorar, porque os sintomas que determinada estrutura gera podem ser trabalhados, embora a estrutura em si não possa ser transformada, já que não existe – nesta visão – “estrutura normal”. Seguindo nessas breves considerações acerca dos diversos modos de se olhar a psicopatologia e a noção de causa e efeito,

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recorremos a Eugene Minkowski, para quem o termo psicopatologia tem correspondido mais a uma “psicologia do patológico” do que a uma “patologia do psicológico”. Em sua opinião, a psicologia do patológico (que orienta a visão fenomenológica de psicopatologia) se refere à descrição global da experiência vivida pela pessoa, como expressão original da vida interior tal como o paciente a constitui. Em 1914, o psicólogo e médico francês Charles Blondel chamava a atenção para o fato de que, em sua opinião, os psiquiatras não compreendiam o que se passava com os doentes mentais. Considerava que, quando se define a alucinação como uma “percepção sem objeto” ou quando se diz que “o delírio é um juízo falso ao qual se aferra o paciente apesar de todas as provas em contrário”, recorre-se a fórmulas verbais que, sem serem tecnicamente falsas, não levam à compreensão do que significa de fato, para o paciente, a experiência alucinatória ou delirante e o que realmente experimenta no curso de tais experiências. Tais dificuldades levou a psiquiatria a procurar apoio na fenomenologia, método de investigação que possibilita penetrar no mundo subjetivo dos pacientes psíquicos. Para Jaspers, as vias de acesso ao fato psicopatológico são a compreensão e a explicação: a primeira é um método subjetivo, a segunda, um procedimento objetivo. A compreensão consiste num esforço de penetração e de intuição do fenômeno mórbido com seu significado, tal como o considera o paciente. Já a explicação é uma ação intelectual que completa a compreensão por sua interpretação e ao estabelecer laços de causalidade entre os diferentes dados proporcionados pela observação. Jaspers centraliza a sua atenção na vivência. Para alcançar a vivência é necessário uma descrição minuciosa das experiências subjetivas do paciente e classificá-las. É através da comparação entre as próprias vivências com aquelas captadas no indivíduo examinado

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que se pode chegar a uma verdadeira investigação fenomenológica. A essa metodologia Jaspers denomina “penetração empática”. Por outro lado, o pensamento causal orienta a psicologia explicativa (psicopatologia tradicional a qual aludimos anteriormente) na busca de conexões (causais) da vida psíquica. O pensamento causal se refere à ligação de dois elementos, um dos quais se considera a causa e o outro o efeito. Exemplificamos isto com o quadro a seguir:

Entretanto, observemos que:

A) O mesmo fenômeno quando tem muitas causas, o pensamento causal vai alegar que a causa verdadeira é ignorada. Ou seja: quanto mais causas se afirmam, tanto menor nos é o conhecimento causal.

B) Existem causas intermediárias, como uma corrente de vários elos:

Alcoolismo Demência alcoólica Delirius tremens Alucinose alcoólica Psicose de Korsakov.

Álcool Delirius Tremens Estação do Ano Diminuição-aumento suicídios Cansaço Redução do rendimento Doença da tireóide Inquietação, ansiedade

Hemorragia cerebral Distúrbios da fala

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C) O conceito de causa, na fenomenologia, é multitívoco: ◊ Circunstâncias permanentes (condição), como uma tensão vital que produz esgotamento permanente, constante. ◊ Fator desencadeante, como um abalo afetivo intenso. ◊ Força atuante decisiva, como a disposição hereditária.

Portanto, uma causa pode envolver várias etapas e significados. E é muito comum acontecer, em doenças mentais, de considerarmos causa o que já é sintoma. E as mesmas causas externas podem produzir efeitos absolutamente diversos em indivíduos diferentes. A mesma “causa” pode acarretar, por exemplo, a irrupção de psicoses diversas. Enfim, não somos mecanismos, somos organismos. E a partir do raciocínio apresentado pela Teoria Organísmica de Goldstein, além de sermos um todo indivisível somos também uma subjetividade que não acolhe determinações de exatidão causa e efeito se vistas por uma ótica linear cartesiana. Toda causa única que se propõe como decisiva torna-se questionável ante uma pesquisa organísmica. E o pensamento sistêmico aponta para a multiplicidade e a complexidade das causas, sustentando a necessidade de um olhar mais profundo, menos imediato, para que avistemos a (às vezes longa) corrente que surge à nossa frente quando examinamos de modo acurado a questão do “o que causa o que”. SZASS reflete com propriedade a questão de uma “visão patológica da vida” que quase obsessivamente orienta muitas das práticas em psiquiatria e psicologia, sendo uma questão cultural que atinge bem além do campo psi. Trata-se de uma tendência de olhar tudo o que compõe a nossa existência humana como uma doença que

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começa quando nascemos e só terá o seu desfecho com a morte, requerendo ao longo dos degraus dessa subida a prontidão de assistência dos profissionais de saúde. AUGRAS, quando propôs a redefinição do que seja saúde e doença, asseverou que “a normalidade deve ser descrita antes como a capacidade adaptativa do indivíduo frente às diversas situações de sua vida (...) levando em conta o jogo dialético da vida”30. Portanto, a normalidade é uma condição que se apresenta do que resulta de um certo trânsito dialético que acontece o tempo todo, alternando ordem e desordem. 30 AUGRAS (1978) P. 11

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XI – O PROJETO EXISTENCIAL O pensamento existencial parte sempre da subjetividade e crê que qualquer pessoa é capaz de criar e recriar sua realidade, e também de transformá-la. A máxima “A existência precede a essência” corresponde de certa forma à distinção entre conhecimento intelectual e conhecimento sensível, porque os sentidos permitem o contato com os seres particulares e contingentes, únicos que realmente existem, e por outro lado a inteligência permite a apreensão de idéias ou ciências. Desde Sócrates o objeto da ciência é o universal e não o particular, significando ênfase na essência e não na existência. Opondo-se às filosofias conhecidas como ‘essencialistas’, as filosofias existencialistas focam no pressuposto de que a existência é anterior à essência, quer no aspecto ontológico, quer no aspecto epistemológico, em outras palavras: tanto em relação ao ser (realidade), quanto em relação ao conhecimento. Na perspectiva existencial, idéias (essências) são posteriores às coisas, e tudo isto nos remete ao fato de que sendo a existência criada à partir da ação de um ego transcendente, de uma consciência intencional, eu serei o produto do conjunto de escolhas que realizo vida a fora. Esse conjunto de intenções e escolhas constitui meu projeto existencial. Sou o que ainda não sou, porque sou esse projeto. Para agir o homem deve estabelecer projetos e escolher entre as coisas que podem ser feitas (facticidade) o que irá efetivamente fazer. A colocação dessa escolha em prática significa a materialização do projeto existencial. Todo homem é livre para estabelecer o seu projeto, a direção que dará à sua existência, já que não há essência e sim o “projeto de si mesmo”. A escolha fundamental de mim mesmo se dá quando defino valores e escolho livremente meus atos. O projeto original serve para

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orientar o meu modo particular de apreender o mundo, priorizando meus projetos e determinando o meu modo psicológico de ser. Sartre diz que o melhor termo para significar a relação interna entre conhecer e ser é “realizar”. Realizo um projeto na medida em que lhe dou ser, mas realizo também minha intenção na medida em que a vivencio, que a faço ser com meu ser. Este mesmo autor também diz que o homem ao realizar suas escolhas se depara com sua total e profunda responsabilidade, e esta percepção faz da angústia uma condição inerente ao ser humano. A angústia, no entanto, não impede de agir, ao contrário é a própria angústia que constitui a condição da ação, pois ela pressupõe uma pluralidade de escolhas possíveis. O caminho escolhido, no entanto, não tem em si nenhum valor, a não ser aquele de ter sido escolhido. Ao fazer uma escolha, o homem introduz no mundo uma das tantas existências possíveis e nela engaja os outros homens. Diante disso, o homem experimenta a sua radical liberdade. A psicoterapia existencial é focada nas situações concretas, nas experiências cotidianas tal como se dão, porque é o existir concreto do homem que indica o seu modo de ser. O trabalho existencial não irá voltar-se a uma visão do que “deveria estar acontecendo com essa pessoa” ou “quem essa pessoa deveria ser”, ou seja não trabalharemos a partir de padrões de normalidade ou conveniência, interessa-nos tentar alcançar de modo mais profundo, compreender quem é esta pessoa a partir do conjunto de suas manifestações. Quem é ela, como se dá esse ser, como é esse “escolher-se a si mesma”, quais são as suas vivências, de que modo ela é como é, que prazeres, que dúvidas, que certezas, que pretensões ou dissabores sustentam a sua existência. Assim, o primeiro foco não é voltado ao ideal mas ao existencial que traduz essa pessoa com todas as suas dificuldades e possibilidades, porque a existencial vai além da preocupação com qualquer mudança ou com qualquer adaptação. Antes de tudo

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perseguimos o alvo principal que é conhecer a pessoa e o seu modo de ser. Para que isto? É tarefa precípua da psicoterapia existencial favorecer o desenvolvimento do sujeito. Nos interessa o modo como ele efetivamente compreende sua própria existência incluindo os seus sofrimentos, suas alegrias e todos os fatos em geral que o constituem. Um primeiro movimento (de redução) nos leva a desfocar a vontade social relacionada à adaptação do indivíduo, fazendo-nos partir não do social ou da família, mas dele mesmo e do sentido que as coisas possuem para ele. Isto não quer dizer que desprezamos a vontade social e o interesse da família, porque tendo como base uma visão intersubjetiva que nos aponta para o sentido de ser-no-mundo, não podemos acreditar como viável qualquer proposta de existência desatrelada do mundo, solitária, alimentada por um solipsismo alienante. Olhar e compreender o homem na totalidade das suas experiências vitais, faz-nos transcender ao conjunto de suas queixas, indo além daquele elenco de incômodos que conduzem alguém à terapia. A tarefa compreensiva exige então que não limitemos a pessoa ao seu elenco de queixas, embora as consideremos importantes e vitais já que fazem parte das vivências de alguém que a partir delas se motivou à terapia. Então, para não parecer contraditório cumpre esclarecer que na verdade fazemos a redução fenomenológica quando pomos de lado (mas não desprezamos) as queixas para compreendermos mais amplamente quem é essa pessoa portadora dessas queixas. Com efetividade a existência de qualquer pessoa se afirma e se anuncia a partir das suas escolhas. Escolher é uma atitude de saúde mental principalmente em função da facticidade, da realidade, da gama de opções ou das dificuldades atreladas a essas opções. O ato de escolher é um avaliador da condição emocional de uma pessoa porque mostra prontamente como ela lida com aspectos centrais da

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personalidade como a liberdade, a motivação, a autoconfiança, a tolerância e a força egóica. A indisposição ou a renúncia à escolha pode fazer a pessoa cair em certo vazio existencial. E aí entra uma discussão infinda que tenta definir se é o vazio existencial que produz as indefinições de escolha ou se são estas que provocam o advento de tal vazio. Aqui trabalhamos com a concepção existencial de que a somos lançados ao mundo com seres livres aos quais cabe decidir o que efetivamente fazer com a própria existência. Mas a decisão do homem em assumir sua liberdade e responsabilizar-se integralmente por ela envolve muito mais empenho, investimento e amadurecimento do que se pode imaginar. O vazio existencial, a princípio resultante da indisposição humana em aceitar a liberdade de escolha e as conseqüentes responsabilidades nela embutidas, se impõe como um refúgio diante de desafios. Metaforicamente seria como uma tentativa de volta ao útero materno, ou qualquer figura de linguagem que representasse o desespero da busca de proteção face a uma sensação de incapacidade de autocuidado; uma urgente fuga para a condição em-si em busca de proteção da angústia existencial que acomete a todo aquele que, enquanto ser-no-mundo, aí está, sujeito ao mundo. A terapia existencial trabalha no sentido de tirar o sujeito desse lugar existencialmente vazio, operando a capacitação e o aperfeiçoamento da função escolha. Sabemos que a vida é o exercício da escolha e que é em torno do escolher que encontramos as maiores e menores virtudes do homem. Escolhendo revelamos o quanto somos corajosos ou medrosos, tolos ou sábios, autênticos ou inautênticos. Sabemos que entre o medo e a coragem, por exemplo, residem infinitos estágios intermediários, de modo que não se pode afirmar que uma pessoa é absolutamente autêntica ou inautêntica sem cair na tentação do determinismo. Acrescente-se a isto que estar numa condição (in)autêntica não se torna uma essência, mas uma condição

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momentânea, resultante da escolha de um modo de ser: o modo de ser (in)autêntico. Há um processo de aperfeiçoamento das nossas escolhas. Enfatizamos inicialmente o que se denomina “ego strenght” ou força egóica, a qual se manifesta na objetividade sustentada pela pessoa na lúcida compreensão da realidade do mundo e na capacidade de estabelecer planos concretos considerando a possibilidade de adoção de alternativas. A pessoa de ego forte resiste bem diante de pressões sociais e ambientais enquanto reflete sobre a melhor escolha ou atitude a ser tomada; por fim, o ego forte é uma característica da pessoa que assume o seu projeto de vida, sendo capaz de descobrir canais úteis à sua viabilização. O fortalecimento do ego refere-se à maximização e incremento da consciência intencional em sua qualidade (força) e possibilita reduzir a quantidade de escolhas orientadas tão-somente pelo emocional, escolhas impulsivas, fruto de reações temperamentais, instintivas. Até mesmo nossas mais repentinas reações podem ser aperfeiçoadas a partir do nosso amadurecimento emocional que possibilitará maior serenidade, maior demora na reação automática, gerando reações pensadas o suficiente para que não sejam as escolhas, o tempo todo, imaturas e intempestivas. Outro modo de (não) escolher é aquele relacionado à má-fé, quando se finge que não se escolhe. Isto porque uma questão impeditiva reside na personalidade daquele que segundo Sartre traz o não em sua própria subjetividade. Esse “trazer o não” diz respeito à dificuldade de admitir o sim como possibilidade, porque, sempre esperando o não, o sujeito não vê como anunciar qualquer escolha, já que toda escolha equivale a um “sim”. Quando escolho, digo “sim” a algo que intenciono. Se escolho mas não quero ou não consigo admitir ou anunciar a minha escolha; se escolho e tenho vergonha da minha escolha; se escolho e temo a não-aprovação de minha escolha, caio na atitude da escolha de má-fé e protelo a exibição da minha escolha fugindo assim das “conseqüências de

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responsabilidade” atreladas ao ato de escolher. A escolha de má-fé equivale de certa forma à categoria que denominamos escolhas irresponsáveis, contudo há escolhas irresponsáveis que não são de má-fé, são escolhas constantes em pessoas que não se importam com conseqüências ou não acreditam nelas (conseqüências), ainda são comuns escolhas irresponsáveis em pessoas imaturas. Nas escolhas irresponsáveis é comum que o sujeito atribua a outro a responsabilidade de suas decisões. Há situações em que se espera da escolha mais do que ela é capaz de dar ou significar. Explicando melhor o que chamo escolha idealizada, há um hiperdimensionamento do significado de determinada opção, quando se vai atrelando ao fenômeno uma série de outros desejos que acaba por criar uma deformação da realidade e aí se depara com uma resultante de alguma escolha que não se coaduna com o que se pretendia. Como exemplo citamos a escolha de uma profissão, que em determinadas situações pode ser atrelada a uma série de sucessos que se imagina advindos do simples fato de atuar profissionalmente, como se qualquer sucesso profissional não dependesse de muito esforço, competência, trabalho e empenho. Esta categoria está relacionada a outra que denomino escolha ilusória, quando se pensa que basta escolher e tudo o mais estará resolvido, olvidando que na verdade toda escolha envolve a uma construção da escolha. Não basta que eu escolha ser Juiz de Direito se não houver em mim suficiente disposição de construir tal escolha. E a construção de uma escolha envolve empenho, persistência, capacitação, enfrentamento e outras etapas e aspectos que nos mostram que de certa forma é muito fácil escolher, mas difícil é construir a escolha para que ela se torne uma possibilidade real. A hesitação perante a possibilidade ou mesmo a imperiosidade de uma escolha pode ocorrer quando a pessoa se encontra diante de alternativas e acaba optando por algo que represente um movimento de defesa ou negação da realidade.

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Falamos de escolha monotemática quando continuamente se renuncia a possibilidade de realização de escolhas novas e novas experiências. Escolher sempre as mesmas coisas para evitar a ansiedade do contato com o novo é o que chamamos de escolha conservadora ou monotemática. Por outro lado, se há uma constante tendência de escolher o contrário daquilo que se deseja, estamos tratando de uma escolha invertida. E é comum observarmos que as pessoas às vezes invertem seus desejos para fugir da ansiedade conflitual, para evitar confrontos, impactos, oposições. Por último falamos da não-escolha. Sartre disse: “Ainda que fôssemos surdos e mudos como uma pedra, a nossa própria passividade seria uma forma de ação”. A não-escolha surge quando a pessoa renuncia a adoção de um projeto existencial, tentar entrar numa condição de incapacidade de tomar atitudes. Contudo, esse movimento letárgico, essa contra-atitude, essa renúncia à liberdade, surge não como inação, mas como uma forma de ação, já que a pessoa age não escolhendo, talvez sem saber que o não-escolher já é uma escolha. Isso porque quando eu não me movo, mantenho todas as coisas em seus devidos lugares. Só que isto também é um movimento: o movimento de manter as coisas como são, como estão.

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XII

PROPEDÊUTICA DO ATENDIMENTO PSICOLÓGICO

A propedêutica na psicoterapia significa o conjunto dos procedimentos práticos, de natureza técnica, ética, legislativa e institucional que antecedem e acompanham o processo de atendimento ao paciente. Mas também significa a preocupação que todos nós profissionais devemos ter em realizar o nosso trabalho de modo técnico, eficiente e profissional. Vamos começar pela preocupação com a eficiência pondo em destaque dois problemas comuns no atendimento psicológico: a dificuldade causada pelo silêncio do paciente (que mais para frente veremos que é mais do que um silêncio, é a dificuldade de expressar sentimentos e necessidades) e a ansiedade por resultados mágicos (que muitas vezes não é apenas um problema do paciente, mas também de muitos profissionais). Depois trataremos dos diversos elementos que constituem a rotina dos nossos atendimentos na esfera pública e particular.

A PALAVRA DE QUEM CALA

Todos que lidamos com terapias sabemos que a palavra é muito importante. Além de sua original função que é narrar experiências, ela também é eficientemente catártica. Acima disto, também por meio da palavra toda pessoa se anuncia, se constitui e se afirma. Diante de um sofrimento qualquer, não queremos apenas resolvê-lo, minorá-lo, ou discuti-lo, queremos também falar sobre nós mesmos, agentes desse sofrimento, falar o que pensamos, o que desejamos, falar do que somos, de quem somos. Vivemos em uma época em que outras coisas surgem no lugar da palavra: um gesto, um sinal, uma ilustração, ou a metade da palavra

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tentando economizar a palavra inteira. E assim sua presença vai minorando, e esse esvaziamento faz com que a palavra vá perdendo sua potência, se escasseando como unidade de comunicação. As sessões de terapia e análise carecem de discursos mais generosos. Nos consultórios mora a escassez verbal. Não se encontram palavras e aí o conflito perde a voz porque a vida perdeu a fluência, e se o sofrimento não é adequadamente descrito, muito menos a existência como um todo. E que análise se pode fazer de alguém que não porta uma mínima narrativa capaz de tornar visíveis sua vida e seus dilemas? Aqui estamos pondo em relevo uma característica da época atual: a escassez da palavra para narrar a existência, e tal ausência não acontece para dar lugar à reflexão, como seria compreensível, acontece por obra de um empobrecimento cultural aliado a um abrupto aumento da importância das imagens, dos vídeos, dos gestos, das aparências, e da comunicação instantânea, porém sem palavras. A continuar assim, um livro não precisará mais passar da capa, desde que essa capa ostente um elevado padrão comunicativo. É a morte da palavra. - Fale sobre isto. - Isto o quê? - Isto que aconteceu. - Mas eu já lhe disse o que aconteceu. - Sim, mas o que você pensa sobre isto? - Não sei. Este “não sei” não é, como se poderia imaginar, falta de opinião ou de sentimento. É mais grave: é falta de conhecimento de palavras que narrem as opiniões e sentimentos. Este “não sei” significa “não sei falar”, não estou habituado a falar, apenas a mostrar e a ver. Mostro o que sinto por meio do visual presente em meu

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vestuário, revelo o que penso por meio de minhas pulseiras, do meu cabelo, do meu boné. Você pode conhecer o que sinto através do carro que dirijo, dos lugares que visito, dos filmes a que assisto. E ao lado disso mostro o que sinto e o que penso através de doenças, de erros, de falhas, de faltas, de pânicos, de medos e de preconceitos. São os meus hábitos e os meus sintomas que me descrevem, mas o mais grave é que eles tomam o lugar da palavra não como exceção, mas como regra. Os hábitos poderiam ser complementares à palavra, mas não, eles as substituem. Excluo a expressão verbal porque me adapto a uma época em que predominam o gestual e o visual, o império da semiótica, um saber que deveria ater-se aos modos como o homem significa o que o rodeia, mas que na realidade vem aos poucos substituindo a palavra. Ninguém tem mais paciência para ouvir, nem para falar. Basta que vejam a roupa que uso, as músicas que ouço. O silêncio na análise que na época de Freud era uma forma diferenciada de projetar conteúdo inconsciente, agora na maioria das vezes é sintoma do esvaziamento da palavra: não sei que palavras existem para dizer, e nem mesmo são necessárias palavras já que vivo mergulhado em um oceano de símbolos, imagens e sinais. Tais símbolos não se comparam aos estudos de Jung e de outros autores que a partir deles realçavam a palavra e seus conteúdos. Não, aqui o símbolo é um casaco, um carro, ou até mesmo um copo de bebida. Está aí quem sou. É por isto que, hoje, imperam propostas terapêuticas absurdamente simplificadoras que diante da palavra: depressão, por exemplo, indicam sem mais delongas uma medicação da moda, e assim acabam “equacionando” o sofrimento psíquico a partir de drogas e fórmulas farmacêuticas, deixando de fora a palavra Talvez um importante desafio da psicoterapia seja devolver a voz a quem cala, um desafio que vai de encontro a todo um conjunto de empobrecimento cultural, domínio visual, gestual e desvalorização

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da palavra. Mas, de qualquer forma, lembremos que “Não se pode não comunicar. O silêncio, o ensimesmamento, a imobilidade, ou qualquer outra forma de renúncia já é em si uma comunicação”31. E aqui valorizamos todas as formas de linguagem e comunicação, enquanto refletimos sobre a crescente dificuldade das pessoas com a palavra, principalmente em terapia, esse diálogo interventivo. São inegáveis os avanços da psicologia em relação à valorização do conjunto das expressões físicas e gestuais que mostram a pessoa muitas das vezes de forma mais eficaz do que elas poderiam colocar em palavras, mesmo que sejam donas de admirável retórica. Foi Willian Reich, de acordo com Gaiarsa, que deu o primeiro passo no sentido de "entrar no possível significado das expressões gestuais”. "Sua tarefa em geral consistia em fazer as pessoas perceberem seus gestos e atitudes, tomarem consciência de seus movimentos e posições, assim como de suas expressões faciais. Em suma, consciência de tudo aquilo que os outros estão vendo o tempo todo e a pessoa não, pois ninguém conhece bem as próprias expressões fisionômicas e gestuais”, diz. Da mesma forma como a ênfase de Jung nos símbolos como genuínas e profundas expressões da personalidade em busca de individuação não ocorre em detrimento à palavra, também a linguagem corporal no lugar de substituir a palavra na verdade a revela com uma expressão de autenticidade que talvez ela isoladamente não dê conta. O terapeuta, por seu turno, precisa ser fluente no uso da palavra, não de modo rebuscado, muito menos de um jeito prolixo, mas de maneira a facilitar a compreensão. Efetivamente não vale a pena dizer aquilo que não contribui à clarificação dos fatos e sentimentos. Uma técnica é procurar utilizar palavras próximas ao

31 ERTHAL, Tereza (1998)

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que se percebe como o vocabulário usual do paciente, porque comunicação não é o que você fala, mas o que o outro entende. Aqui abro parênteses para tocar na questão da utilização dos vocábulos cliente e paciente, qual seria o correto? Entendo que ambas as expressões são corretas e a decisão de utilizar uma ou outra fica por conta do próprio terapeuta. Muitos dos que usam a expressão “paciente” alegam que a expressão “cliente” possui um significado muito comercial (o cliente do banco, o cliente da operadora de celular), mas a expressão “paciente” torna-se mais adequada porque identifica a pessoa que busca tratamento de saúde. Já os que preferem a expressão “cliente” alegam que o vocábulo paciente denota uma condição de passividade, como se a pessoa em tratamento permanecesse fora da condição ativa, sempre esperando que as resoluções e o desenvolvimento da terapia partam do terapeuta, já que ele não passa de alguém “paciente”. Na verdade a expressão “paciente” quando aplicada no contexto do tratamento de saúde não tem nada a ver com ter paciência ou esperar pacientemente. A análise etimológica da expressão paciente tem um viés clínico e se refere a “aquele que recebe os cuidados provindos do profissional de saúde”. Mas, voltando questão da ausência da palavra em terapia, eu sempre oriento meus supervisionandos a: . O quanto possível, operar o diálogo na terapia de modo simétrico ao nível cultural e escolar do paciente. . Não ter qualquer preocupação em “falar bonito” para mostrar erudição, embora deva tentar se expressar sempre de acordo com um padrão técnico. . Não adotar uma linguagem cheia de gírias e expressões chulas, ainda que o paciente faça uso de uma linguagem assim. . Não obstante a orientação do item anterior, é de bom alvitre valorizar a linguagem do paciente, seja ela qual for, mas procurando

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interpretá-la na hora. Exemplo: se um adolescente diz: “a minha professora é irada”, talvez isto seja um elogio, talvez seja uma crítica. Mas a preocupação maior aqui é com quem não fala. E em relação a isto a orientação é: . Que o terapeuta saiba que a palavra falada não é a única forma de comunicação. . Que o terapeuta não desenvolva qualquer ansiedade ou grande expectativa para que a pessoa fale: é muito importante em terapia respeitar o ritmo, o momento e a subjetividade do paciente. . Que o terapeuta se torne um facilitador da comunicação. Primeiramente mantendo-se sempre receptivo ao paciente independente do seu “ranking” palavras por minuto. Em segundo lugar deixando claro ao paciente que o tempo ali é dele e que ele poderá fazer o uso desse tempo da melhor maneira que lhe aprouver. . Que o terapeuta faça, em momento adequados, perguntas que facilitem ao paciente a utilização da palavra falada. Para tanto, observe o diálogo abaixo realizado em uma primeira sessão com Cíntia, 17 anos: TERAPEUTA- O que levou você a decidir fazer terapia? (silêncio) TERAPEUTA – O que eu quis perguntar é: o que te levou a aceitar vir ao psicólogo? CINTIA – Eu não quis vir... TERAPEUTA – Mas mesmo assim... CINTIA – É que eles me obrigaram. TERAPEUTA – Eles? CINTIA – É, minha mãe e o Seu Antonio. TERAPEUTA – A sua mãe e o Seu Antonio? CINTIA – É, Seu Antonio, o namorado dela. TERAPEUTA – Gostaria de saber como eles te obrigaram... CINTIA – Ah, ficaram falando na minha cabeça.

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TERAPEUTA – E sempre que alguém fica falando em sua cabeça você faz o que querem? Mesmo quando você não quer? CINTIA – Eu não. TERAPEUTA – Então estou certo se pensar que de certa forma você concordou em vir? CINTIA – É...quero ver qual é. Cíntia estava na defensiva, mas saiu dessa posição graças à habilidade do psicólogo que logo de início fez perguntas que estimularam a possibilidade de uma comunicação oral, com um mínimo de fluência facilitadora à sessão. Relembrando:

TERAPEUTA O que levou você a decidir fazer terapia?

(silêncio)

TERAPEUTA

O que eu quis perguntar é: o que te levou a aceitar vir ao psicólogo?

CINTIA – Eu não quis vir...

PROPEDÊUTICA - ASPECTOS TÉCNICOS Existem regras técnicas, institucionais, éticas e legislativas para o atendimento psicológico, umas são universais, outras particulares. As regras, normas e costumes que citamos abaixo não são as únicas, mas são as mais básicas. Lembramos que alguns costumes adotados pelo profissional se deve à linha ou abordagem que ele segue. Não há legislação sobre tudo, em relação a vários itens e assuntos deve prevalecer o bom-senso.

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Entre as regras universais podemos citar:

INDUMENTÁRIA O psicoterapeuta deve se vestir com discrição, embora não tenha que abrir mão do seu estilo, porque também pode cair na inautenticidade. O importante é não chamar a atenção para si por meio das roupas que usa, evitando também o excesso de adereços. Quanto ao uso de jaleco no consultório é opcional, mas em Instituições prevalecerá o que estiver previsto nas normas ou orientações institucionais.

CONTRATO Geralmente na primeira sessão se discute o contrato, que deve ser aceito pelo paciente ou por seu responsável para que seja dado início ao tratamento. Alguns profissionais reservam a primeira sessão exclusivamente para contrato e anamnese (quando a realizam). O contrato prevê: custo do tratamento, forma de pagamento, horários das sessões, faltas e férias.

GRAVAÇÕES, ANOTAÇÕES E PRONTUÁRIO Algumas abordagens terapêuticas orientam que não se façam anotações na frente do paciente ou gravações de sessões, outras consideram tais procedimentos parte natural do trabalho. Isto fica por conta do psicólogo, contudo – se for feito - é necessário que seja com muita habilidade, bom-senso e – claro – com a concordância do paciente. Gravações ocultas, nem pensar.

TEMPO E RELÓGIO O tempo da sessão, normalmente, é de cinquenta minutos. Esta prática é para que possibilite um intervalo de dez minutos entre as sessões que devem ser marcadas de hora em hora. O consultório pode ter um relógio que esteja a vista, mas de um jeito discreto. Embora as sessões tenham um tempo determinado, não é aconselhável que o terapeuta fique olhando o relógio o tempo todo.

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SIGILO O sigilo sobre o paciente e sobre o conteúdo das sessões é talvez o item mais importante do processo de tratamento psicoterápico. Trata-se de matéria prevista e constante no Código de Ética Profissional do Psicólogo, que deve ser consultado.

MÚSICA Alguns terapeutas usam um aparelho de som ligado com músicas calmas e relaxantes no consultório. O objetivo se volta geralmente à criação de um ambiente calmo e agradável. Outras usam música em exercícios de relaxamento, meditação e hipnose. Deve-se ter o cuidado de consultar o paciente se a música o incomoda. Muitas pessoas não conseguem, enquanto ouvem música, se expressar adequadamente ou prestar atenção ao que o outro fala.

EVASÃO E INVASÃO DE SONS Se usar aparelho de som ou TV fora da sala, na sala de espera, cuidado para que o volume não perturbe a sessão de terapia. Alguns profissionais deixam aparelhos de som ou TV ligados na sala de espera de forma proposital quando existe o perigo de evasão do som da sala de terapia e conseqüente quebra de sigilo do atendimento. É recomendável um tratamento acústico do consultório para evitar esse grave problema.

ANAMNESE Fazer anamnese é importante porque se trata de um instrumento que facilita a compreensão dos processos vitais do paciente e o contexto pessoal, familiar e profissional onde ele vive as suas questões e compartilha suas experiências. A anamnese pode ser estruturada, fechada em questionário, ou aberta, se constituindo aos poucos, na mediação da sessão ou das sessões. Há uma preferência da maioria dos profissionais pela anamnese aberta, não-estruturada, mas é preciso muito mais preparo porque é uma prática que parece simples, mas não é. É comum ocorrer que a anamnese fica incompleta

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e muitos dados esquecidos quando não se adota o questionário e não se está devidamente treinado para uma anamnese aberta.

SUPERVISÃO E COMPETÊNCIA PROFISSIONAL Todo profissional no início de carreira necessita de supervisão, a não ser que se trate de um gênio. Mas geralmente a recusa à supervisão se dá por orgulho e prepotência mesmo. Muitos já formados há bastante tempo também deveriam procurar supervisão para realizar atendimentos de melhor qualidade. Também, em relação ao quesito competência é preciso que o profissional tenha a humildade de encaminhar casos para os quais não se ache habilitado ao atendimento. É mais ético e mais inteligente.

PRÁTICAS LEGAIS E ILEGAIS Recorra ao Conselho Federal de Psicologia ou ao seu Conselho Regional quando tiver dúvida se uma prática ou técnica a ser empregada no atendimento ao seu paciente é legal ou ilegal, se está ou não entre as atribuições do psicólogo.

SUA VIDA, RELIGIÃO E IDEOLOGIAS Nenhum psicólogo competente mistura suas crenças espirituais pessoais com suas responsabilidades profissionais enquanto terapeuta. Nenhum terapeuta sério mistura as suas ideologias e convicções políticas com as práticas específicas que dizem respeito ao seu trabalho. A sua vida pessoal nada tem a ver com o contexto dos seus atendimentos. Não queira ser exemplo de nada para ninguém. Na falta de argumentos, estratégicas e procedimentos técnicos e fluência analítica compreensiva ou interpretativa, procure um curso, uma supervisão, faça uma boa pós-graduação ou leia um pouco mais. Não existe bom psicólogo que não se dedique a boas leituras.

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RELACIONAMENTO COM O PACIENTE O nosso Código de Ética preceitua que é vedado ao psicólogo manter qualquer relação com o paciente que venha prejudicar os objetivos do trabalho profissional que realiza.

TERAPIA DO TERAPEUTA

A terapia pessoal está entre os fatores que podem proporcionar ao psicólogo ou futuro psicólogo, uma boa formação, além do pré-requisito de uma adequada vocação e talento para atuar na área, passando pelo necessário empenho, interesse e dedicação durante a graduação e ainda uma sólida e competente preparação na linha e especialidade que escolher. Muitos terapeutas seriam melhor profissionais se fizessem terapia. Para o estudante, a dedicação a uma boa terapia, além de proporcionar crescimento pessoal, gera a importante experiência de participar diretamente de um trabalho profissional para o qual está se preparando. Fazer terapia não é obrigatório, mas é bastante aconselhável. Quanto à escolha do local e do terapeuta, vemos que a maior vantagem de um tratamento particular é a liberdade de opção, e talvez o mais decisivo passo para o sucesso de um tratamento seja uma seleção adequada de quem irá realizá-lo. Algumas universidades mantêm um setor de apoio psicológico e alguns municípios possuem um Serviço de Psicologia estruturado para quem não tem condições de fazê-lo particularmente. A escolha de um profissional realmente competente é tão importante que em muitos casos é melhor não fazer terapia do que entrar em um processo que será mal realizado.

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RELAÇÃO ÉTICA COM OS COLEGAS O psicólogo não deve oferecer seus serviços a alguém que já esteja sendo atendido por outro profissional, a não ser em casos de emergência ou a pedido do colega. E também não deve aceitar substituir um colega que tenha rompido a relação profissional com alguma instituição ou empresa que tenha cometido alguma infração ética.

DEVOLUTIVAS As sessões de devolução são oportunidades em que o terapeuta atende aos pais ou responsáveis de um paciente menor de idade para permitir que os mesmos acompanhem o desenvolvimento do trabalho que está sendo realizado com o seu ente e para que sejam assistidos nas dificuldades e sentimentos que eles desenvolvem em função da relação com aquele que está em atendimento. Entretanto, deve ser preservado o sigilo.

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XIII - DINÂMICA DA TERAPIA EXISTENCIAL

O que nos faz viver é a esperança. Chamamos de projeto existencial o conjunto das coisas que objetivamente esperamos. Dizem que “enquanto há vida, há esperança”, aqui assinalo que enquanto há esperança, há vida; porque não existirá mais vida se a esperança for embora”. Nossas esperanças subsistem no meio de desesperanças, absurdos e contradições; e se a esperança subsiste é porque não assimila e nem (se) alimenta (d)o mal; não se centra no fatídico do fáctico, mas foca sua intencionalidade no bem, mesmo que esse bem seja circunstancialmente tão diminuto que não possa ser evidenciado no meio de tanta angústia, tanto caos.

A contemplação do absurdo, a constatação da interminável luta que é a vida, e todo esse processo mundano de correr não se sabe para onde, de viver não se sabe para quê – são questões existenciais importantes a esta introdução, porque afinal se vamos trabalhar em psicoterapia com pessoas, iremos atuar junto a questões existenciais que elas trazem. O amor manchado pela decepção, o medo desmontando planos, a falta de coragem, a falta de fé, a falta de disposição, o corpo em depressão, o excesso de imprudência, a precipitação, a falta de serenidade e de aceitação, e – sobretudo e sempre – o medo de não ser feliz e a culpa que normalmente acompanha todos os estados depressivos.

De diversos modos a culpa se faz presente entre as questões trazidas para a terapia: a culpa que se sente pela não consecução de projetos, a culpa por não ter sido melhor pai, melhor mãe, melhor cônjuge, e a culpa a respeito de erros de julgamentos, intenções ou atitudes. Até mesmo a culpa pelos erros dos outros, ou a culpa de ter sido abandonado, de não se fazer merecedor de determinado amor.

Há uma certa culpa em algumas pessoas advinda da prepotência de se achar capaz de acertar sempre, e surge então a

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necessidade de se punir, tentando debelar (em vão) essa sensação de culpabilidade que as oprime.

Aqui vamos examinar como Martin Heidegger concebe a questão da culpa e vamos a seguir aplicar tal concepção à psicoterapia existencial.

Inicialmente é preciso relembrar o conceito de decadência em Heidegger que a tem como uma determinação existencial do homem lançado ao mundo. Decadência se refere à facticidade do homem que se encontra o tempo todo exposto à volatilidade e imprevisibilidade do cotidiano mundano sem garantias de qualquer natureza. Decadência é o estar-no-mundo, ainda que o homem conte com a possibilidade de sair da decadência (sem sair do mundo) e imergir para a intimidade do seu ser edificando continuamente essa sua existência fáctica na cotidianidade.

A culpa, por seu turno, é um determinante (fundamento) ontológico do homem decadente. Fundamento das situações de queda e de falta do dasein fático. É um determinante ontológico do homem como ser-no-mundo, no existencial da facticidade mundana. É, portanto, um modo de ser do dasein fático e, neste sentido, é o modo de ver, receber e se portar existencialmente diante daquilo (a culpa) que não lhe é possível escapar, já que não se pode ser sem culpa, não enquanto vivemos, enquanto somos no mundo.

Entendo que não há porque sentir culpa da culpa, já que ela está no mundo onde homem está e não pode deixar de estar em nenhum sentido. Contemplo a culpa como possibilidade de reedificação, fortalecimento e crescimento.

É assim que, resumido por mim, Heidegger descreve a culpa. E ao lado disso, para ele o homem é um ser-para-morte, pois tudo que aspiramos, planejamos e alcançamos, desemboca em um irremediável fim, e este fim nos acompanha, passo a passo, cada dia, desde que nascemos. Mas Sartre diz que a morte não pode pertencer à estrutura ontológica do Para-si já que ela se encontra totalmente fora de nossas

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possibilidades, entendendo que a morte é a nadificação do projeto, uma certeza, mais que uma possibilidade, mas - ainda assim - nos afirma que é uma experiência inalcançável.

Ele conclui, contra Heidegger, que a morte, longe de ser minha possibilidade própria, é um fato contingente que, enquanto tal, escapa-me por princípio e pertence originariamente à minha facticidade. “E eu não poderia descobrir minha morte, nem esperar por ela, nem tomar uma atitude em relação a ela, visto que ela é aquilo que se revela como irrevelável, aquilo que desarma todas as esperas e que penetra em todas as atitudes, particularmente as que adotamos a seu respeito”32. A morte é um puro fato, como o nascimento. No fundo não se diferencia em absoluto do nascimento, e é tal identidade entre nascimento e morte que denominamos facticidade. Significará, então, que a morte traça os limites de nossa liberdade? Ao renunciar o ser-para-a-morte de Heidegger, teremos renunciado para sempre a possibilidade de dar livremente a nosso ser uma significação pela qual sejamos responsáveis? Muito pelo contrário: parece-nos que a morte, ao revelar-se a nós tal como é, libera-nos de sua pretensa coerção.

Ao se deparar com o seu limite existencial, com o nada, com a ausência de algo que dê sentido e coesão à sua existência, o ser humano experimenta a angústia. A angústia é ao mesmo tempo um sentimento diante da existência como limite, mas é também o motor que impele o ser humano a se tornar si-mesmo, ponto de partida para um salto que o constitui como ser humano. Para Heidegger isto se dá abraçando a existência autêntica, para Sartre assumindo a responsabilidade das próprias escolhas.

Para ambos a angústia chega quando percebo que inexiste um ser previamente estabelecido, inexiste um alicerce em cima do qual irei construir minha própria existência, assim me vejo desamparado diante da minha liberdade. 32 O SER E O NADA. P.667

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Na clínica existencial, então, buscamos trabalhar a angústia para que ela possa livremente “expressar” suas buscas. É claro que em qualquer tipo de análise a angústia é de alguma forma trabalhada. Há um sentido de angústia que aponta para um lado criativo, uma vez que o processo de recalque ou de supressão se encaminhe para uma neurose “saudável”, caso em que no jargão psicanalítico ocorre uma facilitação do encontro entre consciente e inconsciente, ou seja, entre uma força criativa, pujante e outra repressiva. Finalmente, é a angústia que faz parte de nossa vida e nos abre “para o real, para o futuro, para a indistinta possibilidade de tudo”. Então, aceitá-la como parte de nossas vidas, é um sinal de maturidade, pois angústia e esperança vivem juntas.

Na análise existencial entendemos que não há como eliminar algo que é fundamento do ser. A angústia é um fundamento do ser. Além disso, existe na filosofia sartriana um forte apelo para a responsabilidade, e se a angústia – como vimos – nasce dessa consciência de responsabilidade, se o que angustia é o (re)conhecimento da responsabilidade diante da liberdade de fazer as próprias escolhas, então eliminar a angústia corresponderia a eliminar essa consciência de liberdade, e isto não faz sentido quando o que se persegue é o crescimento.

O que se vai buscar na análise existencial é que o cliente não tema desejar, escolher, pretender. Que ele goste de ousar uma ousadia responsável, e que possa desenvolver autoconfiança e auto-estima no sentido de empregar o melhor de si, obstinadamente, em direção ao seu projeto. E que seja autocritico e humilde quando precisar reformular seus projetos, entendendo que a vida é mesmo reformulação cotidiana, e que o ir-e-vir, ou avançar-e-voltar não significa instabilidade, pelo contrário, significa que finalmente compreendeu que todo dia recomeçamos nosso projeto existencial, porque na verdade nunca estamos prontos.

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Só que esse “nunca estar pronto” do existencialismo não significa atraso ou retardo, porque ninguém vai esperar “estar pronto” para viver. Porque na verdade vivemos enquanto nos aprontamos. No raciocínio existencial viver é exatamente se aprontar, se preparar. Muitas pessoas ficam anos e mais anos se preparando, planejando a felicidade, consumindo grande parte do tempo de suas existências sonhando e construindo lentamente os seus ideais e nesse meio tempo refutam centenas de oportunidades, até que um dia acordam e descobrem que não viveram porque sempre esperaram por um dia em que tudo seria ideal, e aí viveriam seus planos. E descobrem que talvez devessem viver cada dia, mesmo com as limitações do dia-a-dia. Parece que foi o compositor inglês John Lennon que disse: “A vida é aquilo que acontece enquanto fazemos planos para o futuro”.

Quando tratamos de desejo, lembramos que é a realização humana que torna a realidade possível, isto é, real; já que a realidade não existe, a não ser na ação, pois “a realidade humana anuncia-se e se define pelos fins que persegue”. E tanto falamos em vida que não podemos deixar de aludir àquilo que no senso comum e em muitas visões filosóficas e religiosas é o seu oposto: a morte. O trabalho analítico existencial nos conduz a reflexões acerca do sentido da nossa existência. Sartre, entretanto, entendendo a morte como um fato contingente e distante de qualquer possibilidade de controle, influência ou ação, não crê que a necessária reflexão sobre o nosso sentido de vida possa se dar a partir do tema “morte”. Meditar sobre a minha vida considerando-a a partir de minha morte seria o mesmo que meditar sobre minha subjetividade adotando sobre ela o ponto de vista do outro; isso não é possível.33. A relação que Sartre faz da morte como sendo algo do outro significa que ela é algo que não diz respeito a mim já que me escapa totalmente, ou seja, nada posso fazer a respeito dela. 33 O SER E O NADA. P. 668

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Sartre na verdade não dá muita importância à morte, já que se estando vivos não a sofremos, e se morremos também não a sofremos. A morte é sempre uma experiência do outro, já que ela é inócua para quem a sofre. Assim, a minha morte, para mim, nada representa. Nunca. A não ser para o sujeito em estado terminal, ou ameaçado por alguma doença fatal, que é instado a considerar (e vivenciar) a proximidade do seu fim, mas todos nós, todos os dias, sabemos que vida é contingência, e ela (a vida) é tão instável que nada nos resta além de viver intensamente esse nosso projeto que um dia a morte nadificará. Acaba que a idéia (e também certeza) da morte contribui para nos fecundar de intensidade para com a vida, e não o contrário. Sartre se valeu de concepções teóricas principalmente de Husserl e Heidegger para construir sua ontologia, contribuindo para a consolidação da psicoterapia fenomenologico-existencial, uma psicologia compreensiva chamada por ele em “O ser e o nada”, de Análise Existencial. O único aspecto discordante por ele apontado na fenomenologia husserliana foi a crescente valorização das questões transcendentais da consciência, ao ponto de Husserl em “Meditações Cartesianas” conceber a existência de um Ego Transcendental. A partir desse ponto Sartre formulou a idéia de um Ego transcendente e não transcendental. A diferença é que ao tomarmos a noção de consciência, esta implica o movimento intencional, que significa admitir que a consciência é esse movimento de transcender a sua dimensão interna em direção aos objetos que a constituem. Não somente a existencial, mas outras abordagens surgiram a partir da influência fenomenológica. Segundo MOREIRA (2007), pode-se identificar como denominador comum das várias linhas de base fenomenológica: o respeito à pessoa, o reconhecimento da totalidade e unicidade do outro, a intolerância frente a todas as manifestações de tendências deterministas e a ênfase na relação humana como forma de crescimento.

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Aqui, a palavra mais importante é COMPREENSÃO, que significa “possibilidade de acesso a uma vivência psíquica que não é nossa”34 E o segredo da relação compreensiva é a adequada coexistência com o outro. Entre as diversas linhas da psicologia que se valem do método fenomenológico destacamos: a Existencial, a Gestalt, a ACP, o Psicodrama, a Psicologia Corporal e a Sistêmica. Um terapeuta orientado fenomenologicamente, sabe que são os nossos sentimentos que nos colocam no caminho da compreensão, porque nos possibilitam a capacidade de sermos “afetados” pelo paciente. Isto ocorre em função do nosso sincero interesse em desenvolver e fortalecer o vínculo. Também é fundamental que haja permanente desejo de empenho na ajuda ao paciente, aliado à nossa capacidade de aceitá-lo tal como ele é. Quando esse terapeuta busca estabelecer com o seu paciente uma aproximação autenticamente fenomenológica ele também precisa saber que:

1. A prioridade é a relação – Você está numa relação de pessoa para pessoa. Não se esqueça. São duas pessoas trabalhando em um único projeto. E o que o projeto tem de mais importante naquele instante é a própria relação. Não lide com a terapia como se fosse uma tarefa rígida, ou um compromisso vinculado a resultados pré-determinados. Você não está produzindo coisas. Você está construindo uma relação humana que ao se solidificar, fortalece a ambos os pólos envolvidos.

2. Não deve ansiar por resultados – Tudo que acontecer como resultado desse encontro deve ser bom, mas o mais importante é o encontro em si mesmo. Que esse encontro seja o mais autêntico possível. Os resultados virão todos os dias. O próprio encontro já é um resultado.

34 DARTIGUES, André. O que é a fenomenologia?

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3. Deve querer conhecer o paciente – Quem é esse paciente além do seu diagnóstico? Qual a sua história de vida? Que pontos saudáveis, positivos e construtivos podem ser localizados em sua história? Colocar maior ênfase na experiência vivida no presente, ajudar o paciente a sair de uma estagnação que o oprime a partir de tantos episódios passados melancólicos e traumáticos que constituem seu repetitivo discurso, numa fixação textual algo mântrica que se dedica a repetir queixas que acabam consolidando e reafirmando o próprio sofrimento. Deve-se querer conhecer o paciente simplesmente pelo prazer de conhecer uma pessoa legal. Assim, ingenuamente, fenomenologicamente.

4. Ser autêntico (não se esconder) – Não represente um papel: o papel do terapeuta. Seja você mesmo o tempo todo: este é o terapeuta, você como você é, sem máscaras, sem camuflagens, sem invenções, sem posturas falsamente profissionais que só fazem te afastar do paciente e dificultar o vínculo. Está provado que muitas vezes a ansiedade do “profissionalismo” nada mais é que uma tentativa de disfarçar insegurança e incompetência.

5. Ser sincero com seus sentimentos – Por que falsear seus reais sentimentos? Você acha que sentimentos inventados são sinceros? Funcionam? Você está ali para ajudar o seu paciente a ser mais congruente com seus sentimentos, desejos, receios e alegrias. Então, por que você não aproveita e faz o mesmo?

6. Não ter medo do paciente – Lembre-se que atrás do rótulo de psicótico, de agressivo, de suicida, disso ou daquilo, encontra-se uma pessoa ansiosa por liberdade e paz. Isto não quer dizer que você não deva ser cuidadoso.

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Precisamos ser cuidadosos sim, mas com todas as pessoas, sem exceção. Mas sem paranóias, por favor.

7. Não priorizar diagnósticos e sintomas – A sua relação é com uma pessoa que está ali para obter sua ajuda. Você não estará trabalhando com doenças, diagnósticos, sintomas e prognósticos. Você estará trabalhando com pessoas. Concentre-se nisto. O diagnóstico não deve ser ignorado, tampouco reverenciado. Chame a pessoa sempre pelo nome dela.

8. Ser ético e responsável – Estabelecer uma relação compreensiva não significa abandonar a consciência moral, o dever ético e o senso de responsabilidade. Não tente agradar o paciente adotando um movimento hipócrita de sempre concordar com ele. Lembre-se que você pode aceitar uma pessoa e ao mesmo tempo discordar dela. Guarde bem isso.

9. Sentir com o paciente – É muito terapêutico ser capaz de sentir, de desenvolver empatia, de sofrer e de se alegrar. Sem exageros, sem que você acabe se desestruturando pelo caminho. Mas é sempre muito positivo quando o paciente percebe que o seu sentimento é real, e que quem está ali diante dele é uma pessoa e não simplesmente uma máquina de citar aforismos, de ditar conselhos ou de orientar comportamentos.

10. Acompanhar tudo de forma interessada – Quanto maior o seu interesse genuíno pelo paciente, maior o crescimento dele. E o seu também, por que não?

A psicologia buscou na fenomenologia um conhecimento possibilitador da arte de intervir compreensivamente, além da capacidade explicativa. A articulação entre ambos saberes mostra que o “compreender” se afirma na reunião de duas intencionalidades, a do

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psicólogo e a do paciente. Todavia, tal colimação requer apropriada elaboração terapêutica que vise encurtar a distância entre uma e outra. A pergunta é: como, pois, articular a compreensão tal como a fenomenologia a concebe sem desconsiderar essa explicativa da qual não se pode prescindir? Vamos então examinar um interessante exemplo de compreensão em psicoterapia relatado pelo eminente psicoterapeuta russo Eugene Minkowski (1885-1972) em seu livro Temps Vécus (tempo Vivido). Antes, porém, de apresentar este exemplar caso clínico de intervenção fenomenológica compreensiva, lembremos que o método psicoterapêutico de Minkowski consistia, antes de tudo, em uma busca do concreto. Ele se orientava profissionalmente segundo Bergson, principalmente no que consta do “Ensaio sobre os dados imediatos da consciência”. Assim, era de se esperar que a postura de Minkowski diante de um cliente assistido diariamente e de modo prolongado tornar-se-ia um meio de investigação das perturbações mentais que não se perderia em nenhum extremo racional ou irracional. Minkowski ensina que após certo tempo de exposição e de abertura ao fenômeno, este se dá a conhecer enquanto tal, em sua totalidade. Não significando uma abordagem introspectiva, mas um empenho fenomenológico, um abrir-se à própria coisa em apreço, deixando-a se mostrar como experiência imediata à consciência. Nesse sentido, Eugene Minkowski concebe, tal como seu contemporâneo alemão Karl Jaspers (1883-1969)35 que a psicopatologia deve se constituir uma psicologia do patológico e não uma patologia do psicológico, elucidando que “ao conhecer a experiência humana como fundada sobre o pathos da paixão e do sofrimento, a psicopatologia tem por tarefa a descrição de formas

35 Jaspers, Karl. Psicopatologia Geral

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singulares de existência e de estar-no-mundo” 36. É assim que Minkowski contempla a esquizofrenia, enquanto fenômeno que busca expressar o ser da existencialidade na qual habita, em vez de se dedicar a qualquer inventário de sintomas. Mas vamos à descrição do caso clínico atendido por Minkowski: O paciente apresentava um quadro clínico com forte sentimento de culpa acompanhado da idéia de um castigo iminente. Esta iminência terrificante aparece como uma certeza dominante que transforma no doente o sentido do tempo: não há mais nada a esperar, “o futuro está barrado”. Ora, não encontrávamos em nós experiências análogas que poderiam nos colocar no caminho da compreensão? “Experimentamos algo análogo nos momentos de desencorajamento e de esmorecimento. A idéia da morte, esse protótipo da certeza empírica, se instala então, barra o futuro e domina a nossa vida.”. A diferença é que em nós esse estágio é passageiro; logo a vida e o impulso pessoal voltam a se impor. Ao passo que “é essa propulsão em direção ao futuro que parece faltar totalmente ao paciente; daí sua atitude geral... Ele construirá o presente sobre um futuro deformado, ele não tomará o seu impulso do presente em direção ao futuro que ele não conhece nenhum limite”. Um outro traço do quadro clínico era o delírio de perseguição. Não se poderá ligá-lo a essa ruptura de impulso que deixa o sujeito impotente diante de um mundo que lhe recusa todo o futuro? O estado de passividade no qual nos mergulha a dor sensorial permite-nos compreender este aspecto opressivo do mundo: “Nós não nos exteriorizamos mais agora, não procuramos mais deixar uma marca no mundo exterior, ao contrário, nós suportamos, nós o deixamos vir sobre nós em toda a sua impetuosidade e ele nos faz sofrer”. O

36 PEREIRA, Mário Eduardo Costa. A perda do contato vital com a realidade na esquizofrenia, segundo Eugène Minkowski. In: Rev. Latinoam. Psicop. Fund. VII, 2, 125-129.

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mundo, tendo deixado de ser um futuro aberto se converte inteiramente em espaço, mas um espaço gigantesco e hostil. O tempo, estando morto, não contendo mais, por conseguinte, nenhum futuro e nenhuma promessa, os objetos do espaço só podem se tornar formas ameaçadoras e esmagadoras: “A esfera de seus interesses imediatos e ilimitada no espaço, mas é barrada do ponto de vista do futuro; a nossa, pelo contrário, é limitada no espaço, mas não conhece limites no futuro”. Situamos assim a distorção que separa do nosso universo o esquizofrênico: ela se produz nessa dimensão essencial do homem que é o ser-no-tempo. Vemos assim que compreender a idéia delirante é “saber que ela não é construída de ponta a ponta pela imaginação”, mas “que ela vem se implantar num fenômeno que faz parte de nossa vida e que entra fatalmente num jogo onde a síntese dessa começa a declinar”. Uma psicopatologia fenomenológica será, pois, uma intuição do fenômeno patológico estudado, uma apreensão, através das noções que designam os sintomas e do sistema que essas noções constituem, da vivência que as noções indicam: “A força de olhar o objeto, sentir-se entrar nele”. Nele se introduzir familiarmente, nele se fundir, em lugar de extrair e de enumerar propriedades e significados. Certamente o fenomenólogo terá, ele também, necessidade das propriedades e dos significados cuidadosamente apreendidos e descritos, mas ele não os quer por si próprios, com o objetivo de utilizá-los como elementos de conceitos, mas para, graças a eles, chegar sempre à intuição da coisa, à intuição do objeto. Intuição que não é pura descrição subjetiva dos fenômenos em sua particularidade empírica, mas, no sentido de Husserl, intuição da essência do fenômeno patológico, transcendendo suas manifestações particulares. Minkowski ao decidir permanecer junto ao paciente por dois meses valorizou a proximidade, a convivência, a possibilidade de entrar no seu universo psíquico. Isto é simbólico e significativo, porque mais do que permanecer com o paciente um tempo qualquer, a

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compreensão simbólica disto é a de que se pode construir uma condição real e eficaz de proximidade e vínculo em qualquer relação terapêutica, mesmo ambulatorial, desde que o terapeuta numa postura fenomenológica não tenha medo de se expor, de se abrir ao fenômeno para alcançar o conhecimento do mesmo em sua totalidade. Quando isto ocorre o terapeuta percebe que seus próprios sentimentos, experiências e significados assomam e se correlacionam (sem que se confundam) à realidade do paciente, significando um empenho fenomenológico compreensivo que não poderia existir se o terapeuta ali se negasse como ser humano e tentasse evitar seus próprios sentimentos. Há de se buscar a percepção do interior da vivência do cliente numa compreensão além dos dados objetivos, na dimensão desse estar no mundo da forma como acontece com este cujo modo de estar é esquizofrênico (ou outro modo qualquer). Não há fenomenologia, e muito menos relação compreensiva se não me coloco inteiro nessa relação. É claro que não preciso me tornar esquizofrênico para entender o esquizofrênico, também não precisa me tornar criança para compreender uma criança. E posso compreender os velhos, os famintos, os suicidas e as mulheres, sem que precise envelhecer, passar fome, tentar me matar ou trocar de sexo. Mas a compreensão da subjetividade passa por um mergulho interno em minha própria subjetividade e diante de um paciente com quadro clínico persecutório, vivenciando sensações de medo aterrorizante, Minkowski pensa se encontraria em si mesmo experiência análoga que poderia colocá-lo no caminho da compreensão. E prontamente percebe que “idéias de morte quando em nós se instalam barram o nosso futuro e dominam a nossa vida. A diferença é que em nós esse estágio é passageiro”37.

37 Minkowski citado por Dartigues, p.55

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E assim fundamentou-se uma compreensão empática: Minkowski foi capaz de olhar o paciente e contemplar os seus medos a partir dos seus próprios medos. Quando diante do paciente me proponho não a desvendar os meandros de sua patologia, mas a desenvolver o prazer de nele me introduzir para simplesmente conhecê-lo e ajudá-lo, se o paciente percebe isto, se ele sente que está diante de alguém interessado nele independente da “relação profissional”, neste primeiro passo se vê um começo de resgate da autoestima, e ele certamente sente que alguém se interessa por ele do jeito que ele é. “Não é alguém que se aproxima para me modificar, ou para me enquadrar, ou para me consertar, não. É alguém que se interessa por mim ainda que eu não mude, ainda que eu não consiga ser nada além do que sou”. Não importa se o paciente delira muito, se tem manias estranhas, se fala sozinho, se vê coisas que ninguém vê. Não importa muito o que ele faz ou deixa de fazer. O que importa é que ele precisa ser cuidado, ajudado. Ele precisa saber que tem amigos, que tem por perto pessoas que cuidam bem dele. É por causa da influência positiva dessas pessoas que muitas vezes ele deseja profundamente mudar, deseja (e consegue) ultrapassar muitas de suas dificuldades. Quando sou capaz de olhar o paciente além de suas atitudes bizarras, quando posso encontrá-lo pela manhã sem me preocupar nem mesmo se ele piorou ou melhorou, se posso deixar de pensar nele como um diagnóstico que requer tal e tal medicação, estou tendo uma atitude fenomenológica-compreensiva. Se eu for capaz de administrar uma medicação sem considerar isto a coisa mais importante do mundo para aquela pessoa, ainda que a faça tomar nas horas certas e nas medidas certas; se estudo os sintomas da pessoa sem achar que está ali o seu verdadeiro retrato, enfim, se conseguir ver nítida a pessoa além do que a ciência me mostra, e se consigo ver virtudes no paciente por mais grave que ele esteja, então

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estou adotando autenticamente uma psicologia compreensiva e fenomenológica. Se eu for capaz de me relacionar de modo autêntico, permitindo-me sentir e permitindo que o outro sinta, que não faça todas as minhas leituras do comportamento do paciente a partir da sua classificação diagnóstica, que minha relação com ele não seja a simples obsessão de querer que melhore..., e que eu não queira nada além de tentar manter uma relação autêntica, humana e sincera, porque isto é ser compreensivo. Que eu não confunda ser compreensivo com ser bonzinho, com concordar com tudo o que o outro diz e faz, com desculpar tudo e com fazer todas as vontades estabelecendo uma relação anti-terapêutica, além de desonesta e nada sincera. Que eu não pense que ser compreensivo é ser permissivo no pior sentido da expressão. Que eu entenda que a qualidade do meu olhar para o outro e a minha capacidade de expressão sincera, autêntica, compreensiva e terapêutica, depende em grande parte da minha honestidade e da minha capacidade de fazer autocrítica e de ser humilde para pedir ajuda quando for preciso. E quem nunca precisa?

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XIV - TRABALHANDO COM OS SONHOS

Na existencial não olhamos os sonhos como mensagens, nem como significações outras. O sonho é apenas aquilo que aparenta ser, pois o significado do sonho está nele mesmo. Em terapia, a abordagem terapêutica de um sonho pode envolver a indagação de coisas simples como: quais os sentimentos experimentados em cada parte deste sonho ? É importante saber como o paciente compreende o sonho e também o que ele sente neste sonho ou com este sonho. Entendemos que não há sonho divergente da vida real. Compreendemos o sonho apenas como um pensamento. Um pensamento como qualquer outro, a diferença é que ele acontece enquanto dormimos. Existem pensamentos reais que operam na concretude das coisas existem pensamentos imaginários que operam na fantasia e na imaginação, assim também ocorre com os sonhos, e como durante o sonho não temos o poder de lhe imprimir uma linguagem tal como a dominamos, ele fica às vezes esfacelado, pouco objetivo. Há sonhos que não compreendemos porque eles simplesmente não chegam ao seu final, é como ver um filme pela metade, ou ler um livro do meio para o final, ou não ler o final do livro. E, ainda, muitas vezes emendamos um sonho no outro, na mesma noite, dando a impressão de incompreensibilidade. Todo pensamento embute intenções, sentimentos, preocupações, planos... E não é diferente com o sonho. Apenas lembramos que durante o sono temos a nossa função de consciência rebaixada de tal modo que não podemos escolher o que intencionar; como o sonho é uma ação que se dá durante um tampo em que não podemos livremente intencionar, entendemos o sonho como uma função da consciência irreflexiva, não-intencional.

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Contudo, há um aspecto de intencionalidade no sonho, se lembrar que não há nada de estranho em seu conteúdo, uma vez que é formado pelas nossas vivências, nossos desejos e nossas preocupações intencionais. Então, posso não compreender a linguagem simbólica de um sonho, mas tudo que o constitui é inteiramente meu. Estão lá presentes as minhas emoções e até mesmo a minha necessidade de sonhar aquelas coisas, daquele modo. Fisiologicamente o sonho faz parte dos aspectos mentais que constituem o sono, o sonho é uma função neurológica que ajuda a descarregar tensões, é como se funcionasse fazendo uma limpeza dos conteúdos emocionais, liberando partes que nos afligem, nos tensionam e impedem um funcionamento organísmico mais saudável. Os sonhos não tratam os nossos entraves emocionais, apenas ajudam a limpar os excessos, sem que nos livremos totalmente deles. Para ilustrar este raciocínio, podemos citar uma pessoa que tenha muito medo do vizinho, e por isto receia fazer uma reclamação que é necessária, mas teme não ser bem compreendido. Esta pessoa sonha com isto. Ela sonha que procurou o vizinho e falou tudo que sempre quis falar, fez as suas reclamações e tudo o mais. Ela acorda mais aliviada, mas o problema com o vizinho continua lá no mesmo lugar. A ação ainda está por acontecer na vida real. Esta pessoa na dimensão da realidade ainda não superou seus entraves em relação à comunicação com este vizinho, embora tenha sonhado e tenha experimentado alívio. Ainda que a conversa com o vizinho vivida em sonho tivesse sido uma experiência mal concluída, se eles tivessem discutido asperamente e chegado a um combate físico, ainda assim funcionaria oniricamente como um alívio. Mas ao acordar, de qualquer forma, o problema estará no mesmo lugar. O sonho em si não traz nenhum crescimento vital para o sonhador, a não ser que seja trabalhado em psicoterapia ou refletido adequadamente pela pessoa que a partir do sonho começa a elaborar pontos acerca da questão e

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começa a mudar, a tomar decisões objetivas e amadurecidas referentes à matéria do sonho. Na terapia, muitas vezes, é através de sonhos que o paciente fala, que ele consegue se colocar. Assim, é fundamental que o psicoterapeuta saiba aproveitar positivamente os sonhos que o paciente traz. Então, a primeira providencia é estimular que o paciente traga os seus sonhos para a terapia, que anote os seus sonhos mantendo um bloco com caneta em sua cabeceira. Medard Boss pedia que os pacientes relatassem os sonhos no presente, como se os fatos do sonho estivessem acontecendo agora. É simples, é como se o paciente estivesse assistindo em uma tela de cinema o seu sonho, vendo tudo outra vez, vendo na tela um sonho seu enquanto faz a narração para o terapeuta. E o tratamento existencial desses sonhos se dá a partir de uma abordagem pragmática, sem a pretensão da interpretação. Até porque o sonho não precisa ser interpretado, ele está ali, inteiro, e deve ser assimilado fenomenologicamente, tal como ele se manifestou, inclusive com seus símbolos e conotações. O fato é que as conotações e os símbolos fazem parte da nossa comunicação cotidiana e não temos que entender as minúcias de toda linguagem para nos comunicarmos, para nos informarmos e para tomarmos consciência de nossos sentimentos e necessidades. Mas o que sentimos imediatamente diante de um símbolo? O que compreendemos de imediato quando ouvimos ou vemos uma conotação? É este sentimento imediato que devemos examinar, porque é ele que está presente em nossa consciência intencional. Trabalhamos com os sonhos assim... a) Não interpretamos, muito menos de forma completa e precisa. Rechaçamos aquele processo interpretativo determinista do modelo o-quê-significa-o-quê. Além de não ser possível interpretar um sonho, isto é totalmente desnecessário. A interpretação dos

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sonhos (1900) de Freud foi uma heróica tentativa de analisar minuciosamente um de seus sonhos, referente a uma mulher chamada Irma. Este sonho, por exemplo, teve centenas de interpretações diferentes. Qual delas seria a correta? Se esta multiplicidade de interpretações for uma coisa válida, se para cada pessoa cada sonho tem, legitimamente, um significado diferente, isto acaba significando a própria desconstrução da interpretação, aproximando-se de uma abordagem fenomenológica. Se, por outro lado, se disser, que a única interpretação correta é a do próprio sonhador, do paciente, também entraria na proposta fenomenológica: é o paciente, e apenas ele, que sabe - efetivamente - o significado das suas experiências, inclusive dos seus sonhos. b) O objetivo do trabalho com os sonhos na existencial é a facilitação da psicoterapia. Como dissemos, o sonho é um conteúdo de terapia, como qualquer outro. E às vezes os sonhos facilitam muito a terapia, especialmente quando o paciente tem dificuldade de falar do seu cotidiano, ou quando ele tem dificuldade de agir no seu cotidiano. c) Trabalhamos o sonho destacando nele tudo que é útil para a terapia, nas palavras de Irvin Yalom, psicoterapeuta existencial: “devemos extrair do sonho tudo o que apressa a terapia”. d) Relacionamos o que acontece no sonho com o que acontece na terapia e na vida da pessoa. e) Usamos uma técnica chamada “make believe”, ou “se isto fosse realidade”, porque a princípio as pessoas rechaçam os conteúdos de seus sonhos como “coisas estranhas”, “bobagens de sonhos”, e é aí que propomos a elas que façam como se aquilo tudo

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fosse realidade, como se sentiriam? O que pensam sobre tudo isto sendo real na sua vida? f) Ao fazermos diversas relações como aqui aventamos, não estamos interpretando. A interpretação se dá em relação ao sonho inteiro; em nosso caso trabalhamos apenas com as imagens que podem ser relacionadas à vida real, trabalhamos com os trechos relevantes do sonho, sem a preocupação de esmiuçá-lo. g) É o paciente quem se encarrega de significar esses conteúdos. É ele que, enxergando a relevância de cada sonho, decidirá o que fazer. Cabe ao paciente identificar o núcleo emocional do sonho, que é simplesmente a emoção que se repete nas diversas cenas. O papel do terapeuta, portanto, é o de estimular o interesse no trabalho com os sonhos, reafirmar a importância das reflexões práticas que os sonhos podem proporcionar.

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XV - A DROGADICÇÃO NA VISÃO EXISTENCIAL

Neste capítulo vamos olhar a questão da drogadicção à luz das dimensões da existência, segundo o fundamento fenomenologico-existencial. Relembremos que a filosofia existencial fundamenta-se em quatro concepções básicas: 1) Uma ação é, por princípio, intencional. 2) A existência precede e comanda a essência. 3) Ser é fazer. Ser é agir. Deixar de agir é deixar de ser. 4) Toda consciência é consciência de alguma coisa. A modernidade foi construída e desenvolvida a partir da racionalidade grega e nossos modos de pensar e agir têm sido moldados por ela. A idéia de “conteúdos de consciência”, de “interioridade da consciência” é uma delas. Mas Sartre desafia o pensamento Aristotélico (no qual Freud se baseou) e propõe uma nova maneira de encarar a realidade. Diz ele: "As aparições que manifestam o Existente não são interiores nem exteriores. A aparência não esconde a essência, mas a revela: ela é a essência”. Para Sartre, então,tudo está no ato, na escolha. A visão de homem no existencialismo é a de alguém existindo sempre em movimento, agindo e sofrendo ações, desgastando e sendo desgastado pelo processo de existir. Existir sugere ser-para-fora (ex-sistere), ser-no-mundo. E esse movimento, esse desgaste, pode ser analisado consoante à consciência que persegue sempre e incansavelmente integração, consistência e coerência entre várias tendências, emoções, sentimentos e atitudes. Diante do paciente drogadicto a existencial utiliza o conceito organísmico que diz que doença não é somente desequilíbrio ou desarmonia, mas sobretudo o esforço que a realidade humana exerce

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para obter um novo equilíbrio. O sujeito pode "escolher" a drogadicção para curar a si próprio, para alcançar um estado de equalização organísmica, o bem-estar do seu ser-no-mundo. É um modo de captar o verdadeiro projeto de viver do paciente, a maneira de existir de uma certa pessoa, não se podendo extrair dessa análise um conjunto de avatares clínicos que venham a ser aplicados a outra pessoa, pois não é possível imaginar uma entidade chamada "pessoa" sem situá-la no mundo; e situar no mundo evoca "ação". É um método de investigação onde colocamos entre parênteses todo o conhecimento acerca do fenômeno e o visamos como ele é em si mesmo. A proposta da fenomenologia é uma volta "às coisas mesmas" como diria Husserl. E essa volta preza a valorização do manifesto, aquilo que aparece e não o que parece. Porque o que parece é um exercício intuitivo e interpretativo da nossa consciência, um exercício noésico. Sartre diz que "a redução fenomenológica de Husserl propõe reduzir o mundo ao estado de correlato noemático da consciência“. Portanto, a fenomenologia é um método que faz mediação entre o sujeito e o objeto, entre o eu e a coisa. Na fenomenologia, o conhecimento se dá na relação noesis-noema, duas expressões gregas que significam: Noesis: ato da consciência, disposição do sujeito para ver algo, modo de perceber e conhecer alguém. Noema: se mostra como o mundo que se dá a conhecer, o vivido, o experienciado. Então, ou o indivíduo atribui significado através de algo que emerge intencionalmente à sua consciência ou busca o conhecimento no mundo que se mostra ou se deixa mostrar para ele. São, portanto, duas expressões husserlianas que definem dois pólos no processo de conhecimento ou investigação do fenômeno.

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Quando Husserl trata da redução fenomenológica ressalta a necessidade de se colocar entre parênteses todo o conhecimento prévio acerca do fenômeno, ou: pôr em suspensão toda a noesis acerca do fenômeno, e somente recorrer ao que é noesis, se necessário,após. Quer dizer: criar uma época para noesis após examinar longamente o fenômeno tal como ele se mostra.

NOESIS.......................................NOEMA SUJEITO.....................................OBJETO

CONSCIÊNCIA............................FENÔMENO EU................................................TU

A tese de Sartre é a diferença entre o mundo das coisas "o ser", e a consciência "o nada”. O ser é resistente, opaco, viscoso, ele é o "em si”,a objetividade nua e bruta. O nada, ao contrário é a consciência, que é insubstancial, pura atividade e espontaneidade, é o "para si“. A consciência somente é consciência quando consciência de alguma coisa, ou seja, a consciência não tem existência própria, ela não é um recipiente que armazena coisas, e só existirá quando houver intencionalidade, porque a consciência é um movimento e não algo concreto como na tradição cartesiana. O EU (ego) só existe no homem (consciência para-si) quando ele se move em direção aos objetos. Transcender quer dizer movimentar-se. Esse movimento egóico faz com que o indivíduo viva enquanto ser para-si. E esse ego só se revelaria essência enquanto ausência de transcendência e intencionalidade. Não devemos confundir a abordagem de consciência feita neste trabalho com a consciência enquanto função psíquica, alvo inclusive de avaliações neuropsiquiátricas que investigam, entre outras coisas, a capacidade de o paciente captar o ambiente e orientar-

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se de forma lúcida e adequada. A consciência, considerada assim, é um processo de coordenação e síntese da atividade psíquica, o todo momentâneo que possibilita que se tome conhecimento da realidade naquele instante. É uma função a partir da qual estabelecemos contato com a realidade e tomamos conhecimento direto e imediato dos fenômenos que nos cercam. E é claro que a dependência química prejudica profundamente essa função, inclusive com destruição gradativa das células nervosas. O para-si é o ser consciente e transcendente, nele não há essência pois é um eterno incompleto que se completa e se descompleta continuamente. Nunca está pronto. Já a criança é considerada um ser-em-si que evolui ao para-si, pois a consciência da criança, estando em formação, transita entre o em-si e o para-si. Por exemplo, aos quatro meses de vida, aos dois anos e depois aos quatro anos, encontram-se em diferentes estágios do “em-si”. Em relação ao para-si a consciência é tida como um “nada”, em função de não haver interioridade (conteúdo) na consciência. O para-si e o em-si acham-se reunidos em uma conexão sintética que nada mais é do que o próprio para-si. Com efeito, o para-si não constitui senão a pura nadificação do em-si; é como um buraco de ser no âmago do Ser. Portanto, o homem busca o “em-si” mas não o alcança. A droga às vezes surge como tentativa de suprimento dessa impossibilidade de essência. A falta de essência do para-si significa falta de certezas e excesso de ansiedade. A ansiedade da falta. Assim, há pessoas que vivem a ilusão de que possuem tudo e que nada lhes falta. Todavia, sendo a falta algo existencial e imanente, quando dela se tem consciência, no lugar de possibilidade se torna desespero.

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A fama, por exemplo, pode criar graves problemas existenciais, porque o “ter” remete ao em-si, mundo das coisas, e nelas o ser jamais encontrará completude, uma vez que a relação com as coisas não cria correspondência de consciência. Então o simples fato de se possuir coisas, ou fama, não pode criar sentido à existência. Entre os temas humanos o amor é um dos mais densos e complicados,e também nossa maior necessidade existencial: Receber e dar amor. Por causa de tanta densidade, a psicologia existencial foca o amor com interesse e intensidade. Sabemos que o amor do para-si é complexo porque amar é dar, mas ainda que entendamos assim nem sempre queremos dar o que o outro espera, mas sim o que precisamos dar, ou o que entendemos que o outro deva receber. O amor é complexo porque entendo o meu dar também como uma forma de receber. Às vezes fantasio que o outro precisa ser como sou, e esperar o que espero e desejar o que desejo. Muitas vezes pensamos que a prova do amor do outro é tornar-se como sou, ser uma extensão de mim, mesmo que deixe de ser ele mesmo. Acaba que o ápice do amor torna-se o fato de eu receber do outro o que preciso receber enquanto dou o que preciso dar. É complexo, é a ação do para-si, um ser que é o que não é. Já o em-si é o que é. E jamais deixará de sê-lo. São considerações iniciais necessárias à compreensão da dinâmica ontológico e funcional dos sentimentos do ser quando se encontra no nível para-si, quando entra nessa condição impossível de permanecer, e quando retorna ao para-si que é a condição ontológica genuína do ser da consciência. A pergunta que não quer calar é: se minhas escolhas são intencionais, se meus atos são atos de liberdade, onde ficam as ações e reações condizentes com a situação de trauma? Não existem traumas?

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O trauma é um acontecimento intenso na vida de um sujeito incapaz de reagir a esse acontecimento de forma adequada. Trata-se de um excessivo afluxo de excitações que o sujeito não é capaz de tolerar e elaborar psiquicamente". 38 Pois bem, essa incapacidade aludida no conceito se desfaz com a maturidade. Se por algum motivo (e aqui não importa o motivo uma vez que não investigamos causalidade) não amadureço, tento o tempo todo permanecer na condição em-si. E aí o que importa não é o trauma mas a permanência na condição em-si de um ser para-si. Isto pode ser má-fé, mas também pode ser uma patologia. Se a terapia, acompanhada ou não de um tratamento medicamentoso for capaz de desfazer o trauma ou as conseqüências comportamentais do trauma é porque operou na esfera da escolha. Se nenhum tratamento for capaz disso, estamos diante de um ser em-si e o trauma nessa investigação já não mais importa. Drogadicção: explicar ou compreender? Por mais que se tente explicar a causa da drogadicção em um sujeito sempre ficará faltando a questão do sentido, ou seja, a questão eminentemente humana. E sentido e significado não se explicam, podemos apenas tentar compreendê-los. Assim, o evento psicológico não pode ser explicado, apenas compreendido, pois teria um caráter de singularidade e sentido que não é captado por qualquer tipo de tentativa explicativo-experimental. Dilthey enfatiza sua crítica do caráter mutilador da abordagem explicativa, que perde o que os fenômenos humanos têm de específico, seu significado. O processo de análise existencial do sujeito drogadicto não visa explicar a drogadicção, mas compreender o sujeito que faz da drogadicção o seu modo de existir. Explicar seria tentar descobrir de onde a drogadicção veio, compreender é tentar saber para onde ela vai. Compreender é investigar o "sentido" da drogadicção, ou seja, 38 Laplanche & Pontalis

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que papel ela ocupa na existência desse sujeito. Focando a pessoa e não a patologia. Enfim, para que me “anestesio”? para estar drogado? Para me dar essa aventura? Quero estar aventureiro ao preço da minha Própria saúde e vida? Sim, escolho a via da aventura arriscando a minha vida. Então, que sentido (valor) dou à minha existência já que dela não cuido, a ela não preservo, e provavelmente não a amo? São perguntas que certamente nos ajudam a compreender uma existência com drogas. Fundamental, para concluirmos a visão fenomenologico-existencial da drogadicção que entendamos um dos sentidos do conceito “ipseidade”, porque quando o sujeito usa drogas ou faz qualquer outra coisa, ele lança mão do seu potencial de consciência intencional e se move em busca do preenchimento de uma falta. E a ipseidade designa a singularidade da coisa individual. Explicando melhor: o para-si é integralmente ipseidade naquilo que determina o homem como não sendo o que é e sendo o que não é. Ou seja, não sou o que sou porque sou o meu projeto, e ao mesmo tempo sou o que não sou porque sou o meu projeto. Esta é a ipseidade (singularidade) do ser. O circuito de ipseidade se explica assim: O EU é um em-si com o qual a consciência se relaciona. O EU é JE e MOI. Je, na condição pré-reflexiva e Moi na condição reflexiva. Porque o Ego (em-si) (Je) é anterior à transcendência e O Ego (para-si) (Moi) é transcendente. Uma vez lançado ao mundo, o homem transcende, se movimenta, faz vicejar sua existência consciente e intencional, enquanto para-si . E esse movimento existencial é fundamentado em liberdade, responsabilidade e consciência de intersubjetividade, propiciando que o homem escolha o seu próprio caminho e cresça com suas próprias experiências, assumindo a responsabilidade diante das consequências das suas próprias escolhas.

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Consciência de intersubjetividade porque o homem é um ser-no-mundo, pois se por um lado somos livres, por outro não vivemos sem o mundo das coisas, das pessoas, das leis e das relações às quais estamos atrelados. Na visão existencial certas tendências como piedade, moralismo e paternalismo são desestimuladas uma vez que entendemos que cada pessoa tem o seu tempo, o seu jeito, o seu caminho. E ninguém pode ser modelo existencial para o outro. Usar drogas, mesmo como ação de liberdade e subjetividade, deve levar em conta o interesse social. À medida que esta prática gera risco social, tal comportamento deixa de ser uma ação de responsabilidade exclusivamente individual. Mesmo o drogadicto tem a responsabilidade de pensar e repensar suas escolhas. Criticá-las. Talvez a terapia existencial na drogadicção tenha como principal papel ajudar o indivíduo a pensar criticamente suas escolhas e ações. Às vezes, erradamente, pensamos no dependente químico como alguém incapaz de avaliar, criticar suas escolhas e se responsabilizar por elas. Consideramos que se ele deseja afundar-se nas drogas, isto é uma escolha. Pode ser desagradável, podemos discordar, desaconselhar, mas é uma escolha subjetiva e ele precisa responsabilizar-se e ser responsabilizado por ela. Se o drogar-se é uma tentativa de entrar na condição em-si, se tratarmos o dependente químico como um ser-em-si, e isto fazemos dando proteção excessiva e consertando o tempo todo os erros dele, o que estamos fazendo é fortalecer essa atitude de irresponsabilidade e má-fé. E tal atitude, além de atrasar sua recuperação, é em si mesma inútil. Temos por certo que muitas vezes conseguimos defender uma pessoa de outras pessoas, mas dificilmente conseguimos proteger uma pessoa dela mesma, já que nem sempre é possível impedir que uma pessoa faça mal a si própria. Então precisamos aprender a respeitar a subjetividade permitindo que as pessoas escolham com liberdade, se

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responsabilizem por suas escolhas e cresçam com suas próprias experiências. Sartre disse que “são os nossos atos que nos definem. Nós mesmos desenhamos nosso próprio retrato e não há nada além desse retrato. Nossas ilusões e imaginações a nosso próprio respeito e sobre o que poderíamos ter sido são decepções auto-infligidas acerca do que não quisemos fazer dentro das nossas possibilidades, que não são poucas”.

Nossa identidade é formada, reformada, transformada ao longo da nossa existência. Quem sou é uma pergunta que respondo todos os dias. Hoje a droga pode ser base de identidade e identificação de uma pessoa, mas amanhã pode não ser mais. O conceito de liberdade fundamenta a visão fenomenologico-existencial da drogadicção, lembrando que “não há liberdade sem responsabilidade”, já que o homem é homem por sua condição de ser livre. E se constitui afirmando suas escolhas livres. É produto de sua liberdade, pois na ação livre ele escolhe seu ser e se constrói enquanto sujeito. Assim, toda ação, escolha ou objetivo de vida, são produtos da Liberdade,que deixa de ser uma conquista humana, para, ser uma condição da existência humana, como já vimos anteriormente. Fortalecemos o drogadicto acentuando sua responsabilidade e não sua dependência, porque nunca uma tempestade parou por causa de uma rosa frágil. Uma importante sinalização da psicologia existencial é que mais do “livres de”, somos “livres para”. E isto significa que o melhor sentido de liberdade é LIBERTAÇÃO. Lembrando que o contrário da dependência não é a abstinência e sim a liberdade.

XVI - O ATENDIMENTO INFANTIL

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Toda criança é um sujeito com suas inclinações, desejos, jeitos

e sentimentos próprios. A criança não está exatamente e perfeitamente para os pais, mas para si. Sabemos que toda criança depende em parte, talvez em grande parte, dos pais e familiares, mas no meio dessa circunstância de dependência encontramos um Para-si em desenvolvimento que em parte se comporta como um ser Em-si.

Se o Em-si é um ser que se manifesta sem a consciência e sem capacidade de transcendência; se o Em-si é um ser que não se relaciona e se fecha em sua condição “perfeita” e definida; e se ainda a criança é um ser com uma precária condição de escolha e responsabilidade, vemos a criança como alguém que efetivamente transita entre a condição Em-si por onde passa até alcançar alguma maturidade - característica do Para-si que identifica o ser humano.

O Para-si em desenvolvimento revela esse ser que no contínuo de sua existência aprende a independer-se à medida que se descobre como alguém além do outro, como um ser-para-outro, um ser-no-mundo.

A análise infantil deve, portanto, levar em conta essa condição dupla da criança que ao nascer surge como se fosse um ser Em-si enquanto precário em sua consciência, mas que possui a característica fundamental do Para-si com sua potencialidade de consciência e transcendência.

Há, portanto uma dualidade a ser observada na criança, uma dualidade de consciência e não-consciência, um processo de amadurecimento que – sabemos - dura a vida toda de um ser humano, mas que na criança se manifesta de forma evidente, presentificada, estruturada.

O psicodiagnóstico na visão existencial contempla a modalidade interventiva que introduz importantes mudanças em relação ao psicodiagnóstico tradicional, como o atendimento grupal aos pais, a visita domiciliar e a visita escolar. A abordagem

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fenomenologico-existencial dá sustentação teórica a esta nova prática que é importante em relação à forma diferenciada de utilizar os procedimentos psicológicos que estimula a criança a desempenhar um papel mais ativo na busca de sentido para suas dificuldades atuais, rompendo com a passividade de mero objeto de estudo.

Em relação ao atendimento aos pais, a proposta é realizá-lo em grupo, sendo que a cada sessão apresentamos aos pais aspectos observados no atendimento da criança gerando-se a oportunidade de debates frente às questões surgidas tanto como queixa inicial quanto nas sessões de atendimento infantil. Em muitos casos o atendimento se encerra após os encontros psicodiagnósticos que podem durar alguns meses não sendo necessária a continuidade do atendimento em psicoterapia, daí que é chamado psicodiagnóstico interventivo, pois ao mesmo tempo em que se trabalha a elucidação diagnóstica também se opera a mudança psicológica a partir de insights que os pais (e também os filhos) vão tendo ao longo das reflexões e debates feitos.

Visita Escolar e Visita Domiciliar

A visita escolar é utilizada no contexto do psicodiagnóstico interventivo de base fenomenológico existencial com o objetivo de ampliar a compreensão da criança e enriquecer esse entendimento a partir de outros ângulos. Da mesma forma que temos no psicodiagnóstico o olhar dos pais em relação à criança e o nosso entendimento através dos contatos com ela nas sessões lúdicas, testes psicológicos e visita domiciliar, teremos também a visão da escola. Com isso não estamos buscando qual das visões é a mais verdadeira, mas apenas ampliando a compreensão por diversos prismas.

É verdade que “tudo começa em casa”, já que a primeira referência na vida da criança é a família, onde ela aprende e desenvolve praticamente tudo que a constitui, inclusive a forma de se relacionar com os outros. A família é, então, a primeira influência

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social recebida pela criança. Influência a ser modificada, ampliada e ressignificada no contato com referências posteriores.

Nos tempos atuais, essa nova referência se dá bem cedo, já que as crianças têm ido cada vez mais cedo para as escolas onde permanecem grande parte do dia. Com isso, a escola surge como uma nova possibilidade no campo de referência da criança tndo na vida da criança uma importância bem significativa. É neste novo grupo social, composto por diversas relações humanas que ela constituirá uma nova rede de significados. Assim, ao falarmos em psicodiagnóstico infantil como instrumento de compreensão de uma criança, não podemos ignorar a escola como ponto fundamental.

MAICHIN assinala que compreender a criança em seu contexto escolar é ir ao encontro dos ensinamentos de Laing (1982), que entre outros existencialistas, nos diz que, para compreender uma pessoa é necessário conhecer o seu mundo. E a escola, por sua vez, faz parte do mundo de uma criança. Segundo esta mesma autora, temos como pontos importantes a serem observados em uma escola: . As relações humanas que aparecem como ponto fundamental na construção de uma rede de significados na vida da criança. Se as relações humanas têm um significado importante dentro da escola, isso nos leva a acreditar que, ao realizar uma visita escolar, o psicólogo deve focalizar essa especificidade, compreendendo de que forma tais relações humanas se dão naquela instituição. Como a criança se relaciona com seus colegas. Qual o significado dessa relação para ela. Qual a importância que a escola dá para a relação interpessoal. Como a criança se relaciona com os professores, e vice-versa. Qual o significado dessa relação para ambos. Como os funcionários se relacionam com as crianças e entre si, etc. Dar importância às relações humanas é ir ao encontro, mais uma vez, dos ensinamentos de Laing que nos diz que “não podemos fazer um relato fiel de ‘uma pessoa’ sem falar de seu relacionamento

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com os outros...”, pois, “...cada qual está sempre agindo sobre os outros e sofrendo a ação dos outros. Assim, a visita escolar nos ajuda a compreender como a criança está agindo sobre os outros e como está sofrendo a ação dos outros. Um outro muito significativo no contexto escolar é o professor que desenvolve nos alunos não apenas habilidades, mas também atitudes”. Ele passa a ser uma nova referência na vida da criança, porém essa referência pode ser positiva ou não. CASO CLÍNICO “A”39 - Uma menina de oito anos que se recusava ir para a escola foi levada ao consultório psicológico por seus pais, que haviam acabado de se separar, embora participassem juntos das sessões de orientação e mantinham aparentemente, um bom relacionamento. Eles não entendiam o comportamento da filha, apenas achavam que poderia ter alguma ligação com a separação deles. Após a separação, a menina e a mãe foram morar com a avó materna e o pai com a avó paterna. Na percepção dos pais, a adaptação a essa mudança não foi muito difícil para a menina, uma vez que já fazia parte da rotina dela a casa da avó materna Mesmo tendo boa adaptação, acreditavam que isso poderia estar relacionado com a separação deles, pois todas às vezes que ela recusava ir para o colégio, os pais, imediatamente, saiam de seus trabalhos e, juntos, acolhiam a menina.

Esse comportamento durou aproximadamente três semanas, quando decidiram procurar ajuda psicológica. Na hora de ir para a escola ela começava a tremer, chorar e implorava para os pais a deixarem ficar em casa brincando. Durante essas três semanas ela foi

39 MAICHIN, Vanessa. Visita escolar, um recurso do psicodiagnóstico interventivo na abordagem fenomenológico-existencial. Dissertação de Mestrado – PUC, SP: 2006.

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à escola apenas uma vez, mas ao chegar na porta da escola chorou e se recusou a entrar. A mãe chegou a conversar com a coordenadora que afirmou não ter acontecido nada de excepcional na escola. Nos meus contatos com a garota ela se mostrava uma criança alegre, divertida e sobre a separação dos pais compreendia que eles haviam se separado por não se gostarem mais. Achava, inclusive, que depois da separação “ficou melhor porque não brigavam mais” (sic). Isso confirmava a fala dos pais que diziam que a relação deles tinha melhorado muito com a separação, pois percebiam que se gostavam somente como amigos. Diziam também que estavam fazendo de tudo para que a separação não afetasse a vida da filha. Quanto à escola, ela se recusava a falar sobre isso e durante nossas primeiras sessões conversávamos sobre outros assuntos de sua vida. Revelava-se uma menina vaidosa, afetuosa, simpática e bem sensível. Exigia cuidado para falar com ela, pois se magoava com facilidade. Característica essa confirmada pela mãe que, contou diversas situações em que a menina se magoou com facilidade. A cada sessão ela se mostrava mais alegre e demonstrava gostar muito de nossas conversas, mas no dia em que falei sobre a minha proposta em fazer a visita escolar (procedimento adotado por mim no processo de psicodiagnóstico), ela mudou completamente. Ficou bem agitada, não quis falar sobre a escola mas, mesmo assim, me autorizou a fazer a visita. Na ocasião da visita escolar conversei com sua professora que se mostrou pouco disponível, mas respondeu algumas perguntas que fiz a ela. Era uma mulher hostil, agressiva e se referia à menina como sendo uma “criança mimada que parecia uma bonequinha de porcelana que, se encostasse, quebrava” (sic). Recusou-se a explicitar esse comentário, mas percebi que ela não simpatizava com a menina, aliás, demonstrava ser uma pessoa mal-humorada e agressiva. Por duas ou três vezes fomos interrompidas por pessoas que entraram na

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sala onde conversávamos e essas foram tratadas pela professora com muita hostilidade e agressão. Quanto ao fato de a garota não estar indo à escola há três semanas, a professora compreendia isso como “liberdade excessiva por parte dos pais” (sic) e justificava essa compreensão pela sua experiência como professora: “quando os pais não colocam limites, as crianças fazem o que querem” (sic). A visita durou pouco tempo, pois, a professora “não tinha mais tempo para conversar” (sic). O tempo foi curto mas suficiente para compreender que a garotinha, uma menina sensível e delicada não estava suportando conviver com uma professora hostil e agressiva. Essa percepção foi confirmada posteriormente nas sessões com a criança que passou a relatar várias situações em que se sentiu humilhada pela professora. Os pais decidiram transferir a filha para outra escola, uma vez que já fazia parte do projeto deles colocá-la em um colégio perto da nova casa. Ela foi encaminhada para psicoterapia, pois mostrava sofrer muito com sua sensibilidade exacerbada. Quanto à professora, os pais decidiram comunicar a coordenadora sobre a postura hostil e agressiva que ela teve com a filha deles. E assim finalizamos nossos encontros!

Embora a função do professor seja considerada, de forma unânime, muito importante, precisamos compreender que ela ocorre com peculiaridades específicas dependendo de sua proposta e do seu contexto. Ou seja, enquanto em uma escola mais tradicional a função do professor é a de transmitir conhecimento, em uma escola progressista sua função é de reconstruir e questionar esse conhecimento. Por exemplo, enquanto na escola tradicional o conhecimento é transmitido como uma verdade (fala da professora: hoje vocês aprenderão sobre o desenvolvimento tecnológico, tomem nota!), na escola progressista o conhecimento é questionado e construído juntamente com o professor (fala da professora: o que vocês sabem sobre o desenvolvimento tecnológico? O que vocês

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pensam sobre isso? Pensem em algum exemplo que ilustre o desenvolvimento tecnológico. Vamos pensar sobre isso?).

Através desses dois exemplos compreendemos a enorme diferença existente entre a função de um professor que acredita nos pressupostos tradicionais e, por outro lado, aquele que acredita nos pressupostos progressistas. Certamente, o primeiro transmitirá para seus alunos uma atitude de passividade, enquanto o segundo uma atitude crítica de reflexão. Esses dois exemplos de pedagogias (tradicional e progressista) foram citados apenas para clarear a nossa compreensão, o que não significa dizer que são os únicos tipos de abordagens existentes. Citaremos mais adiante os principais sistemas de ensino adotado nas escolas brasileiras. Vale ressaltarmos também que, nem sempre, a postura adotada pelo professor vai ao encontro da pedagogia adotada pela escola. Pode acontecer de um professor ter uma postura tradicional e atuar em uma escola que adote a abordagem construtivista ou, em contrapartida, outro que acredite nos pressupostos progressistas e atuar em uma escola tradicional. Isso porque, antes de ser um profissional, o professor é um ser humano dotado de valores, crenças e ideais que, muitas vezes, não coincidem com a abordagem adotada pela escola.

Assim como aconteceu com o carismático professor de inglês John Keating (interpretado por Robin Williams no filme Sociedade dos Poetas Mortos) que, ao chegar para lecionar num rígido colégio para rapazes, revoluciona e transforma com seus métodos de ensino pouco convencionais a rotina do currículo tradicional e arcaico da escola. Com humor e sabedoria Keating inspira seus alunos a seguirem os próprios sonhos e a viverem vidas extraordinárias. Diferentemente do professor do filme que, mesmo com uma postura libertária foi lecionar em um colégio tradicional, certamente, haverá aquele que preferirão trabalhar em uma escola que adota os mesmos

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ideais que os seus, mas isso nem sempre acontece ou nem sempre é possível. (Trecho extraído da sinopse do filme “Sociedade dos Poetas Mortos”, dirigido por Peter Weir, em 1997).

Uma das funções da visita escolar é compreender a relação professor-aluno, e qual o significado disso para a criança, para o professor e também para os pais. Muitas vezes o papel do psicólogo no psicodiagnóstico é mostrar para os pais qual a função social que o professor está exercendo e como isto reflete na criança, pois nem sempre os pais têm consciência da existência das diversas abordagens existentes. Inclusive muitas escolas, principalmente as públicas, não explicitam claramente qual a abordagem adotada.

CASO CLÍNICO “B”40 - Certa vez uma criança foi levada ao

consultório psicológico pelos pais que estavam muito incomodados com o jeito socialmente passivo do filho. Eram pais engajados em movimentos sociais e muito orgulhosos por terem participado de alguns movimentos estudantis. Acreditavam que a reflexão era a única forma de libertar as pessoas da alienação que o capitalismo impunha. Mostravam-se muito preocupados com a passividade do filho em aceitar tudo o que as pessoas falavam para ele. Nada questionava, nada rebatia e tudo aceitava. Na visita escolar, me deparei com uma escola super tradicional e um professor bem rígido que acreditava que seus alunos tinham que receber, de forma passiva, o conhecimento que ele transmitia. Essa postura não era somente do professor. Era a proposta da escola.

A partir dessa visita foi importante compreender o que fizeram os pais colocarem o filho em uma escola tradicional uma vez que 40 Fonte: MAICHIN, Vanessa. Visita escolar, um recurso do psicodiagnóstico interventivo na abordagem fenomenológico-existencial. Dissertação de Mestrado – PUC, SP: 2006.

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tinham como expectativas educar um filho de forma mais crítica. Foi quando relataram que aquela era a mesma escola em que eles haviam estudado há trinta anos, onde o ensino era diferente e os professores de escolas públicas eram pessoas altamente qualificadas e preocupadas em formar cidadãos reflexivos. Questionaram se adiantaria mudar o filho de escola, uma vez que não teriam condições de pagar uma escola particular com uma proposta de ensino libertária. Chegaram, então, à conclusão que o mais coerente seria deixá-lo nesta mesma escola e utilizar outros recursos que o ajudassem a construir um raciocínio reflexivo como, por exemplo, incentivá-lo a ler bons livros. E assim fizeram!

Outros casos poderiam ser citados de pais muito libertários que precisavam de uma escola mais conservadora para garantir uma educação com limites a seus filhos. E outros, mais conservadores que, colocavam seus filhos em escolas mais libertárias por não desejarem criá-los com a mesma rigidez com que foram criados.

Por outro lado, entender como a criança se relaciona com seus colegas é ponto imprescindível para compreendê-la em sua completude. A relação de uma criança com seus colegas revela a forma como seu repertório de significados é composto. Ao entrar em contato com colegas a criança descobre novas formas de relacionamento e os colegas passam a ser referências novas em seu campo existencial. Se até aquele momento a referência maior da criança foram seus pais, a partir daí os colegas também surgem como referência significativa a ela. Assim, são comuns comparações entre seus pais e os pais dos colegas, a sua forma de se vestir e a dos colegas, e etc.

Falar em relações humanas no contexto escolar e suas especificidades não significa considerar apenas os seus processos internos e seus integrantes, mas também outras relações, como a dos pais com a escola. Os pais embora não freqüentem diariamente a escola, são partes fundamentais dela.

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Diante da relevância dos pais no contexto escolar faz-se importante compreendermos de que forma se relacionam com a escola, com os professores e, principalmente, as expectativas que eles têm em relação a seus filhos e a escola.

Outro aspecto importantíssimo a ser observado e compreendido nas visitas escolares é o processo de aprendizagem, pois é através dele que a criança aprende o que lhe é transmitido. Existem diversas formas de um professor transmitir conhecimento: repassando idéias prontas a serem adquiridas pelos alunos tal como lhe foram passadas; ensinando temas específicos com o objetivo de reforçar, extinguir ou alterar o comportamento do aluno; facilitando a comunicação do aprendiz para que ele mesmo estruture seus conhecimentos; possibilitando novas indagações diante de um conhecimento pronto; propiciando aos alunos o desenvolvimento de uma consciência crítica e libertadora.

O pressuposto fundamental na educação construtivista é considerar o indivíduo como construtor de seu próprio conhecimento. Diferentemente do método tradicional em que o objetivo da educação é a transmissão de verdades, no método construtivista a proposta é que o aluno aprenda, por si próprio, a conquistar essas verdades. Trata-se de uma abordagem que, juntamente com a pedagogia renovada, considera a emoção e a afetividade como fundamentais para o desenvolvimento intelectual.

Considerar o mundo interno em uma abordagem de ensino é acreditar que o aspecto afetivo influencia o processo de aprendizagem do indivíduo. Mas, como será isso na prática? Será que o professor, que se diz construtivista ou escolanovista, respeita o aluno com dificuldades pessoais? E quando a criança atrapalha o bom desempenho da sala, o que esse professor faz?

Certamente não é possível responder a todas essas questões olhando para um fenômeno isolado, ou dando lhe uma única resposta. Cada caso nos mostrará uma resposta diferente e o profissional que

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adotar a prática da visita escolar, por certo, vivenciará tantas experiências quantas visitas realizadas.

Merleau-Ponty nos ensina que “as coisas são conceituadas a partir da nossa percepção”, desta forma, uma abordagem de ensino precisa ser compreendida através da percepção e do significado atribuído por aquele que a adota e no contexto em que se encontra. Assim, no momento da visita escolar, tão importante quanto conhecer as abordagens de ensino adotadas pelas escolas é perceber de que forma as pessoas, que nela trabalham, utilizam-nas.

Outro ponto valorizado por muitos autores que se dedicam a pensar sobre a escola é o espaço físico. Compreender o espaço físico da escola é apreender o significado de cada cantinho da escola. É alcançar o significado que professores e alunos atribuem à sala de aula, ao pátio, à biblioteca, à cantina, aos corredores, etc. É dimensionar o simbolismo presente em cada espaço.

Para Setúbal e Faria o espaço físico transcende o espaço concreto. A sala de aula, os corredores, a quadra não se resumem a uma simples planta arquitetônica, e sim a uma espacialidade que revela “a convivência rotineira das pessoas em um espaço coletivo de relações grupais”. Conhecer o espaço físico, no momento da visita escolar, parece ser um ponto importante para compreender de que forma as práticas educacionais se desenvolvem. Alguns autores chegam até a descrever como seria um espaço físico adequado. Delval, por exemplo, considera importante pensar, em termos de espaço físico, principalmente, a sala de aula, pois se esta tiver as características adequadas, não serão necessários outros lugares, porque tudo poderá ser feito nela. Para ele, “é conveniente que a sala de aula seja um lugar espaçoso e bem iluminado onde possam ser realizadas tarefas muito variadas...

É preciso fugir das carteiras alinhadas e fixas que só permitem aos alunos sentarem-se de uma forma determinada... deve ter cadeiras e mesas móveis que possam ser agrupadas de formas diversas

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conforme a atividade a ser desenvolvida. Tem que ser um laboratório a partir do qual o mundo pode ser estudado e uma base de onde se possa sair para esse mundo... A sala de aula deve dispor de uma biblioteca nos quais pode ser encontrada a informação necessária para as tarefas que estiverem sendo realizadas. É desejável dispor de água corrente e de estantes na sala, assim como de mesas longas junto às paredes, nas quais possam ser depositadas plantas, insetos, minerais, aparelhos de física e de todos os utensílios necessários para a exploração do mundo”.

Para este autor, o espaço físico mais importante da escola é a sala de aula e esta, por sua vez, será, antes de qualquer coisa, um lugar onde se trabalhe com prazer. Por outro lado, encontramos outros autores que dizem que mais importante do que o espaço da sala de aula é pensar no “espaço de interlocução estabelecido entre educadores e alunos”. Assim, além de conhecer o espaço físico faz se importante compreender como se dá o espaço de interlocução, ou seja, o espaço de diálogo estabelecido entre professor e aluno.

Parafraseando Setúbal, é através desse espaço de interlocução que esses poderão se reconhecer uns aos outros como sujeitos. “É o reconhecimento que nos possibilita fazer parte de grupos e comunidades, no interior dos quais compartilhamos interesses e estabelecemos relações afetivas”. O espaço de interlocução existe quando a pessoa sente que pertence a um grupo ou a um lugar; sente-se amparado, protegido, porque sabe que há ali pessoas que irão respeitar sua particularidade e seu modo de ver o mundo.

A visita escolar revela aspectos ao psicólogo que, muitas vezes, não seriam revelados somente na sessão com a criança ou com os pais. Alguns casos nos mostram que algumas suspeitas do psicólogo em relação a uma determinada compreensão são confirmadas através dessa visita. Também outros casos nos mostram que a visita à escola amplia a compreensão do psicólogo a respeito da criança e dos pais. Certamente o profissional que adotar a prática da

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visita escolar terá tantas experiências quantas visitas realizadas, pois cada fenômeno é único, tendo cada caso peculiaridades específicas que fazem com que cada um tenha sua própria singularidade.

Mesmo diante de casos com peculiaridades específicas, há sempre algo em comum entre os acontecimentos, pois o ser humano não é dotado somente de subjetividade, mas também de uma intersubjetividade que faz com que se constitua um mundo comum a todos. Através dessa intersubjetividade é possível compreendermos uns aos outros, pois todos nós vivemos no mesmo mundo e existimos uns com os outros.

Com base nestes pressupostos uma experiência, descrita e analisada em profundidade, serve como esteio para entendermos outras experiências semelhantes. Não pelo método de generalização que “coisifica” e explica o fenômeno dando lhe o caráter de verdade única, e sim pelo método fenomenológico que descreve e compreende o fenômeno como uma construção de significados. Desta forma, as experiências descritas até o presente momento sobre a visita escolar, e o caso apresentado a seguir nos darão condições de apontar a importância da visita escolar no processo de psicodiagnóstico.

Sabemos que cada visita realizada tem um significado diferente dentro de cada processo de psicodiagnóstico, por isso não temos como delimitar normas e regras rígidas a serem seguidas nesta prática, pois não há um único caminho e nem um único significado. Podemos apenas circunscrever, assim como fizemos neste capítulo sobre a escola, alguns pontos relevantes que nos guiarão rumo à construção desses significados.

As percepções que a escola tem, tanto dos pais como da criança, são importantíssimas para a compreensão do psicólogo, pois é a partir das diversas percepções e significados - dos pais, da criança, do próprio psicólogo e também da escola -, que o psicoterapeuta constrói uma compreensão sobre a “trama existencial” da criança em sua dinâmica familiar. Seguindo os ensinamentos de Merleau Ponty,

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estamos “condenados ao sentido pelo fato de estarmos no mundo”. É no laço das relações que “as perspectivas se confrontam, as percepções se confirmam, um sentido aparece”.

A percepção que um professor tem de uma criança e o significado que ele lhe atribui pode ser diferente da percepção e do significado dado a esta mesma criança por sua mãe. Embora o mundo seja o terreno comum a todos, os que estão presentes ocupam nele diferentes lugares, conseqüentemente, cada um vê o mundo através de lugares e perspectivas distintas. Assim, uma mesma criança pode ser compreendida pelo prisma dos pais, do psicólogo e dos profissionais da escola de diferentes maneiras. Isso não quer dizer que o olhar do psicólogo em relação à criança seja mais verdadeiro do que o dos pais. Ou ainda, que o olhar dos pais seja mais importante do que o olhar da criança sobre si mesma e o da escola mais fidedigno que os anteriormente citados. Trata-se de olhares diferentes, vistos por ângulos diversos e com significados distintos.

MAICHIN nos adverte que o recurso da visita escolar ganha uma importância significativa no processo de psicodiagnóstico, pois se trata de um olhar que, além de trazer novos significados, transcende a visão cristalizadora que os pais têm da criança por estarem imersos na cotidianidade da vida, que muitas vezes encobre o significado de uma consciência. Faz parte da condição humana ir vivendo de forma natural sem se questionar sobre o sentido de sua existência, contudo, se um problema inusitado aparece neste cotidiano, ocorre a quebra desta naturalidade e o que era considerado familiar passa a ser sentido como estranho e confuso. “...Quando uma pessoa recorre a um atendimento psicológico, já utilizou, sem sucesso, seus recursos e seu repertório de conhecimentos para resolver determinado impasse. Ao aceitar a proposta do psicólogo de passar por um psicodiagnóstico, esta pessoa demonstra que está buscando compreender atitudes suas e de outras pessoas que não se enquadram no que considera normal ou adequado”.

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O psicólogo ao propor o recurso da visita escolar, no processo de psicodiagnóstico, pretende adentrar em um espaço onde novas perspectivas de compreensão possam se abrir. Perspectivas que se mostram enriquecedoras por emergirem do próprio cotidiano da vida do cliente: a instituição escolar.

Olhar para o cotidiano da criança e dos pais no contexto escolar é desvelar os significados presentes em cada especificidade deste lugar. É compreender como se dá a relação da criança com o professor, com os colegas e outros funcionários. É entender a relação do professor com a criança, com os pais e a abordagem de ensino adotado por este. É perceber a relação dos pais com a escola, com o professor e suas expectativas em relação ao filho e a própria instituição. É olhar para o espaço físico e desvelar o seu espaço de interlocução. Olhar para a escola da criança e considerá-la importante no processo de psicodiagnóstico é, antes de qualquer pressuposto, respeitá-la nesta prática que se propõe a compreender o cliente no seu mundo e a escola, por sua vez, faz parte do mundo da criança, além de ser um lugar que possibilita ao psicólogo e aos pais olhar para a criança por um prisma diferente. Muito do que se disse até aqui sobre a Visita Escolar pode ser aplicado à Visita Domiciliar, porque os princípios e objetivos são os mesmos: ir onde se realiza o ser-aí e conhecer melhor a criança a partir de subsídios que diretamente a revelem. Mas se pode pensar que tais informações domésticas poderiam muito bem ser passadas pelos pais nas entrevistas, dispensando a Visita Domiciliar, e é aí que começamos a encontrar as diferenças que tornam a Visita Domiciliar um procedimento essencial. Destacamos de início que a ocupação do ambiente físico da casa denota a arquitetura dos vínculos familiares, apontando para a dimensão subjetiva da casa, imbuída de marcas produzidas pelas subjetividades que se projetam sobre os espaços e os objetos, estabelecendo uma estreita relação entre o espaço físico e o espaço psicológico. A visita domiciliar é um recurso de suma

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relevância para a compreensão da dinâmica da criança e das relações familiares, uma vez que estende o olhar para além das observações possíveis no espaço do consultório. A experiência compartilhada entre familiares e psicólogo durante a visita, produz efeitos em todos, já que inevitavelmente provoca movimentos em cada um. Do lado do psicólogo surgem novas compreensões que acarretam novas intervenções que, em conseqüência, suscitam nos clientes outros entendimentos sobre eles mesmos. Aspectos a serem observados no planejamento e execução da VISITA DOMICILIAR: . A visita geralmente é feita uma ou duas vezes ao longo de um tratamento, sendo que a primeira não demora muito a acontecer depois que se iniciam os atendimentos. Mas de maneira alguma existe uma padronização em relação a isto. . A visita deve ser feita com a aquiescência e aceitação tanto dos pais quanto da criança. . O quanto possível deve ser informal, resguardadas as características éticas e funcionais de um trabalho psicológico profissional. . Não deve ser demorada e nem relâmpaga: geralmente dura de 40 a 120 minutos, mas não há qualquer problema se a necessidade e as circunstâncias apontarem para algum prolongamento. . Não devem ser feitas anotações durante a visita, e sim depois, quando já tiver deixado o domicílio. . A visita deve ser programada para um dia e hora em que o máximo de componentes da família esteja presente. . O profissional estabelecerá uma visita dinâmica que propicie (o quanto possível) que as pessoas se comuniquem com liberdade e espontaneidade. . A natureza da visita em relação ao seu modo social de acontecer fica entre a sessão terapêutica domiciliar e a visita informal, não sendo exatamente nem uma nem outra.

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. O objetivo, como vimos, é conhecer um pouco da dinâmica das relações familiares “in loco” e apreender o movimento dessas pessoas em seu ambiente físico doméstico, observando como cada um lida com seu espaço, com o espaço do outro e com as limitações e possibilidades vinculadas a esta questão. DEVOLUÇÕES

No consultório, as devoluções finais feitas à criança tornam-se bem mais dinâmicas e interessantes quando feitas em linguagem artística (livros de história, poesias, fantoches, etc.) facilmente aceita pelo psiquismo infantil e passível de ser elaborada a médio e longo prazo.

A terapia existencial infantil também inclui sessões devolutivas aos pais, de periodicidade quinzenal ou mensal. Para os responsáveis as devoluções são constantes durante todo o processo psicodiagnóstico para que compreendam os aspectos psicológicos envolvidos na problemática da criança, representante emergente do grupo familiar, procurando ajudá-los a mobilizar os aspectos sadios de suas personalidades para os redirecionamentos e mudanças que se fizerem necessárias.

É importante que nas sessões de devolução os pais saibam que aquele é um espaço deles, e que estamos ali não apenas para discutir a criança. É fundamental que eles desfrutem deste espaço de discussão das suas questões, que de alguma forma também afetam o desenvolvimento do psiquismo da criança.

ANAMNESE PSICOTERAPIA INFANTIL

ENTREVISTADO:______________________________________

Parentesco do entrevistado:_______________________________

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Nome da criança:________________________________________

DN____/______/___Local:_______________________________

Filiação:_________________________________________________

_______________________________________________________

Pais separados? ( )Sim ( )Não. Se sim, com que ida criança

estava?_____. Reações da criança:_________________________

Mora com os pais? ( )Sim ( )Não - Tem irmãos? ( )Sim ( )Não –

Todos vivos? ( )Sim ( )Não

Informações sobre Gravidez e parto Gravidez Planejada? ( ) Sim ( ) Não Criança Desejada? ( ) Sim ( ) Não Problemas no Pré-Natal? ( ) Não ( ) Sim. Quais?_________________________________________________ Gravidez A Termo? ( )Sim, 9 Meses ( ) Não. Prematuridade: nasceu de____meses de gestação. Tipo de Parto: ( ) Normal ( ) Cesáreo ( ) Outro__________________________________________________ Relacione os irmãos, informando suas idades, sexo e estado civil:

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________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

Residência_______________________________________________

________________________________________________________

_______

Bairro_______________________Cidade___________CEP_______

___Telefones: ______________

Estuda? ( ) Sim ( ) Não

Escola__________________________________________________

________________________________________________________

Série_____________ Como a família avalia o seu rendimento

escolar?_________________________________________________

________________________________________________________

A criança já fez anteriormente algum tratamento psicológico ou

psiquiátrico? (Sim, não, quando, com que profissional, como foi

encaminhado, por que razão, etc.)

________________________________________________________

________________________________________________________

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________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

A criança toma alguma medicação psicotrópica (tranqüilizante,

ansiolíticos,etc.) quais?_____________________________________

________________________________________________________

Receitado por:_________ em ___/____/_____

Hospital ou Serviço:______________________________________

A criança já foi internada? Já foi submetida a alguma cirurgia?

Citar____________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

_______________________________________________________

Alguém da família já passou por tratamento psiquiátrico ou

psicológico? Quem ? Quando?

(Descrever):______________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

_______________________________________________________

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Áreas na vida da criança que a família considera problemáticas:

( ) SONO

( )ALIMENTAÇÃO

( )LAZER

( )ESCOLA

( )OUTRAS

Queixa principal que motivou a procura a este serviço (aqui serão

anotados os motivos pelos quais os responsáveis procuraram o

Serviço de Psicologia:

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________

Parecer do Psicólogo e Encaminhamento:

CRP

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DATA

Anexo I – CASOS CLINICOS CASO MÁRCIA

Meu nome é Márcia, tenho 17 anos, tenho um irmão de 3 de um novo relacionamento do meu pai com uma namorada dele. Meu

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irmãozinho mora com ela. Eu vim lhe procurar porque tenho muita dificuldade de tomar decisões e acabo seguindo caminhos que não tem nada a ver comigo e com o que eu quero para mim, o problema é que só descubro isso muito tempo depois quando já não há mais tempo de reconsiderar a decisão. Sou casada... Sei que todo mundo estranha, porque sou nova, mas é aí que começa o problema que fez vir aqui. Eu não moro aqui, eu morava, agora quem mora aqui é só o meu pai, eu moro em um sítio no interior de Minas, em Tiradentes, fui para lá no ano passado quando me casei com um homem que o meu pai me apresentou. Eu queria terminar o último ano do segundo grau e tentar a Faculdade de Enfermagem, mas o meu pai achou que eu devia seguir esse amigo dele que ele me apresentou porque é um homem muito bom, e ele realmente é bom, me trata muito bem, não tenho do que me queixar, mas não sou feliz.

Acho meu pai antiquado, e na cabeça dele a sina da mulher é se casar tão logo possível, para ter uma casa para cuidar. Parece loucura, mas esse amigo dele, o Oliveira, disse que queria se casar novamente, ele é viúvo, um homem muito bom, e aí meu pai teve a idéia de me apresentar a ele. Eu acho que meu pai errou, acho não, tenho certeza; e eu sabia que estava seguindo um caminho que não era o que eu pensava; jamais pensei que ia me casar assim, mas é aí que está o meu problema. Por que eu não consigo fazer aquilo que quero e acho certo?

Foi por isso que lhe procurei, porque se por um lado eu não quero mais continuar com o Oliveira, por outro não me imagino dizendo isso pro meu pai. Porque ele não vai entender, e eu já saí de casa e não dá pra voltar assim... Quer dizer o meu pai não aceitaria que eu fizesse isso e também tem o lado do Oliveira: ele não merece isso. O Oliveira é um homem muito bom me trata muito bem, eu não tenho nenhum motivo, nem mesmo um, para dizer a ele que eu vou embora. Ele tem 38 (a idade da minha mãe), fica fazendo planos pra

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nós dois, e eu me arrepio de nervoso todo vez que ele fica falando que daqui a não sei quanto tempo vamos fazer não sei o quê. Eu não me imagino nem mais um dia com ele, por minha vontade eu nem voltava pra Tiradentes. Mas como eu iria cometer uma loucura dessas? Às vezes fico pensando que preciso voltar a freqüentar a missa. Se eu não tivesse parado de ir à Igreja eu não estaria nesse rolo todo, eu preciso rezar mais, e nisso o Oliveira me ajuda porque lá em Tiradentes o povo é muito religioso e o Oliveira nunca falta a missa e às vezes vou junto e estou rezando mais. É que passei muito tempo me envolvendo com festas e umas amizades que não tinha nada a ver, eram minhas amigas e eu adorava elas, ontem mesmo reencontrei uma de quem eu sinto muita saudade. E a gente saía: eu ela e outras, e namorávamos, íamos à boate, era tão legal...

Mas nos últimos anos meu pai andava preocupado porque eu estava voltando pra casa de madrugada, e aí é que eu acho que ele inventou essa história de eu casar logo antes de fazer bobagem. Realmente não sei o que fazer, se eu pudesse fazer uma mágica...

É que eu queria que tudo se resolvesse de um jeito a não magoar ninguém, porque nesse caso prefiro magoar a mim mesma. Mas ao mesmo tempo tenho medo de não agüentar esse casamento. Outro dia o Oliveira me viu chorando e perguntou o que era, aí eu inventei uma dor de cabeça. Olha, ele é muito bom pra mim e não gostaria de magoá-lo.

Consegui vim ver meu pai desacompanhada, pedi ao Oliveira que ele não viesse e nem precisei explicar por que, e ele aceitou. Cheguei a ficar preocupada se ele insistisse em vir comigo, mas ele resolveu ficar lá. Chegando aqui, uma amiga, aquela mesma que saía naquela época comigo para a night, me falou sobre esse lugar aqui, e disse que sábado vai ter uma festa muito legal na rua e eu vou ver se consigo ficar, e ela também disse que vocês talvez me ajudassem e eu nunca tinha ido a um psicólogo, mas resolvi tentar e vim, embora

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ache que não vai adiantar muito, porque no fim de tudo eu é que vou ter que tomar uma decisão,e eu sou muito ruim de decisão.

Não consigo decidir e acabo fazendo o que os outros querem. Como no caso do meu pai que eu não quero dar esse desgosto a ele porque ele tem um sopro no coração e não quero magoar o Oliveira que é um homem muito bom.

Antes de me casar fui numa médica e disse que não queria ter filhos nem tão cedo. Foi ela que me perguntou isso, porque eu nem me lembrava disso; que poderia acabar ficando grávida, eu nem estava pensando, e se eu estava insegura quanto ao casamento, pior seria engravidar. Um ano se passou, eu não engravidei e o Oliveira não pergunta nada, mas que ele quer filhos ah isso quer!

Ele é viúvo, já te falei? Ele é viúvo e a mulher dele morreu do parto do primeiro filho, morreu lá no sítio, chego a me arrepiar de nervoso quando penso nisso. Deus me livre ter um filho naquele sítio. Ele ia levá-la à cidade, mas acho que não deu tempo. É que ela sofria do coração e morreu, mas acho que ela não ia morrer do parto, porque era um ataque do coração que ela estava tendo, e umas senhoras foram lá ajudar, mas deu tudo errado. Muitas partes dessa história eu não entendo, mas o meu pai diz que eu não tenho nada a ver com isso, que devo dar um filho a ele e ponto final.

Oliveira diz que ele e meu pai se tornaram amigos há muito tempo, quando meu pai tinha uma loja que vendia coisas de couro e madeira, e equipamentos para fazendas, e ele ficou freguês lá. A loja fechou e hoje meu pai trabalha como empregado em uma indústria em uma cidade aqui perto.

Minha mãe é separada do meu pai, ela é muito diferente dele. Eles se separaram eu tinha 13 anos, agora já vou fazer 18. Antes eu chorava, mas agora já aceitei melhor. Minha mãe mora no Rio com o novo marido dela que é muito diferente do meu pai. Ela acha que está grávida. Ela não chegou a vir ao meu casamento e depois quando liguei e falei: “poxa, mãe, você nem veio no meu casamento...”, ela se

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surpreendeu e disse que achava que eu estava brincando, que eu não ia me casar. Acabou que eu casei e ela nem veio. Mas tinha pouca gente. Na igreja tinha umas vinte pessoas e na festinha umas 30. Era só mesmo a família dele que é pequena e a minha que é menor ainda.

Eu achei legal casar, porque sempre sonhei em me casar. Na malhação outro dia a menina falou sobre isso, que é o sonho de toda moça. Você acha que se acabar esse eu deveria fazer outro casamento com outra pessoa? Mas agora diferente, com a Igreja cheia e a festa também. Nesse eu tenho certeza que minha mãe viria. Não viria? O que você acha? CASO JUDITE Judite não gosta do nome. Contou no consultório que herdou o nome da avó paterna, mas este não é o seu maior problema. Solteira, 26 anos, mora na zona norte de uma grande cidade. Seus pais, médio-empresários na área de educação, possuem um colégio no bairro onde ela nasceu e vive com a família que se constitui dos pais e um irmão que, formado em administração, atua como Diretor Administrativo do Colégio. A relação de Judite com o irmão é de intensa admiração, tendo-o como modelo de personalidade e competência. Com o pai sustenta um vínculo de respeito, e só. Um respeito que parece alimentado pelo medo de decepcioná-lo, de não corresponder com suas expectativas. Seu contato com a mãe é constante, próximo e especial. São grandes amigas e ela admira a mãe por sua garra, força e principalmente por sua capacidade de defender seus desejos e pontos-de-vista independente da forma como o marido (pai de Judite) a trata, considerando-a sempre em segundo plano. Judite relata que a mãe não aceita o status de “segundo plano”, e inclusive trabalha como professora na área de educação, tendo o seu próprio dinheiro e não dependendo em tudo do marido. O fato de a mãe de Judite não trabalhar no colégio da família cria um clima difícil (embora silencioso) na relação com o marido que herdou o colégio do pai, o

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qual sempre se colocou como o grande patriarca na condução da família. O irmão de Judite é dócil e competente. Um discípulo do pai, embora não seja durão como ele, pelo contrário. Vive para o trabalho e sua vida pessoal se desenvolve sempre em torno do colégio, onde sua noiva (estão noivos há 8 anos) trabalha como auxiliar de tesouraria, função que aliás era exercida por Judite, que por sua vez não tem uma profissão específica, de nível superior. Ela formou-se no segundo grau, educação geral, mas nunca conseguiu decidir por uma Faculdade. Hoje trabalha como secretária e recepcionista em uma Clínica Médica onde vive grandes problemas de relacionamento com o chefe, com os clientes, com os vendedores, fornecedores... enfim... com todo mundo. Judite entrou no consultório calada e hesitante, embora fosse visível o seu esforço em mostrar desinibição e comunicabilidade. Senta-se na ponta da poltrona e aperta um lencinho dobrado contra o joelho. De vez em quando passa o lenço na testa e se abana com uma revista, embora o ar-condicionado estivesse ligado no máximo. Enquanto relata sua história com dificuldade, corta a comunicação com intervenções como: - Vai demorar muito ? ou - Eu não sei bem por que vim aqui. Judite relata sudorese intensa, o dia todo, independente do clima, principalmente nos pés e nas mãos. Diz que sofre palpitação (taquicardia) quando recebe uma incumbência séria. Por exemplo: ir ao banco fazer um depósito ou pagar um conta importante (não soube explicar o que é pagar uma conta importante). Na verdade parece que fica muito ansiosa ao fazer qualquer coisa que tenha alguma importância, mesmo que mínima, mesmo que rotineira. Judite fica ansiosa quando chega um cliente, sua muito nas mãos e borra a ficha que preenche para o cliente, fica agitada quando é marcada uma reunião na clínica, (diz que nunca

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dorme nas vésperas de uma reunião quinzenal que a diretoria faz). E não consegue ficar mais que três meses com um namorado porque “fico pensando que não vai dar certo, que ele não vai me amar tanto quanto eu posso amá-lo, e daí acho melhor terminar”. Judite já consultou um psiquiatra e já fez terapia. Mas é rotineira em abandonar a medicação (ansiolíticos) e também a terapia. É pessimista e acha que seu problema não tem solução. Quando perguntada sobre “qual o problema a que ela se refere como sem solução”, diz que é sua falta de sorte e a sua incapacidade de se controlar e ser feliz. Idade: 26 Sexo: Feminino Altura: 1,60 Peso: 70 Kg Educação: Segundo grau Sono – Insone Alimentação – Um pouco excessiva e sem critérios. Queixa: Medo de tomar decisões, baixa auto-estima, queda de cabelo, sudorese intensa.

CASO ÍSIS

Isis diz que no caminho para o consultório teve a seguinte conversa com uma amiga: ISIS - Vou porque minha mãe insistiu, mas não sou louca.

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AMIGA - Você sempre faz o que sua mãe quer? ISIS - Se eu não for ela me separa do meu irmão, e ele é tudo pra mim. AMIGA - Sabe o que ela quer te mandando ao psicólogo? ISIS - É anormal uma pessoa de 27 se apaixonar por uma de 16? AMIGA - Seu irmão tem 16? ISIS – Não, ele não é exatamente meu irmão. Ísis, 27, solteira, curso superior inconcluso por abandono, mora com a mãe, o Sr. P (namorado da mãe) e Ary, de 16 anos (filho do padrasto). Ísis teve um choque quando o pai morreu em um desastre. Ela tinha 17 anos e passou 3 anos vestindo-se com roupas do pai, “conversando” com ele diariamente e tendo sonhos ditos premonitórios quando ele “a avisava de muitos perigos”. Nessa época Ísis falava sozinha e não gostava do contato social. Era preciso esforço para induzi-la a tomar banho, deitar-se na hora certa, comer, etc., pois ela ficava agressiva quando era obrigada a fazer alguma coisa que não tivesse sido uma orientação do pai. A mãe diz que ela passou a adotar vários gostos, manias e preferências que era do pai, como se quisesse tomar o lugar dele, ou substituí-lo, para que sua ausência não fosse sentida. Na época Ísis foi levada ao psiquiatra, enganada, pensando que se tratava de um Orientador Espiritual que ajudaria a abrir mais caminhos de comunicação com o pai. Ísis tomou medicamentos e fez sessões com o psiquiatra durante oito meses, que com habilidade conseguiu ajudá-la a sair daquele quadro. Aos poucos ela ia retomando sua vida normal, mas tudo piorou subitamente quando a mãe levou P (namorado da mãe) para morar com elas. Ísis o rejeitou de forma maciça e tratou de readquirir todo aquele gestual masculinizado, voltando a usar roupas do pai. Não falava com P. e quando a mãe a questionava ela dizia que estava tudo

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bem, mas que o pai tinha voltado a procurá-la para conversar. Ísis então tinha 20 anos. Numa tentativa de resolver o problema, a mãe aceitou imediatamente quando Ísis decidiu estudar em outra cidade onde ficou quase quatro anos, sem sucesso acadêmico. Mas, abandonou a Faculdade de repente e (com 24 anos) voltou para a casa da mãe (e do padrasto). Ato contínuo, o casal teve a idéia de trazer para morar com eles Ary, filho de P. (13 anos na época e que morava com a ex-mulher de P.) para que tirasse o foco da rejeição de Ísis de cima do padrasto. Os pais gostaram de vê-la de volta, sem trejeitos masculinos. Mas Ísis e Ary brigavam muito, e a situação ficou tão grave que resolveram mandar o garoto de volta. Na hora da separação, entretanto, eles surpreenderam pedindo que isto não fosse feito, pois não iriam conseguir viver longe um do outro. Toda aquela agressividade se transformou em namoro, cumplicidade e isolamento social. Ary, agora com 16 anos abandonou a escola, e se tornou rebelde e agressivo com o pai e a madrasta. Ísis, agora com 27 anos, foi mandada para terapia, pois os pais acreditam que ela influencia negativamente o menino.

CONCLUSÃO

Conclusão de livro é mais hábito e formalidade do que necessidade, já que todas as conclusões a que cheguei até aqui, estão no próprio livro, do primeiro ao último capítulo.

Carl Rogers na conclusão do seu livro “De pessoa para pessoa” diz: “Se este é verdadeiramente “o fim” deste livro é que

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nada aconteceu. Se o leitor o levar adiante, aumentando a experiência destas páginas, estará acontecendo alguma coisa.”

É assim exatamente que penso. Meu desejo é que este livro seja lido, usado, pesquisado, citado, e enfim contribua à formação e aperfeiçoamento de psicólogos.

Este trabalho surgiu da necessidade que percebi - enquanto docente da disciplina Psicoterapia fenomenológico-existencial – de um livro que abrangesse não só a terapia existencial mas as psicoterapias de um modo geral, para orientar com eficiência e abrangência alunos e psicólogos a respeito da prática do trabalho psicoterápico.

É claro que o aprofundamento voltou-se ao existencialismo, mas achei por bem escrever sobre a prática independente de linhas e abordagens, exemplo disto é o capítulo sobre a propedêutica do atendimento psicológico.

Espero que meus alunos, principais destinatários deste trabalho possam fazer uso intenso do presente volume, que não precisa ser lido, direto, do início ao fim, como um romance (embora não haja qualquer contra-indicação), mas a finalidade é que seja um texto que acompanhe o aluno ao longo do seu curso, procurando estimulá-lo a consultar os autores aqui discutidos e discutir as idéias e conceitos aqui apresentados.

Nietzsche em um de seus aforismos disse que quando a energia produtiva é represada durante certo tempo e impedida de fluir por algum obstáculo, acaba gerando subitamente uma efusão, como se houvesse uma inspiração imediata, sem trabalho interior precedente, ou seja, um milagre41.

É que além de livros meus anteriores, como “Fenomenologia aplicada à Psicologia” que funcionou como plataforma para escrever este, me vi também rodeado de um sem número de papéis, anotações de dezenas de atendimentos, recortes, livros sublinhados, além de 41 Nietszche. Humano, demasiadamnete humano. Pág. 111

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notas, artigos e dissertações , coisas acumuladas, represadas quase esquecidas, um mosaico de idéias e papéis que assim separados e em fragmentos não faziam qualquer sentido, mas aquela pilha de anotações definitivamente não se destinavam à fogueira, porque sempre achei que existia certa tessitura que criava entre elas alguma convergência, e o resultado é esse trabalho que espero possa ajudar a todos os interessados nos temas aqui abordados.

Walmir Monteiro

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RELAÇÃO TERAPÊUTICA (Walmir Monteiro)

Lugar acolhedor e inquietante, que aceita, mas desafia.

Vivência reflexiva e dinâmica, que indaga, mas mobiliza.

Encontro perfeito que respeita a imperfeição,

Feito não só de acertos, mas também de intenção.

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Momento mágico, porém sem ilusão.

Sintonia clara que preza diferenças

Liberdade à fantasia, bem-vinda realidade

Translucidez perene que admite opacidade

De um lado uma pessoa, de outro lado outra.

Cumplicidade total, mas total autenticidade

Sem superioridade de saber, de poder ou qualquer coisa

Que nos separe, divirja, diferencie ou remova

A necessária condição de iguais construtores

De um mesmo projeto no qual atuamos

Cientes que a vida - bem único, urgente e precioso,

demanda de nós – e isso ao mesmo tempo

Paciência, coragem, sabedoria e alento.

E assim estamos combinados:

Cada qual do seu lado, mas sempre lado a lado

Cada um no seu papel, desejando ser fiel

À sabedoria que diz:

Ser terapeuta ou cliente apenas nos torna na vida mais um aprendiz.