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George Green,o Homem e o TeoremaHeloisa B. Medeiros, Lucia M. Menezes eDenise Oliveira Pinto

UFF

1 O Homem

George Green é um nome bastante familiar para os ma-temáticos de hoje, e seus resultados (especialmente o fa-moso “Teorema de Green” e as “funções de Green”) sãoamplamente conhecidos. Todavia, não é muito claro,mesmo para os seus biógrafos mais dedicados, em quefontes ou conhecimentos poderia ter se baseadopara de-senvolver seus trabalhos; as evidências sugerem a obrade um gênio autodidata muito mais do que o esforço ea interlocução de um grupo de cientistas. Ele próprio,no prefácio de seu primeiro (e mais importante) traba-lho,AnEssay on the Application ofMathematical Analysis tothe Theories of Electricity and Magnetism, relata peculiari-dades que, provavelmente, constituem os aspectos maismarcantes de sua biografia: a ausência de intimidadecom o meio acadêmico, a escassa oportunidade de umestudo mais formal e a pouca disponibilidade de tempopara o aprofundamento de suas ideias:

Should the present Essay tend in any way to faci-litate the application of analysis to one of the moreinteresting of the physical sciences, the author willdeem himself amply repaid for any labour he mayhave bestowed upon it; and it is hoped the difficultyof the subject will incline mathematicians to readthe work with indulgence, more particularly whenthey are informed that it was written by a youngman, who has been obliged to obtain the little kno-wledge he possesses, at such intervals and by suchmeans, as other indispensable avocations which of-

fer few opportunities of mental improvement, affor-ded.1 [7, 8]

A vida lhe concederia, posteriormente, algumachance de convivência com estudiosos da época; masnão lhe daria o prêmio do reconhecimento compatívelcom seu mérito, como deixa claro o obituário do Not-tingham Review, em 11 de Junho de 1841:

In our obituary of last week the death of Mr. Green,a mathematician, was announced; we believe he wasa son of a miller, residing near to Nottingham, buthaving a taste for study, he applied his gifted mindto the science of mathematics, inwhich hemade a ra-pid progress....Had his life been prolonged, he mighthave stood eminently high as a mathematician.2

George Green nasceu em 1793 emNottingham, na In-glaterra vitoriana, e foi o primeiro filho de um padeiropróspero, também chamado George. Naquele tempo,final do século XVIII, a indústria do algodão declinavae uma massa de trabalhadores rurais, faminta e desem-pregada, começava a ocupar as cidades. Em 1800, Not-tingham estava superpovoada de pessoas miseráveis, acolheita fora ruim, o milho estava caro e a Inglaterra seencontrava em guerra com a França. Neste cenário, o

1 Se este estudo, de algum modo, facilitar o uso da análise [mate-mática] em algum dos problemas mais interessantes das ciênciasda natureza o autor se sentirá amplamente recompensado pelo es-forço a ele dedicado; espera-se que a dificuldade do tema leve osmatemáticos a ler o trabalho com benevolência, particularmentequando informados que foi escrito por um jovem, obrigado a ob-ter o pouco conhecimento que possui em condições, de tempo erecursos, limitadas por outras atribuições indispensáveis que pos-sibilitam poucas oportunidades de desenvolvimento intelectual.

2 No obituário da semana passada, a morte deMr. Green, ummate-mático, foi divulgada; supõe-se que era o filho de ummoleiro queresidia perto de Nottingham, mas com gosto especial pelo estudo,ele direcionou sua inteligência notável para a matemática, ondefez rápidos progressos... Houvera sua vida sido mais longa, talveztivesse se elevado a um nível mais alto como matemático.

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preço do pão (alimento básico) se elevara e muitos acre-ditavam que os padeiros contribuíam para esse estadode coisas estocando matéria prima. A inquietação deulugar à revolta que ficou conhecida como “Corn Riot”e, localmente, como “Bread Riot”. As padarias, den-tre elas a de George Green, sofriam ataques e destrui-ção. Foi neste cenário que George pai enviou seu filhoà mais cara e renomada escola de Nottingham: a Goo-dacre Academy. Green iniciou (e também concluiu) láaquilo que viria a ser seu único contato conhecido comalgum ambiente acadêmico durantemais de trinta anos.

Seguindo o costume da época, após dois anos ele dei-xou a escola para ajudar seu pai na padaria que come-çava a prosperar. Um prospecto de 1808 nos dá umaideia dos temas tratados durante esses dois anos. Se-gundo o anúncio, na Standard Hills Academy (escolaformada como uma evolução daGoodacre Academy) osestudantes poderiam adquirir profundos conhecimen-tos de leitura, gramática inglesa, caligrafia e aritmética.Certamente havia bastante matemática, uma vez que oresponsável pela escola (Goodacre) se dedicava ao tema;um primo de George Green, também seu cunhado, nosconta em uma carta que os conhecimentos do aluno emmatemática rapidamente suplantaram os do mestre.

Em 1807, a família Green havia prosperado bastante eera proprietária de vários imóveis em Nottingham. Ge-orge pai comprou em um leilão uma propriedade ru-ral em Sneinton, a poucas milhas de Nottingham, e láconstruiu um moinho de milho. Tudo leva a crer quemuito cedo a maior parte dos cuidados com o moinhofoi delegada a George filho e a um administrador: Wil-liam Smith, cuja filha viria a ser a mãe dos sete filhos deGeorge Green, embora ele jamais tenha se casado (tam-pouco chegou a admitir esta união em alguma convi-vência social). Os cuidados com o moinho ocuparamboa parte de seu tempo até a morte de seus pais e forambem sucedidos a ponto de garantir à família um sólidopatrimônio. Todavia, não era um dever prazeroso e, se-gundo palavras de seu primo-cunhado, Green os con-siderava irksome (penosos). Mas foi só em 1829 (ano damorte de seu pai) que George Green parece ter se sen-tido à vontade para delegar estes afazeres ao seu admi-nistrador que, para os padrões de hoje no Brasil, seriaseu sogro.

Decorridos muitos anos de sua saída da GoodacreAcademy, Green procurou contato comomeio científicocultural, associando-se, em 1823, à Nottingham Subs-cription Library, com sede na BromleyHouse. Embora acasa fosse frequentada por diversos cavalheiros de des-taque da sociedade local, tudo indica que seu interessese voltou para o acervo bibliográfico, composto princi-palmente por volumes de literatura, história, biografiase história natural. Eram escassas, embora relevantes, asobras direcionadas à matemática.

Em 1828, portanto cinco anos após sua filiação à bibli-oteca, Green publicava seu primeiro e mais importantetrabalho. A publicação foi financiada por ele mesmo emais vinte e uma pessoas; cada uma pagou por sua có-pia o valor de sete shillings e seis pences, quantia equiva-lente ao ganho semanal de um trabalhador pouco qua-lificado na ocasião. Supõe-se que a contribuição destessenhores tenha ocorrido mais por amizade ou lealdadepois, à exceção de apenas um (sir Edward Bromhead),nenhum deles parecia ter conhecimento suficiente paraaproveitá-la. O trabalho foi dedicado to his Grace theDuke of Newcastle, K. G e continha resultados extrema-mente importantes, entre os quais aquele que hoje co-nhecemos como Teorema de Green. Curiosamente, fa-zia uso de uma notação pouco frequente e quase desco-nhecida na Inglaterra: a notação de Leibniz. Até aquelemomento, matemáticos ingleses utilizavam a notaçãode Newton e tinham mesmo dificuldade para entenderos resultados dos matemáticos da Europa continental,notadamente os franceses, que começavam a usar ossímbolos de Leibniz em seus trabalhos. Os biógrafos deGreen conjecturam que seu contato com a matemáticafrancesa e sua nomenclatura pode ter ocorrido atravésde John Toplis, um reverendo que atuou em uma es-cola de Nottingham. Sabe-se que Toplis frequentou aBromley House durante certo tempo e era um entusi-asta da matemática francesa contemporânea. Seu inte-resse o levou, inclusive, a traduzir para o inglês LaMéca-nique Céleste do nobre Marquês de La Place (conhecidopor nós como Laplace), acrescentando notas explicati-vas para os estudantes de então. A tradução foi dis-ponibilizada em Nottingham em 1814. Por razões queenvolvem mais a exclusão de outras possibilidades doque documentos históricos, acredita-se que John Toplis

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tenha ajudado Green a entender a matemática francesadaquele tempo e tenha facilitado a leitura de obras dematemáticos como Lacroix, Poisson e Biot.

A repercussão do ensaio foi quase nenhuma o que,até certo ponto, poderia ser esperado, já que sua publi-cação ficou restrita a um ambiente pouco afeito à ques-tão, em uma cidade pequena, e só foi divulgada, essen-cialmente, a quem não conseguiria entendê-la. Entre-tanto, sirEdwardBromhead, um influente gentlemandasimediações de Lincoln, mostrou entusiasmo e escreveua Green oferecendo-se para divulgar seu trabalho nassociedades científicas da época. Sir Edward havia estu-dado em Cambridge, onde teve oportunidade de convi-ver com vários entusiastas da matemática francesa, e éprovável que esse contato tenha sido decisivo para quefosse capaz de avaliar a importância dos resultados doensaio. Green se manteve calado sobre a oferta de sirEdward na ocasião. Segundo confessaria em uma longacartamais tarde, alguém emcuja opinião confiava desdemuito cedo o havia persuadido de que o entusiasmo desir Edward era apenas uma manifestação de delicadezae que sua oferta de divulgação deveria ser ignorada.Não se sabe quem foi esta pessoa mas alguns indíciosapontam para seu primeiro mestre: Robert Goodacre.

De qualquer modo, quando dois anos após a publi-cação do ensaio o contato entre Green e sir Edwardocorreu, este mostrou-se disposto a honrar sua oferta esurgiu daí um relacionamento bastante profícuo. Nostrês anos seguintes Green produziu mais três memoirs:Mathematical Investigations Concerning the Laws of theEquilibrium Fluids Analogous to the Electric Fluid (naqueletempo a eletricidade era entendida como resultado dofluxo de um fluido invisível); On the Determination ofthe Exterior and Interior Attractions of Ellipsoids of Varia-ble Densities e Researches on the Vibrations of Pendulumsin Fluid Media. Os dois primeiros foram enviados porsir Edward para publicação no Transactions of the Cam-bridge Philosophical Society; o terceiro, sir Edward en-viou para a Royal Society of Edinburgh, onde mantinhaboas relações, e foi publicado em 1836. Foi, assim, pe-las mãos desse cavalheiro, que os resultados de Greenalcançaram os meios usuais de divulgação da comuni-dade científica e, também, foi através dele que várioscontatos importantes se estabeleceram. Todavia, o tra-

balho no moinho ainda ocupava Green, principalmenteapós a morte de seu pai, quando ficou responsável pe-los negócios da família, e ele parecia se sentir pouco pre-parado para o convívio com os homens da ciência. Emuma carta dirigida a sir Edward, pouco após a morte deseu pai, ele promete esforços no sentido de concluir seustrabalhos although the time necessary of doing so were sto-len from my sleep 3 .Quando convidado por sir Edwarda comparecer a um encontro com seus colegas de Cam-bridge em junho de 1833, ele recusa gentilmente e es-creve: Being as yet only a beginner I think I have no right togo there and must defer that pleasure until I shall have becometolerably respectable as a man of science should that day everarrive 4.

Reside nesta passagem, por um lado, a pouca noçãoque os cientistas da época e ele mesmo, tinham da im-portância do seu trabalho; mas também se explicita aesperança de um contato mais regular e oficial com osmeios acadêmicos. E neste sentido uma carta apelamaisuma vez a seu amigo, em abril de 1833: ... You are awarethat I have an inclination for Cambridge if there was a fairprospect of success. Unfortunately I possess little Latin, lessGreek, have seen too many winters and am thus held in a stateof suspense by counteractive motives 5.

Com efeito, em outubro de 1833, George Green ini-ciou sua graduação em Cambridge entrando para oCaius College, o mesmo ao qual pertencera sir EdwardBromhead. Nesta ocasião Green tinha quarenta anos deidade e quatro filhos com Jane Tollins (filha do gerentedomoinho), mas sua união não se oficializara e nada in-dica que ele tivesse vivido com Jane e seus filhos comouma família. É mesmo provável que seu silêncio a res-peito desta ligação se devesse, naquele momento, à suaaspiração de obter uma posição como college fellowship,o que o impedia de ser casado.

3 embora o tempo necessário para fazê-lo seja retirado das minhashoras de sono

4 Sendo ainda apenas um iniciante, penso que não tenho direito deir lá e devo postergar este prazer até que venha a me tornar mi-nimamente respeitável como homem da ciência, se é que tal diachegará

5 É do seu conhecimento que eu tenho preferência por Cambridge,se houver alguma chance. Infelizmente tenho poucos conhecimen-tos de latim, menos ainda de grego, vi muitos invernos e me en-contro, portanto, bastante ansioso devido a tais adversidades.

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Embora a real importância de seu trabalho só tenhasido reconhecida após sua morte, Cambridge lhe conce-deu um ambiente acadêmico e social que ele parece terapreciado e, finalmente, em outubro de 1839, lhe con-cedeu também a tão almejada posição como fellow. Suaprodução, durante a estada em Cambridge, compõe-sefundamentalmente de seis trabalhos; dois em hidrodi-nâmica, dois sobre reflexão e refração de som e dois so-bre reflexão e refração de luz. Apenas seis meses depoisda concessão de sua fellowship deCambridge, Green vol-tou a Nottingham e, no dizer de seu cunhado, já mos-trando uma saúde frágil. Ele não mais sairia de Not-tingham, vindo a falecer de gripe em junho de 1841.

O reconhecimento de sua contribuição surgiria al-guns anos depois pela ação de um escocês, WilliamThomson, mais conhecido como Lord Kelvin. Interes-sado em eletricidade e magnetismo, Lord Kelvin quasepor acaso encontrou uma referência em um trabalhoque mencionava the ingenious Essay by Mr. Green of Not-tingham. O Essay havia sido publicado dezessete anosantes, com fundos privados, em Nottingham, de modoque as buscas de Lord Kelvin nas fontes usuais de Cam-bridge foram mal sucedidas. Entretanto, na vésperade uma viagem para Paris, onde pretendia encontrarcom colegas matemáticos, tomou conhecimento de queseu orientador (William Hopkins) dispunha de três có-pias que, supõe-se, lhe teriam sido dadas pelo próprioGreen. Ele levou duas cópias a Paris e, tendo percebidoa importância do resultado, entregou uma delas a umeditor de um periódico muito lido na Europa Continen-tal. Este lhe prometeu publicar o trabalho e o fez em trêspartes, entre 1850 e 1854, em inglês e, mais tarde em ale-mão; mas foi só em 1871 que esse primeiro trabalho deGeorge Green foi publicado na Inglaterra; cópia destaedição pode ser consultada em PDF em [7] e uma reim-pressão está disponível como livro [8]. Durante toda suavida, Lord Kevin se empenhou na divulgação dos traba-lhos de Green e, considerando que dentre seus amigosencontravam-se Stokes e Maxwell, seu empenho pareceter rendido bons frutos.

Quando da publicação do Essay em alemão, o editorprocurou conhecer um pouco da vida do homem portrás da obra. Evidentemente, havia muito pouco docu-mentado, mas teve início um esforço para reconstruir

sua história. Contemporâneos e familiares deram infor-mações e, já na segunda metade do século vinte, algunsestudiosos se dedicaram à pesquisa de sua biografia. D.M. Cannell, em especial, se mostrou incansável nestesentido e é com base em seu livro publicado em 1988e alguns outros textos que aqui fazemos este breve re-lato [2, 13, 8].D.M. Cannell é, reconhecidamente, uma estudiosa da

biografia de Green. Em [14], [1], [16] e em todas as fon-tes que consultamos, seu nome está sempre presente.Seu trabalho inclui livros em diferentes edições [2, 3, 4]e artigos cujas referências podem ser encontradas nasfontes já mencionadas. Algumas resenhas de seus li-vros estão disponíveis em [6] e [15]. Em [2], que toma-mos como base, encontramos a fac simile de vários do-cumentos originais, tais como partes dos trabalhos deGreen, cartas e fotos. No prefácio da edição de que dis-pomos, a autora dedica quatro parágrafos à citação desuas fontes, que incluem arquivos das cidades de Not-tingham e Cambridge, da biblioteca da Bromley House,de bibliotecas de diversas universidades, documentos ecorrespondências mantidos por pesquisadores, conta-tos com estudiosos e arquivistas locais, e outros; partesubstancial dos capítulos finais é dedicada ao relato mi-nucioso de como se deu sua pesquisa. Em [1] pode-seachar indicações de como entrar em contato com insti-tuições em cujo acervo se encontra material original re-lacionado aos trabalhos e à vida de George Green, a sa-ber: Universidade de Nottingham, Nottingham CountyLibrary e Nottinghamshire Archives. Há também, dis-ponível para venda, uma reimpressão da edição de 1871dos trabalhos de Green [8]; parte desta obra é acessívelem formato PDF em [7].O século XX traria novas perguntas para as quais as

respostas dependiam fortemente das tão famosas fun-ções de Green, o que só veio a reafirmar a genialidadede sua obra.

2 O Teorema

Na ocasião em que Green publicou seu Essay, o resul-tado que hoje conhecemos como Teorema de Green foiescrito com uma notação quase incompreensível para osmatemáticos atuais.Uma formulação moderna do Teorema (bem como

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sua demonstração) pode ser vista em qualquer livro decálculo ou análise de várias variáveis, como por exem-plo [9].O teorema se refere a uma região fechada e limitada

do plano. Em linhas gerais, afirma a igualdade entrea integral de linha de um campo vetorial na fronteiradesta região e a integral dupla (no interior da região) dedeterminada expressão envolvendo derivadas parciaisdo campo. No enunciado que usamos aqui (bem conhe-cido dos cursos de cálculo) aparece o conceito de regiãosimples. Lembramos que uma região de R2 é dita sim-ples se a interseção de sua fronteira com qualquer retaparalela a um dos eixos coordenados ocorre no máximoduas vezes. Em todo caso, o Teorema se refere à uniãofinita de regiões simples, o que é bem pouco restritivo.

Teorema 1. Seja D uma região limitada no plano formadapela união finita de regiões simples cujos bordos são curvasseccionalmente suaves (isto é, de classe C1 por partes). Sejaσ uma parametrização orientada positivamente de ∂D, (bordode D) e G : D ∪ ∂D −→ R2 um campo vetorial de classe C1.Então∫∫

D

(∂G2

∂x− ∂G1

∂y

)dxdy =

∮σ

G(x, y) · dr , (2.1)

onde G(x, y) = (G1(x, y), G2(x, y)).

A demonstração do Teorema é bastante técnica etranscende o escopo deste trabalho. Todavia — já foicomentado — pode ser encontrada com facilidade emlivros de cálculo ou análise. Nossa intenção é ilustrar ouso do Teorema em alguma aplicação.Embora originalmente proposto no contexto da teo-

ria de eletromagnetismo, o Teorema de Green pode serempregado em inúmeras outras situações. Escolhemosuma delas, que nos pareceu interessante: a mensuraçãode áreas através de um instrumento conhecido como pla-nímetro polar, muito usado por cartógrafos e outros pro-fissionais.A necessidade de medir áreas planas é um problema

que se apresenta de maneira natural e inúmeras so-luções têm sido propostas desde a Antiguidade. Em1854, Amsler construiu o planímetro polar, instrumentomuito bem recebido por engenheiros e cartógrafos, paracalcular a área de uma região limitada por uma curva fe-chada. A Figura 1 (gentilmente cedida por [5]) mostra

uma foto do instrumento, enquanto na Figura 2 temossua representação esquemática.Um planímetro é composto essencialmente por dois

braços unidos por uma articulação. O primeiro (conhe-cido como braço fixo) tem uma de suas extremidadespresa ao papel (como a ponta seca de um compasso) en-quanto a outra semove para permitir o deslocamento dosegundo braço (conhecido como braço móvel). Preso aobraço móvel e perpendicular a ele existe um disco queencosta no papel e pode girar livremente. Pela posiçãodesse disco, ele é arrastado emmovimentos paralelos aobraço móvel e rola sem escorregar em movimentos per-pendiculares ao braço. A consequência disso, havendocondições razoáveis de atrito, é que esse disco capturaapenas a componente perpendicular ao braço do movi-mento descrito por seu centro.A posição exata do disco neste braço varia, depen-

dendo do planímetro específico que se esteja usando.

Figura 1: Foto de um planímetro de Amsler.

braço móvel

braço fixo

articulação

Figura 2: Esquema de um planímetro de Amsler.

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Vamos supor aqui que o disco se localiza exatamente naextremidade livre do braçomóvel. De fato, essa situaçãonão é prática, porque essa ponta deve estar desimpedidapara o usuário do planímetro seguir a curva, mas facilitanossa exposição. Comentaremos no final por que não édifícil obter resultados semelhantes em outras posições.

Para medir uma área deve-se fixar a ponta do pri-meiro braço no papel e fazer o disco no segundo braçopercorrer a fronteira da região, saindo de um ponto ecaminhando sempre em uma mesma direção, até retor-nar ao ponto inicial. Alguns sítios da web, como [11]e[12], apresentam simuladores do processo. Ao final dopercurso um contador informa o número (não necessa-riamente inteiro) de voltas que o disco efetuou e, a par-tir deste número, é possível calcular a área da região. Éimportante que o percurso da fronteira seja sempre se-guido na mesma direção e vamos admitir que é feito nadireção positiva (mantendo a região à esquerda).

Em um primeiro momento, a relação entre o númerode voltas do disco e a área a ser calculada não é evi-dente e não se sabe ao certo que raciocínio teria levadoAmsler a conceber seu planímetro. Fato é que sua pu-blicação a respeito do assunto — Über das Planimeter —nãomenciona os resultados de Green (embora Amsler eGreen tenham sido contemporâneos) e segue uma linhade raciocínio mais própria da geometria plana [5]. Dequalquer forma, nossa intenção aqui é entender o fun-cionamento deste instrumento de medição a partir doTeorema de Green e é nessa direção que vamos argu-mentar.

Na Figura 3 um esquema é colocado no plano carte-siano. A origem representa o ponto em que está fixadoo primeiro braço, (a, b) é o ponto de articulação entre osdois braços e (x, y) é um ponto da fronteira da região.Vale observar que (a, b) depende de (x, y).

Para desenvolver nosso raciocínio, supomos que oponto fixo está fora da região (isto é, a origem não per-tence à região cuja área se quermedir). Pelas convençõese nomenclatura que aqui utilizamos ||(a, b)|| = R, ouseja: a distância entre um valor possível de (a, b) e a ori-gem é exatamente igual ao tamanho do braço fixo (verFigura 4). Além disso, para cada (a, b) o braço móvelpode percorrer um círculo de raio r, que é o seu compri-mento, em torno de (a, b). Tomando a envoltória destes

círculos como fronteira, definimos um anel, em torno daorigem, como: A = (x, y), R− r ≤ ||(x, y)|| ≤ R + re verificamos que para que um ponto seja alcançadopela extremidade do braço móvel, ele deve pertencer àregião A. Todavia, se admitirmos que algum ponto dafronteira de D pertence ao bordo no anel, isto é (x, y) ∈∂D e ||(x, y)|| = R− r ou ||(x, y)|| = R + r, estaremosadmitindo a possibilidade de que durante o percurso dafronteira os dois braços se alinhem. Essa possibilidadedeve ser evitada. Na verdade, para cada (x, y) ∈ ∂Dexistem duas posições possíveis para (a, b). Passar con-tinuamente de uma a outra, implicaria em alinhar osdois braços ao longo do processo. Uma consequêncianegativa desta possibilidade seria permitir que saísse-mos de um ponto com uma das determinações de (a, b),percorrêssemos a fronteira continuamente e retornásse-mos ao mesmo ponto com outra determinação. Como(a, b) deve ser função de (x, y), evitamos esta dupla pos-sibilidade exigindo que D esteja contido no interior deA. Isto é: admitindo que D é um conjunto fechado (con-tém seu fecho) queremos que : (x, y) ∈ D ⇔ R − r <

||(x, y)|| < R + r.Se o braço móvel se desloca ao longo da sua própria

direção o disco não gira, apenas translada. Como quere-mos entender o significado do número de rotações, esta-mos interessados em analisar o movimento que ocorrena direção perpendicular ao braço móvel, pois é este odeslocamento que provoca a rotação. O número de rota-ções é, evidentemente, proporcional à distância percor-rido pelo disco no sentido perpendicular ao braço mó-vel.

x

y

R

r

F(x, y)

(a, b)

σ(t) = (x(t), y(t))

Figura 3: Esquema no plano do planímetro de Amsler.

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Chamamos de D a região e de ∂D a sua fronteira queparametrizamos com orientação positiva por uma fun-ção σ(t) = (x(t), y(t)), t ∈ [α, β]. Como σ descreveposição, σ′(t) descreve a velocidade do disco. Para de-terminar a componente da velocidade perpendicular aobraço móvel verificamos que este braço tem a direçãode (x − a, y − b) e sua direção perpendicular (no sen-tido anti-horário) é G(x, y) = (−y + b, x− a). Portanto,se r é o comprimento do braço móvel, concluímos que

F(x, y) =1r(−y + b, x− a)

é um vetor unitário na direção perpendicular ao braçomóvel, se a extremidade livre desse braço está em (x, y).A componente da velocidade na direção ortogonal aobraço móvel será, portanto: v(t) = F(σ(t)) · σ′(t), onde· denota o produto escalar. A velocidade angular ω dodisco é, então, obtida pela expressão

ω(t) =v(t)

ρ,

onde ρ é o raio do disco.Integrando a velocidade angular, obtemos

Ω =∫ β

αω(t)dt .

Sendo Ω a integral da velocidade dividida por ρ, elamede a distância percorrida pelo disco no movimentode rotação (dividida por ρ) e portanto Ω = 2πn0 onden0 é o número de voltas (observe que n0 não é, neces-sariamente, um número inteiro). Concluímos, pois, que

Ω =∫ β

αω(t) dt =

∫ β

αF(σ(t)) · σ′(t) dt

=1ρr

∫ β

αG(σ(t)) · σ′(t) dt

= 2πn0 .

(2.2)

A última integral de (2.2) é a integral de linha de G aolongo de σ e sabemos, pelo Teorema de Green, que

∮σ

G · dr =∫∫D

(∂G2

∂x− ∂G1

∂y

)dxdy . (2.3)

Resta-nos apenas calcular essa integral dupla.

x

y

(a, b)

R

r

R− r R + r

Figura 4: A região de integração deve estar contida noanel limitado pelos círculos de raios R− r e R + r.

Da expressão de G calculamos(∂G2

∂x− ∂G1

∂y

)= 2− (ax + by) = 2− Div (a, b) .

Para obter Div (a, b) observamos a Figura 4 para escre-ver as equaçõesa2 + b2 = R2

(x− a)2 + (y− b)2 = r2, (2.4)

Nas equações acima podemos confirmar aquilo que aintuição nos diz sobre a posição do ponto de articulação(a, b) para cada (x, y) fixo; qual seja: poderiam existirdois valores de (a, b) para cada ponto na curva. Todavia,considerando as hipóteses explicitadas anteriormente,apenas um ponto é possível e prosseguimos, sem culpa,assumindo que (a, b) é função de (x, y).Derivando (2.4) em x, temos que2 a ax + 2 b bx = 0

2 (x− a) (1− ax) + 2 (y− b) (−bx) = 0.

Assim,bx = − a axb

(x− a) (1− ax) + (y− b) (−bx) = 0.

Logo, (x− a)(1− ax) + (y− b) a axb = 0 e, portanto,

ax

[−(x− a) +

a (y− b)b

]+ (x− a) = 0 ,

isto é,ax

[−x +

ayb

]= −(x− a)

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e, por conseguinte,

ax =b(x− a)xb− ya

. (2.5)

Vamos repetir esse processo, derivando agora asequações (2.4) em y:2 a ay + 2 b by = 0

2 (x− a) (−ay) + 2 (y− b) (1− by) = 0.

Assim,ay = − b bya

(x− a) (−ay) + (y− b) (1− by) = 0.

Logo, (x− a) b bya + (y− b) (1− by) = 0 e, portanto,

by

[(x− a)

ba− (y− b)

]+ (y− b) = 0 ,

isto é,

by

[x ba− y]= −(y− b)

e, por conseguinte,

by =−a(y− b)

xb− ya. (2.6)

Finalmente, somando (2.5) com (2.6), temos que

Div (a, b) = ax + by

=b(x− a)xb− ya

+−a(y− b)

xb− ya

=bx− ayxb− ya

= 1 .

(2.7)

Concluímos, então, que Div (a, b) = 1 e, portanto,∂G2

∂x− ∂G1

∂y= 1.

Pelo Teorema de Green, sabemos que:∫∫D

(∂G2

∂x− ∂G1

∂y

)dxdy =

∫σ

G(x, y) · dr (2.8)

Ora, o lado esquerdo de (2.8) é exatamente a área daregião envolvida, enquanto o lado direito vale 2πρrn0.Obtemos assim uma associação entre a área da região eo número de voltas dadas pelo disco.Considerando que ρ e r precisariam ser medidos, a

constante 2πρr poderia introduzir um erro grande nocálculo da área. Paraminimizar este problema costuma-se estimar seu valor procedendo de forma experimental.

Isto é, utiliza-se o planímetro para medir uma área co-nhecida (por exemplo, um quadrado) e, com este resul-tado pode-se determinar um valor com boa aproxima-ção para 2πρr.Suponha agora que o disco não esteja sobre a extremi-

dade livre do braço móvel. Na foto mostrada na Figura1 o disco está instalado atrás da articulação e seu cen-tro não está sobre a linha do braço móvel. Neste caso, ocentro do disco percorre a curva

σr(t) = σ(t) +qr(σa(t)− σ(t)) +

sr

G(σ(t)) ,

onde q ∈ R (no caso do aparelho da Fig. 1, q > 1),σa(t) = (a(x(t)), b(x(t))) é a parametrização do mo-vimento da articulação e |s| dá a distância entre o cen-tro do disco e a linha central do braço móvel. Note queG(σ(t)), pela maneira como foi definido, é a rotação deσa(t)− σ(t) no sentido horário.Se Ω é a rotação líquida total do disco, então

ρrΩ =∫ β

αG(σ(t)) · σ′r(t)dt

=∫ β

αG(σ(t)) · σ′(t)dt

+qr

∫ β

αG(σ(t)) · (σ′a(t)− σ′(t))dt

+sr

∫ β

αG(σ(t)) · d

dtG(σ(t)) .

(2.9)

A primeira integral é amesma que já calculamos usandoo Teorema de Green e vale a área da figura contornada.Vamos mostrar que as outras duas integrais são nulas,concluindo assim que a posição do disco não altera oresultado da integral de linha.Como G(σ(t)) tem norma constante e igual a r, a

imagem da curva t 7→ G(σ(t)) está contida no cír-culo de raio r e centro na origem. Portanto sua deri-vada é sempre ou nula ou ortogonal à posição e, as-sim, o produto escalar da terceira integral é zero. Emseguida escrevemos σ(t)− σa(t) = r(cos θ(t), sen θ(t)).Logo G(σ(t)) = r(− sen θ(t), cos θ(t)) e o segundo in-tegrando fica igual a θ′(t). A integral

∫ βα θ′(t)dt poderia

dar qualquer múltiplo de 2π, mas dá zero se o númerode voltas líquidas do braço móvel for zero. Ora, masisso segue do fato de que o número de voltas líquidasdo braço fixo é zero e também do fato de que o ânguloentre os dois braços na articulação só varia num inter-valo de tamanho π.

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Artigo

Para escrever este texto consultamos inúmeras fon-tes que não podemos deixar de mencionar. Para a bio-grafia de Green, nossa fonte principal foi o já citadolivro [2], mas websites também nos trouxeram subsí-dios [11, 13, 7]. Sobre o planímetro, seu uso e funcio-namento, citamos [10] e agradecemos especialmente aoeditor Eduardo Colli pelo cuidado na revisão do artigoe pela colaboração ao provar, no final do texto, que nos-sos cálculos, feitos sob a hipótese de que o disco estariana ponta do braço móvel, podem ser generalizados. Denossa parte, buscando desenvolver um texto acessívelpara estudantes de cálculo em geral, procuramos uti-lizar resultados e ferramentas próprias a este nível deconhecimento evitando, assim, tanto o tratamento pelageometria plana quanto o que utiliza curvas integrais enoções de equações diferenciais.

Referências

[1] British Science Association.www.britishscienceassociation.org/

[2] Cannell, D. M. George Green, miller and mathemati-cian, 1793 – 1841. City of Nottingham Arts Depart-ment, 1988.

[3] Cannell, D. M. George Green, mathematician and phy-sicist, 1793 – 1841: the background to his life and work.London: Athlone Press, 1993.

[4] Cannell, D. M. George Green, mathematician and phy-sicist, 1793 – 1841: the background to his life and work.2. ed. Philadelphia: SIAM, 2001.

[5] Casseman, B.; Eggers, J. The mathematics ofsurveying: Part II. The planimeter. Acesso emwww.ams.org/samplings/feature-column/fcarc-surveying-two

[6] Graves, D. Resenha de [4]. Acesso emwww.maa.org/publications/maa-reviews/george-greenmathematician-and-physicist-1793-1841-the-background-to-his-life-and-work. Mathematical Asso-ciation of America, 2001.

[7] Green, G. Mathematical papers of the late Ge-orge Green. Ed. by N. M. Ferrers. Ann Ar-

bor: University of Michigan, 2005. Acesso emquod.lib.umich.edu/u/umhistmath/.

[8] Green, G. Mathematical papers of the late George Green.Ed. byN.M. Ferrers. London: MacMillan, 1871. (TheUniversity of Michigan Historical Mathematics Col-lection)

[9] Guidorizzi, H. L. Um curso de cálculo. 5. ed. Rio deJaneiro: LTC, 2012. v. 3.

[10] Knill, O. The planimeter andthe theorem of Green. Acesso emwww.math.harvard.edu/∼knill/teaching/math21a2000/planimeter/index.html.

[11] Knill, O.; Dale, W. Green’s theorem and the planime-ter. With the assistance of David Smith. Acesso emwww.math.duke.edu/education/ccp/materials/mvcalc/green.

[12] Kunkel, P. The planimeter. Acesso em whistleral-ley.com/planimeter/planimeter.htm.

[13] O’Connor, J. J.; Robertson, E. F.Green, G. MacTutor History of Mathe-matics Archive, 1998. www-history.mcs.st-andrews.ac.uk/history/Mathematicians/Green.html

[14] School of Mathematics and Statistics, Uni-versity of St. Andrews, Scotland. Indexesof biographies. Acesso em www-history.mcs.st-andrews.ac.uk/Biographies/Green.html.

[15] Smith, C. D. M. Cannell, George Green, mathema-tician and physicist, 1793–1841. London: Athlone,1993. The British Journal for the History of Science, v.27, p. 477–479, 1994.

[16] Nottingham City Council. Green’s Windmill andScience Centre.www.nottinghamcity.gov.uk/article/22180/Greens-Windmill-and-Science-Centre

Heloisa B. Medeiros, Lucia M. Menezes eDenise Oliveira Pintomedeiros@mat.uff.br

luciamenezes@im.uff.br

denise.oliveira.pinto@gmail.com

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