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Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Departamento de História
Mônica de Souza Alves da Cruz
O processo de censura à peça teatral Calabar
Monografia de Bacharelado apresentada como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de bacharel em História. Orientador: Prof. Dr. Carlos Fico
RIO DE JANEIRO 2002
Agradecimentos
Não poderia deixar de expressar a minha gratidão à algumas pessoas que contribuíram, direta ou indiretamente, no processo de elaboração desta monografia.
Ao professor Carlos Fico por toda a atenção e apoio concedidos durante o período de feitura deste trabalho. Não poderei jamais esquecer-me de toda a paciência, compreensão e carinho que demonstrou para comigo. Devo à ele a minha eterna gratidão.
À professora Maria Christina Caldas que me conduziu nos primeiros passos da pesquisa acadêmica, concedendo-me tardes maravilhosas de estudo na qual recebi preciosas informações e conselhos que colaboraram para a minha formação.
À professora Norma Musco Mendes, à professora Neyde Thelm e à toda equipe do LHIA-UFRJ, por todo incentivo recebido à pesquisa e pelos maravilhosos momentos que vivenciamos juntos.
Ao amigo Vicente, pelas palavras de estímulo, pelas leituras dos manuscritos, pelas sugestões e críticas, pelos livros emprestados e, acima de tudo, pela sua grande amizade.
Aos amigos Hélio Ricardo, Simone Victor e Cristina Fontana, porque estiveram caminhando comigo durante os últimos anos e me mostraram a importância de compartilhar sentimentos, angústias e alegrias.
Aos meus pais, pelos ensinamentos e orientações que contribuíram para a minha formação.
A Deus. Sem Ele não teria forças para prosseguir até o final desta jornada.
Sumário
Introdução............................................... 4
Capítulo 1.............................................. 13
Capítulo 2.............................................. 21
Capítulo 3.............................................. 31
Conclusão............................................... 46
Introdução
Atores, músicas, figurino, cenário... Tudo já estava
pronto para a estréia do musical Calabar: o elogio da
traição, de Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra, no dia 8
de novembro de 1973, no Teatro João Caetano (RJ). Um clima
de grande expectativa pairava nos bastidores. Os ensaios já
estavam sendo realizados havia dois meses, com duração
diária de quatorze horas. Uma produção orçada em cerca de
300 mil cruzeiros. Naquele momento, era necessário apenas
aguardar a chegada do público e a abertura das cortinas
para o espetáculo começar. No entanto, o que não se
esperava era a chegada da censura que daria um drástico fim
àquela história.
Calabar foi um espetáculo abortado, como inúmeros
outros submetidos à avaliação da Censura Federal no período
da Ditadura Militar. A censura era utilizada como um
instrumento de coerção a qualquer tipo de manifestação
artística que surgisse com um tom de ameaça ao discurso da
ordem e da segurança nacional propagado pelo governo. O
"palco", realmente, estava "amordaçado",1 impossibilitado
de trazer à tona discussões e críticas sobre a realidade
brasileira. A censura influía na própria produção cultural,
realizando cortes e determinando o que podia ou não ser
dito. Por isso, vários autores teatrais utilizavam
metáforas, alegorias e outros recursos de linguagem para
terem suas obras liberadas e apresentadas ao público.
É dentro desse contexto de extrema desconfiança e
rigor quanto à aplicação de medidas restritivas (pós-AI-5)
que pretendemos analisar o processo de censura à peça
Calabar: o elogio da traição, de Chico Buarque e Ruy
1 "Palco amordaçado" é uma expressão utilizada por Yan Michalski e é título de um de seus livros.
5
Guerra, utilizando como documento básico o processo que
proibiu a divulgação do livro, com o mesmo nome da peça, em
1974. Buscaremos mostrar como o autor Chico Buarque veicula
idéias na peça que caracterizam a forma de pensar da
esquerda intelectual dos anos 60 e 70. Além disso,
pretendemos sobretudo mostrar como a censura agia no âmbito
da estrutura repressiva montada pelo Regime Militar.
Nos últimos anos ocorreu um aumento significativo de
trabalhos que abordam a temática da Ditadura Militar (pós-
64) e a censura no Brasil. No entanto, a questão da censura
ao teatro brasileiro nesse período ainda carece de
análises, não obstante existam abordagens jornalísticas
como as dos críticos teatrais Yan Michalski, Fernando
Peixoto e Sábato Magaldi.
É importante destacar Yan Michalski como uma
referência fundamental nos estudos sobre o teatro
brasileiro no período militar. No seu livro O palco
amordaçado ele menciona o receio que os militares possuíam
com relação à atuação de um "teatro livre" e registra que o
teatro foi erigido como "um dos inimigos públicos mais
declarados, e por conseguinte, tratado com sistemática
desconfiança, hostilidade, e não raras vezes brutalidade",
devido a um diagnóstico equivocado que o identificou como
uma ameaça à Segurança Nacional.2 Michalski também busca
mostrar a mobilização da classe teatral contra a censura e
o seu declínio após a decretação do AI-5, assim como os
malefícios gerados por esta à própria produção dramatúrgica
brasileira.
Yan Michalski, realmente, apresenta algumas questões
bastante interessantes sobre a censura teatral no período
da Ditadura Militar no Brasil (pós-64). No entanto, ele
2 MICHALSKI, Yan. O palco amordaçado: 15 anos de censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Coleção Depoimentos, 1979. p. 9-11.
6
confessa as limitações de seu trabalho quando expõe a sua
impossibilidade de realizar um levantamento mais abrangente
por não ter acesso aos arquivos da própria Censura. O palco
amordaçado é um trabalho significativo, embora bastante
introdutório, sobre a questão.
Fernando Peixoto reúne em seus livros Teatro em
pedaços, Teatro em movimento e Teatro em questão uma
coletânea de artigos, notas, reportagens, entrevistas,
fragmentos etc. escritos por ele ao longo de sua trajetória
pessoal. Segundo o próprio Fernando Peixoto, as informações
contidas nesses trabalhos apenas conseguiriam apontar o
confronto que ele travava em seu cotidiano com o movimento
do teatro nacional3 e instigar um debate cultural
democrático urgente e responsável, permanente e crítico.4
Sem dúvida, os registros de Fernando Peixoto nos servem
como importantes fontes de consulta, mas não se enquadram
na nossa proposta de analisar historicamente a censura e
teatro.
Dessa forma, buscamos a peça Calabar: o elogio da
traição através de uma perspectiva histórica, considerando
a conjuntura política existente no momento de proibição
deste texto, assim como os elementos que possam identificá-
la como sendo um discurso nacionalista característico dos
grupos intelectualizados de esquerda, para que este
específico processo de censura possa iluminar outros
assemelhados.
A partir dos anos 50, a temática nacionalista ganhou
notoriedade entre os diferentes grupos que se propunham a
pensar o Brasil, tais como o Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB), a Escola Superior de Guerra (ESG) e o
Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. Buscava-se
3 PEIXOTO, Fernando. Teatro em pedaços. São Paulo: Hucitec, 1989. p. 1.
7
encontrar as raízes dos problemas que assolavam a nação
brasileira, que a impediam de se estabelecer no patamar dos
países capitalistas desenvolvidos. Havia uma ânsia pelo
progresso, pela civilização, pelo reconhecimento dos
valores e potencialidades da nação e do povo brasileiro.
Aquele era o momento de se refletir sobre o Brasil e o
campo intelectual buscava exatamente elementos que pudessem
responder aos anseios transformadores daquela sociedade.
Carlos Guilherme Mota já mencionou que os anos 50
caracterizam-se pela montagem (ou, no mínimo reforço) de tendência ideológicas nacionalistas que vinham se plasmando em ressonância a processos políticos e sociais marcados pelo desenvolvimento econômico e pela criação de condições para uma possível revolução burguesa.5 Tinha-se como alvo a superação do subdesenvolvimento.
Nesse momento, segundo ele, estruturou-se um profundo
sistema ideológico, onde as idéias de "consciência
nacional", "aspirações nacionais", "cultura brasileira" e
"cultura nacional" constituíram a base das linhas de
pensamento de quase todos os diagnósticos sobre a realidade
do país.
Observa-se que nos meios intelectuais e artísticos o
"povo" era chamado a entrar em cena. O "povo" era tido como
um agente transformador e era na busca do seu passado que
se podia descobrir uma cultura popular genuína. Por isso,
intencionavam uma aproximação com esse agente social para
conscientizá-lo. Manifestações artísticas surgiam visando
alcançar esse objetivo. O CPC da UNE é um importante
exemplo dessa tentativa de aproximação dos intelectuais com
o "povo".
4 PEIXOTO, Fernando. Teatro em movimento. São Paulo: Hucitec, 1989. p. 11. 5 MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira: pontos de partida para uma revisão histórica. 3. ed. São Paulo: Ática, 1977. p. 154.
8
No livro O nacional e o popular na cultura brasileira:
teatro, José Arrabal expõe as principais idéias defendidas
pelo CPC da UNE. Ele destaca que o CPC tinha o desejo de
alcançar uma aproximação com a massa trabalhadora ("parte
do povo que tem pouca ou nenhuma consciência de seus
próprios interesses, que não se organizou ainda para
defendê-los, que não foi mobilizada ainda para tal fim"6) e
de organizar intelectuais e artistas em torno de uma arte
popular revolucionária ou organizada por estudantes em
torno da UNE.
A "arma" dessa luta é a arte. O teatro é a carabina, o obus, o tanque de guerra mais barulhento. Um teatro de idéias, martelando idéias, bate-estaca de idéias na cabeça do público.7
O autor menciona também como o cepecismo defendia a
necessidade de reformas, no universo da cultura, ou seja,
no mundo das idéias. E cita Ferreira Gullar para apresentar
o conceito de cultura popular, segundo a ideologia do CPC:
A cultura popular é, em suma, a tomada de consciência da realidade brasileira. (...) É compreender, em suma, que todos esses problemas só encontrarão solução se se realizarem profundas transformações na estrutura sócio-economica e, consequentemente, no sistema do poder. Cultura Popular é, portanto, antes de mais nada, consciência revolucionária.8 Portanto, "o CPC se dispunha a desenvolver a
consciência popular, considerada a base da libertação
nacional".9 Por isso, esses intelectuais precisavam buscar
inspiração para sua criação na própria realidade das
classes populares.
6 ARRABAL, José, LIMA, Mariângela Alves. O nacional e o popular na cultura brasileira: teatro. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 47. 7 Idem. p. 122. 8 GULLAR, Ferreira. Cultura posta em questão. p. 129. 9 NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). São Paulo: Contexto, 2001. p. 38.
9
Verificamos que a temática nacionalista não frutifica
apenas nos campos da intelectualidade de esquerda: os
militares também a utilizavam amplamente como uma forma de
legitimação do seu poder. Era, exatamente, o discurso
nacionalista militar que conseguia garantir uma relativa
coesão social necessária à manutenção da estrutura de poder
estabelecida após o Golpe de 64.
No governo Médici, a "linha dura tinha as rédeas nas
mãos".10 Buscou-se estabelecer uma política voltada para o
"desenvolvimento", mas com a manutenção de um estilo de
governo forte e extremamente centralizado. Médici decidiu
intervir até mesmo nas sucessões estaduais, escolhendo
"homens de confiança do sistema revolucionário" e
preferindo "apolítico, o técnico", dentro de uma linha
denominada "militarismo tecnocrata".
Médici não acreditava, como outros partidários da
linha dura, que o Brasil pudesse alcançar o desenvolvimento
econômico com um sistema político aberto. Num discurso
proferido na Escola Superior de Guerra (ESG), no Rio de
Janeiro, em março de 1970, o presidente expôs essa idéia
afirmando que as transformações sociais e econômicas
ocorridas no país no período de 1930 a 1964 não permitiram
a permanência do liberalismo como fonte de orientação
política. Esta doutrina seria incompatível com o
crescimento econômico, sendo o objetivo do seu governo
"manter o desenvolvimento, com segurança". Acrescentou
ainda que os "poderes excepcionais" que lhe haviam sido
conferidos pelo movimento político militar de 1964 seriam
mantidos em seu governo.11
10 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 214. 11 ABREU, Alzira Alves de, BELOCH, Israel, LAMARÃO, Sérgio Tadeu de Niemayer e WELTMAN, Fernando Lattman. Dicionário histórico-biográfico brasileiro (1930-1995). 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2001.
10
Nessa época verificava-se um acirramento das medidas
repressivas e, contraditoriamente, uma crescente
popularidade conquistada pelo governo. Os resultados
positivos alcançados pelo programa econômico patrocinado
pelo ministro da Fazenda, Delfim Neto, geravam um clima de
otimismo em relação ao futuro do país. Acreditava-se no
Brasil como um país do futuro, que iria avançar, alcançando
a categoria dos países desenvolvidos. Conforme afirma
Nadine Habert,
Durante os anos do milagre econômico, Médici procurou criar um clima de triunfalismo ufanista em torno da idéia de que o Brasil era um país próspero e tranqüilo, um país mágico que até o fim do século XX teria garantido o seu ingresso no mundo desenvolvido como Grande Potência.12 Foi através da propagação dessa crença que o governo
Médici conseguiu garantir um amplo apoio de diversos
setores da sociedade brasileira.
A AERP (Assessoria Especial de Relações Públicas da
Presidência da República), chefiada pelo coronel Otávio
Costa, desenvolvia uma intensa campanha de propaganda em
prol do governo, procurando capitalizar os êxitos obtidos
nos mais diversos setores para transmitir uma imagem
favorável do presidente e suas realizações. A vitória
obtida pela seleção brasileira de futebol (o tricampeonato
conquistado no México em junho de 1970), a música popular e
o progresso brasileiro seriam amplamente utilizados pelas
autoridades oficiais como propaganda favorável ao governo.
A AERP tinha como principal objetivo projetar uma imagem de
otimismo com relação ao Brasil, conforme o jargão utilizado
12 HABERT, Nadine. A década de 70: apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São Paulo: Ed. Ática, 1992. p. 19-20.
11
por seus profissionais: "Motivar a vontade coletiva para o
esforço nacional de desenvolvimento".13
Carlos Fico nos mostra que os militares acreditavam que
era necessário estimular a população, mobilizá-la para
participar da luta em prol do desenvolvimento do país. Os
militares desejavam despertar a "vontade coletiva" do povo,
através do fortalecimento de valores brasileiros. Eram os
valores brasileiros que iriam consolidar uma identidade
nacional capaz de infundir no povo a esperança (otimismo)
quanto aos destinos da pátria.14 Dessa forma, os militares
criavam uma atmosfera de aprovação com relação aos rumos
que estavam sendo tomados pelo Brasil, desviando a atenção
da população das atitudes arbitrárias e atrocidades do
regime.
A temática proposta pela peça Calabar: o elogio da
traição incitava o questionamento, o debate. Era um convite
à reflexão que deveria ultrapassar o próprio patamar
estabelecido pela história oficial. Esse tipo de proposta
poderia suscitar o inconformismo e, conseqüentemente, o
conflito. Era isso que os militares tanto temiam. Neste
trabalho, buscaremos analisar a censura sofrida por
Calabar, considerando o contexto geral acima delineado.
Para tanto, adotaremos uma estrutura de três capítulos:
No primeiro capitulo buscaremos descrever brevemente a
trajetória de Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra no
campo artístico e intelectual, notadamente em seus aspectos
políticos. No segundo, faremos uma análise especifica de
alguns trechos da peça Calabar destacando elementos que nos
permitam identificá-los como sendo característicos de um
discurso nacionalista de esquerda. No terceiro capítulo
13 FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. p. 94. 14 Idem. p. 130 e 143.
12
abordaremos a atuação da censura no Regime Militar e,
especificamente, à peça Calabar. Buscaremos descrever de
que forma a troca de informações entre os diversos setores
que compunham a comunidade de informações era importante
para a manutenção do discurso legitimador da ordem
estabelecida após o Golpe de 64.
Capítulo 1
A opção de Chico Buarque e Ruy de Guerra pela
realização de uma peça teatral com temática histórica
rendeu-lhes meses de pesquisa para a elaboração de um
roteiro. Pretendiam revisar o processo no qual Domingos
Fernandes Calabar foi julgado, condenado e enforcado por
traição à coroa portuguesa durante a segunda Invasão
Holandesa, em 1635. Mesmo sabendo que os musicais
brasileiros costumam ter vida curta, os autores empenharam-
se na montagem de Calabar, "uma peça musical com motivo
brasileiro".15 Trabalharam juntos e não mediram esforços
para a concretização de uma idéia que surgiu quando ainda
estavam traduzindo as letras das músicas de O homem de la
mancha, o musical americano de Dale Wasserman e Joe Dario.
Essa não era a primeira experiência de Chico Buarque
no teatro. Além de ter musicado o poema Morte e vida
severina, de João Cabral de Melo Neto, encenado pelo TUCA
(Teatro da Universidade Católica de São Paulo), no início
de 1965, Chico escreveu o polêmico roteiro da peça Roda
viva, em 1967, com montagem de José Celso Martinez Corrêa.
O sucesso de Roda viva foi fulminante, mesmo tendo recebido
protestos e constantes ameaças por parte de grupos de
extrema direita (como o CCC – Comando de Caça Comunista) ao
longo de sua temporada. Alguns consideravam o espetáculo
uma verdadeira afronta à sociedade e à família. Uma matéria
do jornal Folha da Tarde nos mostra claramente isso:
A polêmica em torno da peça Roda Viva, de Chico Buarque de Holanda, está ganhando proporções que poderá ter resultados desastrosos. Desde que Roda Viva foi apresentada no Rio, em fins
15 "Chico, ou o elogio da criação". Jornal do Brasil. 29 out. 1973.
14
do ano passado, falou-se muito de sua "obscenidade e libertinagem".16 No entanto, as ameaças não ficaram apenas na teoria.
Logo foram colocadas em prática. Na noite do dia 17 de
julho de 1968, o CCC invadiu o Teatro Galpão, em São Paulo,
onde estava sendo encenada Roda viva, destruindo cenários e
espancando atores. E, apesar da mobilização da classe
teatral exigindo a apuração do caso e medidas punitivas
contra os responsáveis, nenhuma atitude concreta foi tomada
por parte das autoridades policiais. Em Porto Alegre, a
temporada desse espetáculo se resumiu à estréia. No dia 3
de outubro a repressão cercou o hotel onde o grupo estava
hospedado e seqüestrou dois atores, que foram
posteriormente abandonados num matagal distante. A
apresentação do espetáculo acabou sendo proibida em
território nacional sob a alegação de que provocava
tumulto, assim ameaçando a segurança nacional.17
A descrição dos fatos e do clima inquietante gerado
por Roda viva explica, de certa forma, o motivo pelo qual
Chico Buarque passou da categoria de mocinho a vilão. De
"unanimidade nacional" o compositor de A banda começou a
ser visto como um elemento suspeito por parte dos órgãos de
segurança. A participação de Chico Buarque na Passeata dos
Cem Mil, em junho de 1968, só fez aumentar ainda mais a
desconfiança que se estabelecia com relação a sua mais nova
imagem. O próprio Chico Buarque afirma acreditar que a
implicância que os militares tinham com ele advinha da
Passeata dos Cem Mil e da encenação de Roda viva.18
16 FERNANDES, Rofran. Teatro Ruth Escobar: 20 anos de resistência. São Paulo: Global editora, 1985. p. 65. 17 Dionyso. Teatro Oficina. Ministério da Educação e Cultura. SEC – Serviço Nacional de Teatro. Janeiro de 1982. n. 26. p. 76. 18 ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. p. 100.
15
Depois desses dois eventos, foi chamado a depor várias
vezes devido à letra de algumas de suas canções. No dia 20
de dezembro de 1968 (sete dias após a decretação do AI-5)
chegou a ser detido no seu próprio apartamento, sendo
levado para interrogatório no DOPS e de lá mandado para o I
Exército.19 Na letra da música Acorda Amor, Chico Buarque
narra a história de um homem que tem o seu apartamento
invadido pela polícia. O compositor, provavelmente, estava
fazendo menção à situação acima descrita.
Chico Buarque compôs algumas músicas que evidenciavam
um interesse de analisar o contexto social brasileiro.
Através da melodia e da letra de suas canções, buscava
denunciar e criticar a realidade política e social do país.
Essa preocupação política começou a transparecer já na
gravação do seu terceiro LP, Chico Buarque de Holanda, no
qual se insere a gravação da música da peça Roda viva.
Antes disso, Chico Buarque investiu apenas na composição de
músicas despretensiosas e carregadas de lirismo.20
O lançamento de Chega de saudade (1959), de João
Gilberto, foi um fator determinante para influenciá-lo na
sua decisão de trilhar o caminho da música. Para ele, João
tocando e cantando foi uma revolução.21
Chico apenas ganhou notoriedade após o sucesso de A
banda, sendo chamado para realizar programas de rádio e
televisão. Começou a ser um formador de opinião pelo papel
de destaque que ocupava nos meios de comunicação. Por isso,
quando decidiu escrever canções que davam mais ênfase à
questão política, inevitavelmente passou a ser visto como
uma ameaça.
19 Idem. 20 MEDEIROS, Carolina Mary. Cálice: Chico Buarque de Hollanda e a censura à música popular brasileira (1966-1981). UFRJ-IFCS, 1999. p. 22. 21 ZAPPA, Regina. Op. cit. p. 45 e 49.
16
Em janeiro de 1968, Chico foi para a Itália. A viagem,
que era prevista com duração de no máximo um mês, estendeu-
se até março de 1970. O exílio foi inevitável, sugerido por
amigos, que diziam que a situação estava se complicando
para ele no Brasil. Numa carta levada por Nelsinho Motta,
Caetano Veloso dizia: "O tenente amigo mandou dizer para
você nem pensar em voltar".22
Quando voltou do exílio, começou a sentir mais
fortemente o peso da censura. Todas as letras de suas
músicas passaram a ser enviadas a Brasília para uma
avaliação prévia. Várias delas foram proibidas e outras
tiveram algum de seus trechos alterados. Nelson Motta
menciona que "suas músicas iam e voltavam da Censura,
cortadas, vetadas, proibidas: ou por subversão ou por
corrupção".23 Mas Chico Buarque "reagia ao sufoco e à
repressão explodindo de criatividade, utilizando a
linguagem como arma e arte, como truque e verdade ao mesmo
tempo".24 O uso de metáforas, do pseudônimo Julinho da
Adelaide, a regravação das músicas de autores antigos da
MPB, o assim chamado "resgate da memória musical
brasileira" ou "a invenção da tradição",25 bem como de
músicas de outros compositores contemporâneos já aprovadas
pela censura, para através delas dizer aquilo que se
pretendia, foram alguns dos instrumentos utilizados por
Chico para não se deixar asfixiar pelas pressões impostas
pelo governo.
Interessante notar que a própria decisão de não deixar
de gravar as músicas que tinham suas letras totalmente
22 Idem. p. 105. 23 MOTTA, Nelson. Noites tropicais: solos improvisos e memórias musicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. p. 268. 24 Idem. p. 268. 25 SILVA, Alberto da Silva. Sinal fechado. A música popular brasileira sob censura (1937-45/1969-78). Rio de Janeiro: Obra Aberta, 1994. p. 156-168.
17
censuradas, como foi o caso de Tanto mar, revela uma forma
de protesto por parte de Chico Buarque. Tanto mar teve a
sua gravação instrumental mantida no LP Chico Buarque e
Maria Bethânia (1975). Dessa forma, o compositor
evidenciava para seu público que aquela canção havia sido
censurada.26
Quando surge Calabar, Chico Buarque já não era apenas
um cantor que empolgava o público jovem que lotava os
festivais de música popular. Naquele momento, ele já era
bastante visado pelos órgãos da censura. A obra de Chico
Buarque era em sua essência um elemento de contestação a
toda aquela situação gerada pelo Golpe de 1964. Apregoava a
liberdade, a angústia de ser calado, o medo que batia à
porta daqueles que viviam num constante clima de terror.
Em Calabar, Chico Buarque lança o olhar sobre um fato
histórico do passado para produzir e estimular a reflexão
sobre os dilemas do presente. Pretende-se revisar o passado
e desmistificar o conceito de traidor. Fernando Peixoto
menciona essa pretensão dos autores da peça Calabar num
texto de sua autoria:
A parábola [apresentada na peça Calabar] parte da realidade para chegar ao espectador de forma nítida, num convite à reflexão sobre a transformação desta realidade. [...] Cabe ao espectador observar homens agindo, pesar suas ações e alternativas, ver o que fizeram, onde foram omissos ou responsáveis. O texto não encerra uma solução dogmática, nem o espetáculo pretende fechar as chaves de entendimento sobre os fatos. Cabe ao espectador, diante dos caminhos oferecidos à sua sensibilidade e inteligência, omitir-se ou escolher sua forma de pensar. O espectador diante do espetáculo é livre. O que importa é o diálogo palco-platéia. A realidade, a ser transformada, está fora do teatro. O palco não quer entregar ao público nenhuma verdade, nenhuma certeza. Ao contrário, quer provocar dúvidas, desconfiança e perplexidade.27 Chico Buarque, da mesma forma que Ruy Guerra,
enquadrava-se no campo artístico e intelectual de esquerda.
26 MEDEIROS, Carolina Mary. Op. cit. p. 58
18
Utilizando a arte como um instrumento político, buscavam
conscientizar o "povo" do verdadeiro papel que deveriam
ocupar dentro da sociedade. Marcelo Ridenti, em seu livro
Em busca do povo brasileiro, mostra como nos meios
artísticos e intelectuais se tornou central o problema da
identidade nacional e política do povo brasileiro a partir
dos anos 60 e início dos anos 70, e como certos artistas
defendiam a necessidade de uma aproximação com o povo para
transformá-lo em verdadeiro agente histórico. A peça
Calabar surge, exatamente, nesse contexto, e apresenta-se
como uma obra característica dessa forma de pensamento.
É importante destacar também o papel de Ruy Guerra na
elaboração desse espetáculo. Antes de Calabar, ele nunca
havia escrito uma peça teatral, embora tenha estudado arte
dramática com Charles Dullin nos seus tempos de Institut
des Hautes Études Cinematografiques (IDHEC) em Paris (1952-
1954). Numa matéria publicada pelo jornal O Globo, Ruy
Guerra menciona que o aspecto lúdico de Calabar foi o que
mais lhe agradou, uma não preocupação com o estilo teatral,
assim como a sua perspectiva histórica:
Sempre gostei de História do Brasil. Certa vez, fiz um filme sobre Tiradentes e passei semanas em Minas Gerais, pesquisando os locais onde ele viveu. No Calabar, o que mais me apaixona é o fato de que, vista hoje, sua época parece absurda; mas ela fez parte de uma realidade ainda importante para os brasileiros.28 Ruy Guerra nasceu em Lourenço Marques (Maputo), capital
de Moçambique (22/8/1931), mas resolveu se radicar no
Brasil a partir de 1958. Aderiu ao núcleo inicial do Cinema
Novo, colaborando, como montador, em Cinco vezes favela e
Esse mundo é meu, de Sérgio Ricardo (1963), e como ator em
Os mendigos, de Flávio Migliaccio (1962). Estreou como
27 PEIXOTO, Fernando. Programa da peça Calabar, 1980. Disponível na Biblioteca da Funarte no Rio de Janeiro. 28 "Calabar: A ressurreição de um desconhecido". O Globo. 1 nov. 1973.
19
diretor com o filme Os cafajestes (1963), provocando o
maior escândalo da fase de afirmação do Cinema Novo por
causa da cena de nu frontal de Norma Bengell e do
amoralismo do filme.
Os fuzis (1969) também foi um filme emblemático do
radicalismo político daquele momento, ao transpor para o
Nordeste uma parábola antimilitarista.29 Nesta obra Ruy
Guerra assume o desafio de integrar os seus personagens na
geografia humana do Nordeste. O cineasta não deixava de
explorar em seus filmes assuntos polêmicos, que buscavam
desvendar aspectos característicos da realidade política e
social brasileira.
Verifica-se que Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra
buscavam utilizar a arte como instrumento de reflexão e
conscientização do povo com relação ao papel que deveriam
exercer no processo de transformação da sociedade
brasileira. Era um pensamento característico do meio
intelectual e artístico de esquerda nos anos 60, e tanto
Chico Buarque como Ruy Guerra estavam inseridos naquele
contexto. Ambos, seja de forma direta (Cinema Novo – Ruy
Guerra) ou de forma indireta (metáforas e alegorias),
pretendiam através de diversas atividades artísticas
desvendar uma realidade que muitas vezes era ocultada pelo
discurso otimista dos militares.
Em Calabar, Chico Buarque e Ruy Guerra buscam incitar o
questionamento a partir da reflexão de um determinado fato
histórico, trazendo à tona a questão da traição. Eles
pretendiam buscar no passado respostas para os problemas do
presente. A abordagem de um tema polêmico já seria um fator
determinante para a proibição de uma peça teatral. No
entanto, não podemos ignorar que a própria imagem
29 RAMOS, Fernão, MIRANDA, Luiz Felipe (Orgs.). Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo.: Senac, 2000. p. 288.
20
construída pelos militares acerca dos autores de Calabar –
tendo como referência a trajetória por eles percorrida
dentro do campo artístico e intelectual – contribuiu para a
decisão final de proibição da peça. Logo no início do
parecer do Centro de Informações do Exército (CIE), o
censor faz a seguinte afirmação: "A peça teatral em
epígrafe é de autoria dos subversivos CHICO BUARQUE DE
HOLANDA e RUY GUERRA".30
30 Arquivo Nacional. Coordenação de Gestão de Documentos. Seção de Arquivos Intermediários. Fundo "Divisão de Segurança e Informações" do Ministério da Justiça. Série: 1 – Movimentos Contestatórios à Ordem Política e Social. Processo no 63332/73, 22 out. 1973. MC/P. Cx. 593-05133.
Capítulo 2
O texto da peça Calabar era realmente bastante ousado e
polêmico. Segundo os autores, a peça tinha como objetivo
principal discutir o problema da traição e o conceito de
traidor. Fernando Peixoto, o diretor dessa montagem
teatral, numa entrevista ao Diário de Notícias, declarava:
Quem for assistir nosso trabalho não verá mais uma peça dentro dessa onda cívico-nacionalista. Ela também não é discutida em termos de reabilitar ou condenar Calabar. Nossa peça utiliza a matéria como reflexão de um problema muito mais amplo, que é o problema da traição e o próprio conceito de traidor. Por isso não se trata de uma peça que apresenta uma simples reconstituição histórica. O passado é utilizado como reflexão do presente.31
Da mesma forma, Ruy Guerra, numa entrevista a revista Veja,
dizia:
Calabar é apenas um pretexto para se discutir o exercício de uma certa forma de liberdade e apresentar uma pessoa que vai ao fim dela mesmo. [...] Não uma reabilitação nem discussão em termos históricos. A discussão se estabelece em torno de vários acontecimentos. Mas sempre abordando a dificuldade de definir a traição principalmente numa época em que a nacionalidade era difícil de ser localizada, pois havia um Brasil português e um Brasil holândes.32
A "revisão histórica" proposta pelos autores da peça
trazia à tona uma discussão incômoda para a época sobre a
figura do traidor.
Importante mencionar que o contexto histórico de
Calabar é a invasão holandesa ao Brasil no ano de 1663.
Conforme afirmava uma matéria contida no jornal O Globo de
novembro de 1973:
Durante a peça não são discutidas as razões do personagem-título, mas os acontecimentos que influenciaram sua decisão e a
31 "Calabar, o traidor (ou será que não foi?)". Diário de Notícias. 7 mar. 1973. 32 "Calabar revisado". Veja. 25 jul. 1973.
22
dificuldade de se definir traição numa época em que o Brasil estava dividido em dois: português e o holandês.33
Calabar não chega a existir como personagem da peça. Na
verdade, a história é narrada e cantada pelos seguintes
personagens: Mathias de Albuquerque, Henrique Dias, Felipe
Camarão, Frei Manuel Salvador, Souto, Maurício de Nassau,
Bárbara e Ana de Amsterdam (que é o único elemento de
ficção entre as figuras históricas).
Verifica-se logo numa das primeiras cenas da peça a
identificação da figura do traidor com a do torturado.
Mathias, diante de um escrivão, dita uma carta que deverá
ser enviada a Calabar. Mathias menciona as vantagens que
ele poderá ter caso aceite a sua proposta de voltar aos
serviços do rei de Portugal. Ao concluir a frase, Mathias
encara outro personagem, que representaria um torturado. No
texto da peça existe o seguinte comentário entre
parênteses: "Encara o torturado como se dirigisse a Calabar
(sic)".34 O torturado seria o traidor. Ou seja, o traidor é
torturado. Nesse trecho os autores fazem uma referência
direta ao modo de pensar dos militares, tanto que o
ambiente dessa cena sugere um acampamento militar.
Noutro canto, dois soldados apertam o garrote sobre um prisioneiro louro, que solta um grito, lancinante. Soldados adormecidos; fuzis ensarilhados; tudo sugere um acampamento militar.35
Os militares consideravam "traidor" todos aqueles que
de alguma forma se opunham aos ideais da "Revolução" de 64.
Esses mereciam a tortura e até mesmo a morte. Mathias,
personagem utilizado como analogia aos militares, defende a
preponderância das tropas portuguesas (identificação com o
governo) em oposição ao domínio holandês. Calabar opta por
33 "Calabar: A ressurreição de um desconhecido". O Globo. 1 nov. 1973. 34 BUARQUE, Chico, GUERRA, Ruy. Calabar: o elogio da traição. 3. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1975. p. 10. 35 Idem. p. 8.
23
abandonar a causa dos portugueses para lutar ao lado dos
holandeses. Ele trai Mathias, o governo. Por isso, é
considerado traidor. Em vários momentos da peça podemos
observar discussões sendo travadas entre os personagens
sobre esse problema da traição. Na verdade, quem devia ser
considerado traidor? Aquele que trai Portugal ou aquele que
trai a Holanda?
Destacamos um diálogo que aponta essa questão:
SOUTO Governador, talvez não seja o momento, mas fui eu que ... MATHIAS Já sei, você é o traidor. Parabéns, está nomeado alferes. SOUTO Obrigado, mas ... traidor? FREI Não, quem trai a Holanda não trai o papa. Traidor é quem trai Castela. MATHIAS Traidor é quem trai Portugal. FREI Sutilezas históricas, Excelência. CAMARÃO Traidor é quem trai Jesus Cristo DIAS Traidor é quem trai a pátria. SOUTO Traidor é Calabar.36
Souto infiltra-se no acampamento dos holandeses para
descobrir seus planos, entregando-os posteriormente a
Mathias (governador a serviço de Portugal). Dessa forma,
Souto trai a Holanda e o seu próprio amigo Calabar. Sem
dúvida nenhuma Souto é considerado traidor, mas uma
diferença fundamental entre a sua traição e a traição de
Calabar é estabelecida por Bárbara. Vejamos:
BÁRBARA Pobre Sebastião, você não sabe o que é trair. Você não passa de um delator. Um alcagüete. Sebastião, tira as botas. Põe os pés no chão. As mãos no chão, põe, Sebastião, e lambe a terra. O que é que você sente? Calabar sabia o gosto da terra e a terra de Calabar vai ter sempre o mesmo sabor. Quanto a você, você está
36 Idem. p. 41-42.
24
engolindo o estrume de passagem. Se você tivesse a dignidade de vomitar, aí sim, talvez eu lhe beijasse a boca. Calabar vomitou o que lhe enfiaram pela goela. Foi essa a sua traição. A terra e não as sobras do rei. A terra, e não a bandeira. Em vez da coroa, a terra.37 Calabar conhecia a sua terra e estava disposto a não se
render a ordens contrárias a sua própria ideologia. Ele se
arriscou a pensar diferente, mesmo respirando ameaças de
morte. A guerra de Calabar não era uma guerra sem sentido,
como a de Souto, não visava satisfazer apenas interesses
pessoais.38 Ela tinha um propósito específico: o
estabelecimento de um outro país, livre. Por isso, ele
continuava vivo, mesmo depois de morto, através da defesa e
da luta mantida por aqueles que defendem os mesmos ideais.
Através da personagem Bárbara, os autores buscam
mostrar como era arriscado defender idéias contrárias às
propostas governamentais no período ditatorial. Aqueles que
ousavam questionar, manifestar, protestar ou denunciar
podiam ser conduzidos à morte:
DIAS Que sigam o meu exemplo. Há sempre um lugar ao sol para quem não é preguiçoso.
BÁRBARA E um lugar na forca para quem não pensa do mesmo jeito.
DIAS Um lugar na forca para quem não sabe o seu lugar.39
CAMARÃO Acreditar no contrário também conduz à morte.
BÁRBARA E a maneira de morrer não conta?
CAMARÃO Não.
BÁRBARA Nem na forca?
Camarão encolhe os ombros BÁRBARA Nem por um ideal?
37 Idem. p. 96. 38 Idem. p. 113. 39 Idem. p. 62.
25
CAMARÃO Os ideais são sempre muito confusos. Eu prefiro morrer por uma idéia clara.
BÁRBARA Mesmo errada.
CAMARÃO Mesmo errada. Quero morrer ao meio-dia.40 Podemos também buscar no texto da peça a visão dos
autores com relação ao "povo". Esta era uma preocupação
característica do discurso nacionalista de esquerda. Dentro
dessa concepção, o povo precisava ser conscientizado do
papel fundamental que deveria exercer na transformação da
sociedade brasileira. Era necessário despertá-lo, mobilizá-
lo para agir em defesa de seus próprios interesses.
Intelectuais e artistas de esquerda acreditavam que fazia
parte das tarefas da "vanguarda do povo" (intelectuais
progressistas e revolucionários, parte do povo, "enérgicos
e vibrantes" da classe média41) educar e dirigir as massas
nesse sentido. Os integrantes do CPC/UNE eram um dos
principais propagadores dessa visão. Para eles, a arte
popular era um instrumento de luta para conduzir o homem à
reflexão, à consciência de si mesmo e da sua própria
realidade. Observe-se a seguinte fala de Bárbara:
BÁRBARA Certo, Certo. Não tem culpa arraia-miúda. Não tem culpa a arraia-miúda. Arraia-miúda não muda, Arraia-miúda está muda Carrancuda, tartamuda, Bochechuda, barriguda, Arraia-miúda só ajuda A traição graúda.42 Percebe-se aqui o "povo" inerte aos acontecimentos. Ele
está numa posição de passividade, não reage às pressões
40 Idem. p. 64. 41 ARRABAL, José, LIMA, Mariângela Alves. O nacional e o popular na cultura brasileira: teatro. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 120. 42 BUARQUE, Chico, GUERRA, Ruy. Op. cit. p. 49.
26
sofridas. Não está envolvido diretamente no jogo da
traição, mas contribui para a manutenção desta situação por
não manifestar a sua insatisfação. Embora muitos soubessem
das atrocidades que estavam sendo cometidas, preferiam se
omitir. Afinal, era perigoso se opor. Não queriam ao menos
saber o que estava acontecendo. Tinham medo de se envolver,
de serem perseguidos.
Podemos citar também um trecho da peça no qual Bárbara,
Souto, Dias e Camarão, diante dos preparativos para
execução de Calabar, tecem comentários sobre aquela
situação. Aqui os autores fazem alusão a algumas frases
utilizadas pelo "povo" para mostrar a sua omissão frente
aos fatos:
CAMARÃO Eu não disse nada DIAS Eu acabei de chegar. Não vi nada. SOUTO Eu não sei de nada, Bárbara. Cada vez menos, Bárbara. Bárbara parece não prestar atenção aos três guerreiros. DIAS A guerra tem todos os direitos ... Mas a verdade é que eu não vi nada do que se passou. CAMARÃO E daí que visse ... Os meus irmãos caem como moscas e ninguém diz nada. Por que é que eu iria dizer?43 SOUTO Confesso que já não sei mais nada. CAMARÃO E tem alguma coisa pra saber? SOUTO Também não sei. CAMARÃO Eu acho que não tem. DIAS Se tiver, não me interessa.44 CAMARÃO A gente não pode saber de tudo o que acontece. SOUTO Nem querendo. DIAS
43 Idem. p. 54. 44 Idem. p. 57.
27
Eu não quero. Quem sabe demais se dá mal. Eu sei o que é preciso. Sei o suficiente. BÁRBARA O suficiente para quê? DIAS Para não ser um traidor, por exemplo.45 SOUTO Achei tudo normal porque não sou louco. Só um louco é que faz perguntas que não se pode responder. Se tem um louco nesta história é ele [Calabar].46 Souto, Camarão e Dias afirmam não saber de nada. Não
queriam se comprometer. Não queriam entrar no rol dos
suspeitos. Preferiam se fazer de cegos, surdos e mudos para
fugir da perseguição. Por isso, esses três personagens são
comparados aos três macaquinhos de marfim.47 Essa é uma
analogia evidente ao posicionamento de uma grande parcela
da população brasileira com relação aos excessos cometidos
pelas autoridades militares na punição daqueles que eram
considerados traidores do regime.
Mas Bárbara não deixa de adverti-los, através da canção
Cuidado. Era necessário mostrar-lhes que a inércia somente
favoreceria a perpetuação daquela situação. O "povo" era,
novamente, chamado à luta:
Ninguém sabe de nada / Ninguém viu nada / Ninguém fez nada / Bichos de estimação, / Nesse jardim, / Cuidado, / Estão todos gordos / Sempre cem por cento cegos, / Cem por cento surdo-mudos / Cem por cento sem perceber / A agonia / Da luz / Do dia / Você, / Seu ventre inchado, / Ainda vai gerar / Um fruto errado / Um bonequinho, / Um macaquinho de marfim, / Castrado.
Chico Buarque e Ruy Guerra tentavam através da
personagem Bárbara disseminar a idéia de que o "povo" era o
agente da transformação social. Seguindo a linha cepecista,
o "povo" era chamado à luta. Dessa forma, podemos afirmar
45 Idem. p. 60. 46 Idem. p. 66. 47 Trecho da peça que faz essa comparação: "Rufo de tambor e morte de Calabar. Os três guerreiros se imobilizam, um ao lado do outro: Camarão, os olhos baixos, as costas da mão cobrindo a boca; Dias, uma das mãos cobrindo os olhos; Souto, a cabeça caída sobre o peito, as
28
que os autores da peça tinham a intenção de mostrar a
necessidade de envolvimento e participação do povo para
lutar contra e evitar a morte dos supostos "traidores" do
Brasil (do regime).
Interessante mencionar também que Bárbara continua a
declarar que Calabar estava vivo, mesmo quando ele já havia
sido enforcado. A questão trazida à tona por Chico Buarque
e Ruy Guerra era que os ideais permanecem vivos enquanto
existem pessoas dispostas à propagá-los. Bárbara afirma:
Anna, para Calabar morrer é preciso que também me matem. Porque eu o amo. Para Calabar morrer, é preciso que também me esquartejem. Porque eu o amo demais... E se me matarem, e se me esquartejarem aos pedaços por aí, eu morro... Mas mesmo assim Calabar é capaz de continuar vivo.48 Ela estava disposta a lutar, como Calabar, para
vislumbrar um pais diferente. Segundo Bárbara, Calabar é
cobra-de-vidro e não morre assim facilmente. Ela declara:
Um dia este país vai ser independente. Dos holandeses, dos espanhóis, portugueses... Um dia todos os países poderão ser independentes, seja lá do que for. Mas isso requer muito traidor. Muito Calabar. E não basta enforcar, retalhar, picar... Calabar não morre. Calabar é cobra-de-vidro. E o povo jura que cobra de vidro é uma espécie de lagarto que quando se corta em dois, três, mil pedaços, facilmente se refaz.49 Sem dúvida, o personagem Bárbara seria a representação
daqueles que se mostravam insatisfeitos e incomodados com a
realidade política e social do país, que sonhavam com um
país independente, democrático, livre dos arbítrios
cometidos pelas autoridades. Podiam ser torturados,
esquartejados e até mortos, mas não queriam deixar de lutar
pelo estabelecimento de uma nova sociedade. Como Bárbara,
pretendiam falar mesmo quando lhes pediam para calar.
duas mãos escondendo os ouvidos. O conjunto sugere a imagem dos três macaquinhos de marfim." BUARQUE, Chico, GUERRA, Ruy. Op. cit. p. 69. 48 Idem. p. 72. 49 Idem. p. 133.
29
Desejam contagiar as demais pessoas, mostrando o potencial
que poderiam ter se estivessem unidas. Nesse sentido, era
preciso trair (o governo) para ser fiel à pátria. Assim,
Bárbara conclui a peça com a seguinte observação:
Em lugar de epílogo, quero vos oferecer uma sentença: odeio o ouvinte de memória fiel demais. Por isso, sede sãos, aplaudi, vivei, bebei, traí, ó celebérrimos iniciados no mistérios da traição.50 Não é de surpreender o receio da censura quanto à
liberação de Calabar quando fazemos uma análise mais
detalhada do seu texto. A discussão do conceito de traição
e de traidor era considerada uma ameaça para os militares.
Essa proposta poderia gerar questionamentos e críticas ao
regime. Além disso, é importante mencionar que alguns
trechos da peça poderiam também ser considerados
atentatórios à moral e aos bons costumes. Por exemplo:
Anna, no meio da orgia, cantando a canção Anna de
Amsterdam, anuncia:
Eu dormi com um protestante. E um católico depois. Mas a mim ninguém garante. Qual é o melhor dos dois. As Sagradas Escrituras. Não souberam me explicar. Como a dúvida perdura. Continuo a rebolar.51 O discurso militar contrapunha-se obviamente às
manifestações artísticas e culturais de esquerda. Os
militares acreditavam ter como missão zelar pela Segurança
Nacional, impedindo a ação dos inimigos da nação (os
comunistas, os desordeiros, os corruptos etc.). Eles
deveriam garantir a "marcha triunfante" do Brasil rumo ao
desenvolvimento econômico. Qualquer discurso ou atitude de
contestação às medidas que estavam sendo tomadas pelo
governo poderiam incitar protestos e a desordem tão temida.
Nesse sentido, a peça Calabar não era bem-vinda naquele
50 Idem. p. 136.
30
momento. Era uma ameaça que precisava ser aniquilada,
evitando a perpetuação de uma mensagem tão perigosa,
"subversiva". Isso se dava apenas porque apresentava uma
reflexão crítica sobre um determinado fato histórico e uma
visão diferente acerca das atitudes que poderiam ser
tomadas frente ao poder.
51 Idem. p. 16-17.
Capítulo 3
No dia 27 de novembro de 1973, o diretor geral do DPF
(Departamento de Polícia Federal), Antônio Bandeira, enviou
carta ao ministro da Justiça, Alfredo Buzaid,52 solicitando
avaliação do livro Calabar: o elogio da traição, de Chico
Buarque de Holanda e Ruy Guerra, que, segundo ele, tendo
sido editado com a finalidade de divulgar a peça teatral de
mesmo título, desenvolvia tema destinado a "deturpar a
verdade histórica".53 Foi encaminhado, juntamente com essa
carta, um longo parecer do Centro de Informações do
Exército (CIE), com data de 22 de outubro de 1973. Antônio
Bandeira objetivava a abertura de um processo que pudesse
garantir a proibição daquele livro, que ele considerava
subversivo.
A censura de diversões públicas não foi estabelecida
após o Golpe de 64 ou, especificamente, com a decretação do
AI-5. Ela já era praticada pelas autoridades
governamentais, de maneira explícita e com base na lei,
desde muito tempo.54 No período imperial, era o
Conservatório Dramático Brasileiro que realizava a censura
das peças teatrais, buscando fundamentar suas ações na
moral e religiosidade propagada pela Igreja. Esse órgão era
composto por intelectuais destacados na cena cultural,
tendo a polícia também poderes delegados pelo Código
Criminal do Império para tal prática 55.
Com a proclamação da república, mudanças ocorreram na
estrutura censória até então existente no Brasil. Nas três
52 Alfredo Buzaid foi ministro da Justiça no governo Médici e ocupou esse cargo do dia 30/10/69 a 15/3/1974. 53 Arquivo Nacional. Documento já mencionado. 54 FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. Original inédito entilmente cedido pelo autor. 55 KHEDÉ, Sônia Salomão. Censores de pincenê e gravata: dois momentos da censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: CODECRI, 1981. p. 18-19
32
primeiras décadas do século XX, eram os delegados de
circunscrição, subordinados ao Serviço Policial do Distrito
Federal, que possuíam a responsabilidade de "inspecionar as
associações públicas de divertimento e recreio, os teatros
e espetáculos públicos de qualquer espécie, não só quanto à
ordem e moralidade, como também com relação a segurança dos
espectadores" p. 83.56 Após a Revolução de 30, a Diretoria
Geral de Publicidade, Comunicações e Transportes – agência
que compunha o Serviço Policial do Distrito Federal – é que
se responsabilizaria pela censura teatral.
A Censura Federal foi criada em 1934, subordinada à
Diretoria Geral de Publicidade, Comunicações e Transportes,
passando a desempenhar o trabalho de censura política e
moral dos textos teatrais, enquanto a Inspetoria Geral de
Policia (IGP) efetuava "a censura policial, repressiva e de
ação ostensiva",57 regulando a ordem pública.
Em 1939, através do Decreto-lei n. 1.915, de
27/12/1939, foram transferidas para o Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP) as atribuições concernentes à
censura teatral e de diversões públicas, então conferidas à
Policia Civil do Distrito Federal. Somente no final do
segundo governo Vargas o DIP extinguiu-se, sendo então
criado o Departamento Nacional de Informações (DNI).
Antes mesmo do DNI ser extinto (setembro de 1946) o
Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) foi criado
(dezembro de 1945), vinculado ao Departamento Federal de
Segurança Pública (DFSP).58 As funções exercidas pela
56 Decreto n. 3.610, de 14 de abril de 1900. Coleção de Leis do Brasil, 1900, vol. 1, p. 439-457. 57 Idem. p. 91. 58 Em março de 1944, a Polícia Civil do Distrito Federal foi reformulada, sendo transformada no Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP), vinculado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores (MJNI). O DFSP era composto pela Delegacia de Jogos e Diversões (DJD), a Polícia Especial e outras estâncias. Beatriz Kushnir menciona que as atividades do DJD não entravam em conflito com
33
divisão de cinema e teatro do DNI passaram a ser de
responsabilidade desse órgão. Suas atribuições foram
definidas com a edição do decreto n. 20.493/46.59
É interessante observar que os governos militares no
Brasil se preocupavam em reforçar o judiciário para dar
aparência e conteúdo legais ao arbítrio. O arcabouço
legislativo montado foi utilizado para legitimar as medidas
e decisões governamentais. Beatriz Kushnir aponta:
Certamente o mais difícil nesse regime ditatorial civil-militar foi conviver com a violação dos direitos civis e políticos "legalizados" por normas e decretos. (...) Atos como banimento, pena de morte, expulsão do país, censura prévia, são terríveis, mas eram legais.60 Além disso, qualquer meio de comunicação que
mencionasse a existência da censura no Brasil podia ser
censurado. O governo negava os atos de violência e os
desmandos cometidos, buscando construir uma auto-imagem
favorável, que lhe possibilitasse ganhar o apoio cada vez
maior dos vários grupos que compunham a sociedade
brasileira.
A censura de diversões públicas já estava em vigor no
Brasil desde o século XIX. O endurecimento do regime
militar (com o AI-5) apenas tornou a atividade censória
mais sistemática. "A censura era um dos esteios do regime
militar brasileiro",61 afirma Carlos Fico. Os militares
acreditavam que os meios de comunicação poderiam ser
as do DIP, quanto aos atos censórios, pois o DIP não se preocupava com a questão da ordem pública, ao contrário do DJD, que possuía esta preocupação e percebia a censura como sendo domínio da polícia. 59 Foi esse decreto que justificou a grande maioria dos pareceres dos censores até 1988. 60 KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História - Unicamp. Campinas, 2001. p. 122. 61 FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 166.
34
utilizados como um veículo de propagação da mensagem
comunista, como também de deturpação da imagem do governo.
A censura era acionada a partir da constatação, ou
simples suspeita, de que uma determinada obra literária,
peça teatral, filme, programa etc. podia ser uma ameaça ao
sistema estabelecido após o golpe de 64. Observar, vigiar e
proibir eram ações praticadas pelos órgãos de informação,
que possuíam uma preocupação constante com os assuntos que
estavam sendo veiculados através da mídia e das atividades
artísticas. Sendo assim, os órgãos de informação tornavam-
se fundamentais para a manutenção da estrutura de poder
constituída pelos militares.
Durante o governo Castelo Branco (1964-1968), logo no
início, o Serviço Nacional de Informações (SNI) foi criado
visando ao estabelecimento de um sistema de coleta de
informações que estivesse em conformidade com a "doutrina
de segurança nacional": "competia-lhe superintender e
coordenar as atividades de informações em todo o território
nacional".62 Era um órgão que produzia e mandava produzir
informações. No entanto, foi apenas com o acirramento das
atividades de oposição ao regime que foram encontradas
"boas justificativas para estruturar, de maneira rigorosa,
as atividades típicas de regimes ditatoriais, criando
organismos próprios e treinando pessoal especializado no
campo da censura da imprensa e das atividades artístico-
culturais".63
A partir de 1968, a necessidade de informações
ultrapassava as demandas existentes num período subseqüente
ao Golpe. Naquele momento não bastava apenas recolher dados
indispensáveis para a tomada de decisões presidenciais.
Mostrava-se também importante estabelecer uma interação com
62 Idem. p. 81. 63 Idem. p. 75.
35
a polícia política, ou seja, com o sistema de segurança que
defendia a concepção de "guerra revolucionária". Existiam
"inimigos" do regime que precisavam ser espionados e
eliminados. Eram considerados verdadeiros "inimigos de
guerra" e contra eles todas as armas deveriam ser
utilizadas. São esses pressupostos que ampararam o
surgimento do SISNI, que não era uma estrutura simplesmente
voltada para o recolhimento de informações,
era, antes de tudo, um sistema de espionagem e inculpação que partia do pressuposto de que ninguém estava totalmente imune ao comunismo, à subversão e a corrupção.64
O Sistema Nacional de Informações (SISNI) tinha como
função determinar a execução de atividades de informações,
normatizando, supervisionando e fiscalizando todos os
órgãos que compunham o sistema, buscando garantir a sua
eficácia.
O SNI era o órgão central do SISNI. Era composto por
uma Secretaria Administrativa, uma Inspetoria Geral de
Finanças, uma Agência Central e agências regionais. Era a
Agência Central do SNI (localizada em Brasília) que tinha
como função supervisionar os Sistemas Setoriais de
Informações dos Ministérios Civis, assim como sugerir e
executar as principais medidas de contra-informação (que se
caracterizavam pela tentativa de neutralizar as atividades
de informação dos opositores).
É importante mencionar que os sistemas específicos de
informação da Marinha, do Exército e da Aeronáutica
compunham os "Sistemas Setoriais de Informações dos
Ministérios Militares". Eles produziam o mesmo tipo de
informação existente nos ministérios civis, com exceção
daquelas relacionadas as operações militares que eram
64 Idem. p. 100.
36
tratadas exclusivamente pelos órgãos integrantes do
"Subsistema de Informações Estratégicas Militares"
(SUSIEM).65 Além disso, esses órgãos de informação também
realizavam operações de segurança, sendo assim
caracterizados como "órgãos mistos". Encontravam-se
subordinados aos ministros de cada Força, mas deveriam agir
coordenados pelos centros de operações de defesa
interna(CODI), que era subordinado ao general comandante do
Exército.66
Outros setores eram acionados quando se fazia
necessária a prática da censura da imprensa. O diretor-
geral do Departamento de Polícia Federal, orientado pelo
ministro da Justiça, era quem comandava essa atividade,
buscando atender os pedidos provenientes das diversas
instâncias governamentais.67 Por exemplo: uma autoridade
interessada na censura de um determinado veículo
encaminhava o pedido ao ministro da Justiça, que dava
instruções ao DPF. "Grande parte das proibições vinha do
próprio Ministério da Justiça. Mas o CIE [Centro de
Informações do Exército] também usou freqüentemente o
serviço".68 Quando o assunto era TV, cinema ou teatro,
existia um órgão específico para aplicação das medidas
censórias: a Divisão de Censura de Diversões Públicas
(DCDP). Mas isso não impediu que outros órgãos do governo
manifestassem suas preocupações e suas opiniões com relação
às atividades culturais e artísticas no país. No caso de
Calabar, o CIE foi o primeiro órgão que buscou emitir a sua
65 O SUSIEM era coordenado pelo ministro-chefe do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA) e integrado pela 2a Seção do EMFA, pela Subchefia de Informações do Estado-Maior da Armada (M-20), pela 2a Seção do Estado-Maior do Exército (2a/EME), pela Seção de Informações do Estado-Maior da Aeronáutica (2a/EMAer) e pelo Centro de Informações do Exterior do Ministério das Relações Exteriores (CIEx/MRE). Idem. p. 90. 66 Idem. p. 89-92. 67 Idem. p. 168.
37
opinião sobre a peça através de um parecer encaminhado ao
DPF.
No acervo da extinta DSI do Ministério da Justiça
tivemos acesso a uma pasta referente ao processo de censura
da peça que continha um ofício encaminhado pelo chefe do
DPF, Antônio Bandeira, para o ministro da Justiça, Alfredo
Buzaid, com um parecer em anexo do CIE; outro ofício feito
por um funcionário do Ministério da Justiça com uma análise
detalhada do texto da peça; uma cópia do texto da peça, que
foi encaminhado à DCDP com o pedido de liberação da peça,
com cortes da censura; cópia das fichas com a avaliação da
peça feita por três censores; e cópia de algumas matérias
de jornais sobre a peça e os seus autores. Desde o envio do
pedido de Chico Buarque ao diretor da Divisão de Censura de
Diversões Públicas solicitando a avaliação e liberação do
texto da peça Calabar, em 4 de abril de 1973, até a decisão
final com relação à sua proibição, em 15 de janeiro de
1974, inúmeras correspondências e pareceres circularam
entre diversos setores governamentais. Será através dessa
documentação que buscaremos compreender melhor a ação da
censura naquele momento.
Segundo o parecer do CIE, a peça teatral Calabar: o
elogio da traição estaria inserida no conjunto da
propaganda subversiva. Os militares acreditavam que esta
propaganda estava sendo desenvolvida de forma subliminar
nos diálogos, canções e conceitos emitidos. Através de uma
análise minuciosa do texto daquela peça, o censor buscou
destacar elementos que confirmassem a sua hipótese - de que
Calabar era um perigo eminente, um verdadeiro atentado à
"moral e aos bons costumes", uma ameaça a ordem vigente.
O censor apontava:
68 Idem. p. 169.
38
O tema-base que fundamenta a peça (...) é conduzido para uma área controvertida com propósitos políticos-ideológicos, dentro do contexto da propaganda subversiva.69 Na sua concepção, os autores estavam explorando o fato
histórico em questão com a finalidade de gerar polêmica
para atrair a opinião pública e, assim, serem bem sucedidos
na divulgação da mensagem subversiva.
Na avaliação do censor, a peça apresenta os vários
heróis de nossa história de forma desmoralizante.
Acreditava que os autores teriam a pretensão de
ridicularizar e chamar de traidores os "nossos heróis",
assim como "achincalhar o sentimento pátrio que se
manifestou vigorosamente entre os nossos combatentes".70
Aponta também o escárnio dos autores quanto às riquezas
existentes no pais, destacando o seguinte trecho da peça:
HOLÂNDES (contorcendo-se de cólicas) Aiaaiaai ... espera aí, espera aí, dá uma trégua (caga, olha o resultado na latrina). É a brasileira. Com um pouquinho mais de verde do que o habitual. MATHIAS São essas matas ... HOLÂNDES Esses céus ... MATHIAS Essa riquezas ... HOLÂNDES Que merda.71
Esse trecho da peça apresentava-se como uma afronta ao
discurso militar, tendo em vista que a idéia de um futuro
promissor para o Brasil, defendida por eles, estava
associada a exaltação das riquezas naturais do país. Carlos
Fico, em seu livro Reinventando o otimismo, menciona que os
militares acreditavam que a exuberância da natureza, o
tamanho continental e as riquezas minerais do Brasil eram
algumas características que o faziam singular e que o
69 Arquivo Nacional. Documento já mencionado 70 FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 22. 71 BUARQUE, Chico, GUERRA, Ruy. Op. cit. p. 34.
39
"futuro promissor" estaria reservado a um país como este.
Traçar uma comparação das matas, dos céus e das riquezas do
país com a diarréia de um dos personagens da peça era um
insulto e uma agressão à essa imagem.
Outro fator que sustentaria esse discurso de
singularidade era a identificação de certos "traços
especiais" da nossa história que, conforme uma série de
fábulas, teria sido incruenta e sem conflitos raciais. O
Brasil era um país venturoso, que poderia se vangloriar de
uma história ausente de profundos ódios, frustrações ou
discriminações. Observa-se que era através do discurso de
singularidade que os militares pretendiam reforçar e
incentivar a unidade do povo brasileiro em torno dos ideais
propostos pela Revolução de 64. Naquele momento, "o vigor
do discurso sobre o futuro é sustentado pela unidade de
idéia, pela identidade que propicia essa convicção quanto à
singularidade".72 Sendo assim, não se podia permitir a
veiculação de qualquer tipo de idéia contrária àquela
propagada pelos setores militares, tendo como alegação a
existência de uma ameaça a própria identidade nacional.
Na peça, Mathias de Albuquerque (governo português)
seria a representação do próprio governo, enquanto os
holandeses estariam identificados com os grupos comunistas
e seus ideais. Por isso, quando Calabar deixou as tropas
portuguesas para lutar em prol dos holandeses, ele estava
traindo o governo. Calabar não poderia deixar de ser
traidor. O censor declara: "A posição de Domingos Fernandes
Calabar não deixa qualquer dúvida. Sua traição jamais fora
contestada por ter sido consciente e efetiva(...)"73. Num
ofício endereçado ao ministro da Justiça, com data de 31 de
72 FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. p. 78. 73 Arquivo Nacional. Documento já mencionado.
40
janeiro de 1974, Antônio Bandeira74 defende a hipótese de
que os autores buscaram transfigurar a figura de Calabar em
herói e, conseqüentemente, propagar o ideal da "libertação"
a partir do estabelecimento de uma "nova sociedade".
Bandeira afirma:
O título da peça já constitui uma declaração de intenção: transfigurar um traidor em herói. Herói por afrontar o "poder constituído", na busca de uma "libertação" total, a partir da prévia negação de valores fundamentais da vida brasileira, com vistas à implantação de "nova sociedade", tal como subliminarmente flui ao longo da urdidura da peça".75 Nesse mesmo ofício existe uma outra argumentação
utilizada contra a peça Calabar: a identificação de um
paralelismo do personagem principal com a guerrilha
libertadora. Segundo o diretor-geral do DPF: A "libertação"
de tudo isso, a "redenção" está do outro lado. Daí a
exaltação de Calabar, que se passa para o "outro lado" o da
"nova sociedade". Por isso a atitude de Calabar é de
salvação e não de traição. Calabar é a "guerrilha
libertadora".76 Antônio Bandeira traçava uma comparação da
atitude de Calabar, que havia abandonado as tropas
portuguesas para lutar ao lado dos invasores holandeses,
com a dos homens que optavam por combater as propostas do
governo através de ações mais enérgicas, visando à
implantação de uma sociedade democrática.
Do parecer do CIE, que é enviado em anexo ao ofício de
Antônio Bandeira para o ministro da Justiça, em 27 de
novembro de 1973, consta um discurso semelhante àquele
descrito acima. O censor menciona que havia um interesse
pela substituição de Tiradentes por Calabar na propaganda
subversiva. Isso porque, assim como Tiradentes, Calabar
74 Beatriz Kushnir menciona o endurecimento nas visões censórias após o general Antônio Bandeira ser colocado à frente do DPF em 29 de maio de 1973. KUSHNIR, Beatriz. Op. cit. p. 202. 75 Arquivo Nacional. Documento já mencionado. 76 Idem.
41
havia sido torturado como uma espécie de "guerrilheiro",
que, ao tomar uma opção contra o poder constituído, foi
torturado e morto. Segundo o censor, este era um princípio
utilizado para o aliciamento e unidade das organizações, de
que "o traidor de hoje poderá ser o herói de amanhã".77
Dentro dessa perspectiva, Antônio Bandeira irá
declarar:
a peça se desenvolve numa lista de conotações que denunciam a intenção dos autores de, invertendo os fatos históricos, estabelecer um paralelismo com a situação atual. Desta maneira se subverte a História, ao mesmo tempo em que se busca eficácia na propaganda subversiva.78
Devemos considerar também que o simples fato dos
autores da peça desejarem propor uma discussão sobre a
temática da traição já era algo que gerava desconforto aos
setores militares. Para eles, "a dissensão, a discórdia, o
debate público eram sintomas de fragilidade, de tensão". Um
exemplo disso era a concepção que possuíam das eleições. As
eleições eram entendidas como momentos de ânimos acirrados,
que interrompiam o fluxo natural da tradição de consenso,
congraçamento e cordialidade do povo brasileiro.79 Por
isso, precisavam estar vigilantes, buscando impedir
qualquer manifestação que pudesse opor-se ao consenso ou
que, de alguma forma, pusesse em risco a segurança
nacional.
Zuleika Santos, Gilberto Pereira Campos e Maria Luiza
Barroso Cavalcante foram os censores responsáveis pela
avaliação do texto da peça Calabar e emitiram o seu parecer
em 16 de maio de 1973. Zuleika Santos e Gilberto Pereira
argumentaram que a mensagem da peça era imprecisa e que os
77 Idem. fl. 3. 78 Idem. fl. 7. 79 FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. p. 127.
42
autores abordavam um tema que poderia acirrar polêmica: a
participação de Calabar na briga entre portugueses e
holandeses. Zuleika chama a atenção também para o fato de
que "os responsáveis pela peça ora examinada, se situam
entre aqueles que optariam de bom grado pela colonização
holandesa em detrimento dos portugueses" e que os autores
"ainda, exploram a traição de Calabar, colocando ao nível
do debate, ao justificar a atitude do mameluco em abandonar
seus compatriotas (...)". No entanto, mesmo diante dessas
observações negativas, a peça foi liberada para maiores de
18 anos, com alguns cortes.
O diretor da Divisão de Censura de Diversões Públicas,
Rogério Nunes, informou, numa carta enviada ao
superintendente regional do DPF da Guanabara, em 21 de maio
de 1973, que o ensaio geral poderia ser marcado e que a
remessa dos relatórios dos técnicos designados para
assisti-lo deveria ser providenciada, sendo a validade do
certificado de liberação da peça sujeita ao resultado de
tal avaliação de acordo com o Artigo 11 e seu parágrafo
único da Lei 5.536, de 21 de novembro de 1968.
No entanto, no dia 30 de outubro de 1973, o mesmo
diretor Rogério Nunes enviou um comunicado à empresa
Fernando Torres Produções informando que a direção-geral do
Departamento de Polícia Federal havia solicitado o reexame
da peça e por esse motivo, a DCDP não poderia estabelecer
uma data para o ensaio geral do espetáculo, pois essa
medida ficaria na dependência da autoridade superior que
estava reexaminando a obra.
Essa decisão tomada pelo DCDP arruinou a produção da
peça Calabar. Não se conseguiria esperar tanto tempo pela
liberação do espetáculo e assim garantir a manutenção de
uma montagem tão grandiosa. Fernando Peixoto, no livro
Teatro em movimento, publica um artigo intitulado "Do
43
'caderno de notas' de Calabar (1a versão)" registrando suas
impressões sobre o episódio:
A carta praticamente proíbe o espetáculo. Caracteriza uma censura econômica. É datada de 30 de outubro. A censura política chega a ser exercida. A censura foi censurada, proibida de proibir"80. Segundo Sônia Salomão,
E será justamente a censura econômica uma das formas mais ativas de neutralização. É ela responsável pelo término dos grupos teatrais, assim como pela censura a livros, filmes, periódicos e programas. Basta o editor não publicar como bastava proibir um espetáculo no dia de sua estréia, com casa cheia para matar qualquer iniciativa posterior.81
Chico Buarque afirmaria numa entrevista: "Ele [o
espetáculo Calabar] não foi proibido, ele foi falido".82
Não havia sido estabelecido um prazo específico para a
divulgação de um resultado quanto à liberação ou proibição
da peça. Portanto, como se manter toda a estrutura exigida
para a sua apresentação por um tempo indeterminado?
Fernando Peixoto descreveu os dias subseqüentes àquela
decisão da DCDP mostrando que inúmeras vezes a vontade era
de desistir frente à pressão imposta pela censura. Ele
registrou no dia 7 de novembro de 1973: "Continuam os
ensaios e as ameaças (...) Em certos momentos, claro, a
vontade é de largar tudo. Mas é esta a nossa modesta frente
de resistência: continuar".83 O diretor de Calabar
mencionou ainda a ocorrência de dois ensaios de portas
abertas no Teatro João Caetano – um no dia 6 e outro no dia
10 de novembro – tendo platéia lotada.
Embora a proibição oficial da peça tenha sido divulgada
no Diário Oficial apenas no dia 15 de janeiro de 1974,
80 PEIXOTO, Fernando. Teatro em movimento. São Paulo: Hucitec, 1989. p. 192. 81 Idem. p. 112. 82 KHÉDE, Sônia Salomão. Op. cit. p. 180. 83 PEIXOTO, Fernando. Op. cit. p. 192.
44
Fernando Peixoto mostra que naquele dia a produção já
estava desfeita:
13.11.73 – Reunião com o elenco. Produção desfeita. (...) Vamos (ele e Chico) buscar livros. O elenco ainda no teatro. O livro está na mão de todos nós! A gente abandona o teatro. Alguns desaparecem. Outros vão para o bar Luís. Depois, para a casa de Chico. A gente ouve a fita do disco, canta junto. Estamos abatidos, mas não derrotados. Sinto no rosto de todos. Lembro imagens vagas desta "festa". Chico andando no parapeito do terraço, por exemplo ...84 Chico Buarque ainda tentou recorrer da decisão da
censura, impetrando um mandato de Segurança, com fundamento
na Constituição Federal, contra o diretor-geral do DPF. O
advogado José Aguiar Dias alegou que a proibição de
representar Calabar seria uma prática de abuso ou desvio de
poder e a lesão de um direito certo e incontestável do
impetrante, utilizando os seguintes argumentos de defesa:
A peça "Calabar" não fere a dignidade nacional. Ela apresenta, em revestimento dramático, um sombrio episódio de nossa história, mas a época tratada não é de modo algum selada pela sacralidade da história nacional, pela definitiva e peremptória razão que o Brasil, a esse tempo, não existia como nação (...)85 Israel Coppio Filho, diretor geral do Departamento de
Polícia Federal, enviou um ofício ao ministro José Neri da
Silveira, do Tribunal de Recursos, utilizando a tese de
alguns historiadores e sociólogos (como José Ferreira da
Costa, Roger Bastide e o próprio Sérgio Buarque de Holanda)
para contestar as declarações do advogado José Dias. O
coronel Israel defende que a hipótese de que o Brasil já
era uma nação no período abordado pela peça e que a atitude
de Calabar não poderia ser considerada uma simples opção
individual (livre arbítrio), mas uma traição. Para ele, o
texto analisado apresentava uma inversão de valores com o
enaltecimento da figura de um traidor.
84 Idem. p. 93. 85 Arquivo Nacional. Documento já mencionado. fl. 1.
45
No dia 17 de maio de 1974, o 4o subprocurador-geral da
República, Henrique Fonseca de Araújo, informou à Moacyr
Coelho, diretor-geral do Departamento de Polícia Federal,
que o pedido de mandato de segurança de Chico Buarque havia
sido denegado.
Não restava mais nada a fazer. A censura já havia
frustrado todos os esforços da produção de Calabar para
garantir a apresentação daquele espetáculo. O prejuízo foi
total, "o maior causado pela censura a uma produção
isolada", segundo afirma Yan Mishalki.86
86 MICHALSKI, Yan. O palco amordaçado: 15 anos de censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Coleção Depoimentos, 1979. p. 51.
Conclusão
Verificamos que a peça teatral Calabar: o elogio da
traição foi idealizada dentro de uma contexto de repressão.
O Golpe de 64 havia imposto à sociedade brasileira uma dura
realidade. Medidas arbitrárias haviam sido tomadas pelo
governo, buscando impedir que vozes contrárias ao discurso
nacionalista militar fossem ouvidas. A marcha triunfante do
Brasil rumo ao desenvolvimento nacional não poderia ser
interrompida. Era necessário se lutar pela manutenção da
ordem e garantir um apoio incondicional da população aos
rumos que estavam sendo traçados para o país. Sendo assim,
os opositores do Regime deveriam ser perseguidos e sempre
que possível eliminados.
Nessa luta contra os "inimigos" da nação, as
atividades artísticas e intelectuais foram especialmente
visadas. Temia-se a utilização dos meios de comunicação
como um veículo de propagação de mensagens subversivas,
assim como a influência que poderiam exercer sobre os
costumes. Acreditava-se que "os comunistas estariam
planejando fragilizar o arcabouço moral da sociedade
brasileira, através da propagação de visões críticas sobre
a família e o convívio, para, assim, facilitar a tomada do
poder".87 Por isso, inúmeras obras literárias, peças
teatrais, filmes, revistas, programas de televisão
tornaram-se vítimas da censura.
Nos anos 70, já havia se formado uma verdadeira rede de
informações entre os diversos órgãos integrantes do SISNI
(Sistema Nacional de Informações), visando a uma maior
eficácia no combate à subversão. No caso de Calabar,
observamos como essa troca de informações não apenas
87 FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001. p.182-183.
47
assegurou a proibição da peça, como também contribuiu para
a reafirmação do discurso legitimador da ordem propagado
pelos setores militares.
Através de Calabar, Chico Buarque de Hollanda e Ruy
Guerra colocaram em questão um determinado fato histórico,
trazendo à tona a discussão do conceito de traição.
Buscavam no passado respostas aos questionamentos do
presente. Desejavam utilizar a arte como um instrumento de
reflexão e conscientização do povo quanto ao papel que
deveriam exercer no processo de transformação da sociedade
brasileira.
Mas, como vimos, o elemento crítico era abominado pelos
militares, que o tinham como uma ameaça à própria
identidade nacional. Eles viam com extremo receio qualquer
iniciativa que buscasse levar a população ao questionamento
das atitudes, valores e práticas defendidas pelo regime. Os
ideais da "Revolução" precisavam ser reforçados e não
criticados. Por isso, conforme as próprias palavras de
Fernando Peixoto, Calabar "foi traído e abortado pela
repressão cultural".
Dessa forma, o projeto da peça Calabar apenas pode ser
retomado dentro de um novo contexto: o da "abertura
política". O projeto de "distensão política" proposto pelo
presidente Ernesto Geisel não impediu a atuação da censura,
mas tornou-a mais amena. No entanto, Calabar não poderia
ser mais a mesma. Agora, os tempos eram outros. Num
depoimento concedido nos anos 80, Fernando Peixoto88
declararia: "Meu espetáculo de agora está bem distante da
primeira versão: mudou o país, mudei eu, mudou o teatro
brasileiro, mudou a forma de discutir uma temática que,
88 Diretor da peça teatral Calabar também na segunda versão.
48
infelizmente, permanece atual e vigente: traição e
colonização".89
O golpe desferido contra Calabar foi o mesmo que
vitimou inúmeras outras peças teatrais, filmes etc.
Algumas, mesmo ressurgindo num momento posterior,
continuariam com o estigma dos tempos da repressão.
Conforme afirma Yan Michalski:
As obras mais significativas, entre as que foram e continuam proibidas, serão fatalmente representadas um dia; mas é muito possível que o seu impacto já não seja então nem de longe o mesmo que elas teriam produzido logo depois que foram escritas, pois o momento histórico e a concepção do teatro que lhes deram origem já estarão até certo ponto ultrapassados.90
89 Trecho retirado do texto "Depoimento sobre o espetáculo" de Fernando Peixoto (1980) existente no programa da segunda versão da peça. 90 MICHALSKI, Yan. Op. cit. p. 50.
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