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1 CALABAR – O ELOGIO DA TRAIÇÃO” ( CHICO BUARQUE E RUY GUERRA): Dimensões Estéticas e Políticas do Teatro Brasileiro na Década de 1970 Hélia Viana Rosa 1 Alcides Freire Ramos 2 RESUMO: Os anos 60/70 representaram, para a classe artística brasileira, um período marcado por tumultuados conflitos em nome da liberdade de expressão e contra o poder intolerante e arbitrário da ditadura militar, instaurada no país em 1964. O golpe e os acontecimentos sucessivos a ele obrigaram artistas e intelectuais a repensarem suas posições e a delimitarem o seu campo de ação em nome da sobrevivência de suas atividades. A peça Calabar – o elogio da traição (Chico Buarque e Ruy Guerra), objeto de nossa pesquisa, é apenas um entre os diversos trabalhos “castrados” pela censura. Os vinte anos de ditadura caracterizaram-se, na história do Brasil, não só como um período de insegurança, mas também de luta pela democracia. PALAVRAS-CHAVE: Teatro, golpe militar, intolerância, resistência, democracia. ABSTRACT: The 60’s and 70’s was, for the brazilian artistic category, a period marked by turbulent conflicts in name of expression’s liberty and against the intolerant power of militar’s despotism, established in the nation in 1964. Artists and intellectuals was forced by the military’s stroke and its successive happening, rethought their positions, limiting the action’s ground in name of their activitie’s survival. The play Calabar – the traition’s elogy (Chico Buarque and Ruy Guerra) object of our research, is only one, among several productions “gelded” by censure. The twenty years of despotism in Brazil’s history wasn’t only a period of insegurance, but it was a fight by democracy too. KEYWORDS: Theather, military stroke, intolerance, resistance, democracy. 1 Graduanda em História pela Universidade Federal de Uberlândia e integrante do NEHAC (Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura). Endereço: Rua Melo Viana, 514; Bairro Martins Uberlândia – MG Cep: 38400-376. E-mail: [email protected] 2 Professor Doutor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. Endereço: Rua Antúrios, 11 Bairro Cidade Jardim Uberlândia-MG Cep: 38400-000. E-mail: [email protected]

estudo sobre a peça calabar

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Page 1: estudo sobre a peça calabar

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“CALABAR – O ELOGIO DA TRAIÇÃO” ( CHICO BUARQUE E RUY GUERRA):

Dimensões Estéticas e Políticas do Teatro Brasileiro na Década de 1970

Hélia Viana Rosa1

Alcides Freire Ramos2

RESUMO: Os anos 60/70 representaram, para a classe artística brasileira, um período marcado por tumultuados conflitos em nome da liberdade de expressão e contra o poder intolerante e arbitrário da ditadura militar, instaurada no país em 1964. O golpe e os acontecimentos sucessivos a ele obrigaram artistas e intelectuais a repensarem suas posições e a delimitarem o seu campo de ação em nome da sobrevivência de suas atividades. A peça Calabar – o elogio da traição (Chico Buarque e Ruy Guerra), objeto de nossa pesquisa, é apenas um entre os diversos trabalhos “castrados” pela censura. Os vinte anos de ditadura caracterizaram-se, na história do Brasil, não só como um período de insegurança, mas também de luta pela democracia. PALAVRAS-CHAVE: Teatro, golpe militar, intolerância, resistência, democracia. ABSTRACT: The 60’s and 70’s was, for the brazilian artistic category, a period marked by turbulent conflicts in name of expression’s liberty and against the intolerant power of militar’s despotism, established in the nation in 1964. Artists and intellectuals was forced by the military’s stroke and its successive happening, rethought their positions, limiting the action’s ground in name of their activitie’s survival. The play Calabar – the traition’s elogy (Chico Buarque and Ruy Guerra) object of our research, is only one, among several productions “gelded” by censure. The twenty years of despotism in Brazil’s history wasn’t only a period of insegurance, but it was a fight by democracy too. KEYWORDS: Theather, military stroke, intolerance, resistance, democracy.

1 Graduanda em História pela Universidade Federal de Uberlândia e integrante do NEHAC (Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura). Endereço: Rua Melo Viana, 514; Bairro Martins Uberlândia – MG Cep: 38400-376. E-mail: [email protected] 2 Professor Doutor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. Endereço: Rua Antúrios, 11 Bairro Cidade Jardim Uberlândia-MG Cep: 38400-000. E-mail: [email protected]

Page 2: estudo sobre a peça calabar

2

Este trabalho objetiva apresentar

algumas reflexões sobre as atividades

artísticas no Brasil, especialmente sobre o

teatro, a partir do golpe militar instaurado

em 1964, analisando em que medida o

poder instituído atuou sobre a classe e

refletindo acerca da interferência da

censura nessa atividade.

Para isso, torna-se necessário

caracterizar o teatro pré-64, verificando

como este se manifestava socialmente no

momento em que foi efetuado o golpe.

O crítico teatral Yan MICHALSKI

(1985) desenvolve uma reflexão nesse

sentido. Segundo ele, até a década de 30,

assistia-se a um profundo “imobilismo” do

teatro nacional, pois este, longe de

promover-se como uma força atuante na

sociedade, tinha como objetivo primeiro

descontrair o público, restrito ainda a uma

pequena minoria da população: a elite

local. Assim permaneceria até 1943,

quando um estilo de teatro bem mais

estruturado dramaticamente substituiria a

tradicional narrativa existente até então. A

peça Vestido de noiva, de Nelson

Rodrigues, estreada em 28 de dezembro de

1943, foi considerada marco desse “novo”

e “moderno” teatro brasileiro.

A fundação do TBC - Teatro

Brasileiro de Comédia - em São Paulo, no

final da década de 40, imporia um novo

padrão de teatro a ser desenvolvido no

país, misturando um repertório clássico

com autores modernos, como Arthur

Miller e J.P. Sartre. Além da repercussão

positiva junto ao público, o novo estilo

ganhou também o apoio da imprensa

nacional, que passou a comentar e a

divulgar diariamente o que era levado aos

palcos.

Embora responsável pela

profissionalização do teatro, o TBC não

tinha por objetivo desenvolver um estilo

de dramaturgia que fosse voltado a uma

identificação com as causas nacionais.

Porém, a partir da década de 50, não foi

mais possível permanecer alheio à

realidade política, econômica e social do

país. A euforia do governo Juscelino

Page 3: estudo sobre a peça calabar

3

Kubitschek mobilizou inúmeros segmentos

da sociedade, e, desde então, o palco

passou a ser mais um espaço de discussões

sobre os seus problemas, as suas

manifestações e reivindicações.

O Teatro de Arena, fundado em

São Paulo em 1953, tinha como uma de

suas principais propostas alertar a

sociedade para um posicionamento político

frente às mazelas nacionais. O diretor José

Renato e o fundador Augusto Boal, recém

chegado da Europa, destacaram-se à frente

dessas discussões.

No início dos anos 60, diante do

“imobilismo” das esquerdas e das

transformações político-econômicas e

sociais vivenciadas, um estilo de teatro

mais atuante começou a manifestar-se.

Atores como Oduvaldo Viana Filho, Flávio

Migliaccio, Augusto Boal, dentre outros,

estiveram engajados nesses projetos. No

Rio de Janeiro, o CPC - Centro Popular de

Cultura da UNE utilizava o teatro como

arma na conscientização social. Porém, no

dia 1º de abril de 1964 o prédio da UNE

foi incendiado, destruindo o que seria o

futuro teatro do CPC. Este era o cenário

que se esboçava no momento de

instauração do golpe pelos militares.

Para além da cultura, o Brasil

estava mergulhado em um caos

econômico, político e social, que se aflorou

ainda mais no governo João Goulart

(1961-1964). Naquele período foram

intensas as manifestações de

descontentamento das esquerdas e de

outros setores da população que eram

contrários à sua política reformista,

prejudicada ainda mais pela instabilidade

econômica do país, com inflação e custo de

vida altíssimos. As pressões vinham, ao

mesmo tempo, tanto das forças internas

quanto das externas, revelando a

incapacidade do governo de conciliar os

interesses e contornar a situação.

Nos discursos proferidos pelos

militares era preciso conter a onda de crise

que tomou conta do Brasil. Em nome da

“segurança e soberania nacional”,

tomariam para si a responsabilidade de

Page 4: estudo sobre a peça calabar

4

restabelecer a ordem, argumentando que

seriam intolerantes a quaisquer

manifestações contrárias a esses objetivos.3

A política da ordem a qualquer

preço, posta em prática pós golpe militar,

visava silenciar não só as ações das

esquerdas oposicionistas ao regime como

também as atitudes consideradas rebeldes

e/ou “subversivas” de inúmeros

profissionais ligados à cultura, à imprensa

nacional e de intelectuais, que foram

obrigados a reavaliarem seus papéis tanto

sociais quanto profissionais e também, a

refletir sobre os caminhos a serem

trilhados a partir dali.

Maria Hermínia T. de ALMEIDA e

Luiz WEIS , ao analisarem o cotidiano de

oposição da classe média frente ao regime,

argumentam que este segmento teve

participação significativa no conjunto das

manifestações contrárias ao autoritarismo

3 É extensa a bibliografia que trata das condições sócio-econômicas e políticas do Brasil nas décadas que antecederam ao golpe de 1964. Os autores analisam as contradições advindas da era Vargas e que se acirraram nos governos de Juscelino Kubitschek e J. Goulart. As medidas adotadas no Plano de Metas resultaram num aumento considerável da dívida externa. Dentre estes

instaurado pós 64. Estudantes

politicamente ativos e professores

universitários estiveram intimamente

ligados ao movimento de resistência, e

desta forma, tornaram-se alvos constantes

da repressão. Destacam que “a própria

natureza do ofício das pessoas, e as

condições em que eram exercidas tendiam

a expor seus praticantes à tentação do

oposicionismo e a determinar o tipo de

oposição praticada. Em alguns casos,

trabalho e política praticamente

coabitavam: na advocacia, na produção

artística e cultural e no jornalismo”.

(ALMEIDA & WEIS, 1998:338) .

Desta forma, ser de oposição

incluía desde assinar manifestos, participar

de assembléias, até escrever artigos ou

músicas que, de um modo ou de outro,

estivessem relacionados à política daquele

momento, e isso significava enfrentar

riscos e/ou mudanças profundas, tanto no

aspecto profissional quanto no convívio

familiar.

autores, podemos citar HABERT (1994) e TOLEDO (1997).

Page 5: estudo sobre a peça calabar

5

Os autores avaliam, porém, que,

“passado o surto inicial de repressão às

lideranças civis e militares identificados

com o governo deposto e a feroz

perseguição aos sindicalistas urbanos e

rurais, os dois primeiros presidentes

militares concederam razoável liberdade

de movimento às oposições.” (ALMEIDA

& WEIS, 1998: 328).

Esse argumento foi reforçado

também por Chico Buarque, que declarou à

revista Caros Amigos: “entre 64 e 68 já

vivíamos sob a ditadura militar, mas a

censura em si não incomodava as artes. A

chamada música de protesto e o teatro de

resistência só floresceu entre 64 e 68. A

censura institucionalizada só passou a

existir a partir do final de 68 com o AI-5”.

Ao que acrescenta: “... até então havia

espaço para se produzir arte, e este

tornou-se supervalorizado devido à

carência de discussão política onde ela

deveria acontecer, ou seja, no Congresso,

nas universidades e nos sindicatos.”

(BUARQUE, 2000)

Esse teatro de resistência abordado

por Chico teve representatividade em

diversos espetáculos do Opinião. Em 1965,

Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes

e Flávio Rangel, tentou traduzir o

inconformismo da nação perante o arbítrio

e a repressão do regime, inaugurando um

estilo de espetáculo que viria a ser

chamado “teatro de resistência”.

(MICHALSKI, 1985:132-133).

Mas apesar do surgimento de

propostas cênicas variadas não havia ainda

uma clara tomada de posição, tanto em

termos estéticos ou políticos, diante da

situação do país. Em março daquele

mesmo ano, aconteceria a primeira

proibição total de um texto: O Vigário, de

Rolf Hochhuth. O ano seguinte

representaria a busca de novas tendências

estéticas, de uma linguagem cênica que

viesse substituir valores culturais e éticos

defendidos pelas gerações anteriores. O

predomínio da palavra era substituído por

uma linguagem gestual e corporal,

exigindo da platéia uma tomada de atitude

Page 6: estudo sobre a peça calabar

6

diante do que lhe era apresentado. Essas

características foram introduzidas, dentre

outros, por José Celso Martinez Correa,

Fernando Peixoto e Renato Borghi, que

traziam de suas viagens algumas

tendências européias. Apesar da censura,

vários trabalhos foram escritos e/ou

encenados, como Senhor Puntila e Seu

Criado Matti, de Brecht, dirigido por

Flávio Rangel e, Terror e Miséria no III

Reich, dirigido por Grisolli. Estes

espetáculos manifestavam a insatisfação e

a crítica através de analogias e de

metáforas.

A interferência cada vez mais

constante da censura não impediu que um

número significativo de trabalhos fossem

escritos e encenados durante todo o ano de

1966. Morte e Vida Severina destacou-se

com o prêmio principal no Festival de

Teatro de Nancy, uma consagração

internacional de expressão jamais

conquistada pelo teatro brasileiro.

A estréia de O Rei da Vela, de

Oswald Andrade, em 1967, consagraria

uma proposta estética e cultural que abriria

uma nova etapa do teatro brasileiro. Por

meio de tal peça, o autor propunha montar

um panorama crítico da realidade

brasileira. O Oficina considerou-o como

seu espetáculo – manifesto, argumentando

que era necessário desenvolver estilos que

retirassem a platéia da condição passiva

em que se encontrava. Roda Viva, de

Chico Buarque, levou adiante a proposta

desse “teatro agressivo”. Com Galileu

Galilei (1968), assistiu-se ao surgimento

de um modelo de teatro que desencadeava

rupturas com a tradição cênica no Brasil.

Aquele ano representou também,

segundo artistas, intelectuais e imprensa,

um dos momentos de enfrentamento mais

acirrado com o regime, e ainda, o período

de maiores perdas para as atividades

artísticas. A censura desencadeou uma

guerra aberta, especialmente contra o

teatro.

Em contrapartida, 1968 marcou o

início de um processo intenso de

manifestações formais, com cartas de

Page 7: estudo sobre a peça calabar

7

protesto ao General Orlando Geisel, chefe

do Estado Maior das Forças Armadas

contra a prisão do diretor Flávio Rangel,

além de greves e passeatas pelas quais os

artistas posicionavam-se contra o arbítrio e

pela volta da liberdade. Delas participaram

personalidades conhecidas como Cacilda

Becker, Glauce Rocha, Walmor Chagas,

dentre outros. O governo prometia maior

liberdade para o teatro, mas as proibições e

cortes intensificavam-se dia após dia. O

golpe decisivo seria a decretação do Ato

Institucional Número 5 ( AI-5 ) ao final de

68, com o fechamento do Congresso,

prisões, denúncias de torturas,

desaparecimentos e exílios dos presos.

Tânia PACHECO argumentou, ao

refletir sobre a trajetória do teatro

brasileiro que, “os grupos de teatro

chegaram em 1968 inteiramente

despreparados para enfrentar aquela

situação, pois o Teatro esteve pautado por

um ensino que pouco tinha a ver com a

realidade brasileira”. E ainda: “que a

falta de clareza, a falta de consciência e de

consistência ideológicas, as cisões e

divisões que impediram uma real

aglutinação de forças contra a ditadura

encontravam no teatro um campo onde

eram potencializadas pelas próprias

contradições, individualismos e

voluntarismos de uma profissão ao mesmo

tempo marginalizada e mitificada,

incensada e humilhada, à qual o Poder

recusava até reconhecimento legal”

(PACHECO,1979-1980: 82).

O desabafo da autora a respeito de

uma possível desarticulação da classe

artística deve-se ao fato de que, segundo

ela, a classe não se reconhecia como

“trabalhadores em teatro” e não assumiu a

sua função na sociedade, ou seja,

continuavam almejando por uma ascensão

à burguesia e, para isso, atuavam em

perfeita conformidade com os interesses

dos modelos colonizadores.

As avaliações e críticas acerca do

despreparo ou do imobilismo dos

segmentos de esquerda, de intelectuais e

artistas frente ao regime militar foram alvo

Page 8: estudo sobre a peça calabar

8

de reflexões e debates que se estenderiam

por décadas. Tais avaliações punham em

evidência a importância do agir

socialmente e o significado disso num

contexto de repressão. 4

Essa “atitude social” reivindicada

pela historiografia implicava tanto um

confronto direto, mediante o uso de armas,

quanto em mobilizações de resistência à

ditadura, e, nesse aspecto, não só a classe

artística esteve empenhada em continuar

atuando significativamente nos palcos,

como críticos da imprensa, que, mesmo

colocando em risco as posições que

ocupavam profissionalmente e, apesar das

ameaças pessoais, procuravam divulgar as

mobilizações da classe e as proibições das

peças, defendendo os direitos individuais e

coletivos e a liberdade de expressão

mediante o uso da arte.

A decretação do AI-5 e o

cerceamento das atividades instaurariam

4 Podemos destacar, nesse sentido, as reflexões de Heloísa B. de HOLLANDA e Marcos A. GONÇALVES em, Cultura e Participação nos anos 60. São Paulo: Ed.Brasiliense, 1995, 10ª edição, no qual analisam as tendências e manifestações sócio-culturais do momento.

uma crise profunda nas companhias

teatrais, o que faria diminuir

consideravelmente o ritmo dos

espetáculos, prolongando-se pelo ano de

69, com diversas peças proibidas. Essa

situação representou para o Oficina uma

desestruturação interna, com divergências

entre seus principais integrantes. Como

conseqüência, provocou a saída de Ítala

Nandi e o afastamento temporário de

Fernando Peixoto. Com o teatro de Arena,

a situação não era muito diferente. Em

1971, após a prisão de Augusto Boal e sua

partida para o exílio, foi anunciado o fim

de suas atividades. O rigor da censura e os

limites impostos à criação desestimulavam

aqueles que lutavam pela continuidade de

suas atividades. (MICHALSKI, 1985: 47-

48).

Naquele ano, apesar das

dificuldades enfrentadas, um trabalho

destacou-se junto ao público. Hoje é Dia

de Rock, de José Vicente, deu voz ao teatro

Ipanema, ganhando de vez o gosto dos

espectadores e permanecendo em cartaz

Page 9: estudo sobre a peça calabar

9

por mais de um ano. Porém, a

desestruturação econômica que tomou

conta do cenário teatral levaria o Oficina,

em 1974 e, após a prisão de seu líder José

Celso, ao encerramento definitivo suas

atividades.

Uma agradável surpresa esteve

reservada, no ano de 1973. Um Grito

Parado no Ar, de Gianfrancesco Guarnieri,

dirigido por Fernando Peixoto, conseguiu,

de forma inexplicável, driblar os censores,

transmitindo uma forte manifestação de

inconformismo e de rebeldia e tornando-se

um exemplo da resistência artística. As

mobilizações extrapolavam os limites dos

palcos e intensificavam a luta contra a

arbitrariedade do regime. Apesar disso,

aquele ano foi marcado também pela

proibição, dentre outros de, A Heróica

Pancada, de Carlos Queiroz Telles,

Amanhã, Amélia, de Manhã, de Leilah

Assumpção, mais tarde liberada com

inúmeros cortes, e o show República do

Peru, escrito por Chico Buarque para o

MPB-4.

Porém, o episódio de maior

repercussão, ainda em 1973, envolveu a

peça Calabar - O Elogio da Traição,

também escrita por Chico Buarque mas,

neste caso, em parceria com o cineasta

moçambicano Ruy Guerra.

As atenções estiveram voltadas

para o longo processo de interdição

enfrentado pela equipe de produção.

Marcada a data para a estréia e convocada

para o ensaio geral, a Censura informou

que não compareceria porque “o texto

havia sido avocado por instâncias

superiores para reexame”. (PACHECO,

1979-1980:96). A imprensa foi proibida de

noticiar o fato e de publicar, até mesmo, o

título da peça. Os longos meses de luta

pela liberação representaram um acúmulo

de dívidas que resultaram num grande

prejuízo para os produtores, Fernando

Torres e Fernanda Montenegro,

mergulhando-os numa crise econômica.

Os investimentos naquele projeto

haviam exigido uma intensa dedicação na

escolha dos atores, na trilha sonora, em

Page 10: estudo sobre a peça calabar

10

ensaios, enfim, na organização do

espetáculo. Após inúmeros testes foi

definido o elenco, composto por artistas

conhecidos, como Tetê Medina, Betty

Faria, Hélio Ari, Antônio Ganzarolli e

Lutero Luís, para os papéis principais, e

um grande número de pessoas, que

comporiam as personagens secundárias e a

chamada figuração. A trilha sonora ficou a

cargo de Danilo e Dori Caymmi, João

Palma, Maurício Mendonça e Tenório Jr.

Fernando Peixoto à frente da direção tinha

a assistência de Mário Masetti e Zdenek

Hampl. Os cenários, figurinos e

orquestração estiveram sob a

responsabilidade de Hélio Eichbauer, Rosa

Magalhães e Edu Lobo, respectivamente.

Os autores desenvolveram a trama

resgatando fatos e personagens históricos

do século XVII, quando Holanda e

Portugal lutavam entre si pela colonização

do Brasil, para refletirem sobre o presente

dos anos 70. Propunham uma reavaliação

crítica do processo histórico nacional em

seus diversos aspectos, e também,

objetivavam despertar o público para

reflexões acerca de conceitos como traição,

nacionalidade e pátria, presentes nos

discursos militares pós 1964 e que foram

cristalizados pela história oficial, conforme

declarações do próprio Ruy Guerra.

(AZEVEDO,1973:84 )

O mulato Domingos Fernandes

Calabar, personagem histórica em torno da

qual se desenvolve a ação dramática, é

tratado pela historiografia tradicional como

traidor da pátria por ter desertado em favor

dos holandeses durante a colonização do

Brasil. Nativo e grande conhecedor da

região em disputa, o nordeste, Calabar

esteve a frente da luta empreendida pelos

portugueses para “libertar” o país do

invasor holandês até reconhecer que a

opção escolhida não representava ganhos

para sua gente e para sua terra. Decidiu

então, passar para o outro lado, acreditando

que os holandeses pudessem trazer ao país

um governo mais humano e menos

opressivo do que o trazido por Portugal.

Sua atitude representou uma grande perda

Page 11: estudo sobre a peça calabar

11

e também um grande risco às ambições

portuguesas, por isso foi encarada como

um ato de traição. Calabar foi delatado por

um, até então, amigo seu, Sebastião do

Souto, que auxiliou pessoalmente a Coroa

na sua captura. Preso, foi enforcado e

esquartejado, a fim de servir de exemplo

àqueles que tencionassem desobedecer às

ordens vindas da metrópole.5

O ponto de partida na trama

desenvolvida por Chico e Ruy Guerra é um

aviso de advertência de Mathias de

Albuquerque a Calabar, nomeado major

pelos holandeses. Mathias reconhecia o

quanto dependiam da sabedoria e esperteza

do mulato para o empreendimento da

conquista. Por isso não se conformava com

a traição, mas prometia perdoá-lo se

voltasse a defender os interesses da Coroa.

O discurso abaixo deixa claro o seu

posicionamento frente à situação:

“Por que é que ele foi para lá?

Era um mulato bonito, pêlo ruivo, sarará.

5 Sobre as guerras entre Portugal e Holanda pela colonização do nordeste brasileiro consultar: BARLEU, 1974 e MOREAU & BARO, 1979.

Guerreiro como ele não sei mais se

haverá.

Onde punha o olho punha a bala.

Onde o mangue atola, o pé firmava.

Bom de briga, de mosquete e de pistola,

Lia nas estrelas e no vento.

Tendo a mata no peito e o peito atento,

Sabia dos caminhos escondidos,

Só sabidos dos bichos desta terra

De nome esquisito de falar.

Eu lhe dei minha confiança

Em matéria de navios e de guerra.

E ainda me pergunto,

Sem resposta pra me dar,

Por que é que ele foi para lá?

Era um mameluco, louco, pêlo brabo,

pixaim.

Pra que falar dos seus dois metros de alto,

De seus olhos claros de assustar,

Capitão aqui, major passou no salto.

Levou o seu saber para os flamengos.

E nem sei se cobrou o que era de cobrar.

Eu lhe ofereci perdão em engenhos e

patente

Se quisesse voltar.

Page 12: estudo sobre a peça calabar

12

E afoito o rebelde, em língua de serpente,

Mandou-me recusar,

Como um bicho esquisito destas terras

Que pensa dum jeito impossível de pensar.

Por que é que ele foi para lá?

(BUARQUE & GUERRA, 1973:10-11).

Outras personagens são

fundamentais no desenrolar da trama, além

de Mathias, que é comandante das quatro

capitanias de Pernambuco, Itamaracá,

Paraíba e Rio Grande. O negro Henrique

Dias e o índio Felipe Camarão auxiliam-no

na luta empreendida pela resistência

portuguesa. Bárbara e Anna de Amsterdam

eram, respectivamente, mulher e amante de

Calabar. Significativamente importante

para a trama é a contraditória personagem

Frei Manoel do Salvador, que serve ora a

um, ora a outro colonizador, e que mantém

acesa a discussão acerca do jogo de

interesses e da traição imputada apenas a

Calabar. A existência de tal personagem

desperta-nos para a reflexão e provoca

dúvidas sobre o que significava “ trair ”

naquele momento. Estas dúvidas estão

presentes, ainda, nas falas da personagem

Bárbara, que vive atormentada pelo que

aconteceu a seu marido. Ela tenta, a todo

custo entender o que seria trair para aquela

gente, pois percebe que todos os que estão

a sua volta, inclusive Souto, traem de

alguma forma e que, no entanto, apenas

Calabar foi julgado e condenado. Por isso

desabafa durante uma conversa com Souto:

“Pobre Sebastião, você não sabe o

que é trair. Você não passa de um delator.

Um alcaguete. Sebastião, tira as botas.

Põe os pés no chão. As mãos no chão, põe,

Sebastião, e lambe a terra. O que é que

você sente? Calabar sabia o gosto da terra

e a terra de Calabar vai ter sempre o

mesmo sabor. Quanto a você, você está

engolindo o estrume do rei de passagem.

Se você tivesse a dignidade de vomitar, aí

sim, talvez eu lhe beijasse a boca. Calabar

vomitou o que lhe enfiaram pela goela. Foi

essa a sua traição. A terra e não as sobras

do rei. A terra, e não a bandeira. Em vez

de coroa, a terra.” (BUARQUE &

GUERRA, 1973: 96).

Page 13: estudo sobre a peça calabar

13

Em Calabar as contradições

presentes nas atitudes das personagens

representavam as conflitos individuais

daqueles que travavam uma luta cotidiana

contra o medo e a insegurança no

enfrentamento com a ditadura militar.

De acordo com considerações do

diretor Fernando PEIXOTO, não se trata

de reabilitar a personagem histórica de

Calabar. O objetivo principal é a

desmistificação da figura do herói e a

relativização de conceitos cristalizados

pela história oficial. Segundo ele, a

reinterpretação dos fatos é imprescindível

para o tipo de análise proposta na peça.

Avalia que não seria possível determinar

que, no século XVII, a população tivesse

noção clara do que era patriotismo tal

como é definido nos tempos modernos, e,

“se o mulato foi considerado como

traidor, é porque suas ações foram

julgadas sob o ponto de vista do

colonizador”6. Considerando a hipótese da

6 A opinião de Peixoto acerca das atitudes de Calabar é reforçada por PINTO (1976: 73). O autor critica a historiografia tradicional, que só enxergou traição e puro egoísmo nas atitudes do mulato. Isso

colonização pela Holanda, ele certamente

seria apontado como herói.

As discussões suscitadas em

Calabar demonstram uma preocupação

significativa dos autores em relação aos

acontecimentos vivenciados pelo Brasil

pós golpe militar. Naquele momento,

muito se discutia a problemática da re-

colonização do Brasil pelos Estados

Unidos, que mantinha o país numa

condição de submissão política e

econômica, devido ao crescimento elevado

da dívida externa . Tal situação relegava as

necessidades da população a segundo

plano, e a política favorecia ainda mais os

interesses externos e das elites locais.

A leitura do país, implícita ( e às

vezes explícita) nos diálogos das

personagens presentes em Calabar, trazia a

tona toda uma trajetória de interesses

colonialistas, de pressões políticas e

econômicas sobre o Brasil, além de

não se sustenta porque, segundo ele, Calabar não tinha, naquele momento, noção do que era Pátria da forma como entendemos hoje, e decidiu apoiar os holandeses simplesmente por acreditar que apresentavam-se como melhor opção para o seu povo e para sua terra.

Page 14: estudo sobre a peça calabar

14

apontar para o que os autores

aprofundavam na reflexão dramatúrgica da

peça: a questão da traição e uma crítica

contundente à política econômica praticada

no país. Fernando PEIXOTO avaliou que,

“em Calabar, o passado é revisto com a

lucidez de quem vive o presente: com a

consciência de quem mergulha na História

em busca de uma compreensão do mundo

de hoje” (PEIXOTO, 1980:153). Neste

sentido, “é uma reflexão aberta, irônica e

provocativa, teatral e musical, grotesca e

crítica, existencial e materialista, sobre o

significado tornado relativo, portanto,

passível de interpretação, do problema e

do significado da traição.”(Ibidem: 153)

Ao longo da peça, é recorrente o

tema da traição. Calabar foi denunciado

como traidor, mas Sebastião do Souto

reconhece que traiu. A traição está

estampada na personagem do Frei Manoel

do Salvador. Até mesmo Mathias de

Albuquerque admite ter tido dúvidas

quanto a quem deveria obedecer, e também

se deveria condenar Calabar quando diz:

“Sim, padre, tenho sofrido esta

tentação. Ás vezes tenho hesitado em

deixar meu país à sua sorte, o que não é

sorte sua... Padre, às vezes, peco em

pensamento, e as palavras quase me

traem. E eu quase me surpreendo a

contestar as ordens que me chegam não

sei de onde ou em nome de quem...”. Ao

que acrescenta: “Oh, pecado infame, a

infame traição de colocar o amor à terra

em que nasci acima dos interesses do rei!”

(BUARQUE & GUERRA, 1973:50-51).

Considerando a hipótese de que

todos traíram, a outros ou a si mesmos, por

que somente um deles, Calabar, foi

condenado pela História? Afinal, quem ele

traiu? Portugal? Espanha? Brasil? E os

outros? Por que não foram condenados?

Para discutir questões tão

complexas, os autores lançaram mão de

um estilo de linguagem que tentava

dificultar a ação dos censores. A metáfora,

usada em diversas situações, servia como

arma para “provocar a dúvida” e como

escudo para criticar a ação “terrorista” do

Page 15: estudo sobre a peça calabar

15

regime. A ironia e o deboche presentes nos

discursos das personagens traduziam o

inconformismo da classe artística frente à

insensatez do regime. Um trecho cantado

por Anna de Amsterdam, juntamente com

a introdução do coro, traz evidências da

utilização desse recurso de linguagem:

“Vence na vida quem diz sim Vence na vida quem diz sim Se te dói o corpo, Diz que sim. Torcem mais um pouco, Diz que sim. Se te dão um soco, Diz que sim. Se te deixam louco, Diz que sim. Se te babam no cangote, Mordem o decote, Se te alisam com o chicote, Olha bem pra mim. Vence na vida quem diz sim, Vence na vida quem diz sim. Se te jogam na lama, Diz que sim. Pra que tanto drama, Diz que sim. Se te criam fama, Diz que sim. Se te chamam vagabunda, Montam na cacunda, Se te largam moribunda, Olha bem pra mim. Vence na vida quem diz sim. Vence na vida quem diz sim ( everybody) Se te cobrem de ouro, Diz que sim. Se te mandam embora, Diz que sim. Se te puxam o saco, Diz que sim. Se te xingam a raça,

Diz que sim. Se te incham a barriga De feto e lombriga, Nem por isso compra a briga, Olha bem pra mim. Vence na vida quem diz sim, Vence na vida quem diz sim.”

(BUARQUE & GUERRA, 1973:120)

Por outro lado, o texto desperta o

público para a esperança de um futuro

melhor. Um futuro onde o país estaria livre

dos interesses e das pressões externas, e o

povo poderia exercer a sua liberdade. Isso

só seria possível graças a existência de

muitas pessoas como Calabar, de muitos

“traidores” como ele, conforme argumenta

Bárbara nesta passagem do texto:

“Um dia este país há de ser

independente. Dos holandeses, dos

espanhóis, dos portugueses... Um dia todos

os países poderão ser independentes, seja

do que for. Mas isso requer muito traidor.

Muito Calabar. E não basta enforcar,

retalhar, picar... Calabar não morre.

Calabar é cobra-de-vidro. E o povo jura

que cobra-de-vidro é uma espécie de

lagarto que quando se corta em dois, três,

Page 16: estudo sobre a peça calabar

16

mil pedaços, facilmente se refaz.”

(BUARQUE & GUERRA, 1973:133).

Vistos como os próprios “traidores

da pátria”, os autores não conseguiram

passar pelo crivo dos censores. O

encerramento das atividades ligadas a

Calabar provocou um sentimento de

frustração que marcaria para sempre o

teatro nacional e a carreira profissional de

todos que, diretamente ou indiretamente

estiveram envolvidos no projeto. A

liberação para encenação da peça só seria

concedida na década de 80.

Além da peça ter sido vetada pelos

censores até mesmo os discos Chico Canta

Calabar, que já estavam liberados para

venda, foram recolhidos para mudança no

título impresso na capa. Nela, viu-se

apenas Chico Canta.

As dificuldades em levar para o

palco um projeto audacioso como aquele

não estiveram restritas apenas ao longo

processo de interdição da peça. Os autores

declararam que enfrentaram problemas

técnicos e também na resolução das cenas,

a iluminação e os figurinos não chegaram a

ser concluídos, além de dificuldades de

entrosamento entre os próprios atores e a

equipe de produção. Avaliaram que não só

o limite de recursos econômicos

interferiram no bom andamento do

trabalho, mas também o desgaste físico e

psicológico da equipe. Foram prejudicados

devido ao atropelo dos ensaios para

conclusão do espetáculo, que tinha data

marcada para estréia. Desta forma,

algumas cenas não puderam ser

trabalhadas da forma como gostariam e tal

como exigia o texto. A sensação de ter tido

o espetáculo abortado provocou-lhes um

enorme vazio. Um vazio pela não

comunicação com o público, porque não

houve público. Argumentaram que um

tempo maior, livre das pressões e das

dificuldades econômicas, e ainda, um

maior envolvimento dos atores e da equipe

de produção garantiriam resultados mais

satisfatórios.

Apesar das dificuldades vividas

pela classe artística com o projeto Calabar,

Page 17: estudo sobre a peça calabar

17

o teatro surpreenderia mais uma vez em

1975, com o sucesso de Gota D’água e

com o retorno do Concurso de dramaturgia

promovido pelo SNT. A peça Rasga

Coração, de Oduvaldo Vianna Filho

conquistou o primeiro prêmio. O concurso

havia sido suspenso em 1968, quando

Papa Highirte, também de Vianinha, havia

sido a grande vencedora. Mas tanto Rasga

Coração, quanto a segunda colocada A

Invasão dos Bárbaros, de Consuelo de

Castro, acabaram proibidas pela censura.

O ano de 1976, apesar da ação

permanente da censura, presenteou o

público com o grande sucesso de O último

Carro, dirigido por João das Neves,

trazendo de volta ao cenário artístico o

teatro Opinião. No ano seguinte assistiu-se

a um retrocesso nas atividades teatrais, de

modo geral, e apenas em 1978 os bons

tempos seriam revividos. Macunaíma, em

São Paulo, e dirigido por Antunes Filho,

alcançou grande simpatia junto ao público

e se tornaria, após sete anos, o grande

marco do período.

As dificuldades de produção não

era “privilégio” apenas no meio artístico.

O crítico teatral Yan MICHALSKI

considerou que foi pessoalmente

prejudicado por não poder divulgar

livremente os projetos e espetáculos da

época. Algumas peças enfrentaram tantos

cortes que se tornava praticamente

impossível realizar a sua montagem e até

mesmo fazer comentários a seu respeito.

Muitas vezes, nem mesmo a repercussão

positiva junto ao público, podia ser

divulgada. Isso representou, a seu ver, um

corte dramático e irreparável na história

cultural do Brasil. MICHALSKI

considerou que, “1968 foi o ano mais

trágico de toda a história do teatro

brasileiro, pois a censura assumiu o papel

de protagonista da cena nacional,

desencadeando uma guerra aberta contra

a criação teatral”. (MICHALSKI,

1985:30-31).

Além do longo período de

submissão e silêncio impostos aos artistas,

desarmando a capacidade de mobilização

Page 18: estudo sobre a peça calabar

18

da classe, a morte prematura de alguns de

seus líderes como Cacilda Becker, Glauce

Rocha, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo

Pontes, enfraqueceu o nível de

conscientização daqueles que estiveram na

luta contra o regime.

MICHALSKI avaliou que houve

um grande declínio na produção

dramatúrgica brasileira, intensificado

também pela captação de inúmeros artistas

ligados aos palcos, pela televisão,

especialmente pelas novelas. Destes

destacaram-se Nelson Rodrigues, Ariano

Suassuna, Dias Gomes, Jorge de Andrade,

dentre outros. Segundo ele “o milagre

cênico impedido de se realizar no seu

momento mais oportuno, não é

simplesmente adiado: é condenado à

morte”. ( MICHALSKI, 1979:50 ).

Além de Michalski, outros

estudiosos refletiram profundamente sobre

as lutas e os descaminhos das atividades

artísticas e das esquerdas no Brasil pós 64,

como é o caso de Adélia Bezerra de

MENEZES, que tomou como fio condutor

das discussões a vida e a obra de Chico

Buarque, que ela encara como “poesia de

resistência”, traçando um paralelo entre o

percurso poético do artista e a trajetória

política do país, a partir daquele ano. A

autora faz duras críticas ao que chamou de

“imobilismo”, tanto da esquerda quanto da

classe artística, em relação às dúvidas

quanto ao seu papel histórico no contexto

da ditadura.

No que diz respeito à obra

desenvolvida no campo musical pôr

Chico, nota um certo distanciamento

político do Autor até meados da década de

70. Porém, a partir de Apesar de Você

(1970), Deus lhe Pague (1971), Quando o

Carnaval Chegar (1972) e, de parceria

com Gilberto Gil, Cálice (1973), nota uma

“evolução” no processo criativo e crítico.

As canções de protesto traduziam as

dificuldades de produção nos quatro anos

mais terríveis em matéria de repressão e

censura. Chico se transformaria (até 1978)

em um dos artistas mais visados pela

censura, e confessou que houve épocas em

Page 19: estudo sobre a peça calabar

19

que sua criatividade esteve mais voltada

para driblá-la. Um dos recursos foi a

utilização do pseudônimo Julinho da

Adelaide, que ele não conseguiu manter

em segredo por muito tempo.

(WERNECK, 1989: 119-262)

Seria sobretudo nas peças de teatro

que o problema do nacionalismo ou do

Nacional - Popular se colocaria mais à

mostra, e Chico tornaria-se um dos grandes

ativadores da memória histórica nacional.

Assim, quando ele se volta, nas suas peças

para o passado, terá como objetivo

entender melhor o presente. Calabar

(1973), trata do problema do nacionalismo,

preocupa-se com a emergência de uma

identidade nacional em perspectiva

histórica. Desta forma, o que é Pátria? Ao

passar para o lado dos holandeses a

personagem estaria traindo a Pátria? Trata-

se de um dilema que envolve não só

Calabar, mas também Mathias de

Albuquerque, que tem dúvidas quanto a

quem deveria servir. A dúvida é

característica constante em diversos

discursos ao longo do texto. Um diálogo

entre Souto e Bárbara instiga esse tipo de

reflexão, quando ele diz:

“... queria que as coisas fossem

mais imediatas. Queria saber do certo e do

errado. Queria não ter dúvidas.”

(MENEZES, 1982: 177-178)

Ainda sobre Calabar, avalia que

“ali se projeta, inequivocamente o

problema das omissões do intelectual, dos

impasses do sujeito no agir histórico, dos

dilemas de sua atuação e do silêncio

imposto.” (Ibidem, 179) E, ainda, que a

luta armada na qual Calabar foi atuante

servia como analogia a um problema posto

à esquerda no momento do golpe: o de

optar ou não pelo enfrentamento com a

ditadura.

Esse tipo de dúvida Calabar não

tinha, e a personagem Bárbara, que o

apoiou oferecendo-lhe seu amor,

demonstra também não ter quando canta:

“Ele sabe dos caminhos Dessa minha terra No meu corpo se escondeu, Minhas matas percorreu, Os meus rios, Os meus braços,

Page 20: estudo sobre a peça calabar

20

Ele é meu guerreiro Nos colchões de terra. Nas bandeiras, bons lençóis, Nas trincheiras, quantos ais, aí... Cala a boca, Olha o fogo, Cala a boca, Olha a relva, Cala a boca, Bárbara. Cala a boca, Bárbara. Cala a boca, Bárbara. Cala a boca, Bárbara. Ele sabe dos segredos Que ninguém ensina: Onde eu guardo o meu prazer, Em que pântanos beber, As vazantes, As correntes. Nos colchões de ferro Ele é o meu parceiro, Nas companhias, nos currais, Nas entranhas, quantos ais, ai. Cala a boca, Olha a noite, Cala a boca, Olha o frio. Cala a boca, Bárbara. Cala a boca, Bárbara. Cala a boca, Bárbara. Cala a boca, Bárbara.”

( BUARQUE & GUERRA, 1973: 12).

Essa tomada de posição frente às

questões políticas do país, e também, o

papel das artes na sociedade, tal como é

reivindicada pelos autores na peça, foi

também defendida por Augusto Boal . Para

ele, o palco era a possibilidade de manter

viva a discussão acerca da problemática

entre o ser ou não ser político na atividade

teatral. A arma de que dispunham era a

representação, e o palco, o espaço

destinado às reflexões. As peças Arena

Conta Zumbi (censurada com cortes em

65) e Arena Conta Tiradentes refletiam

sobre os papéis das personagens históricas

Zumbi e Tiradentes e sobre as perspectivas

revolucionárias de ambos. Perspectivas tão

necessárias mas também, a seu ver,

ausentes no contexto da ditadura. (BOAL,

1977)

A “distensão” ou “abertura

política” no país, no ano de 1979,

representou o fim do AI-5 e a possibilidade

de volta da liberdade de expressão de

artistas, intelectuais, imprensa e outros

setores silenciados pela censura. Apesar

desta ainda existir, algumas garantias

foram dadas para a liberação de peças

como Papa Highirte e Rasga Coração.

Yan MICHASKI analisa que,

contrariando as expectativas de

desenvolvimento de um teatro mais

atuante, já que a década de 80 abria um

novo capítulo na trajetória do teatro

brasileiro e, pelo menos em teoria, oferecia

Page 21: estudo sobre a peça calabar

21

uma maior liberdade de atuação para a

classe artística, o que se viu foi a

intensificação de numa crise já esboçada

pelas companhias teatrais desde as décadas

anteriores. Uma significativa queda no

número de espetáculos revelou o

resfriamento na capacidade criativa dos

artistas. Além disso, apontou a carência

dos espetáculos, que não mais traduziam a

realidade do país, agora sob a “abertura

democrática”. Era necessário criar novos

estilos e linguagens dramáticas

compatíveis com o renovado e ampliado

público, pois este não suportava mais

assistir a espetáculos ligados a temas

políticos e aos traumas vividos pela nação

sob o contexto da ditadura. (MICHALSKI,

1979: 50)

O momento era, novamente, de

incerteza e de reavaliações. Era também de

expectativa. Expectativa diante de um

outro inimigo: o mercado da indústria

cultural, amplamente difundido e

financiado pela ditadura militar. Arma que

se mostrou eficaz no cerceamento das

manifestações populares e no

desmantelamento das tentativas de

organização das esquerdas pós golpe de

64.

Desta forma, o inimigo podia ser

outro, mas nada tinha de novo, pois o

desenvolvimento de um mercado cultural

no país fazia parte de uma longa trajetória

iniciada no século XIX e difundida em

meados da década de 30, com o governo

populista de Getúlio Vargas. Enquanto

esteve à frente do poder, ele fez dos meios

de comunicações, especialmente do rádio,

arma poderosa para mobilizar a população

em torno de sua proposta “populista” de

governo. Ao mesmo tempo, o rádio era um

dos meios através dos quais mantinha

controle sobre o que se dava no social.

Desta forma, analisar o desgaste

das atividades artísticas em plena década

de 80 significa fazer essa trajetória,

analisando em que medida o surgimento do

rádio e, posteriormente, da televisão,

contribuiria para que os planos dos

Page 22: estudo sobre a peça calabar

22

governos civis ou militares pudessem

limitar ou castrar as manifestações sociais.

As interferências, tanto políticas

quanto econômicas, em torno do

desenvolvimento de um mercado cultural,

mostraram-se cada vez mais ligadas ao

imediatismo do lucro e à superficialidade

do produto a ser oferecido. Tais reflexões

representam a possibilidade de análise

sobre a qual nos deteremos adiante,

utilizando-nos, especificamente, do ponto

de vista de Renato ORTIZ, do possível

“resfriamento cultural” presente na década

de 80.

Ortiz revelou, em uma de suas

obras (ORTIZ, 1989), as problemáticas em

torno da cultura na atual sociedade

brasileira e, consequentemente, em torno

da existência de uma “cultura de massa”.

Em suas reflexões alerta que, para

compreendermos o advento da indústria

cultural no Brasil, é necessário caracterizar

o século XIX, quando existiam dois tipos

de públicos: um, restrito à literatura e às

artes, e outro, de0 caráter comercial. O alto

índice de analfabetismo da população teria

sido um dos grandes responsáveis pela

restrição do número de leitores, e, como

conseqüência, para a incipiência do

mercado de livros, o que permaneceria até

a década de 1930.

A partir da década de 1950, o

cinema sofreria semelhante interferência.

Diante da impossibilidade de se fazer

cinema, grande número de pessoas voltou-

se para a televisão, desenvolvendo o

chamado teleteatro. ORTIZ analisa que “a

dramaturgia do palco se associa a uma

tecnologia de massa e, se por um lado

abre espaço para a criação que em outros

períodos será aproveitado por

determinados grupos culturais, por outro,

restringe a uma atuação que depende da

lógica comercial, e por fazer parte do

sistema empresarial tem dificuldade de

construir uma visão crítica em relação ao

tipo de cultura que produzem”. (Ibidem:

29)

O autor aborda não só o movimento

cultural pós 64, como também a atuação do

Page 23: estudo sobre a peça calabar

23

Estado no desenvolvimento dos meios de

comunicação, visando a integração

nacional. Por outro lado, destaca a ação

dos empresários, que objetivavam

primeiramente a integração do mercado.

Há uma profunda transformação na

esfera da comunicação a partir da

popularização dos aparelhos de televisão e

das telenovelas. Isso implicaria o

desaparecimento do velho estilo de teatro

feito na década de 50. A lógica do mercado

cultural desse sistema de telecomunicações

limitou a capacidade criativa do ator, agora

subordinado aos interesses da empresa.

A canalização pela televisão de

profissionais ligados ao teatro contribuiu,

em grande parte, de acordo com José

ARRABAL, para a “desmobilização” dos

trabalhadores do palco. Além da censura

política, a pressão econômica agia sobre as

companhias e seus componentes,

obrigando-os a buscarem a sobrevivência

em comerciais, novelas ou em séries feitas

para a televisão. A linguagem teatral já não

trazia os lucros almejados pelo

empresariado.

Tais mudanças interferiram na

forma crítica como esses profissionais

lidavam com a cultura, resultando também

num “acriticismo” da população acerca da

modernidade.

As implicações do mercado e da

censura foram expressas por Fernando

Peixoto ao demarcar os limites de criação e

de desenvolvimento de sua equipe no

projeto Calabar. O autor avalia que a

política ainda é essencial ao teatro.

Considera problemático desenvolver um

espetáculo profissional que não permite ao

encenador executar livremente a sua

criatividade. Argumenta que tal processo

leva a simplificações, à repetição de velhos

esquemas, que negligenciam num

aprofundamento maior de questões que o

próprio texto exige. A problemática de ter

que atuar dentro de um certo limite de

tempo “castra” a capacidade criativa do

encenador.

Page 24: estudo sobre a peça calabar

24

Peixoto lamenta também a

circunstância na qual Calabar foi

produzida. Questiona se não seria possível

dar a um espetáculo como aquele um

significado mais profundo como uma

reflexão sobre o momento histórico da

peça e sua relação dialética com o

momento histórico em que viviam.

São significativas as reflexões e o

posicionamento de Peixoto acerca de tais

questões, pois, quando a peça foi liberada

na década de 80 as perspectivas de debate

e o público eram outros, assim como o

contexto histórico do país. Diante da nova

realidade seria necessário fazer uma

releitura sobre o espetáculo a ser encenado.

As problemáticas postas por Ortiz e

Peixoto são instigantes à medida que nos

fazem refletir sobre a representavidade do

teatro na sociedade atual e os limites

impostos à criatividade artística durante as

últimas décadas.

Portanto, concordar que hoje é real

a despolitização da classe teatral nos meios

em que atua é considerar que os artifícios

utilizados pelo regime militar e pelas

empresas culturais foram eficazes e seus

danos irreparáveis. Significa desacreditar

em um processo de luta de inúmeros

profissionais que se dedicaram

exaustivamente na luta pela sobrevivência

de suas atividades, especialmente do

teatro, e que procuram, ainda hoje, um

espaço para atuarem.

É imprescindível que tenhamos

clareza de que, os problemas enfrentados

pela classe artística hoje, são outros, como

o momento histórico também o é. Faz-se

necessário acreditar que, em qualquer

circunstância, é possível atuar

politicamente, reivindicando direitos que

são de todos os profissionais. Tomando

emprestadas as palavras de Augusto Boal

de que, qualquer atitude, seja ela individual

ou coletiva diante de alguma situação, é

uma ação política, estaremos concordando

que através de pequenos gestos poderemos

dar um grande passo rumo aos objetivos

almejados. Conforme expressou Vianinha

é preciso “atuar nas brechas”.

Page 25: estudo sobre a peça calabar

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