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Os caminhos da memória em Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva
Caroline Peres Martins (UEM)
Weslei Roberto Candido (UEM)
Resumo: A presente comunicação tem por objetivo discutir como é construída a memória
familiar dos Paiva no livro Ainda estou aqui (2015), de Marcelo Rubens Paiva. O olhar
retrospectivo do narrador permite avaliar um dos episódios mais simbólicos da Ditadura
Militar: o sequestro e a morte do deputado cassado Rubens Paiva. A pesquisa se baseia em
autores como Aleida Assmann, Henri Bergson, Michel Pollak e, principalmente, Maurice
Halbwachs, visto que o autor discorre acerca do caráter coletivo da memória. A narrativa de
cunho memorialista de Paiva almeja preservar a memória de seu pai e ao mesmo tempo
desconstruir a versão da história oficial presentes nos livros didáticos que, desde a promulgação
da Lei da Anistia em 1979, buscou alternativas para encobrir as truculências do período
ditatorial no Brasil. Por meio de diversas tentativas de apagamento dessas memórias pessoais,
que possibilitariam retificar esses anos de repressão de direitos no país, a história oficial
silenciou muitas pessoas. Pretende-se, ainda, discorrer como o Mal de Alzheimer, que sofre
Eunice Paiva, mãe do narrador e autor do livro, pode ser vista como a metáfora do enorme
esquecimento coletivo que existe no Brasil quando o assunto é ditadura.
Palavras-chave: Memória; Coletividade; Esquecimento; Ditadura.
Abstract: The present communication has as its purpose discussing how it was builded the
Paiva`s family memory in the book Ainda estou aqui, from Marcelo Rubens Paiva. The
narrator`s retrospective look allows the avaliation of one the most symbolic episodes from the
Military Dictatorship: the kidnap and death of deputy Rubens Paiva. The research is based an
authors like Aleida Assman, Henri Bergson, Michel Pollak and specially, Maurice Halbwachs,
as the author discourse about the collective character of the memory. The Paiva`s narrative of
memorialist stamp seeks to preserve the memory of his father at the same time it desconstruct
the official history version present in the didatic books which, since the promulgation of the
Anisty Law in 1979, has been searching alternatives to cover-up the truculences of the Brazil`s
dictatorship period. By the means of several attempts of erasing these personal memories,
which could retify the years of civil right suppression in the coutry, the official history silenced
many people. It is still intended to discourse how the Alzheimer`s Disease, whom suffers
Eunice Paiva, the mother of the narrator and book`s author, can be seen as a metaphore of the
enourmous collective forgetfulness that exists in Brazil when the subject in dictatorship.
Keywords: Memory; Collective; Forgetfullness; Disctatorship.
Introdução
Os eventos traumáticos registrados durante a Segunda Grande Guerra, principalmente
o holoucasto, deixaram lembranças interditas, silenciadas e esquecidas. A partir de então, os
Estados Democráticos, assumiram a responsabilidade de lidar com as cicatrizes das graves
violações de direitos humanos em regimes totalitários.
Dessa forma, Mezarobba (2009), destaca que estes deveres de Estado seriam o dever de
justiça, ou seja, apontar e processar os responsáveis pelos crimes de repressão; o dever de
reparação simbólica, por exemplo, apresentar nos materiais pedagógicos uma perspectiva mais
analítica sobre os anos de chumbo, não se restringir a uma simples apresentação cronológica
dos fatos, mas sim, apropriar-se das memórias das vítimas, retratando o que de fato ocorria nos
porões de tortura. E o dever da verdade: revisar o passado da história oficial, por meio da
narrativa das vitimas, a partir de uma comissão da verdade, ao lado da abertura dos arquivos.
No Brasil, quase trinta anos após o final da ditadura, após anos de luta das famílias dos
desaparecidos político foi instituída a Comissão Nacional da Verdade, de modo concomitante
a abertura dos arquivos do DOPS, que apesar de não possuir a função de punir ou indiciar
criminalmente nenhum dos responsáveis pelas violações de direitos humanos, fez com que o
Estado assumisse oficialmente, pela primeira vez, os crimes cometidos pelos aparelhos
repressivos.
Nesse sentido, é importante destacar que no caso brasileiro, com a promulgação da Lei
da Anistia em 1979, o Estado oficializou o que pode ser denominado silêncio
institucionalizado, a fim de, supostamente, harmonizar a nação. Também é necessário ressaltar
que a anistia política não foi o único modo encontrado pelo governo para encobrir as
atrocidades cometidas pelos militares.
O relatório final dessa comissão impulsionou o escritor Marcelo Rubens Paiva a
retomar o desaparecimento de Rubens Paiva, seu pai, em Ainda estou aqui (2015). Neste livro
memorialístico, o narrador autodiegético discorre sobre a nova luta enfrentada pela mãe,
Eunice Paiva, a doença de Mal de Alzheimer, que pode ser entendida como uma metáfora
construída pelo narrador ao longo da narrativa, para ilustrar o esquecimento coletivo que há no
Brasil no que diz respeito ao regime militar.
A análise crítica feita por esse narrador sobre os fatos passados visa desconstruir o
discurso oficial da historiografia, que atendia aos desmandos do Estado, no que tange ao caso
Rubens Paiva, em que se afirmava desconhecer o paradeiro do ex-deputado, bem como garantir
que a figura de seu pai não seja esquecida. Nessa perspectiva, Ainda estou aqui (2015) é o
resgate de lembranças traumáticas que ainda não foram cicatrizadas pelo memorando, dado
que o autor-narrador-personagem não considera o desaparecimento do pai como um caso
encerrado.
Logo, a obra em questão, transforma-se em um instrumento que pode averiguar os
acontecimentos narrados por uma ótica que se contrapõe a versão oficial da história, ou seja, a
da memória, que age em processo de ressignificar o passado em um quadro social específico,
que compõe a memória coletiva de um momento, não muito distante, da história brasileira.
Revisão de literatura
Em História e Memória (1994), Jacques Le Goff conceitua a memória como
propriedade de preservar certas informações, que fazem menção a um conjunto de funções
psíquicas, que possibilitam ao sujeito renovar as impressões ou informações já vivenciadas.
Já o filósofo francês Henri Bergson, afirma que aquilo que chamamos de memória,
seria fruto de um processo de relações que acontecem entre a lembrança pura, a lembrança
imagem, assim como a percepção:
Distinguimos três termos, a lembrança pura, a lembrança – imagem e
percepção, dos quais nenhum se produz, na realidade, isoladamente. A
percepção não é jamais um simples contato do espírito com o objeto presente;
está inteiramente impregnada das lembranças-imagens que se completam,
interpretando-a. A lembrança- imagem, por sua vez, participa da “lembrança
pura” que ela começa a materializar e da percepção na qual tende a se
encarnar: considerada desse último ponto de vista, ela poderia ser definida
como uma percepção nascente. Enfim, a lembrança pura, certamente
independente de direito, não se manifesta normalmente a não ser na imagem
colorida e viva que a revela (BERGSON, 1999, p.155-156).
Ainda no âmbito da memória, conforme Douek (2003), Maurice Halbwachs foi quem
cunhou o termo memória coletiva em uma fase cuja memória era estudada somente sob uma
perspectiva individual. A memória, assim, deixa de ter somente dimensão individual, pois a
memória individual é um panorama sobre a memória coletiva:
para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que
estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha
deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de
contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar
venha a ser constituída sobre uma base comum. (HALBWACHS, 2013, p.
39).
Tendo em vista que a memória individual é pautada em uma memória coletiva, as
lembranças de um indivíduo não pertencem somente a ele e, por isso, não podem coexistir
isoladas de um quadro social, visto que não existe memória que não seja estruturada em
determinados grupos sociais. Isto é, a rememoração pessoal está enraizada nas redes em que
estamos ligados. Sobre esses aspectos da memória, afirma-se:
a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente
íntimo, próprio da pessoa [...] Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já
havia sublinhado que a memória deve ser entendida [...] devemos
lembrar também que na maioria das memórias existem marcos ou
pontos relativamente invariantes, imutáveis [...] Em certo sentido,
determinado número de elementos tornam-se realidade, passam afazer
parte da própria essência da pessoa, muito embora outros tantos
acontecimentos e fatos possam se modificarem função dos
interlocutores, ou em função do movimento da fala. Quais são,
portanto, os elementos constitutivos da memória, individual ou
coletiva? Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos
pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu
chamaria de "vividos por tabela", ou seja, acontecimentos vividos pelo
grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São
acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no
imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase
impossível que ela consiga saber se participou ou não (POLLAK, 1992,
p.14).
Portanto, a memória atua para reformular um passado vivido por certo grupo, mas em
uma perspectiva que se difere da visão da História, uma vez que ela não se debruça sobre os
sentimentos dos sujeitos que experimentaram determinado evento. A historiografia se preocupa
somente com os fatos ocorridos, enquanto “os quadros coletivos da memória não se resumem
em datas, nomes [...] representam correntes de pensamento e de experiências onde
reencontramos nosso passado [...] atravessado por tudo isso” (HALBWACHS, 1990, p.66).
Seligmann-Silva (2003), argumenta em favor da dicotomia existente entre História e Memória,
no entanto, um registro não deve anular o outro.
Esse mesmo autor também discorre acerca de um dado bastante agravante no caso das
ditaduras latino-americanas, a questão dos desaparecidos políticos. A figura do desaparecido
anula a possibilidade de luto, os traumas são tidos como superados, pois foram explanados pela
mídia, afastando o passado, a culpa, assim como a responsabilidade. Por essa razão,
apagamento, esquecimento e impunidade, conforme Seligmann-Silva (2003), possuem uma
relação bastante desigual, pois os responsáveis pelo emprego sistemático da tortura nas
engrenagens repressivas, nunca foram, efetivamente, punidos. Em contra partida, o Estado
arquitetou maneiras de impor o apagamento/esquecimento às memórias individuais e coletivas.
Mesmo que tardiamente e sem objetivar punir os transgressores de direitos humanos, a
Comissão Nacional da Verdade e a abertura dos arquivos do DOPS quebraram o silêncio
imposto sobre as memórias, de modo a revelar algumas informações acerca de desaparecidos.
Nesse cenário, Marcelo, além de obter novos dados acerca do desaparecimento do pai, também
registra, em certa medida, o sentimento compartilhado por todos os familiares de
desaparecidos:
Os familiares dos desaparecidos políticos viviam num limbo civil, além de
emocional [...] Não sabíamos nem a data em que deveríamos decretar como
o dia da morte. Repare que usei a expressão “desaparecido a partir de, e não
“morto em”. Meu pai foi preso no dia 20 de janeiro. Estava morto na noite do
dia 21 para o 22 de janeiro. Para nós, da família, a data da sua morte é 20 de
janeiro. Só recentemente soubemos que ele morreu entre 21 e 22 (PAIVA,
2015, p.194).
As considerações do sociólogo austríaco Michael Pollak (1989), também são
pertinentes para discutir o regime militar no Brasil, sendo que assim como a Segunda Guerra,
a Ditadura Militar também desautorizou todas as vozes contrárias ao regime. De acordo com o
autor, as lembranças de crimes e eventos traumáticos acabam se retraindo, em razão da
imposição do silêncio por parte do Estado e também pelas marcas deixadas pela própria
lembrança dos traumas.
Pollak (1989), também afirma que muitas vítimas sobreviventes, após serem libertadas,
buscam pessoas dispostas a serem suas “escutas”, para que possam relatar seus sofrimentos,
entretanto, os indivíduos logo se esgotavam de ouvir os horrores experimentados pelas vitimas.
Segundo o autor, a angústia acarretada pela falta dessa escuta, motiva as vítimas a
desenvolverem uma memória traumática e, assim, silenciarem e esquecerem suas lembranças.
Em Ainda estou aqui (2015), por alguma das razões expostas por Pollak (1989), Eunice
Paiva assume a seguinte postura, em relação a sua prisão nas dependências do DOI-Codi, no
RJ: “se esqueceu de muito, ou não quis falar, ou não quis relembrar” (PAIVA, 2015, p.142).
Assmann (2011), em Espaços da recordação, discute sobre os espaços de recordação e
defende a noção de que o afeto, o símbolo e o trauma são estabilizadores da recordação. Dentre
esses estabilizadores, enfatizamos o trauma, pois ele não é capaz de se incorporar na
estruturação identitária do sujeito, “é um corpo estranho que estoura as categorias da lógica
tradicional: ao mesmo tempo interna e externamente, presente e ausente” (ASSMANN, 2011,
p.277).
A autora afirma que, o trauma seria a impossibilidade de narrar. Quem vivencia o
trauma, pode ser incapaz de falar, pois as palavras incorporam o trauma nelas e, portanto, a
narrativa atua como um dos estabilizadores da memória. Seligmann-Silva (2008), defende a
ideia propagada por Aleida Assmann.
O memorando de Ainda estou aqui (2015), exprime as marcas da impossibilidade de
esquecer os horrores vividos por sua família. Isso faz com que haja uma invasão do passado no
presente, um confronto entre a urgência de narrar e ao mesmo tempo, a impossibilidade da
narração. Para Birman (2012), essas questões complexas são marcas da literatura de
testemunho.
O testemunho coloca-se desde o início sob o signo da sua simultânea
necessidade e impossibilidade. Testemunha-se um excesso de realidade e o
próprio testemunho enquanto narração testemunha uma falta: a cisão entre a
linguagem e o evento, a impossibilidade de recobrir o vivido (“o real”) com
o verbal. O dado inimaginável da experiência concentracionária desconstrói
o maquinário da linguagem (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 46-47).
Entre a necessidade e a impossibilidade de narrar, Marcelo faz o trabalho de recuperar
histórias em que [...] umas puxam as outras. As histórias vão e voltam com mais detalhes e
referencias. Faca uma releitura da minha vida familiar [...] (PAIVA, 2015,p. 35), devido a
possibilidade de revisar o passado de maneira crítica, a partir de uma necessidade presente,
depois da mudança dos atores sociais no plano de poder. Contudo, é importante destacar que
Assmann (2011), não defende a possibilidade de a memória ser ativada por uma necessidade
presente. Para a autora, a memória possui valor pelo que aconteceu no passado, a
supervalorização do presente sobre os atos de recordação pendem para a vulgarização da
memória ou faz com que ela viva somente em função de um tempo em que não está fixada.
A transição da ditadura para a democracia, no Brasil, aconteceu de forma lenta e
gradual. Para Ricoeur (2007), a anistia política instaurada pelo Estado maquinou uma espécie
de amnésia institucional, para impedir a rememoração dos acontecimentos que assinalaram o
regime militar, a fim de apagar os abusos cometidos pelas Forças Armadas, o passado se torna
proibido. No entanto, o autor acredita que, apesar disso, as tentativas traçadas pelo governo, ao
se impor o silêncio institucionalizado, não foram suficiente para provocar o seu total
esquecimento, assim,
O dever da memória é o dever de se fazer justiça, pela lembrança, a um outro
que não a si [...] é chegado o momento de recorrer a um conceito novo, o da
dívida, que é importante não confinar no de culpabilidade. A ideia de dívida
é inseparável da de lembrança. Somos devedores de parte do que somos aos
que não precederam. O dever de memória não se limita a guardar o vasto
material, escrito ou outro, dos quais diremos mais adiante que não são mais,
mas já foram (RICOUER, 2007, p.101).
Marcelo Rubens Paiva não se contenta com o tratamento dado pelo governo ao caso
Rubens Paiva, ele afirma: “O caso Rubens Paiva está longe de terminar” (PAIVA, 2015, p.
295), isto é, mesmo depois de duas décadas de luta dos familiares dos mortos e desaparecidos
políticos, os militares envolvidos em crimes como tortura e desaparecimentos, nunca foram
julgados, cabe ao memorando, em certa medida, fazer justiça por meio da memória ou ao menos
reivindicá-la.
Para isso, Marcelo retoma os eventos traumáticos de 71, para rebater a visão
historiográfica, sobre o desaparecimento do pai, por meio de memórias familiares, “[...] é no
quadro da família que a imagem se situa” (HALBWACHS, 2003, p.43), mesmo que a memória
se aproxime da ficção.
Nesse quadro familiar, também é possível perceber que a doença crônica que acomete
Eunice, pode ser entendida como uma metáfora criada pelo narrador, para ilustrar o
esquecimento coletivo da sociedade brasileira em relação às barbáries que marcaram o regime
militar, a tortura como peça principal da engrenagem repressiva, por exemplo, assim como
todos os outros abusos verificados nesse período. É importante enfatizar que os agentes de
repressão além de se beneficiarem com as imposições reforçadas pela anistia, nunca foram
julgados.
Portanto, a obra analisada se trata de um material bastante expressivo, em que se pode
observar um viés que se difere do apresentado pela versão oficial advinda da História, por ser
um livro de memórias, que atua de forma a (re) avaliar esse o passado, particularmente, o
desaparecimento de Rubens Paiva, que não pode ser esquecido pela sociedade brasileira.
Análise da obra
A partir da revisão bibliográfica de uma variedade de textos sobre memória, sobretudo
os que abordam a memória em sua perspectiva coletiva, visa-se analisar como o memorando
apresenta um ponto de vista diverso daquele expedido pelas Forças Armadas, confirmado pela
versão da história oficial, que atendia ao Estado e alegava que:
O paciente não se encontra preso por ordem nem à disposição de qualquer
organização militar deste Exército. Esclareço, outrossim, que, segundo
informações de que dispõe este Comando, o citado paciente quando era
conduzido por agentes de segurança, para ser inquirido sobre fatos que
denunciam atividades subversivas, teve seu veículo interceptado,
empreendendo fuga para local ignorado, o que está sendo objeto de apuração
por parte deste Exército (PAIVA, 2015, p.92).
Nesse sentindo, Marcelo não visa apenas garantir que a figura de seu pai não seja
esquecida, mas também almeja reivindicar justiça por meio de suas memórias familiares, pois
o caso Rubens Paiva ainda não foi sanado. Dessa forma, em Ainda estou aqui (2015), retoma-
se o desaparecimento do ex-deputado, dado que essas lembranças traumáticas não foram
cicatrizadas pelo memorando, assim como afirma Eunice Paiva:
a tática do desaparecimento político é a mais cruel de todas, pois a vítima
permanece viva no dia a dia. Mata-se a vítima e condena-se toda a família a
uma tortura psicológica eterna. Fazemos cara de fortes, dizemos que a vida
continua, mas não podemos deixar de conviver com esse sentimento de
injustiça (PAIVA, 2015, p. 98).
Por isso, Marcelo Rubens Paiva, torna-se uma espécie de porta-voz da família e
reavalia, de maneira crítica, os acontecimentos ocorridos desde 1971. Também se visa
analisar, a nova luta que Eunice Paiva precisa enfrentar: a doença de Mal de Alzheimer, que
pode ser assimilada como a enorme metáfora presente na narrativa, para expor o grande
esquecimento coletivo que existe no Brasil ao se abordar a ditadura. Nesse sentido,
[...] Ela apontou trêmula para a TV e começou a dizer,aflita, chamando a
nossa atenção e a atenção da própria memória [...] (PAIVA, 2015, p. 146).
A partir do trecho, pode-se perceber que o memorando no momento em que discorre
sobre a reação da mãe, acometida com a doença de Mal de Alzheimer, ao dizer “chamando a
nossa atenção e a atenção da própria memória”, também visa chamar a atenção de todos os
brasileiros, uma vez que a sociedade não se lembra desse turbulento período da história
recente, ao considerar que, conforme afirma Seligmann-Silva (2003), por terem sido
devidamente expostos na mídia, as discussões acerca dos desaparecidos políticos são tidas
como superadas.
Nesse cenário, é necessário destacar que há uma íntima ligação entre a memória
individual (desaparecimento do deputado Rubens Paiva) e a memória coletiva (ditadura
militar brasileira), porque o indivíduo isolado de um quadro social não é capaz de manter
nenhum tipo de registro sobre o passado. Logo, a lembrança é formulada como “uma
reconstrução do passado com a ajuda de dados tomados de empréstimo ao presente e
preparados por outras reconstruções feitas em épocas anteriores”, da qual “a imagem de
outrora já saiu bastante alterada” (HALBWACHS, 2003, p. 91).
Dessa forma, é possível afirmar que a memória também concerne à preservação do
passado, alicerçada em uma necessidade presente, em que torno possível revisitar o passado
criticamente, desde a alteração dos atores sociais no âmbito de poder. Todavia, Aleida
Assmann (2011), não corrobora com esta noção, conforme mencionamos, pois a autora
acredita que isso tende a banalizar a memória, que possui valor pelo que ocorreu no passado.
Tendo em vista a ideia de que a memória se aproxima da ficção e do testemunho
pessoal, há a possibilidade do memorando se circundar afetivamente aos eventos narrados,
por isso, Halbwachs (1990), traça uma distinção entre memória coletiva e história, visto que
a história não é entendida como um elemento relevante para o processo de conservação da
memória.
Assim, Ainda estou aqui (2015), assinala a impossibilidade de se esquecer dos horrores
deste período de supressão de direitos, em um momento que é possível ressignificar o passado,
ao mesmo tempo em que se estabelece um embate entre o anseio de narrar e a impossibilidade
de narrar os traumas ainda não cicatrizados, por meio de memórias coletivas e individuais,
intimamente vinculadas.
Considerações finais
Para fundamentarmos a análise proposta, pautamo-nos em autores que discutem a
questão da memória sob uma perspectiva coletiva, como Aleida Assmann, Henri Bergson,
Michel Pollak e, principalmente, Maurice Halbwachs, visto que o autor ilustra a
impossibilidade de conceber a complexidade da evocação, assim como da localização das
lembranças se não partirmos dos quadros socais, que atuam na reconstrução da memória
individual (a morte de Rubens Paiva) e a memória coletiva (regime militar). Dessa forma, foi
possível averiguar que a memória auxilia a rever o passado, depois das mudanças que
aconteceram nas esferas de poder no bojo da alteração dos atores sociais.
Após a publicação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade em 2014,
Marcelo Rubens Paiva, no embate entre o anseio de narrar e a impossibilidade da narração,
características da literatura de testemunho, é impulsionado a escrever, em um momento cujas
reflexões acerca desse sombrio momento da história voltaram ao centro de interesse social.
Por essa razão, o memorando faz reavaliações sobre o passado, criticamente, atuando como
porta-voz da família, para expor as cicatrizes que permaneceram, de modo a apresentar uma
versão que se distingue do discurso historiográfico sobre as circunstâncias de desaparecimento
de Rubens Paiva.
O memorando apresenta uma versão distinta da expedida pelas Forças Armadas, assim
como a da história oficial presente nos materiais de imprensa autorizada, para reavaliar os
acontecimentos passados. Ao ressignificar esse passado, atesta que Rubens Paiva não será
esquecido, ao mesmo tempo em que reivindica justiça por sua morte, haja vista que o caso
nunca foi julgado e, por isso, a luta familiar dos Paiva, por meio do discurso memorialístico
de Marcelo, não se cessa.
A partir da análise da obra, também é possível constatar que os apontamentos do
narrador sobre a doença progressiva de sua progenitora, Eunice Paiva, que vai apagando as
memórias, isto é, a doença de Mal de Alzheimer, também pode ser vista como uma metáfora
construída ao longo da narrativa, para desvelar o apagamento coletivo verificado na sociedade
brasileira.
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a doença de Eunice Paiva, que afeta as funções
cognitivas, principalmente a memória e que se agrava com o tempo, ilustra a grande amnésia
coletiva que abarca o país no que se refere à ditadura militar, desde as imposições de silêncio
e esquecimento das memórias, promovidas pelo Estado e reforçadas pela Anistia de 79.
Ainda estou aqui (2015), por trazer em seu cerne questões vinculadas ao passado
recente latino-americano, propriamente, o da história recente do Brasil, sob uma perspectiva
diferente da advinda do texto historiográfico, que se instaura a partir de um processo político
e manipulador, por meio de uma prosa vigorosa que procura lutar contra o esquecimento nas
lacunas de memória, mesmo que a memória tenda a se aproximar da ficção.
Nesse cenário, a obra se torna um importante mecanismo de consulta, que desvela as
contradições do regime militar, por meio de memórias familiares, para além de preservar a
imagem de Rubens Paiva e continuar reivindicando justiça por sua morte, também chama
atenção para um dado constatado em nosso país, o esquecimento coletivo da sociedade
brasileira em relação ao regime militar, de modo a tratar os traumas como superados e
distantes, mesmo que os responsáveis pelas atrocidades que assinalaram os anos de chumbo,
ainda permaneçam impunes.
Portanto, o livro memorialista de Paiva, demonstra como é preciso nos debruçar sobre
as literaturas pós-traumáticas produzidas por escritores brasileiros, para manter latentes as
memórias, que são resultantes da ação de diversos grupos sociais em suas histórias, conforme
afirma Halbwachs (2003), de um o passado mal resolvido na história recente de nosso país.
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