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CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES
CURSO DE DIREITO
OS CONTORNOS JURÍDICOS DA RESPONSABILIDADE AFETIVA
NA RELAÇÃO ENTRE PAIS E FILHOS: ALÉM DA OBRIGAÇÃO
LEGAL DE CARÁTER MATERIAL
Michele Raquel Kunrath
Lajeado, junho de 2009.
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MICHELE RAQUEL KUNRATH
OS CONTORNOS JURÍDICOS DA RESPONSABILIDADE AFETIVA
NA RELAÇÃO ENTRE PAIS E FILHOS: ALÉM DA OBRIGAÇÃO
LEGAL DE CARÁTER MATERIAL
Monografia apresentada ao Curso de Direito,
do Centro Universitário UNIVATES, para a
obtenção do título de Bacharel em Direito.
Orientadora: Profª. Ms. Bianca Corbellini
Bertani.
Lajeado, junho de 2009.
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AGRADECIMENTO
A exemplo de um filho, que necessita da presença e afeto paternos em seu
desenvolvimento, também precisei de verdadeiros “pais” e “mães” que me auxiliassem na
produção deste trabalho.
Antes de tudo, ao PAI sempre presente em minha vida, que guia todos os meus passos,
nosso Senhor Jesus Cristo. “Porque dEle, por Ele e para Ele são todas as coisas...” (Romanos
11:36).
A minha orientadora e professores, pelos ensinamentos e ajuda que sempre dedicaram
ao longo de minha formação.
A todos meus amigos, com os quais vivi momentos especiais e aprendi os valores da
amizade sincera e duradoura.
À minha família, pelo ininterrupto incentivo e apoio, em especial a meu marido.
A todos vocês, o meu “Muito Obrigado”.
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Pessoas habitadas são aquelas possuídas, de fato, por si mesmas, em diversas versões. Os habitados estão preenchidos de indagações, angústias, incertezas e transformam isso em
força e curiosidade. Não recuam diante de encruzilhadas, não se amedrontam com transgressões, não adotam as opiniões dos outros para facilitar o diálogo.
São pessoas que surpreendem com um gesto ou uma fala fora do script. Encantam pela verdade pessoal que defendem. Paz interior, parcerias leais, nossas músicas, fantasias,
desilusões e recomeços, tudo isso vale a pena ser incluído na nossa biografia. A felicidade exige paciência: é soma, acréscimo, conquista e aperfeiçoamento.
MARTHA MEDEIROS
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RESUMO
O presente estudo tem como cenário a família. É na família que se desencadeiam os principais e basilares acontecimentos na vida do ser humano, o desenvolvimento do caráter e personalidade de seus membros, precipuamente dos filhos menores. Assim, o amor dos pais configura-se de fundamental importância do amadurecimento e crescimento dos filhos, em todos os seus aspectos, do afetivo ao social. Neste contexto é que se destaca na seara jurídica nacional, a responsabilização civil dos pais, pelo abandono afetivo de sua prole. Este é o tema central da monografia realizada. Procurou-se abordar a evolução da família e do poder familiar ao longo do tempo, fazendo uma análise dos princípios norteadores do direito de família. Traçou-se a importância do convívio e afeto paternos no desenvolvimento dos filhos, relacionando-se à falta da presença efetiva do pai ou mãe e suas conseqüências para o filho, principalmente no aspecto psicológico, o que, segundo o entendimento de alguns, geraria o dever de indenizar. Fez-se uma análise de doutrinas e jurisprudências acerca do delicado assunto, trazendo posições divergentes, de forma a enriquecer o debate e levar à reflexão: o abandono afetivo deve propiciar a reparação civil? A questão é tormentosa e não pode ser respondida de súbito. Carece, antes, ser feita uma análise cuidadosa de todo o contexto, conjugada a elementos do ordenamento jurídico, jurisprudencial e doutrinário, para se vislumbrar uma resposta, nem sempre de consenso. Palavras – Chave: Relação entre paterno-filial. Afeto. Responsabilidade Civil. Descumprimento da autoridade parental. Abandono Moral e Afetivo. Reparação de Danos causados aos filhos.
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Art. Artigo
CC Código Civil
CFB/1988 Constituição Federal Brasileira de 1988
CF/1988 Constituição Brasileira de 1988
CPC Código de Processo Civil
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
FUNABEM Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
Nº Número
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
Op. cit. Obra citada
§ Parágrafo
STJ Superior Tribunal de Justiça
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
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SUMÁRIO
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS...........................................................................................08
2 A FAMÍLIA..........................................................................................................................13
2.1 Conceito de família e suas várias formas........................................................................13
2.1.1 Origem e evolução da família..........................................................................................16
2.1.2 A família contemporânea.................................................................................................23
2.1.3 Princípios norteadores do direito de família ...................................................................27
2.1.4 Funções atuais da família: adequação à realidade...........................................................39
2.2 A afetividade nas relações familiares..............................................................................41
2.2.1 Afetividade como paradigma jurídico da relação paterno-filial......................................42
2.2.2 A questão da repersonalização nas relações familiares...................................................43
3 A FUNÇÃO PARENTAL....................................................................................................47
3.1 Poder familiar......................................................................................................................48
3.2 O direito ao estado de filiação.............................................................................................54
3.3 A proteção à criança e ao adolescente na legislação brasileira...........................................59
3.4 A evolução do conceito de paternidade ............................................................................ 62
3.5 A paternidade no Código Civil e Estatuto da Criança de do Adolescente..........................65
4 O DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES DOS PAIS E A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL EM RAZÃO DA AUTORIDADE PARENTAL...................................................70
4.1 Abandono material dos filhos.............................................................................................71
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4.2 Abandono moral e afetivo dos filhos..................................................................................74
4.3 Considerações sobre a responsabilidade civil.....................................................................81
4.4 Responsabilidade civil dos pais por abandono moral e afetivo dos filhos..........................86
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................95
REFERÊNCIAS....................................................................................................................101
ANEXOS................................................................................................................................107
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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Não se olvida que o tema da responsabilidade civil é instigante, mais ainda se aplicado
ao Direito de Família, especificamente no descumprimento dos deveres inerentes à
paternidade, como o abandono afetivo, objeto do presente estudo. A expansão da
responsabilidade civil é tratada com acuidade na doutrina e jurisprudência nacional, tendo em
vista, entre outros, o receio de monetarizar as relações afetivas, como se analisará neste
estudo.
Os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais indicam as tendências em relação
ao tema. A matéria é polêmica, e muitos, ressaltam que o assunto em questão deve ser
analisado com cautela, para evitar uma equivocada responsabilização.
O presente trabalho tem por finalidade analisar a pretensão de se responsabilizar
civilmente o genitor por abandonar afetivamente sua prole, não cumprindo, por vontade
própria, com os deveres inerentes à função de pai.
O estudo dessa tendência no Direito de Família, o qual envolve discussões acerca da
possibilidade ou não de indenização em razão do abandono afetivo por um dos genitores,
advém da transformação jurídica e social do instituto, mais precisamente ao que se refere ao
poder familiar.
A transformação de poder dos pais sobre os filhos (pátrio poder) para conjunto de
deveres (poder familiar) elucidou a preocupação com os direitos inerentes a cada ser humano,
com a dignidade da pessoa humana e com a proteção integral da criança e do adolescente.
O exposto é refletido no preceituado pela Constituição Federal de 1988,
principalmente no artigo 1º, o qual eleva a dignidade da pessoa humana como fundamento
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basilar da República e da Democracia de tal forma que a violação a esse princípio implica em
ação do Estado frente aos seus agressores.
A Constituição Federal, ao consagrar o princípio da dignidade da pessoa humana
como fundamental, previu que a sua violação pode gerar danos morais passíveis de
indenização, conforme preceituado pelo artigo 5º, X da CF/88.
O fato de se perpetrar o princípio da dignidade da pessoa humana como direito da
personalidade passível de indenização por danos morais fez com que situações que antes não
eram relevantes para o direito passassem a ser questionadas. Isso ocorre, por exemplo, com a
indenização por dano moral na relação paterno-filial.
No presente trabalho de pesquisa será analisado o fundamento dessa tendência de se
considerar como dano indenizável aqueles provocados na relação paterno-filial decorrentes do
abandono afetivo, da falta de assistência moral ao filho pelos pais. O principal fundamento é a
violação a dignidade da pessoa humana e o descumprimento de deveres constitucionalmente
previstos nos artigos 227, caput e 229.
O descumprimento dos deveres inerentes à função de pai ou mãe, como a contínua
falta da presença paterna ou materna, falta de convivência, assistência material, moral e
psíquica, entre outros, geram na prole conseqüências que afetam o seu desenvolvimento
psicológico e moral sadio, de tal forma que a conduta omissiva do genitor ocasiona danos no
filho.
Os danos sofridos pelos filhos, decorrente da conduta omissiva do genitor, são
passíveis de responsabilização, pois os princípios da responsabilidade civil podem ser
perfeitamente aplicados no Direito de Família.
A problemática norteadora do presente trabalho concentra-se na nova tendência quanto
à possibilidade de se indenizar os filhos em função do abandono afetivo por um dos genitores.
Pretende-se, igualmente, analisar a relação paterno-filial, abordando a sua
transformação e as questões ligadas ao afeto, dignidade humana, igualdade na família e a
proteção integral da criança e do adolescente.
Uma vez escolhido o enfoque a ser dado ao presente trabalho através do objetivo
geral, foi necessário elencar objetivos específicos para auxiliar na execução da presente
pesquisa:
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a) Tecer considerações gerais sobre o instituto do Direito de Família, enfatizando a
afetividade como elemento fundamental nas relações familiares.
b) Debater os aspectos e peculiaridades da função parental, bem como a proteção aos
direitos da criança e adolescente na legislação brasileira.
c) Analisar a responsabilidade de os pais indenizarem os filhos por abandono moral e
afetivo, diante do descumprimento dos deveres da autoridade parental.
Assim, após a determinação dos objetivos específicos, a divisão a ser feita no trabalho
ficou clara, sendo organizado em três capítulos.
O primeiro capítulo destinou-se à análise da relação paterno-filial, onde, no primeiro
item, fez-se uma breve análise da evolução da entidade familiar até os dias de hoje,
destacando-se os princípios norteadores do Direito de Família, bem como as funções atuais
desta. Foi enfocado o princípio da dignidade da pessoa humana que consiste em fundamento
da República Federativa do Brasil e do próprio ordenamento jurídico, inclusive fundamento
das indenizações por dano moral. O item seguinte traçou um panorama acerca da afetividade
nas relações familiares, em especial a relação paterno-filial e a repersonalização nas relações
familiares.
Verificou-se que, em virtude da precarização das relações intersubjetivas, são
crescentes as discussões acerca da responsabilidade civil nas relações afetivas. De fato, os
transtornos psicológicos provenientes da falta de solidez do seio familiar são capazes de
implicar seqüelas intransponíveis. Isto porque é, sobretudo, no âmbito mais próximo das
pessoas que se assimilam valores primordiais para o saudável desenvolvimento humano,
notadamente no que diz respeito à formação de um cidadão. Nesse sentido, surgem questões
polêmicas que necessitam encontrar respostas no âmbito do Direito: as obrigações dos pais
para com os filhos se restringem ao sustento? O desenvolvimento emocional também é
obrigação legal dos genitores? A ausência de afeto pode ser motivo de indenização por dano
moral decorrente do não-exercício do poder familiar?
Diante dessas questões, há de se avaliar se há procedência na conduta dos indivíduos
que decidiram intentar reconhecimento judicial do dever de reparar os danos causados em
conseqüência da ausência de relação de fraternidade, de cooperação, de respeito recíproco, de
acolhimento ao outro, no bojo da entidade familiar.
No segundo capítulo, fez-se um estudo da função parental, realizando-se um breve
panorama histórico acerca de sua evolução,bem como dos direitos da criança e do
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adolescente, considerados no passado como meros expectadores nas relações familiares até
seu reconhecimento como sujeitos de direito, e, ainda, uma abordagem sobre o instituto da
paternidade responsável.
No terceiro capítulo, o qual se refere à responsabilização civil dos pais em razão do
descumprimento da autoridade parental, foi abordado inicialmente o abandono material, bem
como o abandono moral e afetivo dos filhos. Em seguida, analisou-se o instituto da
responsabilidade civil, precipuamente o dano moral; em seguida, foram apontados os
elementos da responsabilidade civil e mais adiante, o conceito de dano moral conforme a
doutrina e a jurisprudência, englobando o reconhecimento do caráter sancionatório, punitivo
ou pedagógico da indenização ou compensação por dano moral.
Nesse diapasão, demonstrou-se que a doutrina e a jurisprudência divergem quanto à
possibilidade de indenização por dano afetivo/emocional causado pelo genitor ou genitora,
diante da falta da relação afetiva com o filho.
Nesse sentido, entende-se que o tema merece ser objeto de estudo, em face de sua
grande relevância na seara do Direito de Família e de decisões recentes que demonstram uma
necessidade de aprofundamento em determinados fatos, considerando a grande
responsabilidade do magistrado frente a questões tão delicadas para a criança, para o
adolescente e para a sociedade.
Enfim, o que se pretende demonstrar não é a ressarcibilidade do sofrimento por si só,
diante da ruptura da relação paterno-filial, porquanto o dinheiro jamais aquilatará os valores
da psique, bem como não há reversibilidade dos fatos passados, mas sim que é possível
reconhecer a configuração da responsabilidade civil também nas relações familiares, pois,
muitas vezes, a humilhação é mais traumática do que a ferida física, marcando, “a ferro e
fogo”, o outro, e que, raramente, cicatriza na personalidade, acarretando conseqüências de
ordem material, emocional, psicológica e sociológica a todos aqueles envolvidos na relação
familiar afetiva.
Portanto, este breve estudo propõe refletir acerca da possibilidade de incidência do
dano moral decorrente da ausência injustificada da relação paterno-filial, como forma de
descumprimento dos deveres inerentes à paternidade.
Diante do exposto, defende-se no presente estudo que, mesmo inexistindo dispositivo
legal específico, há de se admitir, no direito brasileiro, a possibilidade de ser intentada ação de
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responsabilidade civil pelo dano ao filho, desde que comprovada a violação do princípio da
dignidade humana.
O método utilizado para a pesquisa e desenvolvimento deste trabalho monográfico
teórico foi o dedutivo, o qual parte de uma proposição teórica geral até chegar a casos
particulares. Este trabalho iniciará, portanto, pelo estudo do instituto da família, abordando os
princípios constitucionais, notadamente o da dignidade da pessoa humana, a função parental e
o descumprimento desta função, bem como a responsabilidade civil dos pais em face do
abandono moral e afetivo dos filhos, para chegar às decisões e argumentos específicos
relacionados ao tema, analisando o dever de indenizar os filhos por abandono afetivo com
base no princípio da dignidade, insculpido no art. 1º, III, da Constituição Federativa do Brasil
de 1988, e o descumprimento dos deveres constitucionalmente previstos no art. 227 e 229,
bem como nos artigos 932, I, 1634, I e II e 1638, II do Código Civil.
Como métodos auxiliares, foram utilizados o histórico e o comparativo. O primeiro na
necessidade de traçar uma perspectiva histórica da evolução da família e da responsabilidade
parental, para compreender melhor a conjuntura social e cultural que originou o tema em
estudo. Já o comparativo foi utilizado com o intuito de confrontar os argumentos apresentados
pelos aplicadores e doutrinadores do direito, a fim de implantar o seu entendimento no que
tange ao dever de indenizar moralmente os filhos nas hipóteses em que se configurar
abandono afetivo, em desatenção ao princípio da dignidade e da função parental.
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2 A FAMÍLIA
A família não é apenas uma instituição de origem biológica, mas, sobretudo, um
organismo com nítidos caracteres culturais, sociais e afetivos, que influencia e é influenciado
por outras pessoas e instituições.
Nesse sentido, irá se tecer considerações gerais sobre o instituto da família,
enfatizando a afetividade como elemento fundamental nas relações familiares, haja vista que o
tema proposto neste projeto tem na família seu lugar de ocorrência.
2.1 Conceito de família e suas várias formas
O conceito de família vem se alterando ao longo do tempo. É um conceito atemporal,
porque está sujeito aos aspectos principiológicos, culturais e sociais que caracterizam a
sociedade, no momento em que é analisado. Mister, portanto, enfatizar algumas considerações
acerca deste instituto.
Rodrigues (2002) conceitua família e diz que há diversos significados para ela:
O vocábulo Família é usado em vários sentidos. Num conceito mais amplo poder-se-ia definir a família como formada por todas aquelas pessoas ligadas por vínculo de sangue, ou seja, todas aquelas pessoas provindas de um tronco ancestral comum; o que corresponde a incluir dentro da órbita da família todos os parentes consangüíneos. Numa acepção um pouco mais limitada, poder-se-ia compreender a família como abrangendo os consangüíneos em linha reta e os colaterais sucessíveis, isto é, os colaterais até o quarto grau. Num sentido mais restrito, constitui a família o conjunto das pessoas compreendido pelos pais e sua prole. (RODRIGUES, 2002, p. 4).
Beviláqua definia a família dessa forma:
Um conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo da consangüinidade, cuja eficácia se estende ora mais larga, ora mais restritamente, segundo as várias legislações. Outras
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vezes, porém, designam-se, por família, somente os cônjuges e a respectiva progênie. (BEVILÁQUA apud PEREIRA, 2003, p. 6).
Lacan (apud PEREIRA, 2003, p. 13) já ampliara a definição de família, mostrando que
a mesma não é um grupo natural, mas cultural:
Ela não se constitui apenas por homem, mulher e filhos. Ela é antes uma estruturação psíquica, onde cada um de seus membros ocupa um lugar, uma função. Lugar do pai, lugar da mãe, lugar dos filhos, sem, entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente.
Imperioso salientar que, como demonstrado, o elemento biológico não é fator
determinante para a configuração da família. Afinal, as relações humanas não são somente
traços biológicos. São relações culturalmente construídas, enriquecidas na diversidade (DIAS,
2006).
O estudo da família, no âmbito jurídico, sempre esteve estritamente relacionado ao
casamento, que a tornava legítima ou ilegítima perante o Estado e a Igreja.
A legislação brasileira, como a maioria das legislações ocidentais, considerava que a
família legítima só se constituía pelo casamento, pelo menos até o advento da CFB/1988 (art.
226). Entretanto, outras formas de família sempre existiram, embora não recebessem a
proteção do Estado, que por sua vez, não pôde mais controlar s formas de constituição da
família, pois, como denota Pereira (2003, p. 31), “ela é plural”. Ou seja,
[...] o gênero família comporta várias espécies, como a do casamento, que maior proteção recebe do Estado, das uniões estáveis e a comunidade dos pais e seus descendentes (art. 226, CF). Essas e outras formas vêm exprimir a liberdade dos sujeitos de construírem a família da forma que lhes convier, no espaço da sua liberdade. (PEREIRA, 2003, p.31).
Não é, portanto, sem razão que o Estado veio a resguardar e considerar como família,
também, todas as elencadas no art. 226 da CFB/1988, pois, conforme Villela (1979), “família
não é apenas o conjunto de pessoas onde uma dualidade de cônjuges ou de pais que esteja
configurada, senão também qualquer expressão grupal articulada por uma relação de
descendência”, que esteja embasada no afeto.
A lei nunca se preocupou em definir a família, como denota Dias (2006, p. 41),
limitando-se a meramente identificá-la com o casamento. Tal omissão afastava do âmbito
jurídico todo e qualquer vínculo de origem afetiva que levasse “à comunhão de vidas e
embaralhamento de patrimônios” (DIAS, 2006, p. 41). O resultado sempre foi a exclusão, o
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que levava a Justiça a julgar injustamente, renegando os direitos “a quem vivia aos pares, mas
sem a chancela estatal” (DIAS, 2006), ou seja, as famílias formadas através da união estável .
Essa indefinição de família é abordada por Dias (2006, p. 40) contextualizando-a no
aspecto da afetividade:
Difícil encontrar uma definição de família de forma a dimensionar o que, no contexto social dos dias de hoje, se insere nesse conceito. É mais ou menos intuitivo identificar família com a noção de casamento, ou seja, pessoas ligadas pelo vínculo do matrimônio. Também vem à mente a imagem da família patriarcal, o pai como figura central, na companhia da esposa e rodeado de filhos, genros, noras e netos. Essa visão hierarquizada da família, no entanto, sofreu com o tempo enormes transformações. Além de ter havido significativa diminuição do número de seus componentes, também começou a haver um embaralhamento de papéis. A emancipação feminina e o ingresso da mulher no mercado de trabalho levou-a para fora do lar. Deixou o homem de ser o provedor exclusivo da família, sendo exigida a sua participação nas atividades domésticas.
Recentemente, esta obscuridade deixou de existir, com o advento da Lei Maria da
Penha (Lei 11.340/2006), pois esta conceituou a família atendendo seu perfil contemporâneo.
Esclarecem os incisos II e III, art. 5º, da Lei em análise:
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
Assim, esta lei:
[...] que busca coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, identifica como família (LMP 5º III) qualquer relação de afeto. Com isso, não mais se pode limitar o conceito de entidade familiar ao rol constitucional. Lei nova alargou seu conceito. E não se diga que este conceito serve tão-só para flagrar a violência. Ainda que este seja o seu objetivo, acabou por estabelecer os contornos de seu âmbito de abrangência (DIAS, 2006, p. 41).
A referida lei, de natureza penal, entrelaça-se ao direito civil, mais especificamente ao
conceito atual de família, num contexto contemporâneo, pois elevou o afeto a status jurídico,
o que a torna a primeira norma infraconstitucional a reconhecer categoricamente e
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inequivocamente o conceito moderno de família, eudemonista, livre das “amarras” religiosas
ou técnicas hermenêuticas de exclusão, seguindo a mesma linha dos doutrinadores não
exegetas (ALVES, 2007, p.14).
A família, sendo uma instituição social, integra os processos evolutivos da sociedade
e, portanto, estará sempre sujeita a constantes transformações. E, no atual panorama social, a
real motivação da entidade familiar pode se caracterizar e se traduzir na importância que cerca
o afeto. A realização de seus membros como pessoas humanas, sujeitos de direitos, fundada
nos princípios norteadores do Direito Familiar retratam o conceito da família contemporânea,
como se verá a seguir.
2.1.1 Origem e evolução da família
O ser humano tende “desde tempos imemoriais, a aproximar-se de seus semelhantes,
para satisfação de suas necessidades próprias, pessoais e patrimoniais, formando, em seu
redor, círculos de relacionamentos, de parentesco, de amizade, de aprendizado, de negócio e
outros” (BITTAR, 1989, p. 2), influenciando na criação de diferentes grupos de interesses,
diante dos quais a família ocupa lugar destacado, haja vista que é “berço e núcleo formador do
ser, onde ele recebe educação, sustento e assistência, que lhe permitem desenvolver a
personalidade e estruturar-se para a consecução de seus objetivos” (BITTAR, 1989, p. 2).
Ao longo da história, a família sofreu profundas mudanças, de natureza, de
composição, de função e, conseqüentemente, de concepção, sobretudo após o advento do
Estado Social, ao longo do século XX..
Sob a ótica contemporânea, a família é o espaço onde se constroem os vínculos
afetivos e sociais, bem como valores morais e éticos. Entretanto, nem sempre foi assim.
No primeiro momento da evolução social, homens e mulheres viviam de forma
nômade e irregrada. Não havia o estabelecimento de vínculos afetivos. Passado este período,
homens e mulheres passaram a conviver em moradas e desenvolveram a agricultura. A
mulher era a figura central do grupo, sendo que este período ficou marcado pelo matriarcado,
no qual a mulher era tida como a supridora das necessidades humanas e geradora da vida,
tamanha sua importância no grupo social.
Com o advento do período patriarcal, o homem passou a assumir total liderança da
família. Esta fase foi fortemente marcada pela família colonial e imperial. Neste período, a
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mulher era vista como garantidora dos afazeres domésticos, da criação dos filhos e dos
deveres de esposa perante o marido, a fim de dar continuidade à família.
Conforme Silva:
Tratava-se de uma família patriarcal e hierarquizada, em que o papel da “figura feminina” já se mostrava baseado na discriminação, na exclusão, submissão e subordinação ao marido – chefe da sociedade familiar. Ao seu lado, também os filhos ficavam sujeitos à arbitrariedade e aos abusos do grupo familiar fundamentalmente guiado pelo “chefe” (SILVA, 2004, p. 127).
No mesmo sentido, denota Tepedino (2001):
A hostilidade do legislador pré-constitucional às interferências exógenas na estrutura familiar e a escancarada proteção do vínculo conjugal e da coesão formal da família, inda que em detrimento da realização pessoal de seus integrantes – particularmente no que se refere à mulher e aos filhos, inteiramente subjugados à figura do cônjuge-varão – justificava-se em benefício da paz doméstica. Por maioria de razão, a proteção dos filhos extraconjugais nunca poderia afetar a estrutura familiar, sendo compreensível, em tal perspectiva, a aversão do Código Civil à concubina. O sacrifício individual, em todas essas hipóteses, era largamente compensado, na ótica do sistema, pela preservação da célula mater da sociedade, instituição essencial à ordem pública e modelada sob o paradigma patriarcal.
A família, como se denota, era concebida como um instituto em prol da própria
família, um fim em si mesma, porque o legislador entendia que aquele modelo fechado era o
único correto; logo, assim teria que ser, a qualquer preço, independentemente do sacrifício
pessoal de seus membros. Nessa linha de intelecção, a subordinação e o sofrimento da mulher
seriam recompensados com um valor de maior importância, a manutenção do vínculo
familiar.
O processo educacional era extremamente rígido, autoritário e unilateral. O filho não
tinha voz nem vez, restando a ele somente o privilégio de calar-se e obedecer, pois o patriarca
sabia o que era bom para sua prole (ou melhor: para a família). Não era aberto espaço para o
diálogo, para a troca de idéias e de conhecimentos, algo tão salutar em qualquer método
educacional.
Após este período em que a subordinação da esposa e dos filhos perante a figura
masculina, as relações familiares evoluíram. A exploração familiar deu espaço a uma nova
realidade, caracterizada pela união, compreensão e afeto.
Sob este aspecto, Carbonera explica:
Com o processo de urbanização, costumes foram sendo substituídos: a grande prole deu lugar a um número cada vez mais reduzido de filhos. Por outro lado, com um número menor de filhos, houve a possibilidade de maior convívio entre estes e os
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pais, dando margem a um relacionamento mais próximo, pautado na preocupação de um membro da família com os demais, permitindo a abertura de espaço para o afeto [...] (CARBONERA, 1998, p. 283).
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art. XVI, 3, estabeleceu:
Art. XVI, 3: A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada em 1969, retratou os
elementos conceituais daquela época1.
Nota-se que foi atribuída maior responsabilidade ao Estado que, antes ausente, passou
a ter o dever de proteção à família.
O Estado Social, desenvolvido ao longo do século XX, caracterizou-se pela
intervenção nas relações privadas, alcançando também a família, com o intuito de redução dos
poderes domésticos – notadamente do poder marital e do poder paterno -, da inclusão e
equiparação de seus membros, para a promoção da dignidade humana.
Quando da elaboração do Código Civil de 1916, a família era uma entidade
centralizada na economia, na sociedade e na figura do pai, que ainda tinha total poder sobre a
esposa e os filhos, tanto é que se adotava a expressão “pátrio poder”.
O instituto do casamento constituía a única maneira de legitimar a família e os filhos
comuns, antes dele nascidos ou concebidos. Nesse contexto, o concubinato era algo
inaceitável, inconcebível, tanto que os filhos havidos dessa relação eram considerados
ilegítimos, não podendo ser reconhecidos pelos pais, mesmo que estes quisessem. Este
posicionamento jurídico – e social – era fundado no desejo de proteção do patrimônio
familiar, ou seja, somente os filhos havidos do casamento tinham direito ao patrimônio; os
havidos fora desta, não tinham direito, pois se entendia que estes eram fruto de uma relação
promíscua e infiel.
A dissolução do casamento, por sua vez, só era possível diante da morte de um dos
cônjuges, evidenciando a força do vínculo matrimonial, o que veio a mudar com o advento da
Lei 6515/77, que instituiu o divórcio.
1 Art. 17: A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado.
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Até então, havia o desquite, prescrito no artigo 267, III do Código Civil de 1916, que
significava a dissolução da comunhão e consequentemente o fim dos deveres de coabitação,
fidelidade recíproca e do regime matrimonial de bens, mas os desquitados não podiam
contrair novo casamento.
Significava dizer que se uma pessoa desquitada resolvesse iniciar um novo
relacionamento, essa convivência não era, à luz da legislação brasileira, considerado uma
família, pois esta, de acordo com o antigo texto constitucional (“caput” do artigo 175), era
constituída pelo casamento, que merecia, inclusive, pelo preceito sob comento, a proteção dos
poderes públicos.
Essa relação fora do casamento trazia, também, conseqüências para os filhos que dela
nascesse, quanto ao obstáculo ao reconhecimento da paternidade, como previsto no antigo
Código Civil (artigo 337 e seguintes), preceitos considerados discriminatórios e punitivos à
criança, que, aliás, classificava os filhos em legítimo, ilegítimo, adulterino, incestuoso e
adotivo.
O certo é que, instituído o divórcio, este se apresentou no primeiro momento de forma
tímida, talvez em razão da resistência à sua aprovação, tanto que condicionava o mesmo à
separação judicial por três anos ou à comprovada separação de fato por cinco anos, desde que
iniciada antes da promulgação da emenda.
Esse preceito passou a integrar o artigo 40 da Lei do Divórcio, donde se abstrai que o
desquite deixou de existir, dando lugar à separação e que o pedido de divórcio somente podia
ser formulado uma vez (artigo 38 da lei especial).
Mas com a Carta de 1988 (artigo 226, §6º), o prazo da prévia separação judicial
passou para um ano ou comprovado separação de fato por dois anos, o que motivou alteração
no citado artigo 40. E, prosseguindo com os avanços, a restrição, a uma só vez, ao direito de
pleitear o divórcio, foi revogado pela Lei nº 7.841/89, espelhado, evidentemente, nos
princípios da nova Constituição2.
2 Avanço também ou pelo menos uma forma de imprimir mais facilidade e redução de formalidades, é o que se pode dizer da Lei nº 11.441, sancionada no limiar de 2007, que autorizou, facultativamente, a separação e o divórcio através de escritura pública, em tabelionato, observados os requisitos legais, quanto aos prazos, e desde que de forma consensual e sem filhos menores ou incapazes, com assistência de advogado, cujo instrumento constituiu título hábil para a averbação junto aos cartórios de registro civil e de imóveis.
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Também no CC de 1916, o rol de direitos do marido era muito mais extenso do que os
da esposa, conforme seu art. 2333.
Somente em casos excepcionais cabia à mulher a chefia da unidade familiar, conforme
estabelecia o art. 2514 do diploma em questão.
O modelo de família patriarcal, adotado pela legislação brasileira desde o período
colonial, o imperial e durante boa parte do século XX, enfraqueceu, no plano jurídico, em
virtude dos valores introduzidos pela Carta Magna de 1988, a qual foi determinante para a sua
derrocada.
Imperioso salientar que, até o advento da Constituição Federal de 1988, o conceito
jurídico de família era extremamente limitado e taxativo, pois o Código Civil de 1916
somente conferira o status familiae àqueles agrupamentos originados do instituto do
matrimônio.
Com o advento da CF/1988, o conceito de família foi ampliado, indo em direção a um
conceito mais real, impulsionado pela própria realidade, uma vez que o Estado passou a
reconhecer como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes, bem como a união estável entre homem e mulher, consoante com o art. 226 da
Carta Magna. Nesse sentido, a CF/88 propiciou uma evolução no conceito de família, visto
que até então a lei só reconhecia como família aquela entidade constituída pelo casamento.
Madaleno (2000, p 21) destaca a descodificação do Código Civil5, em virtude do
advento da CFB/1988:
3 Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos (arts. 240, 247 e 251). (Redação dada pela Lei nº 4.121, de 27.8.1962)
Compete-lhe: I - a representação legal da família; II - a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher que ao marido incumbir administrar,
em virtude do regime matrimonial adotado, ou de pacto antenupcial; III - o direito de fixar o domicílio da família, ressalvada a possibilidade de recorrer a mulher ao juiz, no
caso de deliberação que a prejudique; IV - O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residencia fora do teto conjugal; IV - prover a manutenção da família, guardada as disposições dos arts. 275 e 277.
4 Art. 251. À mulher compete a direção e administração do casal, quando o marido: I - estiver em lugar remoto, ou não sabido; II - estiver em cárcere por mais de 2 (dois) anos; III - for judicialmente declarado interdito. Parágrafo único. Nestes casos, cabe à mulher: I - administrar os bens comuns; II - dispor dos particulares e alienar os móveis comuns e os do marido; III – administrar os do marido; IV - alienar os imóveis comuns e os do marido mediante autorização especial do juiz.
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A Constituição de 1988 chamou para si o papel de lei fundamental da família, até então ocupado pelo Código Civil e por algumas leis esparsas responsáveis por um processo de migração do direito familiar. O texto constitucional sintoniza a nova ordem jurídica que repugna dogmas do passado, como por exemplo, o fato de só poder ser legítimo o casamento civil; também a ideia absurda de inferioridade jurídica da mulher; de desigualdade de tratamento dos filhos, além da antiga conveniência de marginalizar o concubinato, numa amostra de prevalência dos valores materiais sobre a importância da pessoa.
Dispõe o art. 226 da CF/1988:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Como se pode observar, o reconhecimento da união estável (art. 226, parágrafo 3o) e
da família monoparental (art. 226, parágrafo 4o) fora o responsável pela quebra do monopólio
do casamento como único meio legitimador da formação da família.
Como denota Lôbo (2009, p. 1):
No plano constitucional, o Estado, antes ausente, passou a se interessar de forma clara pelas relações de família, em suas variáveis manifestações sociais. Daí a progressiva tutela constitucional, ampliando o âmbito dos interesses protegidos, definindo modelos, nem sempre acompanhados pela rápida evolução social, a qual engendra novos valores e tendências que se concretizam a despeito da lei.
Tendo em vista essa redefinição do modelo familiar, Nogueira diz:
A Constituição atual alterou profundamente a concepção jurídica de família, reconhecendo a relevância do mundo fático, há tanto tempo desabrigado pelo mundo jurídico, e trouxe duas propostas revolucionárias: a primeira vem com o art. 226, que inclui no contexto constitucional o conceito de entidade familiar, e a outra disposta no art. 227, que redimensionou a idéia de filiação (NOGUEIRA, 2001, p. 46).
5 Expressão utilizada por Rolf Madaleno com o intuito de traduzir a maior abrangência dos sitames da CFB/1988 em relação ao Código Civil de 1916, então vigente, no que se refere às relações familiares. In: Novas Perspectivas no Direito de Família (2000, p. 20).
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Imperioso mencionar que a família monoparental foi outra importante inovação, na
medida em que modificou a idéia de família e de casamento formal.
O texto constitucional é a tradução da família atual, que não é mais singular, mas cada
vez mais plural, no sentido da convivência, da composição do grupo familiar e na atribuição
de papéis aos seus membros.
Com a CFB/1988, reconheceu-se o direito fundamental à convivência familiar,
introduzindo-o em seu art. 2276.
Garantir aos filhos a convivência familiar significa respeitar sua personalidade e
garantir sua dignidade, direito primordial, bem como o direito fundamental de ter família.
O Código Civil de 2002, apesar da divulgada mudança de paradigma, do
individualismo para a solidariedade social, manteve forte presença nos interesses patrimoniais
sobre os pessoais. A referida lei não solucionou o descompasso legislativo, pois várias de suas
6 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 1º - O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos:
I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil; II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física,
sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.
§ 2º - A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.
§ 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7º, XXXIII; II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; III - garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola; IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação
processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica; V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade; VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da
lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado; VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de
entorpecentes e drogas afins. § 4º - A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente. § 5º - A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de
sua efetivação por parte de estrangeiros. § 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. § 7º - No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se- á em consideração o disposto no
art. 204.
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proposições estão fundadas em paradigmas passados e em dissonância com os princípios
constitucionais referidos.
Evidentemente, as relações de família sempre tiveram, e terão interesse patrimonial.
Todavia, estes não podem se sobrepor aos interesses pessoais, pois “quando passam a ser
determinantes, desnaturam a função da família, como espaço de realização pessoal e afetiva
de seus membros” (LÔBO, 2009, p. 10).
Tais aspectos são determinantes para o conceito de família e traduzem-na nos dias de
hoje.
2.1.2 A família contemporânea
Inúmeras são as influências do ambiente social para a formação da personalidade
humana. Inegavelmente, a família é a mais importante de todas. É ela que proporciona as
recompensas e punições, por cujo intermédio são adquiridas as principais respostas para os
primeiros obstáculos da vida. É o instituto no qual a pessoa humana precisa encontrar amparo
irrestrito, fonte da sua própria felicidade.
O grupo familiar tem sua função social e é determinado por necessidades sociais. Ele deve garantir o provimento das crianças, para que elas, na idade adulta, exerçam atividades produtivas para a própria sociedade, e deve educá-las, para que elas tenham uma moral e valores compatíveis com a cultura em que vivem (BOCK, p. 238, 1996).
Tanto assim que a organização familiar muda no decorrer da história do homem, é
alterada em função das mudanças sociais.
Nesse sentido, entende-se que a família não é apenas uma instituição de origem
biológica, mas, sobretudo, um organismo com nítidos caracteres culturais, sociais e afetivos.
Nas palavras de Hironaka (1999, p. 10), a família:
É uma entidade histórica, ancestral como a história, interligada com os rumos e desvios da história ela mesma, mutável na exata medida em que mudam as estruturas e a arquitetura da própria história através dos tempos (...); a história da família se confunde com a história da própria humanidade.
Trata-se, em verdade, da celula mater da sociedade, do seu núcleo inicial, básico e
regular. É um microssistema social, onde os valores de uma época são reproduzidos de modo
a garantir a adequada formação do indivíduo (ALVES, 2006).
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Como já mencionado, até o advento da Constituição Federal de 1988, o conceito
jurídico de família era extremamente limitado e taxativo, pois o Código Civil de 1916
somente conferira o status familiae àqueles agrupamentos originados do instituto do
matrimônio.
Além disso, o modelo único de família era caracterizado como um ente fechado,
voltado para si mesmo, onde a felicidade pessoal dos seus integrantes, na maioria das vezes,
era preterida pela manutenção do vínculo familiar a qualquer custo.
Entretanto, os princípios preconizados na Carta Magna e, mais recentemente, a Lei
Maria da Penha, provocaram uma profunda alteração do conceito de família até então
predominante na legislação civil.
Destarte, sem dúvida alguma, é o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1o,
III) o principal marco de mudança do paradigma da família. A partir dele, tal ente passa a ser
considerado um meio de promoção pessoal dos seus componentes. Por isso, o único requisito
para a sua constituição não é mais jurídico e sim fático: o afeto.
A conceituação de afeto é difícil de se promover, por se tratar de um sentimento,
porém é necessário tecer alguns comentários acerca deste sentimento para entender as
implicações causadas nos filhos pela ausência de afeto na relação paterno-filial.
Pelo entendimento de Barros (2007, texto digital)7, a atração de um indivíduo pelo
outro era chamada, na antiguidade (pelos romanos) de affectus ou affectio que “traduzem a
idéia de ser feito um para o outro”.
Pelo sentido atual de affectio, pode-se dizer que onde ele estiver presente, em razão do
princípio da liberdade, em conjunto com a colaboração, solidariedade, compreensão, respeito
mútuo, haverá família.
O afeto é a base da família moderna a qual é fundada no respeito à dignidade de cada
um dos seus membros e no amor entre eles, pois a família já não se baseia mais em uma
relação de poder ou provimento econômico, mas num convívio cercado de afeto e carinho
entre pais e filhos.
Nessa esteira, observa-se que a entidade familiar ultrapassa os limites da previsão
jurídica (casamento, união estável e família monoparental) para abarcar todo e qualquer
7 O direito ao afeto. Disponível em: <http://www.srbarros.com.br/artigos.php?TextID=36>, Acesso em: 18.mar.2009
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agrupamento de pessoas onde permeie o affectio familiae. Em outras palavras, o ordenamento
jurídico deveria reconhecer, de forma explícita, como família todo e qualquer grupo no qual
os seus membros enxergam uns aos outros como seu familiar. Nesse contexto:
O legislador não consegue acompanhar a realidade social nem contemplar as inquietações da família contemporânea. A sociedade evolui, transforma-se, rompe com tradições e amarras, o que gera a necessidade de constante oxigenação das leis. A tendência é simplesmente proceder à atualização normativa, sem absorver o espírito das silenciosas mudanças alcançadas no seio social, o que fortalece a manutenção da conduta de apego à tradição legalista, moralista e opressora da lei (COLARES apud DIAS, 2006, p. 29).
Relevante ainda ressaltar o que diz a autora acima mencionada, no que diz respeito à
dissonância entre as inovações sociais perante a evolução legislativa:
[...] a mais árdua tarefa é mudar as regras do direito das famílias. Quando se trata das relações afetivas – afinal é disso que trata o direito das famílias -, a missão é muito mais delicada em face de seus reflexos comportamentais que interferem na própria estrutura da sociedade. É o direito que diz com a vida das pessoas, seus sentimentos, enfim, com a alma do ser humano. (DIAS, 2006, p. 29).
Nesse sentido, evidencia-se que o regramento jurídico da família não pode ficar
indiferente às profundas modificações culturais e científicas, bem como de qualquer outra
ordem.
Felizmente, tem-se constatado, ultimamente, que há uma crescente preocupação, tanto
doutrinária, como jurisprudencial e legislativa, em adaptar o direito familiar à
contemporaneidade.
Villella (apud DIAS, 2006, p. 41) aponta para uma nova visão da entidade familiar: “O
novo modelo da família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da
pluralidade e do eudemonismo, impingindo nova roupagem axiológica ao direito de família.”
Acerca do fenômeno da repersonalização, mediante o qual se opera uma reordenação
de prioridades de tutela, onde o sujeito passa a ser o centro das preocupações jurídicas,
assevera Orlando de Carvalho:
Repersonalizar implica reconduzir a pessoa ao centro das preocupações jurídicas. Entretanto, nunca antes o sistema protegeu a pessoa concreta, somente aquela que tinha todas as qualidades necessárias para participar de uma relação jurídica. [...] Talvez seja mais adequado pensar num processo de dignificação concreta do direito civil, e do sistema jurídico com um todo, no qual o ser humano seja realmente valorizado e protegido como o centro das preocupações (CARVALHO apud ASSUMPÇÃO, 2004, p. 41).
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Agora, o foco não está mais os bens ou as coisas que guarnecem a relação familiar, e
sim no indivíduo, dotando democraticamente as relações familiares. Nesse sentido:
A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo estado (LÔBO apud DIAS, 2006, p. 41)
Ainda:
O formato hierárquico da família cedeu lugar à sua democratização, e as relações são muito mais de igualdade e de respeito mútuo. O traço fundamental é a lealdade. Talvez não mais existam razões, quer morais, religiosas, políticas, físicas ou naturais, que justifiquem esta verdadeira estatização do afeto, excessiva e indevida ingerência na vida das pessoas (DIAS, 2006, p. 29).
Os filhos, por exemplo, ganharam o espaço necessário à participação no processo
educacional: saíram da condição de meros objetos deste processo para alcançarem o status de
sujeitos com direito à voz naquilo que lhes interessava diretamente. Dessa forma, os filhos
deixaram de ser simples repetidores de ordens dos seus pais, o que aumentou em muito o
contato (verdadeiro) entre eles (LÔBO, 2009).
É nítido que a “cara” da família moderna mudou. O seu principal papel, hoje em dia, é
o de oportunizar suporte emocional ao indivíduo, intensificando a flexibilidade e,
indubitavelmente, os laços afetivos.
Nesse sentido, situar a família na contemporaneidade8 significa dizer que, em razão da
complexidade de relações sociais, é na família que o sujeito precisa encontrar os valores
norteadores e formadores de seu caráter, sendo tais elementos permeados pelo elemento
primordial da afetividade.
8 A Contemporaneidade ou pós-modernidade é um conceito complexo que enfatiza uma série de mudanças ocorridas na nossa sociedade em relação a vários aspectos, como os modelos vigentes (político, econômico, social, educacional...), velhos e novos paradigmas, princípios, costumes, valores éticos, valores morais, estética, produção cultural, estilos de ser e de aprender, processos de pensamento, entre outros. Tais aspectos mantiveram-se constantes por várias gerações anteriores, mas atualmente padecem de referenciais estáveis, pois são voláteis. Pode-se afirmar que seriam características da pós-modernidade: a rapidez, a banalização dos costumes e dos conceitos, os objetos descartáveis e obsoletos, a fragmentação, a globalização, o mundo de imagens, o mundo virtual, a imitação, a desterritorialização, a turbulência, entre outras.
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2.1.3 Princípios norteadores do direito de família
A Constituição Federal, “verdadeira carta de princípios” (DIAS, 2006), trouxe consigo
um novo modo de ver as relações familiares, impondo eficácia às normas que definem direitos
e garantias fundamentais (art. 5.º, § 1º).
Muito se têm discutido na doutrina sobre qual seria a finalidade dos princípios no
direito, sobretudo no que tange ao tema do presente estudo. De todo modo, percebe-se que
não existe um entendimento único, surgindo, logicamente, teses em vários sentidos. Porém,
todos caminham em um paralelo de forma a reconhecer a sua juridicidade, fundamentalidade
e fecundidade diante das demais regras do Direito, norteando a aplicação destas.
Para Mello (1980, p. 230):
Principio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.
Os princípios, fundamentais da cultura jurídica humana em nossos dias, são vetores de
interpretação de todas as normas, constitucionais ou infraconstitucionais, que não apenas
esclarecem o sentido das demais, como prevalecem sobre elas em caso de aparente conflito.
Os princípios constitucionais deixaram de servir como mero instrumento de orientação
ao sistema jurídico infraconstitucional, adquirindo eficácia imediata, e tornaram-se
imprescindíveis para a aproximação do ideal de justiça.
Em suma, os princípios introduziram uma nova base axiológica, “abandonando o
estado de virtualidade a que sempre foram relegados” (DIAS, 2006), embora nem sempre
oferecem solução única ou definitiva. De acordo com Lobo (2009), sua força reside na
aparente fragilidade, pois, sem mudança ou revogação de normas jurídicas, permitem que o
direito se adapte à evolução dos valores da sociedade, tendo seu conteúdo amoldado, em
permanente processo de adaptação e transformação.
Na seara do Direito de Família, alguns princípios tem destacada relevância, em virtude
de sua aplicabilidade.
O princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CFB/1988) é o primeiro
deles, pois, de maneira ou outra, engloba todos os demais princípios, e é essencialmente
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comum a todas as pessoas, como membros iguais do gênero humano. Impõe um dever geral
de respeito e proteção. Conforme Dias (2006), “é o princípio maior, fundante do Estado
Democrático de Direito, sendo afirmado já no primeiro artigo da Constituição Federal”.
A noção9 de dignidade humana, que é a base dos textos fundamentais sobre Direitos
Humanos, encontra-se nomeada no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, de 1948, cujo texto preceitua que os direitos humanos são a expressão direta da
dignidade da pessoa humana, a obrigação dos Estados de assegurarem o respeito que decorre
do próprio reconhecimento dessa dignidade.
Grimm (apud SARLET, 2004, p. 51) sustenta que:
A dignidade, na condição de valor intrínseco do ser humano, gera para o indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais e felicidade e, mesmo onde essa autonomia lhe faltar ou não puder ser atualizada, ainda assim ser considerado e respeitado pela sua condição humana.
Segundo Pereira (2003), “o princípio da dignidade da pessoa humana é o mais
universal de todos os princípios. É um macro-princípio do qual irradiam todos os demais:
liberdade, cidadania, igualdade” [...].
Este princípio básico e fundamental do Direito brasileiro:
tem forte característica filosófica, pois todo e qualquer ser humano, (...)sem distinção, é pessoa, ou seja, um ser espiritual, que é, ao mesmo tempo, fonte e imputação de todos os valores. Consciência e vivência de si próprio, todo ser humano se reproduz no outro como seu correspondente e reflexo de sua espiritualidade, razão por que desconsiderar uma pessoa significa em última análise, desconsiderar a si próprio. Por isso, é que a pessoa é um centro de imputação jurídica, porque o Direito existe em função dela e para propiciar seu desenvolvimento (SILVA, 1998, p. 90).
No dizer de Sarmento (apud DIAS, 2006, p. 59), o a dignidade da pessoa humana
“representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o
ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas toda a miríade de relações
privadas que se desenvolvem no seio da sociedade”.
Junqueira (apud RODRIGUES 2004, p. 202) assinala que
9 Mesmo aproximnando-se sobre o significado e o conteúdo da dignidade da pessoa numa perspectiva jurídico-constitucional, é difícil conceituar clara e efetivamente o que seja essa dignidade, sobretudo para efeitos de definição do seu âmbito de proteção como norma jurídica fundamental, em função de sua natureza polissêmica, ou seja, limitá-la a uma simples definição não se harmoniza com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam na sociedade contemporânea. Nesse sentido, a dignidade, a exemplo de tantos outros conceitos vagos e abertos, está em permanente processo de construção e desenvolvimento(SARLET, 2004).
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o princípio da dignidade, como fundamento da República, exige como pressuposto a intangibilidade da vida humana. Sem vida, não há pessoa e sem pessoa, não há dignidade.[...] Além da vida em si e da integridade física e psíquica, a concretização da dignidade da pessoa humana exige o respeito às condições mínimas de vida.
Essencial, pois, o respeito às condições mínimas de vida, essencial à materialização da
dignidade da pessoa humana, haja vista tais condições, que pressupõem pelo menos o
atendimento básico à saúde, alimentação, habitação, e educação, só poderão ser atendidas pela
família se contar ela com estrutura razoável.
Como princípio assegurado constitucionalmente, a dignidade da pessoa humana é
basilar da repersonalização da entidade familiar, que se caracteriza hodiernamente pela ajuda
mútua e afeto.
No mesmo sentido:
Garantir ao filho a convivência familiar significa respeitar seu direito de personalidade e garantir-lhe a dignidade, na medida em que depende de seus genitores não só materialmente [...] O descumprimento do dever de convivência familiar gera um vazio no desenvolvimento afetivo, moral e psicológico (SILVA, 2004, p. 139).
No caso do descumprimento do princípio destes deveres, em relação ao direito de
convivência do filho com seus pais, viola-se um direito da própria infância, causando um
prejuízo ao filho. Esta responsabilidade decorre de uma ação ou omissão – do pai ou da mãe –
culposa – que ocasiona danos à criança, principalmente nos seus costumes morais e éticos,
podendo ser classificado como ato ilícito e, então, passível de reparação civil.
Em suma, a Dignidade Humana é o reconhecimento de um valor. É um princípio
moral baseado na finalidade do ser humano e não na sua utilização como um meio.
O princípio da solidariedade, que tem sua regra matriz no inciso I, art. 3º da
CFB/1988, gera deveres e direitos recíprocos entre os integrantes da entidade familiar,
fundamentado na entreajuda, principalmente quanto à assistência moral e material. Nesse
sentido, a criança é detentora de proteção especial10.
A solidariedade em relação aos filhos responde à exigência da pessoa de ser cuidada
até atingir a idade adulta, isto é, de ser mantida, instruída e educada para sua plena formação
social.
10 A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança inclui a solidariedade entre os princípios a serem observados, o que se reproduz no art. 4º do ECA.
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No Código Civil, se destacam algumas normas fortemente perpassadas pelo princípio
da solidariedade familiar, entre elas: o poder familiar (art. 1.630) é menos “poder” dos pais e
mais obrigação que deve ser exercida em prol do interesse dos filhos; a colaboração dos
cônjuges na direção da família (art. 1.567) e a mútua assistência moral e material entre eles
(art. 1.566) e entre os companheiros (art. 1.724).
O princípio da convivência familiar está entre os mais importantes, haja vista sua
fundamental importância nas relações familiares e no desenvolvimento moral, emocional e
intelectual da criança.
O dicionário Aurélio (1964, p 325) registra que convivência “é o ato ou efeito de
conviver; familiaridade; relações íntimas; trato diário”. Já a definição de conviver é “viver em
comum; ter familiaridade, convivência”. A partir daí pode-se concluir que a convivência ou o
ato de conviver, na maioria das vezes, está intimamente ligada às relações e vínculos
familiares.
Além da Lei Especial de proteção à criança e ao adolescente – ECA - a CFB/1988 é
um marco no sentido de trazer uma maior valorização do afeto nas relações, proibir a
discriminação entre filhos e proteger integralmente a criança e o adolescente. Dentro dessa
proteção, a convivência familiar é direito absoluto.
O direito à convivência familiar está previsto no art. 227 da CF/1988 e também no art.
19 do ECA, e consiste no direito da criança e adolescente de serem criados no seio de sua
família. Segundo Machado (2003), a personalidade humana não se desenvolve de maneira
sadia sem a construção de um vínculo afetivo estreito e verdadeiro com um adulto, com sua
família.
Nesse contexto, Cintra afirma:
[...] realmente, a família é condição indispensável para que a vida se desenvolva, para que a alimentação seja assimilada pelo organismo e a saúde se manifeste [...] Não basta pôr um ser biológico no mundo, é fundamental complementar a sua criação com a ambiência, o aconchego, o carinho e o afeto indispensáveis ao ser humano, sem o que qualquer alimentação, medicamento ou cuidado se torna ineficaz [...] (CINTRA apud MACHADO, 2003, p. 155-156).
A norma insculpida no arts. 227 e 226 da CF/1988 elevou a convivência familiar a
direito fundamental, instituindo que a família é a base da sociedade. Machado (2003) frisa
ainda que, em face dos §§ 3° e 4° deste último artigo, a família é uma comunidade formada
por qualquer dos pais e seus descendentes.
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Nessa mesma ordem de idéias, Nery sintetiza a importância da base familiar na vida
de um ser humano:
[...] estrutura da família se sustenta e seus membros são unidos por uma força que transcende a esfera do Direito. Como seus membros se amam reciprocamente, o bem de um e de outro é o bem da mesma pessoa. A família constitui-se em alargamento das esferas das pessoas. O reconhecimento da personalidade humana impõe uma conexão com o reconhecimento da família. Isto em virtude da inafastável realidade de que a vida humana começa e tem condições efetivas de viabilidade no ambiente familiar [...] (NERY apud MACHADO, 2003, p. 158).
O art. 25 do ECA especifica que “entende-se por família natural a comunidade
formada pelos pais ou qualquer um deles e seus descendentes.” Ainda de acordo com
Machado (2003), tal conceito de família natural foi introduzido para distinguir esta
comunidade formada por pelo menos um dos pais biológicos, da família substituta, que é
mencionada no art. 19 do ECA. Segundo a autora, essa noção de família é muito importante,
pois veda a discriminação que anteriormente era feita à mãe solteira ou ao pai viúvo, muitos
vezes impedidos por força de decisões judiciais de exercer a guarda sobre seus filhos.
O capítulo III do Estatuto da Criança e Adolescente trata do direito à convivência
familiar e comunitária, composto de dispositivos que visam colocar a criança ou adolescente
inserido no seio de uma família. Nesse sentido, imperioso destacar o texto do artigo 19, in
verbis:
Art. 19 – Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.
Este mesmo artigo 19 preceitua que o direito à convivência familiar de uma criança ou
adolescente se dá em regra no seio de sua família, e excepcionalmente em família substituta.
A legislação, portanto, deixa claro que a família é o lugar normal e natural de um ser humano
crescer e se desenvolver com dignidade, mas também prevê que não basta colocar um ser no
mundo; é fundamental que esta família biológica eduque a criança ou adolescente com todo
amor, aconchego e afeto possível, pois, caso contrário, é necessária a intervenção Estatal,
afastando crianças e adolescentes de seus genitores, a fim de colocá-las a salvo junto a
famílias substitutas, para receberem destas tudo o que sua família de origem não lhes
proporcionou.
Nessa senda, é de suma importância os preceitos do ECA, mais especificamente os
artigos 4º e 5º, in verbis:
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Art. 4º - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Art. 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Os artigos supra descritos expressam a doutrina da proteção integral à criança e ao
adolescente, transformando-os em sujeitos de direito.
Referente ao artigo 5º do ECA, segundo Aragão e Vargas (2005, p. 20):
ao expressar que não poderá existir criança e adolescente expostos a diversas formas de vitimização como negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, resgata o valor supremo, não só dos direitos humanos consagrados às crianças e adolescentes, mas também os direitos humanos pertinentes a todos os seres deste planeta.
Não é inoportuno lembrar que quando se fala em família não está presente
obrigatoriamente aquela constituída pelo casamento, basta que exista uma comunidade onde
convivem os pais ou qualquer um deles com os descendentes.
Hironaka (apud Silva, 2004) sabiamente escreve como deve ser esta convivência
familiar, quando diz que “o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado
lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores, e se sentir, por isso, a
caminho da realização de seu projeto de felicidade.”
Ainda:
[...] É na alteridade, reciprocidade e no relacionamento com o outro que a personalidade se constroi, como um processo dialético e dialógico com o outro. Por isso a necessidade da convivência familiar e comunitária, para construir e edificar a afetividade, além de possibilitar a inserção social (TEIXEIRA; SÁ apud PEREIRA, 2006, p. 244).
Esta é a justificativa para elevar a convivência familiar como um direito fundamental.
Não restam dúvidas a respeito da importância do convívio familiar da criança ou
adolescente com os pais, preferencialmente em um lar harmonioso, para o desenvolvimento
de sua personalidade. Da mesma forma, também vastamente presente no ordenamento
jurídico brasileiro sua garantia.
O princípio da igualdade, um dos sustentáculos do Estado Democrático de Direito, e
insculpido no art. 5º, I, da Constituição, é basilar às relações familiares, posto que nenhum
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outro princípio provocou tão profunda transformação no direito de família, pois equaliza as
relações entre homem e mulher, entre filhos e entre entidades familiares.
Nesse sentido, “a relação de igualdade nas relações familiares deve ser pautada não
pela pura e simples igualdade entre iguais, mas pela solidariedade entre seus membros,
caracterizada da mesma forma pelo afeto e amor” (ESTROUGO apud DIAS, 2006, p. 63).
Em atenção ao este princípio, a norma constitucional (art. 227, § 6º da CFB/1988) e a
norma infraconstitucional (art. 1.596 do CC) consagram expressamente o direito à igualdade
na filiação.
Diante desses dispositivos, Lôbo11 (apud Lima, 2004, p. 626) assevera que a
positivação de tal direito:
[...] contribui para reforçar a natureza de fundamento, assentado no princípio da igualdade, determinante de todas as normas subseqüentes. Não se permite que na interpretação das normas relativas à filiação possa revelar qualquer resíduo de desigualdade de tratamento aos filhos independentemente de sua origem, desaparecendo efeitos jurídicos diferenciados nas relações pessoais e patrimoniais entre pais e filhos e entre irmãos e no que concerne aos laços de parentesco.
Assim, a disciplina dos laços paterno-filiais atuais reflete o sentimento de igualdade e
de justiça, que se revela no reconhecimento do direito à igualdade e à diferença, pois, por
vezes, a satisfação do princípio da igualdade impõe o atendimento às diferenças individuais,
respeitando o direito de cada qual ser diferente.
Com a consagração do afeto a direito fundamental, imperioso mencionar o princípio
da afetividade.
O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações
familiares. Mesmo não constando a palavra afeto no Texto Maior como um direito
fundamental, pode-se dizer que o afeto decorre da valorização constante da dignidade
humana, da igualdade, da liberdade e da solidariedade.
Com efeito, é o princípio que fundamenta o direito de família na estabilidade das
relações socioafetivas e na comunhão de vida.
O princípio da afetividade compreende, sobretudo, a evolução do direito tornando um
instituto aplicável a todas as formas de manifestação da família, abrangidas ou não pela
legislação codificada, tendo como premissa uma nova cultura jurídica que possa permitir a
11 LÔBO. Código Civil comentado: direito de família, relações de parentesco, direito patrimonial: arts. 1.591 a 1.693, p. 39.
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proteção estatal de todas as entidades familiares, repersonalizando as relações sociais,
centrando-se no afeto como sua maior preocupação.
Pereira (2006, p. 236) pondera:
A relação de afeto constitui a diferença específica que define a entidade familiar. É o sentimento entre duas ou mais pessoas que se afeiçoam pelo convívio diuturno, em virtude de uma origem comum ou em razão de um destino comum que conjuga suas vidas tão intimamente.
Na jurisprudência nacional, o princípio da afetividade vem sendo muito bem aplicado,
com o reconhecimento da parentalidade socioafetiva, predominante sobre o vínculo
biológico.12
Tomando como base esse princípio, a jurisprudência vem construindo um novo perfil
para o direito de família. O casamento, antes tido como obrigação, vem sendo revestido de
aspectos tendentes a realizar os interesses afetivos e existenciais dos seus integrantes. A culpa
pela dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal deixa de ser ponto fundamental na hora
de decidir sobre uma separação; na verdade, não há que se falar em culpa quando se trata de
afetividade, é algo bastante subjetivo onde não se justifica delimitar ações judicantes apenas
com base no patrimonialismo.
O afeto é, sem sombra de dúvida, o principal fundamento das relações familiares.
Nesse sentido, a valorização desse princípio remonta as argumentações expostas por Vilella
(1979), quando o mesmo escreveu sobre a desbiologização da paternidade, trabalho, cuja
essência, era de demonstrar que o vinculo familiar ultrapassa o vínculo biológico, concluindo
12 “NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – ADOÇÃO À BRASILEIRA – CONFRONTO ENTRE A VERDADE BIOLÓGICA E A SÓCIO-AFETIVA – TUTELA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PROCEDÊNCIA – DECISÃO REFORMADA. 1. A ação negatória de paternidade é imprescritível, na esteira do entendimento consagrado na Súmula 149/STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é emanação do direito da personalidade. 2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade sócio-afetiva, decorrente da adoção à brasileira (isto é, da situação de um casal ter registrado, com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por quase quarenta anos, há de prevalecer à solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade sócio-afetiva, estando baseada na tendência de personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular adoção à brasileira, não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-ia as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado” (Tribunal de Justiça do Paraná, Apelação Cível 0108417-9, de Curitiba, 2ª Vara de Família. DJ 04/02/2002, Relator Accácio Cambi). “AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – ADOÇÃO À BRASILEIRA – PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA. O registro de nascimento realizado com o ânimo nobre de reconhecer a paternidade socioafetiva não merece ser anulado, nem deixado de se reconhecer o direito do filho assim registrado. Negaram provimento”. (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 00502131NRO-PROC70003587250, DATA 21/03/2002, Relator Rui Portanova, ORIGEM RIO GRANDE).
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que a parentalidade socioafetiva, baseada na posse de estado de filho, era uma nova forma de
parentesco civil.
A redação do artigo 3º da Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente -
inspirada na Declaração Universal dos Direitos da Criança, da qual o Brasil é signatário,
também contempla o aludido axioma, in verbis:
Art. 3º: A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
O artigo 4º caput do ECA assegura também o direito à convivência familiar à criança e
ao adolescente, quando determina que é dever da família garantir, prioritariamente, “a
efetivação dos direitos referentes à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária.”
Elias (2000, p. 6), ao analisar o referido artigo, indica que a raiz dos problemas dos
menores está na família e, todos devem empreender esforços para que esta família seja
fortalecida.
Não é inoportuno lembrar que quando se fala em família não está presente
obrigatoriamente aquela constituída pelo casamento, basta que exista uma comunidade onde
convivem os pais ou qualquer um deles com os descendentes.
Também o Código Civil, em seu artigo 1.638, inciso II, considerou, mesmo que por
via reflexa, o princípio da afetividade, ao dispor que: “Perderá por ato judicial o poder
familiar o pai ou a mãe que deixar filho em abandono”. Este tema, objeto do presente estudo,
será analisado no capítulo 4.
A afetividade, aspecto primordial ao desenvolvimento do presente estudo, será tratada
em item específico logo adiante.
Há que se mencionar, indubitavelmente, o princípio do melhor interesse da criança e
do adolescente (art. 227, caput, da CFB/1988, e arts. 1.583 e 1.584 do Código Civil).
Prevê o art. 227, caput, da Constituição Federal de 1988 que “é dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los
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a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão”.
Pereira (apud LIMA, 2004, p. 622-623), sobre a constitucionalização da Doutrina
Jurídica da Proteção Integral13, salienta:
De acordo com essa Doutrina, a população infanto-juvenil, em qualquer situação, deve ser protegida e seus direitos garantidos, além de terem reconhecidas prerrogativas idênticas às dos adultos. Por ela, ‘crianças e adolescentes são sujeitos de direitos universalmente conhecidos, não apenas direitos comuns aos adultos, mas além desses, de direitos especiais, provenientes de sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, que devem ser assegurados pela família, Estado e sociedade’. A proteção, como prioridade absoluta, não é mais obrigação exclusiva da família e do Estado: é um dever social.
Essa proteção é regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.
8.069/90), que considera criança a pessoa com idade entre zero e doze anos incompletos, e
adolescente aquele que tem entre 12 e 18 anos de idade.
Em reforço aos princípios constitucionais, o art. 3º do próprio ECA prevê que a
criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana,
sem prejuízo da proteção integral, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e as facilidades, a fim de facultar-lhes o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.14
Na ótica civil, essa proteção integral pode ser percebida pelo princípio do melhor
interesse da criança, ou best interest of the child, conforme reconhecido pela Convenção
Internacional de Haia, que trata da proteção dos interesses das crianças. O Código Civil de
2002, em dois dispositivos, acaba por reconhecer esse princípio de forma implícita.
O primeiro dispositivo é o art. 1.583 do Código Civil em vigor, pelo qual, no caso de
dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal pela separação judicial por consentimento
mútuo ou pelo divórcio direto consensual, será observado o que os cônjuges acordarem sobre
a guarda de filhos.
13 Adotada pelo Brasil, a Doutrina Jurídica da Proteção Integral, concebe que o cuidado é a base dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, indicados no art. 227 da CFB/1988. Ele está presente no direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à profissionalização, ao lazer, à cultura, à dignidade, à liberdade e à convivência familiar e comunitária; outrossim, toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão refletem o descaso, a falta de cuidado, o abandono. 14 Também complementando o que consta do Texto Maior, o art. 4º do ECA dispõe que “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.
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Segundo o Enunciado n. 101 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de
Direito Civil, a expressão guarda de filhos constante do dispositivo deve abarcar tanto a
guarda unilateral quanto a compartilhada, sempre atendido o melhor interesse da criança.15 Se
não houver acordo entre os cônjuges, a guarda deverá ser atribuída a quem revelar melhores
condições para exercê-la (art. 1.584 do CC). Certamente, a expressão melhores condições
constitui uma cláusula geral, uma janela aberta deixada pelo legislador para ser preenchida
pelo aplicador do Direito caso a caso.16
Como se pode perceber, no caso de dissolução da sociedade conjugal, a culpa não
mais influencia quanto à guarda de filhos, devendo ser aplicado o princípio que busca a
proteção integral ou o melhor interesse do menor, conforme o resguardo do manto
constitucional.
O pluralismo das entidades familiares é outro princípio basilar no Direito de Família
contemporâneo, pois a família constitui um fenômeno cultural, uma organização vinculada à
mudança.
O reconhecimento da pluralidade de formas de constituição de família se tornou
realidade no ordenamento jurídico brasileiro a partir da CFB/1988. Entretanto, o
entendimento de que a Constituição Federal admite outros tipos de entidades familiares, além
dos explicitados no art. 226 (monoparental, união estável, casamento), ainda é minoritário.
A proposta constitucional revolucionou o tratamento jurídico das relações familiares,
que antes se pautavam pelo individualismo, pois harmoniza-se com o rol de princípios e
regras em que ela se insere.
Nesse sentido, Lôbo (2009, p. 59) relaciona outros princípios implícitos no pluralismo
das entidade familiares:
A [...] tese da igualdade dos tipos de entidades consulta melhor o conjunto das disposições constitucionais. Alem do princípio da igualdade das entidades, como decorrência natural do pluralismo reconhecido pela Constituição, há de se ter presente o princípio da liberdade de escolha, como concretização do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Consulta a dignidade da pessoa humana a liberdade de escolher e constituir a entidade familiar que melhor
15 Foi aprovada recentemente a Lei n° 11.698/2008, que estabelece a guarda compartilhada. A lei foi sancionada no dia 13/06/2008 pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e entrou em vigor em agosto do mesmo ano. A nova lei dá aos pais que estiverem em processo de separação a opção pela guarda compartilhada, onde ambos dividem responsabilidades e despesas quanto à criação e educação dos filhos.
16O Enunciado n. 102 do Conselho da Justiça Federal, também aprovado na I Jornada de Direito Civil, prevê que “a expressão ‘melhores condições’ no exercício da guarda, na hipótese do art. 1.584, significa atender ao melhor interesse da criança”.
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corresponda à sua realização existencial. Não pode o legislador definir qual a melhor e mais adequada.
A questão que se impõe diz respeito à inclusão ou exclusão dos demais tipos de entidades familiares. A análise detida na dimensão e do alcance das normas e princípios contidos no art. 226 da Constituição, em face dos critérios de interpretação constitucional -, leva ao convencimento da superação do numerus clausus das entidades familiares.
Ademais:
Compreender a evolução do Direito de Família deve ter como premissa a construção e a aplicação de uma nova cultura jurídica, que nos conduz a conhecer a proposta de proteção às entidades familiares, estabelecendo um processo de repersonalização destas relações, e devendo centrar-se na manutenção do afeto, sua maior preocupação.
O desafio lançado consiste em aceitar o princípio democrático do pluralismo na formação das entidades familiais e, respeitando as diferenças intrínsecas de cada uma delas, efetivar a proteção e prover os meios para resguardar o interesse das partes, conciliando o respeito à dignidade humana, à intimidade e à liberdade com os interesses sociais (BRAUNER, 2004, p. 257).
Com efeito, o reconhecimento do pluralismo nas formas de constituição das famílias é
um grande avanço no que tange ao tratamento das relações interindividuais, e uma grande
ruptura com o modelo único de família, na medida em que reivindica maior atenção aos
direitos de igualdade e liberdade, assegurando a toda pessoa o direito de constituir vínculos
familiares e de manter relações afetivas, sem qualquer discriminação.
“Aceitar que outras formas relação merecem, igualmente, a proteção jurídica implica
reconhecer o princípio do pluralismo e da liberdade que vem personificar a sociedade pós-
moderna” (BRAUNER, 2004, p. 259).
Ademais:
A atualização do Direito de Família hoje exigida pela realidade social requer, além da superação do paradigma da família institucional, o reconhecimento dos novos valores e das novas formas de convívio constituintes das concretas formações familiares contemporâneas, que alcançam não só a citada ‘família fusional’, mas também, a família pós-moderna (RIOS apud BRAUNER, 2004, p. 269).
Assim, é necessário o acolhimento de soluções jurídicas ajustadas às situações de fato,
que exigem dos doutrinadores e julgadores o enfrentamento das realidades plúrimas que
emergem nas relações afetivas.
A pluralidade nas formas de constituir família, portanto, revaloriza e atribui novo
sentido às relações intrafamiliares, baseando-se na igualdade e na relevância dos laços
afetivos.
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Nesse contexto, Bianca (apud LÔBO, 2009, p. 59) afirma acerca da importância de tal
princípio, pois “a necessidade da família como interesse essencial da pessoa se especifica na
liberdade e na solidariedade do núcleo familiar”. Assim, a liberdade do núcleo familiar se
dimensiona na “liberdade do sujeito de constituir a família segundo a própria escolha e como
liberdade de nela desenvolver a própria personalidade (BIANCA apud LÔBO, 2009, p. 59).
2.1.4 Funções atuais da família: adequação à realidade
Ao longo da história, sempre foram atribuídas funções variadas à família, de acordo
com a evolução que sofreu, em virtude da própria transformação da sociedade, de ordem
religiosa, econômica, política e procracional. Contudo, a família atual busca sua identificação
na solidariedade – insculpida no art. 3º, I, da CF/1988 -, como um dos fundamentos da
afetividade, após o individualismo triunfante dos dois últimos séculos. Assim, “pode-se
expressar o contraste de uma maneira mais clara dizendo que a unidade da antiga sociedade
era a família como a da sociedade moderna é o indivíduo” (MAINE, 1893 apud LÔBO, 2009,
p. 3).
Em síntese, a família não deixou de exercer seu papel determinante na sociedade;
apenas mudou o enfoque: e a instituição para a realização individual de seus membros.
De todos os grupos humanos, a família desempenha o papel primordial na transmissão
da cultura. Conforme Lacan,
Se as tradições espirituais, a manutenção dos ritos e dos costumes, a conservação das técnicas e do patrimônio são com ela disputados por outros grupos sociais, a família prevalece na primeira educação, na repressão dos instintos, na aquisição da língua acertadamente chamada materna. Com isso, ela preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico, preside esta organização das emoções segundo tipos condicionados pelo meio ambiente, que é a base dos sentimentos, segunda Shand; mais amplamente, ela transmite estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência (LACAN apud PEREIRA, 2003, p. 14)
Assevera Lobo (2006, p. 1):
[...] A família atual está matrizada em paradigma que explica sua função atual: a afetividade. Assim, quando houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração e na comunhão de vida.
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A família de hoje, portanto, se sustenta mediante um modo operativo onde não mais
funciona como unidade produtora em que cada membro tinha uma tarefa definida na empresa
produtiva.
O que a realidade apresenta é um relacionamento totalmente diverso onde cada
membro da família trabalha em profissões diferentes e dirigindo suas próprias finanças,
quebrando-se, portanto, a unidade antes existente e exigindo que o Direito regule
especificamente as condutas a serem adotadas.
Nesse sentido, Pereira (apud DELGADO, 1981, texto digital) pondera:
Dever será, pois, do jurista captar a mensagem de seu tempo, para trabalhar no sentido da elaboração de um direito que atenda aos anseios da hora, sob pena de sua omissão concorrer para que a revolução em andamento subverta o conteúdo moral desta ordem jurídica em que vive e trabalha e tem o dever de preservar, e vá do ponto de aniquilar a dignidade humana.
Não se poderia esperar outra mudança paradigmática se não a contemplação do
elemento afetivo nas relações familiares. Nesse diapasão, Maria Berenice Dias preleciona:
Acabou a prevalência do caráter produtivo e reprodutivo da família, que migrou para as cidades e passou a conviver em espaços menores. Isso levou à aproximação dos seus membros, sendo mais prestigiado o vinculo afetivo que envolve seus integrantes. Existe uma nova concepção de família, formada por laços afetivos de carinho, de amor (DIAS, 2006, p.26).
Lima (2004, p. 625), igualmente, ao dissertar sobre a nova caracterização da família e
do poder familiar, aduz:
Naturalmente, a mudança do poder familiar reflete uma mudança mais ampla na própria entidade familiar. Anteriormente, a família era estruturada no casamento, na hierarquia, no chefe da família, na redução do papel da mulher, nos filhos legítimos, nas funções de procriação e de unidade econômica e religiosa; hoje sua base – seja fundada no casamento, na união estável, na monoparentalidade, na consanguinidade ou na adoção – está centrada no afeto.
E, assim, a sociedade vai caminhando em direção a uma concepção de família cada
vez mais tolerante e abrangente. Todavia, não obstante tais conquistas sociais e legislativas, o
direito de família ainda encontra, principalmente em países subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento, a resistência de muitos aplicadores do direito, provando que a religião e os
seus resquícios estão presentes firmes e fortes, influenciando o comportamento da sociedade,
com seus valores morais, rígidos, que propiciam o conservadorismo e, em alguns casos,
hipocrisia.
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Em tempos hodiernos, com a globalização, a velocidade da informação e da mutação
das relações sociais, não há mais como tutelar o individuo de forma eficaz sem,
periodicamente, rever os fundamentos, os valores que embasam ou embasaram um
ordenamento jurídico. O desafio do direito, hoje, é, justamente, acompanhar essas mudanças
que ocorrem no seio da sociedade, resguardando a dignidade da pessoa humana.
2.2 A afetividade nas relações familiares
Assim como as famílias mudaram, os núcleos familiares também sofreram alterações
em sua estrutura e composição. Após um longo período com uma característica
essencialmente patrimonial, a família composta por diversos membros começou a perder
força, bem como aquela formada apenas por filhos legítimos, seja por imposição legal, seja
porque os núcleos familiares passaram a valorizar novos contornos e passaram a se fundar em
um fator imprescindível para sua formação: o amor, o afeto!
A ideologia de preservação do instituto familiar, justificada por si só, em detrimento
da própria pessoa humana que a integrava foram abandonados. Preleciona, neste sentido,
Chaves:
Os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea sobrepujam e rompem, definitivamente, com a concepção tradicional de família. A arquitetura da sociedade moderna impõe um modelo familiar descentralizado, democrático, igualitário, e desmatrimonializado. O escopo precípuo da família passa a ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, regido o núcleo familiar pelo afeto, como mola propulsora (FARIAS, 2007, p.04).
É perceptível um novo movimento que tende a ampliar o conceito de família presente
na Constituição Federal, considerando como tal outros arranjos não elencados expressamente
em seu rol, reconhecendo o afeto como principal elemento agregador e caracterizador da
família, trazendo a justiça a um local mais próximo da realidade. Neste diapasão, a existência
da paternidade socioafetiva é a demonstração clara dos reflexos do afeto na família brasileira
e já tem sido objeto de julgamentos favoráveis (BRASIL, 2007).
Ao se sustentar que a existência do afeto é elemento constitutivo das entidades
familiares, não se está desprezando o seu caráter biológico, mas apenas pondo-o em
convivência harmônica com o elemento afetivo, porquanto a família não seja apenas um
fenômeno biológico, mas também cultural.
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Assim, é inegável que a nova tendência da família moderna é a sua composição
baseada na afetividade, como também, que o legislador não tem como criar ou impor a
afetividade como regra erga omnes, pois esta surge pela convivência entre pessoas e
reciprocidade de sentimentos.
Segundo Oliveira (2002, p. 233), "a afetividade, traduzida no respeito de cada um por
si e por todos os membros — a fim de que a família seja respeitada em sua dignidade e
honorabilidade perante o corpo social — é, sem dúvida nenhuma, uma das maiores
características da família atual."
Nesse sentido, ressalta-se a posição que uma pessoa ocupa dentro de um núcleo
familiar, ou seja, a família deve ser lastreada na cooperação, respeito, cuidado, amizade,
carinho, afinidade, atenção recíproca entre todos os seus membros.
Visível, portanto, que a família se insere numa nova tendência que busca,
primeiramente, a proteção da dignidade da pessoa humana, finalidade precípua do Estado
democrático de direito brasileiro. Não conceder efeitos jurídicos às uniões familiares distintas
das elencadas no rol do art. 226 da Constituição Federal é desproteger o indivíduo, é negar-lhe
pleno gozo aos direitos fundamentais, além de ser uma afronta gravíssima ao princípio
isonômico e à própria autonomia da vontade.
A afetividade, portanto, é um elemento fundamental nas relações paterno-filiais, capaz
de promover significativas transformações na família. Assim, é de extrema necessidade
realizar uma abordagem acerca do valor jurídico da afetividade nas relações familiares, haja
vista o afeto ser um dos seus elementos fundamentais.
2.2.1 A afetividade como paradigma jurídico da relação paterno-filial
Apesar da importância do amor para a pessoa e para a sociedade, não se discutia, até
pouco tempo atrás, sua relevância na seara jurídica. De uma forma ou de outra, o patrimônio
sempre ocupou lugar de destaque na legislação codificada, desde o advento do Código de
Napoleão.
A defesa da relevância do afeto, do valor do amor, torna-se muito importante não
somente para a vida social. A compreensão desse valor nas relações do Direito de Família
leva à conclusão de que o envolvimento familiar não pode ser considerado somente do ponto
de vista patrimonial-individualista. Há necessidade de ruptura dos paradigmas até agora
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existentes, para se poder proclamar, sob a égide jurídica, que o afeto é elemento relevante, a
ser observado na concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.
O Código Civil procurou atualizar aspectos relevantes do Direito de Família,
entretanto, não deu o passo mais significativo, olvidando-se, inclusive, de temas já
consagrados pela Constituição, sendo, por este motivo, alvo de variadas interpretações,
comentários e sugestões de emendas.
Aspecto que merece destaque é o uso da palavra “afetividade” pelo legislador quando
das disposições da proteção dos filhos nos casos de dissolução de sociedade ou do vínculo
conjugal.
O parágrafo único do art. 1.584, CC/2002 dispõe que quando for observado que os
filhos não devem permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, o juiz deferirá a sua guarda à
pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, levando em consideração o
grau de parentesco e relação de afinidade e “afetividade”, nos termos da legislação específica.
Sobre essa passagem do Código, manifesta-se Dias (2006, p. 68) aduzindo que, ainda
que tenha havido grande esforço por parte do legislador na elevação do afeto a valor jurídico,
o mesmo mostrou-se tímido ao criar as disposições legais, delimitando apenas situações
pontuais.
No entanto, inobstante ao entendimento da autora supra, a construção doutrinária e
jurisprudencial poderá insculpir nas mudanças vindouras um caráter afetivo nas normas de
Direito das Famílias, como já se observa em alguns julgados e posicionamentos.
2.2.2 A questão da repersonalização nas relações familiares
A família, ao converter-se em espaço de realização da afetividade, marca a mudança
da função econômica-política-religiosa-procracional para essa nova função, caracterizando o
desenvolvimento de um novo fenômeno jurídico-social denominado repersonalização das
relações civis, que valoriza o interesse pessoal mais do que a realização patrimonial (LÔBO,
2009).
Segundo o mesmo autor, “é a recusa da coisificação ou reificação da pessoa, para
ressaltar sua dignidade. A família é o espaço por excelência da repersonalização do direito”
(LÔBO, 2009, p. 12).
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Atualmente, já não se pode falar em família sem ter como uma de suas premissas a
afetividade.
A família, tendo desaparecido suas funções tradicionais, no mundo do ter liberal burguês, reencontrou-se no fundamento da afetividade, na comunhão de afeto, pouco importando o modelo que adote, inclusive o que se constitui entre um pai ou mãe e seus filhos. A comunhão de afeto é incompatível com o modelo único, matrimonializado, que a experiência constitucional brasileira consagrou, de 1824 até 1988. A afetividade, cuidada inicialmente pelos cientistas sociais, pelos educadores, pelos psicólogos, como objeto de suas ciências, entrou nas cogitações dos juristas, que buscam explicar as relações familiares contemporâneas. (LÔBO, texto digital, 2000).
Consubstanciando o princípio vetor da dignidade da pessoa humana no seu art. 1o, III,
a Carta Magna provocou uma autêntica revolução no Direito Civil como um todo, dando
ensejo a um fenômeno conhecido como despatrimonialização ou personalização deste ramo
do Direito. No campo específico do Direito de Família, verifica-se que a entidade familiar
passa a ser encarada como uma verdadeira comunidade de afeto e entreajuda, e não mais
como uma fonte de produção de riqueza como outrora.
Conforme preceitua Lobo (2009, p. 13), “a restauração da primazia da pessoa, nas
relações de família, na garantia da realização da afetividade, é a condição primeira de
adequação do direito à realidade”.
É o âmbito familiar o local mais propício para que o indivíduo venha a obter a plena
realização da sua dignidade enquanto ser humano, porque o elo entre os integrantes da família
deixa de ter conotação patrimonial para envolver, sobretudo, o afeto, o carinho, amor e a
ajuda mútua.
Nesse sentido, percebe-se que as relações familiares se tornam muito mais
verdadeiras, porque são construídas (e não impostas) por quem integra o instituto (e não por
um terceiro, um elemento estranho, como o legislador). O ser, finalmente, supera o ter,
fazendo com que o afeto se torne o elemento irradiador da convivência familiar. Assim:
O relacionamento entre os familiares, portanto, ganha uma nova roupagem. Passa a ser muito mais aberto, democrático e plural, permitindo que cada indivíduo venha a obter, de fato, a realização da sua felicidade particular. Isso porque, se a Constituição consagrou a dignidade da pessoa humana como superprincípio, assim o fez por ter encontrado na família pós-moderna um forte (talvez o principal) meio de sua propagação, pois é no âmbito familiar que o indivíduo cresce e adquire suas habilidades para a convivência social. (ALVES, 2001, texto digital).
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Chaves (2003) reforça essa idéia ao proclamar que, nos dias de hoje, predomina um
modelo familiar “eudemonista17, afirmando-se a busca da realização plena do ser humano.
Aliás, constata-se, finalmente, que a família é locus privilegiado para garantir a dignidade
humana e permitir a realização plena do ser humano”.
Desse modo, conclui-se que a família advinda da Constituição Federal de 1988 tem o
papel único e específico de fazer valer, no seu seio, a dignidade dos seus integrantes como
forma de garantir a felicidade pessoal de cada um deles. A construção de sonhos, a realização
do amor, a partilha do sofrimento, enfim, os sentimentos humanos devem ser compartilhados
nesse verdadeiro LAR, Lugar de Afeto e Respeito18.
Devido ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, a nenhuma espécie de vínculo
que tenha por base o afeto se pode deixar de conferir status de família, merecedora da
proteção do Estado (BARBOSA; VIEIRA; HIRONAKA, 2008).
Em outras palavras, a família deixa de ser constituída pelo vínculo jurídico (modelo
único de família) para ser reconhecida pelo ordenamento quando presente o intuitu familiae, o
afeto como elemento volitivo de sua formação (modelo aberto e plural de família). Por isso,
passa-se a conferir maior importância à dignidade de cada um dos membros da família e ao
relacionamento afetivo existente entre eles do que propriamente à instituição em si mesma.
A afetividade é determinante nas relações familiais Tanto é assim que, hodiernamente,
a paternidade afetiva deve ser considerada como a mais relevante, pois é a determinada por
uma construção diária, e não por mero fator de sangue:
A paternidade sociológica assenta-se no afeto cultivado dia a dia, alimentado no cuidado recíproco, no companheirismo, na cooperação, na amizade e na cumplicidade. Nesse ínterim, o afeto está presente nas relações familiares, tanto na relação entre homem e mulher (plano horizontal) como na relação paterno-filial (plano vertical), como, por exemplo, a existente entre padrasto e enteado), todos juntos pelo sentimento, na felicidade e no prazer de estarem juntos. (ASSUMPÇÃO, 2004, p. 53)
17 Expressão utilizada por Maria Berenice Dias, in: Manual de Direito das Famílias, p. 52. Segundo a autora, “surgiu um novo nome para a nova tendência de identificar a família pelo seu envolvimento afetivo: família eudemonista, que busca a felicidade individual vivendo um processo de emancipação de seus membros. A expressão eudemonista tem origem grega, se liga ao adjetivo feliz e denomina a doutrina que admite ser a felicidade individual ou coletiva o fundamento da conduta humana moral, isto é, que são moralmente oas as condutas que levam à felicidade (Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, Novo Dicionário da língua portuguesa, 592).” 18 Expressão utilizada por Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias, in: Direito de família e o novo código civil, p.11.
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A repersonalização das relações jurídicas de família é um fenômeno que avança,
revalorizando a dignidade humana, e tendo a pessoa como centro da tutela jurídica, antes
obscurecida pela preferência aos interesses patrimoniais.
Assim:
A criança, o adolescente, o idoso, o homem e a mulher são protagonistas dessa radical transformação ética, na plena realização do princípio estruturante da dignidade da pessoa humana, que a Constituição elevou ao fundamento da organização social, política, jurídica e econômica.
A repersonalização, posta nestes termos, não significa um retorno ao vago humanismo da fase liberal, ao individualismo, mas é a afirmação da finalidade mais relevante da família: a realização da afetividade pela pessoa no grupo familiar; no humanismo que só se constrói na solidariedade – no viver com o outro (LÔBO, 2009, p. 16).
À guisa de todo o exposto, resta demonstrado que a família deixou de ser um instituto
fechado e individualista para ser definida modernamente como uma comunidade de afeto e
entreajuda, local propício à realização da dignidade da pessoa humana e, por isso mesmo,
caracterizada como um ente voltado para o próprio homem, plural como ele mesmo é,
democrática, aberta, multifacetária, não discriminatória, natural e verdadeira.
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3 A FUNÇÃO PARENTAL
O papel dos pais tem crucial influência na vida dos filhos. Logo, esse papel não deve
ser visto tão-somente como um dever de sustento. Deve abranger, além disso, a subsistência
emocional, o dever de educação, a proteção da criança e do adolescente. São os pais que
devem possibilitar o desenvolvimento humano dos filhos, baseado nos princípios da
dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade, da solidariedade e da afetividade,
entre outros.
Comumente, a palavra responsabilidade, quando ligada aos pais, denota,
primeiramente, as atribuições que lhe são confiadas, ou seja, a responsabilidade como tarefa
ou obrigação dos pais (LIMA, 2004). Nesse sentido: “A responsabilidade dos pais consiste
principalmente em dar oportunidade ao desenvolvimento dos filhos, [...] em ajudá-los na
construção da própria liberdade. Trata-se de uma inversão total, portanto, da idéia antiga e
maximamente patriarcal do poder familiar. (HIRONAKA apud LIMA, 2004, p. 628).
Vieira discorre sobre a dimensão da função parental nomeando-a como uma
responsabilidade-tarefa. Aprofundando a questão, ela destaca:
Devem os genitores, solteiros, casados, separados, divorciados ou viúvos, ter a exata consciência de seu mister como pais e educadores de cidadãos do futuro, sendo certo que atos por eles praticados, poderão gerar graves prejuízos em face desses filhos.
Nesse sentido, a tão debatida questão acerca dos genitores que não visitam os seus filhos, a eles negando a mínima atenção. Há que se [...] ter ciência de que as crianças e adolescentes não podem padecer em virtude de sentimentos menores de adultos que têm a obrigação de estar preparados para exercer a paternidade/maternidade ou de encontrar meios para fazê-lo (HIRONAKA apud LIMA, 2004, p. 629).
Assim, tendo por base que a paternidade não é somente um estado, uma condição, mas
muito mais que isso, uma função, considera-se importante discutir a peculiaridades da
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paternidade e maternidade responsáveis, o que por si só já enseja um debate sobre o poder
familiar.
3.1 O poder familiar
Na definição de Lobo (2009), o poder familiar é o exercício da autoridade dos pais
sobre os filhos, em prol do interesse destes, e tem como característica a temporariedade, uma
vez que esse poder é exercido até a maioridade ou emancipação dos filhos.
Nesse sentido, assevera Diniz:
O poder familiar pode ser definido como um conjunto de direitos e obrigações, quanto à pessoa e bens do filho menor não emancipado, exercido, em igualdade de condições, por ambos os pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em vista o interesse e a proteção do filho. Ambos tem, em igualdade de condições, poder decisório sobre a pessoa e bens do filho menor não emancipado. Se, porventura, houver divergência entre eles, qualquer deles poderá recorrer ao juiz e a solução necessária, resguardando o interesse da prole (DINIZ, 2002, p. 447).
Bianca (apud Lôbo, 2009, p. 272) também retrata o poder familiar:
O poder familiar (potestà genitoria) é a autoridade pessoal e patrimonial que o ordenamento atribui aos pais sobre os filhos menores no seu exclusivo interesse. Compreende precisamente os poderes decisórios funcionalizados aos cuidados e educação do menor e, ainda, os poderes de representação do filho e de gestão de seus interesses.
Diante de tais afirmações, nota-se a importância do poder familiar, bem como a
imensurável responsabilidade que é atribuída aos pais, respaldada na legislação e nos
princípios constitucionais e infraconstitucionais.
No que tange ao ordenamento jurídico brasileiro, o Código Civil de 1916 assegurava o
exercício do pátrio poder exclusivamente ao marido, o chefe da sociedade conjugal. Somente
na falta ou impedimento deste é que cabia à mulher este poder, numa clara demonstração de
discriminação e subordinação feminina, características da época.
Com o advento do Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962), o rol de direitos da
mulher foi ampliado, sendo assegurado o pátrio poder a ambos os pais. No entanto, este era
exercido pelo marido com a colaboração da mulher, prevalecendo ainda a vontade do genitor
em caso de divergência.
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A CF/1988, em seu art. 5º, I, concedeu tratamento isonômico19 ao homem e à mulher,
outorgando a ambos os genitores o desempenho do poder familiar com relação aos filhos
comuns.
A reforma do Código Civil trouxe uma nova terminologia ao “pátrio poder”, que
passou a ser chamado poder familiar.
De acordo com Lôbo (2009), a definição de poder familiar está em desacordo com as
reais funções dos genitores, pois na relação paterno-filial, o foco não é o poder. Nesse sentido:
A denominação ainda não é a mais adequada, porque mantém a ênfase no poder. Todavia, é melhor que a resistente expressão “pátrio poder”, mantida, inexplicavelmente, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), somente derrogada com o Código Civil. Com a implosão, social e jurídica, da família patriarcal, cujos últimos estertores se deram antes do advento da Constituição de 1988, não faz sentido que seja reconstruído o instituto apenas deslocando o poder do pai (pátrio) para o poder compartilhado dos pais (familiar). A mudança foi muito mais intensa, na medida em que o interesse dos pais está condicionado ao interesse do filho, ou melhor, ao interesse de sua realização como pessoa em desenvolvimento (LÔBO, 2009, p. 271).
Tal afirmação vem ao encontro dos princípios elencados no capítulo anterior,
especialmente o princípio do melhor interesse da criança e o princípio da afetividade, pois a
criança deve receber carinho, cuidado, afeto, educação, entre outros, de forma a desenvolver-
se plenamente, como sujeito de direitos. Assim, havendo na legislação a expressão poder20, a
conotação é diferente, haja vista que a noção de poder remete a uma espécie de poder físico
sobre a outra pessoa (Lôbo, 2009).
Nesse contexto, Diniz explica:
Não só com relação à expressão poder familiar o Código Civil é criticado: repete o que já não tinha nem sentido, nem aplicabilidade na legislação pretérita, em face da ordem constitucional. Aparece como função dos pais a ser exercida no melhor interesse dos filhos. No entanto, não disciplina as questões do poder familiar nos novos modelos de família e mantém o antiquado instituto do usufruto dos bens do filho aos pais (COMEL apud DINIZ, 2006, p. 377).
19 O reconhecimento da igualdade entre homem e mulher está na CFB/1988. Dispõe o art. 5º, I, da CFB/1988: Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; e art. 226, § 5º da CFB/1988: Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. 20 Ainda com relação à terminologia, ressalte-se que as legislações estrangeiras mais recentes optaram por “autoridade parental”, a exemplo da França, que reformou o regime da autoridade parental fundamentando-se na perspectiva do melhor interesse do filho. (Lôbo, 2009). Diniz (2006, p. 377) participa da ideia, ao afirmar que a expressão autoridade parental “melhor reflete a profunda mudança que resultou da consagração constitucional do princípio da proteção integral de crianças e adolescentes (CF 227)”, pois o interesse dos pais está condicionado ao interesse do filho.
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50
O Código Civil de 2002, em seu art. 1.63021, descreve o direito dos filhos à proteção
familiar22, ressaltando que este deve ser exercido pelos pais.
Assevera Lôbo (2009, p. 274):
Extrai-se do art. 227 da Constituição o conjunto mínimo de deveres cometidos à família – a fortiori ao poder familiar – em benefício do filho, enquanto criança e adolescente, a saber: o direito à vida, à saúde, à alimentação (sustento), à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar. Por seu turno, o art. 229 estabelece que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores. Evidentemente, tal conjunto de deveres deixa pouco espaço ao poder. São deveres jurídicos correlativos a direitos cujo titular é o filho.
O ECA, acompanhando a evolução social, mudou o instituto familiar de forma
substancial, deixando de ter um sentido de dominação para tornar-se sinônimo de proteção,
“com mais características de deveres e obrigações dos pais para com os filhos do que direitos
em relação a eles (DINIZ, 2006, p. 377).
A autora ainda explica que “o poder familiar é sempre trazido como exemplo da noção
de poder-função ou direito-dever, consagradora da teoria funcionalista23 das normas de direito
das famílias: poder que é exercido pelos genitores, mas que serve ao interesse do filho”
(OLIVEIRA; MUNIZ apud DINIZ, 2006, p. 378).
Nesse diapasão, assevera Lima (2004, p. 627):
Com a substituição da ideia de predomínio do pai e submissão do filho pela ideia de amparo e proteção do menor, o poder familiar assumiu, nos dias atuais, a feição de um poder-dever, de um direito-função, situando-se numa posição intermédia entre poder e direito subjetivo. É um múnus público, dado o interesse social que envolve, ao qual o Estado mantém-se atento, fixando limites de atuação de seus titulares. O desrespeito a tais limites encontra, no sistema jurídico, uma resposta punitiva ou corretiva.
Os pais possuem deveres não apenas no campo material, mas, principalmente, no
campo existencial, notadamente na índole afetiva. A autoridade parental é o meio pelo qual os
direitos fundamentais dos filhos (à vida, à educação, à alimentação e sustento, à educação, ao
21Art. 1.630: Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores. 22 No Código Civil de 1916 não havia nenhuma definição de pátrio poder, da mesma maneira que não existe a definição de poder familiar no atual Código Civil. 23 Esta linha de raciocínio foi concretizada através da evolução do pensamento teórico: no direito atual contemporâneo, o direito individual cumpre uma função social, e esta função deve ser observada. O caráter extremamente individualista do direito deu lugar ao caráter social deste. Hoje, não basta ter direitos, tem-se que exercitá-los dentro dos limites socialmente toleráveis.
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lazer, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar, entre outros) são
efetivados, de modo a conduzi-los à autonomia responsável.
Conforme leciona ALVES (2001), verifica-se uma nova roupagem do dever de
sustento, guarda e educação dos filhos: o papel dos pais não se limita apenas ao simples
pagamento dos gastos da sua prole ao final do mês. É inegável, segundo ele, que o pagamento
das diversas despesas é indispensável à sobrevivência dos menores, mas ele não é a única
função dos pais, sequer a mais importante, até porque poderia ser facilmente preenchida por
um orfanato ou outra instituição de caridade qualquer, talvez até com maior eficiência.
É o acompanhamento psicológico, educacional e mesmo espiritual, o diálogo exercitado cotidianamente, a transferência de maturidade e de lições de vida, a participação efetiva na escolha do colégio, do esporte, da academia de balé, é estar sempre se renovando e se conhecendo para acompanhar as gradativas mudanças dos filhos, enfim, é preparar um ser humano intelectualmente equilibrado e certo dos seus valores para a vida em sociedade que define o verdadeiro papel do pai contemporâneo. (ALVES, 2001, texto digital).
Referente ao dever de educar, ele pode ser entendido, segundo Comel (2003, p. 102-
103), como aquele que:
implica obrigação de promover no filho o desenvolvimento pleno de todos os aspectos da personalidade, preparando-o para o exercício da cidadania e qualificando-o para o trabalho, seja através da educação informal, seja através da educação formal. [...] Informalmente, a educação acontecerá mediante atuação direta e permanente dos pais na vida do filho, no contato diário que mantém como ele. Essa forma de educação é extremamente importante a boa formação do filho, além de muito mais determinante ao desenvolvimento da personalidade do que a educação formal. É por meio dela que o pai vai passar ao filho os valores que tem como importantes na vida, transmitindo-lhe um ideário filosófico e religioso, bem como vai promovendo o desenvolvimento de virtudes e habilidades que, depois serão moldadas e ampliadas na educação formal. Reveste-se de significativo conteúdo afetivo e emocional, à medida que acontece espontaneamente, na convivência estabelecida com o filho, também de relevante valor no aspecto intelectual e social, refletindo, enfim, na formação do cidadão como um todo e no amadurecimento e aprimoramento da personalidade, com a transmissão de noções e conceitos que se integrarão de modo relativamente estável e duradouro na personalidade do filho. Aliás, é dessa estreita comunhão que resulta o ditado popular: tal pai, tal filho, ressaltando a importância, a gravidade e a extrema responsabilidade dos pais no tocante à educação do filho. A educação formal consiste na escolarização que se realiza em estabelecimento oficial de ensino.
Ademais, o poder familiar decorre tanto da paternidade natural, como da filiação legal,
e é irrenunciável, intransferível, inalienável e imprescritível, pois as obrigações que dele
surgem são personalíssimas. Dessa forma, o poder familiar deve ser entendido como uma
conseqüência da parentalidade, ou seja, deve ser exercido pelos pais, e somente por eles.
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Referente às características do poder familiar, convém dizer que ele é irrenunciável,
intransmissível e imprescritível.
É irrenunciável porque se trata de poder instrumental de evidente interesse público e social, de exercício obrigatório e de interesse alheio ao titular. Não se reconhece aos pais o direito de abrir mão do poder familiar segundo conveniências ou em proveito próprio. (...) É intransmissível pois somente pode ser atribuído aos que ostentam a qualidade de pai e de mãe - daí o caráter personalíssimo - não se admitindo sua outorga ou transferência a terceiros, seja a título que for. (...) É imprescritível, então, o poder familiar, não se extinguindo com o não-exercício. (COMEL, 2003, p.75-76).
Quando o filho está sob a guarda de somente um dos pais, restando ao outro apenas o
direito de visita, permanecem intactos tanto o poder familiar, como a guarda jurídica, pois
persiste o direito de fiscalizar sua manutenção e educação. A guarda absorve apenas alguns
aspectos do poder familiar (VENOSA, 2000). A falta de convivência sob o mesmo teto não
limita e nem exclui o poder-dever, que permanece íntegro, como estabelecem os artigos 1.632
e 1.636 do Código Civil24.
Como o poder familiar é um complexo de direitos e deveres, a convivência dos pais
não é requisito para a sua titularidade. Quando for deferida a guarda de um menor a terceiros,
ou estiver ele em família substituta, o guardião passa a exercer algumas prerrogativas do
poder familiar, o que, no entanto, não extingue o direito dos pais.
O Código Civil, em seu art. 1.63425, ao elencar as hipóteses de competência dos pais
com relação aos filhos menores foi omisso, ao não mencionar o afeto como uma dessas
competências.
Assevera Diniz:
Nesse extenso rol não consta o que talvez seja o mais importante dever dos pais com relação aos filhos: o dever de lhes dar amor, afeto e carinho. A missão constitucional
24 Art.1.632. A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos. Art. 1.636. O pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro. 25 Art. 1.634: Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação; II - tê-los em sua companhia e guarda; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
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dos pais, pautada nos deveres de assistir, criar e educar os filhos menores, não se limita a vertentes patrimoniais. A essência existencial do poder parental é a mais importante, que coloca em relevo a afetividade responsável que liga pais e filhos, propiciada pelo encontro, pelo desvelo, enfim, pela convivência familiar (TEIXEIRA apud DINIZ, 2006, p. 382)
Daí abstrai-se o fundamento para muitas das decisões judiciais que reconhecem a
responsabilidade civil por abandono afetivo, em face do descumprimento dos deveres
inerentes à autoridade parental de conviver com o filho, fato este que gera obrigação
indenizatória por dano afetivo.
Assevera Lima (2004, p. 625):
As relações familiares podem se desenvolver num clima de afetividade em que as necessidades do outro são tão ou até mais importantes do que as próprias necessidades. Nesse ambiente, os pais podem (ou devem) estar atentos às necessidade materiais, morais e intelectuais dos filhos e prontos para, na medida de suas possibilidades, atendê-las.
O princípio da proteção integral de crianças e adolescentes acabou por emprestar uma
nova configuração ao poder familiar, tanto que o inadimplemento dos deveres a ele inerentes,
tutela ou guarda, configura infração suscetível à pena de multa (ECA, art. 249).
Todos os filhos, do zero aos 18 anos, estão sujeitos ao poder familiar, que é exercido
pelos pais. Não é a verdade biológica, mas a verdade afetiva que lhes assegura a autoridade.
Nesse sentido, assevera Silva (2004, p. 40-41):
Trata-se, hoje, não mais de livre autoridade resultante da hierarquia familiar, mas de munus, uma espécie de função correspondente a um cargo privado a ser exercido no interesse dos filhos, devendo os pais cumprir com obrigações impostas pela ordem normativa, sendo esta importante característica da responsabilidade civil presente na relação paterno-filial, pois embora tenha o mundo antigo concebido, sim, deveres aos pais (pelos próprios arbitrados), a concepção de responsabilidades civis surge posteriormente, cabendo-lhes, hoje, certos deveres que escapam ao seu arbítrio, sendo determinados pelo estado.
Assim, como descreve Lôbo (2009), o interesse do filho, pessoa dotada de dignidade,
é inerente ao exercício do poder familiar, onde o papel dos pais é o de promover as
potencialidades criativas dos filhos, já que assumem muito mais uma função educativa do que
propriamente de gestão patrimonial.
No que se refere à perda ou suspensão do poder familiar, as regras procedimentais
contidas no ECA complementam o que estabelece o Código Civil. Pelo ECA, são legitimados
para a ação de perda ou suspensão deste poder familiar o Ministério Público ou quem tenha
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legítimo interesse. A suspensão pode ser decretada liminarmente ou de forma incidental,
ficando o menor confiado à pessoa idônea (art. 157).
Prevê o Código Civil, em atenção à perda do poder familiar:
Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I - castigar imoderadamente o filho;
II - deixar o filho em abandono;
III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
No tocante ao direito material, o ECA ressalta os deveres dos pais, enquanto o Código
Civil enfatiza as dimensões dos deveres decorrentes da paternidade.
3.2 A evolução do conceito de paternidade
Durante muito tempo, a paternidade biológica foi a regra geral. Era o vínculo
consangüíneo que estabelecia o parentesco.
Paternidade, na perspectiva jurídica, remete ao conteúdo do vínculo jurídico entre pai
e filho, refletido nas atribuições e nos deveres paterno-filiais positivados explícita ou
implicitamente na legislação.
No ordenamento jurídico brasileiro, pai é aquele que empresta seu nome na certidão de
nascimento do filho. Uma vez estabelecida a paternidade por meio do registro civil, surgem
direitos e obrigações, tais como sustento, guarda e educação. Contudo, não basta a imposição
legal para garantir o estabelecimento da paternidade (DINIZ, 1998).
Embora as leis, em geral, determinem a paternidade biológica como fonte de
responsabilidade civil, a verdadeira paternidade só é possível a partir de um ato de vontade.
Assim, ela pode coincidir, ou não, com o elemento biológico. Pode-se dizer que, na sociedade
atual, a paternidade, baseada puramente nos laços de sangue, é uma ficção, algo que já foi
superado, graças à evolução do próprio conceito de família e paternidade.
A ciência desvendou os segredos da genética e da hereditariedade, possibilitando
determinar-se esses vínculos de filiação sob o aspecto biológico. No entanto, se com o DNA a
paternidade é reconhecida sem que restem dúvidas, há que se indagar a respeito dos efeitos
decorrentes desta. Por assim dizer, não é suficiente a simples descoberta da verdadeira
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paternidade; torna-se necessário saber como operá-la, em razão das conseqüências que podem
surgir para as partes envolvidas advindas desta situação.
Destarte, reconhece-se a aptidão da ciência de identificar a origem genética dos
indivíduos, o que, infelizmente, não assegura a construção de laços sólidos de solidariedade e
responsabilidade, caracterizadores da relação entre pai e filho. A filiação estabelecida por esta
via, por vezes, não significará nada mais do que a menção, na certidão de nascimento, da
paternidade, e a conseqüente possibilidade de reivindicação de direitos patrimoniais. "Ora,
não se pode negar que o vínculo relacional entre pai e filho não se cria através de um
documento, é preciso querer ser pai ou ser mãe e, de parte da criança, é necessário se sentir
como filho” (BRAUNER, 2000).
Ao tratar esta questão, agora na modernidade, é mais importante captar a função da
família na formação da personalidade dos seus membros. Assim, nota-se a importância do
afeto, preponderando à simples contingência dada pela biologia.
Pertinente, portanto, a observação de Madaleno (2000, p. 41)) feita antes da entrada
em vigor do Novo Código e que hoje confirma-se:
A Carta Política de 1988 garante a todos os filhos o direito à paternidade, mas este é o sutil detalhe, pois que se limita ao exame processual e incondicional da verdade biológica sobre a verdade jurídica. Entretanto, adota um comportamento jurídico perigoso, uma vez que dá prevalência à pesquisa da verdade biológica, olvidando-se de ressaltar o papel fundamental da verdade socioafetiva, por certo, a mais importante de todas as formas jurídicas de paternidade, pois, seguem como filhos legítimos os que descendem do amor e dos vínculos puros de espontânea afeição e, para esses caracteres a Constituição e a gênese do futuro Código Civil nada apontam, deixando profunda lacuna no roto discurso da igualdade, na medida em que não protegem a filiação por afeto, realmente não exercem a completa igualização.
Diante da crescente consciência dos tribunais (antes mesmo da entrada em vigor do
Código Civil de 2002, como se verifica no julgado a seguir) perante o aperfeiçoamento das
leis, o conceito de paternidade está se adequando aos dias atuais.
EMENTA: APELAÇÃO. ADOÇÃO. Estando a criança no convívio do casal adotante há mais de 4 anos, já tendo com eles desenvolvido vínculos afetivos e sociais, é inconcebível retira-la da guarda daqueles que reconhece como pais, mormente, quando a mãe biológica demonstrou interesse em dá-la em adoção, depois se arrependendo. Evidenciado que o vínculo afetivo da menor, a esta altura da vida encontra-se bem definido na pessoa dos apelados, deve-se prestigiar, como reiteradamente temos decidido neste colegiado, a PATERNIDADE SOCIOAFETIVA, sobre a paternidade biológica, sempre que, no conflito entre ambas, assim apontar o superior interesse da criança. Negaram Provimento (Apelação Cível nº 000190039. Sétima Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Des. Luiz Felipe Brasil Santos. Julgado em 02/05/2001).
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O pai (socio)afetivo, de acordo com os lineamentos recentes apreendidos na vivência
das relações familiares, é o que detém o papel do PAI em suas mãos. Ademais, se o afeto
venceu a falta de consangüinidade, não cabe à justiça desconstituir a paternidade socioafetiva
que surgiu entre esse pai e esse filho.
Ressalta-se que, em sede de paternidade, consideram-se três tipos de vínculo: o
jurídico, o biológico e o socioafetivo. Tanto o vínculo jurídico quanto o biológico já são
consagrados pelo ordenamento pátrio. No tocante ao vínculo paterno-afetivo, este se
caracteriza como uma nova forma de determinar afiliação, fundamentada não somente em
critérios biológicos ou jurídicos, mas, sobretudo nas relações de afeto paterno-filiais
(ASSUMPÇÃO, 2004, p. 37).
Assim, a verdade biológica vem cedendo, cada vez mais, espaço para a verdade
socioafetiva, erigida com bases nas situações de afeto mútuo entre pai e filho.
Vale informar o que ensina Almeida (2001):
O novo posicionamento acerca da verdadeira paternidade não despreza o liame biológico da relação paterno-filial, mas dá notícia do incremento da paternidade socioafetiva, da qual surge um novo personagem a desempenhar o importante papel de pai: o pai social, que é o pai de afeto, aquele que constrói uma relação com o filho, seja biológica ou não, moldada pelo amor, dedicação e carinho constantes.
Assumpção (2004, p. 51) dimensiona a paternidade socioafetiva:
O termo “paternidade”, em seu sentido plural, apresenta-se rico em nuanças, que apontam a composição de um mosaico, que é a convivência cotidiana entre pais e filhos, mediante a expressão de seus anseios e objetivos, que perpassam os mais variados aspectos da relação. E o emprego da expressão “paterno-filial” é feito em sua homenagem, pois quer apontar as pessoas que estão inseridas nessa relação independentemente do modo de constituição a ela relacionado.
A paternidade socioafetiva pode ser definida como aquela em que há, por parte do pai,
o desempenho de um papel protetor, educador e emocional, devendo, por esse motivo, ser
considerado como verdadeiro pai em caso de conflito de paternidade.
Assim:
A paternidade afetiva expressa um espaço em que cada membro busca a realização de si mesmo através do outro. Nesse espaço reina o companheirismo e a camaradagem, a família eudemonista, em que cada um busca, dentro dela, sua própria realização, seu próprio bem-estar e felicidade (ASSUMPÇÃO, 2004, p. 53).
O verdadeiro sentido da paternidade pode ser abstraído na exagerada, porém
perspicaz, ideia do jornalista Paulo Santana:
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[...] Chega a ser espetacularmente filosófico que não tem valor moral algum o registro de nascimento que os pais fazem em cartório: os filhos é que depois de criados, tinham que ir ao cartório para registrar e declarar se reconhecem ou não reconhecem os seus pais como verdadeiros pais. Ou seja, fica paradoxal e sublimemente provado, por esse importante detalhe, que filhos não nascem da caverna do ventre, mas têm origem e se legitimam nas dobras do coração (SANTANA, In: Jornal Zero Hora, 2003).
Assim, de nada adianta a paternidade ser formalmente comprovada se na prática diária
ela não se traduz efetivamente, através do cuidado, do afeto, da presença na vida do filho. Ou
seja, a filiação é obra de uma relação de afeto construída diariamente, em ambiente de sólida e
transparente demonstração de amor à pessoa gerada por indiferente origem genética, pois
importa ter vindo ao mundo para ser acolhida como filho por afeição.
Nos dizeres de Madaleno (2007, p. 161), “a filiação socioafetiva é a real paternidade
do afeto e da solidariedade; são gestos de amor que registraram a colidência de interesse entre
o filho registral e o seu pai de afeto”. Assim:
O reconhecimento do genitor biológico não pode prevalecer sobre a paternidade construída na convivência familiar, que frequentemente ocorre entre a mãe que registrou o filho e outro homem, com quem casou ou estabeleceu união estável, e que assumiu os encargos da paternidade (NICOLAU JÚNIOR apud LÔBO, 2009, p. 131-132).
Não é outra a interpretação reiterada da jurisprudência pátria, como disto são
exemplos:
PATERNIDADE. RECONHECIMENTO. QUEM, SABENDO NAO SER O PAI BIOLOGICO, REGISTRA COMO SEU FILHO DE COMPANHEIRA DURANTE A VIGENCIA DE UNIAO ESTAVEL ESTABELECE UMA FILIACAO SOCIO-AFETIVA QUE PRODUZ OS MESMOS EFEITOS QUE A ADOCAO, ATO IRREVOGAVEL. ACAO NEGATORIA DE PATERNIDADE E ACAO ANULATORIA DE REGISTRO DE NASCIMENTO. O PAI REGISTRAL NAO PODE INTERPOR ACAO NEGATORIA DE PATERNIDADE E NAO TEM LEGITIMIDADE PARA BUSCAR A ANULACAO DO REGISTRO DE NASCIMENTO, POIS INEXISTE VICIO MATERIAL OU FORMAL A ENSEJAR SUA DESCONSTITUICAO. EMBARGOS REJEITADOS, POR MAIORIA. (Embargos Infringentes Nº 599277365, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 10/09/1999).
AÇÃO DE ANULAÇÃO DE RECONHECIMENTO DE FILHO EXTRAMATRIMONIAL. PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. NÃO OFENDE A VERDADE O REGISTRO DE NASCIMENTO QUE ESPELHA A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA, MESMO QUE NÃO CORRESPONDA A PATERNIDADE BIOLÓGICA. ACOLHERAM OS EMBARGOS. (Embargos Infringentes Nº 70000904821, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 10/11/2000).
NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - ‘ADOÇÃO À BRASILEIRA’ - CONFRONTO ENTRE A VERDADE BIOLÓGICA E A SÓCIO-AFETIVA - TUTELA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PROCEDÊNCIA -
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DECISÃO REFORMADA - 1. A ação negatória de paternidade é imprescritível, na esteira do entendimento consagrado na Súmula nº 149/STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é emanação do direito da personalidade. 2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade sócio-afetiva, decorrente da denominada ‘adoção à brasileira’ (isto é, da situação de um casal ter registrado, com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por quase quarenta anos, há de prevalecer a situação que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade sócio-afetiva, estando baseada na tendência de personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular ‘adoção à brasileira’, não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-ia as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado. (Apelação Cível nº 108.417-9, 2ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do PR, Relator: Des. Accácio Cambi, Julgado em 12/12/2001).
Nesse diapasão:
Somente a falta de maior percepção quanto a esse novo paradigma axiológico pode justificar certas perplexidades frente às decisões judiciais que retiram crianças de seus pais de afeto, para entregá-las a seus pais genéticos, sem sequer, questionarem-se do sentido da expressão: bem-estar da criança. (BRAUNER, 2000, p. 215).
Despreendendo-se da concepção de paternidade biológica, pode-se afirmar, em suma,
que a paternidade constitui verdadeiramente uma função, a qual é determinante e estruturante
dos sujeitos, sendo a afetividade um elemento fundamental nas relações paterno-filiais, capaz
de promover significativas transformações na família (PEREIRA, 2003).
Nesse contexto, Delinsky explica:
O ato de ser pai não se limita à procriação, mas exige amar, compartilhar, cuidar, construir uma vida, juntos. E se a procriação é apenas um dado, a afetiva relação paterno-filial exige mais do que apenas os laços de sangue. Assim, através da ‘posse de estado de filho’ vai se revelar essa outra paternidade, fundada nos laços de afeto (DELINSKY apud PEREIRA, In: O cuidado como valor jurídico, 2006, p. 237).
Imperioso mencionar Gama26 (2003, apud MADALENO, 2007, p. 163):
A filiação afetiva tem seu fundamento no afeto, pois nem sempre o melhor pais ou mãe é aquele que biologicamente ocupa tal lugar, mas a pessoa que exerce tal função, substituindo o vínculo biológico pelo afetivo [...]. Tal orientação vem merecendo atenção por parte de vários sistemas jurídicos que reformaram suas legislações em matéria de filiação, com a introdução, por exemplo, da noção de posse de estado de filho [...]. No direito brasileiro, com base no melhor interesse da criança, tem-se considerado a prevalência do critério socioafetivo para fins de assegurar a primazia da tutela à pessoa, no resguardo dos seus direitos fundamentais, notadamente o direito à convivência familiar.
26 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O biodireito e as relações parentais, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 482-483.
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O conceito de paternidade afetiva, portanto, deve ser compreendido no âmbito do
afeto, fator determinante para a configuração ou não da função paterna.
3.3 A paternidade no Código Civil e Estatuto da Criança de do Adolescente
A mudança do direito de família da legitimidade jurídico-biológica para o plano da
afetividade redireciona a função tradicional da presunção pater is est, consagrada no Código
Civil de 1916. Desarte, sua função deixa de ser a de presumir a legitimidade do filho, em
razão da origem patrimonial, para a de presumir a paternidade em razão do estado de filiação,
independentemente de sua origem ou de sua concepção.
Imperioso salientar, inicialmente, que é pertinente discorrer não somente sobre a
importância do papel paterno no desenvolvimento dos filhos, mas também a relevância da
figura materna na vida da prole.
Aliás, é de se frisar que o abandono materno e a má-conduta na criação e educação por
parte da genitora, causa, sem sombra de dúvidas, conseqüências totalmente irreparáveis ao
futuro adulto, que também estarão sob o manto da responsabilização civil.
Todavia, em relação ao pai, por muito tempo admitiu-se que este se mantivesse
afastado do acompanhamento do desenvolvimento dos filhos, sem se atentar à importância
dessa aproximação e das conseqüências da ausência. E também, sempre foi mais comum que
os pais se desincumbissem da criação e educação dos filhos, principalmente quando separados
da mãe.
O Código Civil de 1916 surgiu numa época em que a atividade econômica era
preponderantemente rural e no núcleo familiar as pessoas trabalhavam para se sustentarem e
preservarem tal instituição. Com isso, o homem assumia o lugar de maior destaque dessa
união familiar, sendo a mulher renegada ao segundo plano, tendo a incumbência de cuidar da
casa e dos filhos. No tocante a esse tipo de constituição familiar, o matrimônio era a chave
para que se pudesse integrar de forma efetiva a sociedade e gozar dos direitos que
constituíssem o ordenamento jurídico brasileiro.
O antigo diploma foi determinante, principalmente no que se refere às relações
familiares, pois regulamentou todas as relações jurídicas civis em um único instrumento legal,
que refletia de forma hegemônica todo o pensamento e a ideologia do início do século XX.
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Necessário se fez, pois, que houvesse uma modificação desse pensamento, o que veio
acontecendo através do desenvolvimento histórico e da evolução científica do homem, o que
conduziu a uma profunda transformação da sociedade e, conseqüentemente, da forma com
que eram encaradas as relações entre os indivíduos.
Tal transformação possibilitou a inserção de novos valores, menos rígidos27
,
cultivando um campo fértil para a evolução de novas formas de relações familiares.
Acompanhando e evolução nas relações familiares, a Lei n. 8.069/90, Estatuto da
Criança e do Adolescente mudou substancialmente o instituto do poder familiar – com
exceção da terminologia -, trazendo novos elementos sobre a concepção de paternidade e
poder familiar, o qual deixou de ter um sentido de dominação para se tornar sinônimo de
proteção. Isso caracterizou mais deveres e obrigações os pais para com seus filhos do que
deveres e direitos em relação a eles (DIAS, 2006).
No entendimento de Pereira (2003), com o advento do ECA, houve uma ampliação do
conceito de pai, realçando sua função social e, conseqüentemente, modificando a
compreensão do ordenamento jurídico brasileiro, de que pai é muito mais importante como
função do que propriamente como genitor. Obviamente, o mesmo vale para as funções
maternas.
O advento do Código Civil de 2002 representou um passo adiante ao dispositivo
constitucional (art. 227, § 6º) no âmbito da paternidade que legitimou todos os filhos havidos
dentro ou fora do casamento, estabelecendo, em seu art. 1.593, que o vínculo da paternidade
está para além da consangüinidade, ou seja, é o reconhecimento jurídico da paternidade
socioafetiva.
O Código Civil de 2002, cumprindo a expectativa de que disciplinasse acerca das
novas situações que vinham surgindo, trouxe em seu art. 1.59328
a possibilidade de haver
reconhecida a paternidade socioafetiva.
Valendo-se, igualmente, do teor do art. 1604 do Código Civil, tem-se que o pai
socioafetivo que registra filho de outro como seu, não pode contestar tal registro, a não ser se
provar que foi levado a erro, situação que não ocorreria no caso suposto acima.
27 No sentido de não haver mais tanta submissão à figura masculina, ou seja, a descaracterização da subordinação da esposa e dos filhos ao pai, “chefe da família”. 28
Dispõe o artigo 1.593: O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.
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Dessa forma, unindo os argumentos anteriormente explicados, conclui-se que é, não só
viável, como também, imprescindível, se a criança necessitar, que o pai - (sócio)afetivo e
jurídico - preste alimentos a seu favor, uma vez que, tendo criado-a como filho, agindo para
com ela com amor, compreensão e sensibilidade de pai, não há justificativa para que,
rompendo o vínculo com a companheira, deixe de assistir àquele que recebeu como filho.
Para ilustrar tal entendimento, tem-se a jurisprudência a seguir, que considerou o pai
afetivo ter registrado o filho:
Ao reconhecer a paternidade, assumiu o pátrio poder e com ele todos os encargos decorrentes, como é o caso do pagamento de pensão alimentícia. A filiação foi constituída pelo próprio autor, e como a Constituição Federal não permite a discriminação de filho de qualquer natureza, art. 22, parágrafo 6º, o pagamento de pensão alimentícia é decorrência lógica ao reconhecimento da paternidade. Presentes estão os pressupostos da obrigação alimentar. A necessidade da menor é presumida e, por se tratar de alimentos naturais, o pai deve continuar com o pagamento de pensão alimentícia, conforme ele próprio já admitiu em acordo. Ante o exposto, julgo improcedente o pedido para declarar a existência do vinculo de paternidade-filiação entre a ré e o autor, mantendo o nome de seu pai no registro de nascimento e ainda o nome de seus avós paternos. Homologo o acordo de alimentos para que o mesmo surta seus jurídicos e legais efeitos. Ressalvo a ré o direito de revogar o vínculo, na forma e no prazo legal, se assim o desejar, quando atingir a maioridade sob pena de ser um humano, menor de idade, ser atingido na sua dignidade, ao perder as suas raízes que estruturam a sua identidade de pessoa humana.
29
Considerando outro caso de adoção à brasileira30
, fica ainda mais evidente o dever do
pai socioafetivo em exercer a autoridade parental, em todos os aspectos, em relação aos filhos
menores, uma vez que, vivendo com sua companheira, decidiu registrar os filhos dela em seu
nome, assumindo de forma ainda mais incontestável, a paternidade socioafetiva.
Assim, a doutrina se coloca no sentido de que, quando o dispositivo se refere à “outra
origem”, o legislador quis significar que essa seria também a origem socioafetiva do
parentesco, ou seja, aquele guiado pelo carinho, respeito, afeição e dedicação, mesmo que a
relação existente entre seus sujeitos não advenha do parentesco biológico, o qual era tido
como o único que poderia gerar efeitos jurídicos e sociais.
29 1a Vara de Família e Sucessões da Comarca de Porto Alegre – processo n º 01295046435. 30 Mais rara nos últimos tempos, teve sempre como razão propulsora um sentimento humanitário e de bondade. Passava a largo da lei. Traduzia-se no ato de muitos que "apanharam" em hospitais ou em outro lugar, ou receberam das próprias mães sob alegação de falta de condições para criá-las, crianças recém-nascidas ou não, registraram como se fossem seus filhos e nunca se ouviu dizer que em qualquer tempo, pudessem ter sido questionadas pelos adotados ou por quem quer que seja. A doutrina constantemente tece críticas à chamada “adoção à brasileira”, considerando-a um entrave à legalidade e à própria essência da justiça do ato adotivo.
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Tendo sido expostos alguns aspectos que envolvem a questão central da paternidade
socioafetiva, deve-se dizer que esta é apontada pela doutrina como a manifestação de três
pilares básicos: nome, trato e fama. Esta é, pois, a posse do estado de filho. O nome significa
o fato de o filho socioafetivo usar o nome do pai, como se biológico fosse. A questão do trato
diz respeito à forma com que o pai se dirige a esse filho, dando-lhe carinho, afeto, educação,
responsabilidade e transmitindo-lhe valores; ou seja, é a exteriorização da paternidade. A
fama, por sua vez, concerne ao fato de que, para a sociedade, em geral, aquele indivíduo se
mostra, realmente, como um pai “verdadeiro”, que cumpre as funções paternas que se
esperam dele, isto é, trata-se da notoriedade do estado de pai.
Logo, entende BOEIRA (1999, p. 60):
[...] Posse de estado de filho é uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai.
A posse ao estado de filiação é, aliás, um direito de toda e qualquer pessoa, o que será
detalhado a seguir.
3.4 O direito ao estado de filiação
O reconhecimento da progenitura paterna é concebido como um direito subjetivo
privado do ser humano, tendo sido caracterizado por uma história legislativa de avanços e
conquistas na esfera infraconstitucional brasileira.
A desconformidade da paternidade jurídica estabelecida pelo Código de 1916 com a
real, até então considerada a do ponto de vista biológico, levou à reflexão do que seria a
verdadeira paternidade, atentando para a realidade afetiva que liga um filho a um pai. A
presunção de paternidade, antes atrelada à defesa da família calcada no casamento, à proteção
da legitimidade da filiação e à intenção de manter a autoridade do marido, abre as portas para
alterações axiológicas do meio, que levam à busca do verdadeiro sentido da filiação.
Surge, então, o aspecto socioafetivo do estabelecimento da filiação, baseado no
comportamento das pessoas que integram a tríade pai-mãe-filho. Essa observação revela que o
afeto, aspecto aparentemente mais incerto, apesar de um ente abstrato, em muitos casos é o
mais apto a revelar quem são os pais, pois "a verdadeira paternidade decorre mais de amar e
servir do que de fornecer material genético” (CARBONERA, 1998).
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Os marcos legais consubstanciam-se no Código Civil de 1916, em seu artigo 35831
, até
chegar à CFB/1988, que consagra o tratamento isonômico da filiação, proibindo qualquer
forma de discriminação, em atenção ao princípio vetor da dignidade da pessoa humana.
Conforme Almeida (2004), o conhecimento da origem biológica sempre foi, na
perspectiva infraconstitucional, um instrumento de direito subjetivo para alcançar outros
direitos subjetivos inerentes ao “status” de filho e eminentemente patrimoniais.
Contudo, a concepção contemporânea desse direito começa a sofrer modificações, em
face da nova ordem axiológica estampada em documentos internacionais e na CFB/1988,
seguida pelo ECA, entre outros.
Assim:
A nova vitalidade ao direito subjetivo em questão é a consagração do direito à revelação da ascendência genética paterna como direito fundamental, mais humanitário e personalista, e menos funcional ou instrumental, ainda, despatrimonializado, direito este que busca garantir à pessoa o estabelecimento da sua origem biológica como ponto para ascender ao status de filho e fundar sua ampla personalidade como pessoa humana, constituída de uma organização dinâmica a partir de características inatas que surgem no momento de sua concepção e que a acompanham por toda a vida (ALMEIDA, 2004, p. 422).
Esta mudança de natureza, do direito ao conhecimento da origem genética como um
direito fundamental e personalíssimo, é consagrada por duas normas infraconstitucionais,
quais sejam, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e a Lei da Averiguação e
Investigação da Paternidade Extramatrimonial (Lei 8.560/92)32
.
Em 1990, a Lei 8.069 promulgou o Estatuto da Criança e do Adolescente, que
disciplina os interesses da criança. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana,
fundamento do nosso Estado democrático de Direito, elevado a status constitucional, é
concretizado pelo Estatuto quando destaca a proteção à família natural, entendida como "a
comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes" e consagra a
igualdade da filiação, bem como o direito de seu reconhecimento, disposto em seus artigos 26
e 27.
31 Dizia o art. 358: Os filhos incestuosos e adulterinos não podem ser reconhecidos. 32 Esta lei consagrou o direito ao conhecimento da origem biológica paterna como um direito indisponível e de interesse público, deslocando tal direito do eixo subjetivo privado para o eixo fundamental público (ALMEIDA, 2004, p. 424).
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Dispõe o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente que "o reconhecimento do
estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser
exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição".
Às três espécies familiares equiparadas pelo texto constitucional para fins de proteção
estatal - família legítima, criada pelo casamento; união estável, decorrente da união de um
homem com uma mulher ausente o vínculo matrimonial; e família natural, ou comunidade
familiar, formada por ambos os genitores ou apenas um deles e seus descendentes – uniu-se
outra, introduzida no sistema jurídico pelo Estatuto da Criança e do Adolescente: a família
substitutiva, na qual a criança é colocada, na falta ou em lugar daquela em que nasceu, para
receber melhores condições de vida, e na qual assume integralmente o papel de filho.
Silva (2004, texto digital) enfatiza a necessidade de discutir o direito ao estado de
filiação, ao dizer que:
A concepção eudemonista traduz a verdade socioafetiva, consistente na própria valoração do sujeito. A alteração da percepção jurídica de família trazida pela Constituição e acompanhada pelos diplomas que se seguiram, impõe a construção de um novo sistema de filiação. Essa inovação de alvo objeto de proteção deve ser considerada, por ser dever da ciência jurídica progredir concomitantemente ao ser humano. Por fim, resta afirmar que o afeto deve ser apreciado por tomar lugar de destaque no reconhecimento das relações paterno-filiais, tornando a família instrumento de realização de quem a compõe.
A Constituição Federal de 1988 e as Leis nº 8.069/90 e 8.560/92, anteriormente
mencionadas, canonizaram a paternidade biológica, sendo que o filho, a qualquer tempo, pode
investigar a paternidade contra o pai genético.
A CFB/1988 proíbe qualquer discriminação entre filhos, não afastando, à toda
evidência, o filho de direito ou de fato. Determina o cumprimento dos princípios da dignidade
da pessoa humana e da cidadania, elevados à categoria de fundamento da República - art. 1º,
incisos II e III - e do princípio da prevalência dos interesses do menor, concretizados no
Estatuto da Criança e do Adolescente.
Neste diapasão, quando se prioriza os interesses do menor e rompe-se com as
definições biológicas e formais de família, concebe-se esta como uma comunidade de afeto. A
abstração destes termos conduz à busca de elementos identificáveis nas práticas dos grupos
sociais, que permitam o reconhecimento de relacionamentos que possam ser nomeados de
"família socioafetiva". Estes exteriorizam-se na posse de estado de filho, pois "Não há modo
mais expressivo de reconhecimento do que um pai tratar o seu filho como tal, publicamente,
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dando-lhe proteção e afeto, e sendo o filho assim reputado pelos que, com ele, convivem”
(BOEIRA33 apud SILVA, 2004, texto digital).
Cornu (apud LÔBO, 2004, p. 527) explica que “o direito à filiação não é somente um
direito da verdade. É, também, em parte, um direito da vida, do interesse da criança, da paz
das famílias, das afeições, dos sentimentos morais, da ordem estabelecida, do tempo que
passa...[...]”.
Sobre tal direito, Perlingieri afirma:
[...] O menor tem o direito de conhecer as próprias origens não somente genéticas, mas culturais e sociais. O patrimônio genético não é totalmente insensível no seu futuro às condições de vida nas quais a pessoa opera. Conhecê-lo significa não apenas evitar o incesto, possibilitar a aplicação da proibição de núpcias entre parentes, mas responsavelmente, estabelecer uma relação entre o titular do patrimônio genético e quem nasce (PERLINGIERI apud ALMEIDA, 2004, p. 429).
Essa prevalência do direito do filho deve-se, ainda, à consideração ao direito natural
da individualidade e da diversidade, além da identificação pessoal e social.
Em suma, as regras jurídicas que norteiam o direito ao estado de filiação devem ser
concebidas como fiéis garantidoras desse direito. Somente assim é que se poderá entender o
estado de filiação como um direito fundamental do ser humano, em face de sua dignidade e
personalidade.
3.5 A proteção à criança e ao adolescente na legislação brasileira
O século XX é o século da descoberta, valorização, defesa e proteção da criança, no
qual formulam-se os seus direitos básicos, reconhecendo-se, com eles, que a criança é um ser
humano especial, com características específicas, e que tem direitos próprios.
Até se reconhecer a criança e o adolescente como sujeitos de direito, como hoje o são,
houve uma profunda transformação ideológica.
A doutrina que embasa esse longo e dinâmico processo surge nos séculos XVII e
XVIII, com a formulação dos Direitos Naturais do Homem e do Cidadão. Ela foi evoluindo
mediante a incorporação de novos direitos, antes não considerados, originando-se as
chamadas gerações de Direitos Humanos, que têm a ver com a evolução das sociedades
humanas.
33 BOEIRA, Bernardo Ramos. Investigação de Paternidade, Posse do Estado de Filho. Paternidade SócioAfetiva. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1999, p. 54 e 55.
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Em 10 de dezembro de 1948, a Assembléia Geral da recém-criada Organização das
Nações Unidas aprova a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Fundada em fatos
históricos e em doutrina precedente, a Declaração visa atingir o Homem todo e todos os
homens e propugna por sua felicidade e seu bem-estar; buscando subordinar o privado ao
público. Valoriza a família, a comunidade, os interesses, as necessidades e aspirações sociais
do povo. Expressa uma ética que garante a condição de verdadeiro cidadão a todos os
homens.
Com os avanços da medicina, das ciências jurídicas, das ciências pedagógicas e
psicológicas, o século XX descobre a especificidade da criança e a necessidade de formular
seus direitos, que passam a ser tidos como especiais.
Já em 1923, formulados por uma organização não-governamental, a International
Union for Child Welfare, foram estabelecidos os princípios dos Direitos da Criança, que
incorpora-os e expressa-os na primeira Declaração dos Direitos da Criança.34
A Convenção Internacional sobre Direitos da Criança, de 1989, adotada pela
Assembléia das Nações Unidas, e internalizada no direito brasileiro, com força de lei em
1990, preconiza a proteção especial da criança mediante o princípio do melhor interesse, em
suas dimensões pessoais. Para efetivar este princípio, a criança deve ser posta no centro das
relações familiares, permeada de paz, dignidade, liberdade, igualdade, tolerância e
solidariedade.35
A ação protetiva em prol da criança e do adolescente, no Brasil, antecede a própria
Convenção das Nações Unidas. Ela está positivada em nossa Carta Constitucional de 1988,
principalmente em seus artigos 227, 228 e 229, que seguiram a doutrina da Declaração dos
Direitos da Criança.
34 Eram apenas quatro os itens estabelecidos: 1. a criança tem o direito de se desenvolver de maneira normal, material e espiritualmente; 2. a criança que tem fome deve ser alimentada; a criança doente deve ser tratada; a criança retardada deve ser encorajada; o órfão e o abandonado devem ser abrigados e protegidos; 3. a criança deve ser preparada para ganhar sua vida e deve ser protegida contra todo tipo de exploração; 4. a criança deve ser educada dentro do sentimento de que suas melhores qualidades devem ser postas a serviço de seus irmãos. 35 A Convenção define como criança qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade (artigo 1), cujos 'melhores interesses' devem ser considerados em todas as situações (artigo 3). Protege os direitos da criança à sobrevivência e ao pleno desenvolvimento (artigo 6), e suas determinações envolvem o direito da criança ao melhor padrão de saúde possível (artigo 24), de expressar seus pontos de vista (artigo 12) e de receber informações (artigo 13). A criança tem o direito de ser registrada imediatamente após o nascimento, e de ter um nome e uma nacionalidade (artigo 7), tem o direito de brincar (artigo 31) e de receber proteção contra todas as formas de exploração sexual e de abuso sexual (artigo 34).
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A homologação dos dispositivos da Carta Magna em favor da infância, fundados na
Declaração dos Direitos Humanos e na Declaração dos Direitos da Criança, foi estabelecida
primorosamente no Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n° 8.069/90, foi sancionado no dia 13 de
julho de 1990 (obedecendo ao art. 227 da CF/1988) para determinar os direitos da criança e
do adolescente dentro da sociedade e, também, para afirmar que crianças e adolescentes
devem ser vistos como pessoas em desenvolvimento, sujeitos de direitos e destinatários de
proteção integral.
O Estatuto, ao regulamentar a norma constitucional, identificou o desenvolvimento
sadio e harmonioso da criança e do adolescente como direito fundamental a ser protegido e
lhes garantiu, igualmente, o direito de serem criados e educados no seio de sua família,
conforme preceitua o seu art. 19 (DIAS, 2009).
Este documento legal representa uma verdadeira revolução em termos de doutrina,
idéias, práxis, atitudes nacionais ante a criança. Em sua formulação contou, igualmente, com
intensa e ampla participação do governo e, sobretudo, da sociedade, expressa em organizações
como a Pastoral do Menor, o Unicef, a OAB, o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas
de Rua, movimentos de igrejas e universidades, dentre tantos outros organismos.
No dizer de Leal (1996, p. 13-14), o ECA:
[...] perfilhou a doutrina de proteção integral, defendida na ONU, com base em 4 instrumentos de cunho universal: Convenção Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança; Regras de Beijing ( Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores ); Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil; e Regras de Riad (Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Menores Privados de Liberdade).
O ECA revogou o Código de Menores de 1979, discriminatório, bem como a lei que
criou a Funabem. Adotou a doutrina de proteção integral, que reconhece a criança e o
adolescente como cidadãos e sujeitos de Direito.
Partindo desta premissa, as crianças são agora definidas de maneira afirmativa, como
sujeitos de plenos direitos.
Direitos como vida, saúde, alimentação, educação, respeito, cultura, dignidade estão
assegurados pelo Estatuto, e, de acordo com este, a família, a sociedade e o Poder Público têm
o dever de que esses direitos sejam concretizados e assegurados:
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ECA, art. 4°. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
As entidades referidas nesse artigo, segundo Cury (2006), são as formas básicas de
convivência. A responsabilidade da família é um dever moral, decorrente da consanguinidade
e do fato de ser o primeiro ambiente em que a criança tem contato com a vida social. Já a
comunidade exerce também papel fundamental, pois é nela em que as crianças e adolescentes
estão ou serão inseridas, sendo que a solidariedade é uma necessidade e um dever moral de
todos os seres humanos, e é ela quem recebe os benefícios imediatos do bom ou mau
tratamento dispensado às crianças e adolescentes.
Ainda, ao mencionar o dever do Poder Público, o Estatuto quer referir-se ao Estado,
no sentido de que cabe a este cuidar da saúde e assistência pública, de proporcionar meios de
acesso à cultura, à educação e à ciência, entre outros.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é, portanto, uma legislação inovadora, pois
compartilha responsabilidades entre estas três entidades: família, Estado e sociedade na
efetivação e defesa desses direitos e visa à participação dos cidadãos nos processos de
formulação, execução e monitoramento das políticas públicas de atendimento à infância e à
adolescência.
Nesse sentido, importante salientar a importância do planejamento familiar,
regulamentado no art. 1.565 do CC e na Lei 9.263/96, mediante o qual é assegurada a a
implementação de políticas públicas de caráter protetivo e “de natureza promocional, não
coercitiva, orientado por ações preventivas e educativas e por garantia de acesso igualitário a
informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade”
(LÔBO apud DIAS, 2006, p. 323).
Na visão de Cury (2006, p. 17), entrelaçada a esse contexto, “um país que aprende a
valorizar a criança e a empenhar-se na sua transformação manifesta sua decisão de construir
uma sociedade justa, solidária e capaz de vencer discriminações, violência e exploração da
pessoa humana”.
O Brasil dispõe, pois, de normas paradigmáticas e de organismos integrativos (tais
como: Ministério da Educação, Conselhos tutelares, escolas, entre outros órgãos federais,
estaduais e municipais, a própria família, etc.) para uma ação exemplar em defesa da criança
brasileira; e a democracia cria os mecanismos ideais para essa ação plena, viabilizando
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condições para o exercício da paternidade responsável, inserido num contexto de
planejamento familiar sadio.
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4 O DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES DOS PAIS E A
RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL EM RAZÃO DA AUTORIDADE
PARENTAL
O poder familiar deve ser exercido por ambos os pais em igualdade de condições, com
o intuito de proteger os filhos. O não exercício deste poder ou o seu descumprimento podem
gerar conseqüências tanto ao filho (abalo psíquico e emocional causado pelo abandono ou
falta de afeto), quanto ao pai ou mãe prejudicados (danos morais ao filho pelo
descumprimento dos deveres da paternidade/maternidade ou pelo não convívio com o filho,
além de, possivelmente, causarem danos a si próprios).
Nesse contexto, em que a instituição familiar é caracterizada pela pluralidade, uma
multiplicidade de fatos está a exigir um aprofundamento nas reflexões relativas à família, haja
vista que os novos contornos desta, e a nova configuração do poder familiar, impõem o estudo
da responsabilidade civil dos pais por negligência na educação e formação dos filhos,
temática tão polêmica e ainda sem regramento no país.
O tema da responsabilidade civil aplicada aos vínculos intrafamiliares ainda causa
perplexidade para muitos operadores do Direito. Nesse sentido:
A interface das relações pessoais, imiscuídas no Direito de Família e na Responsabilidade Civil, é fator que confere adicionada especialidade no ramo, impendendo em celeumas que, tantas vezes, confrontam o amor com os interesses patrimoniais. Em contrapartida, a hipótese indenizatória, situada de maneira ampla, inverte os debates, questionando notadamente se, eventuais danos de ordem moral, havidos em sedes familiares, poderiam ser pleiteados jursidicionalmente, para a compensação das vítimas, transformando-se, os abusos praticados pelos parentes nucleares, em verdadeira fonte obrigacional reparatória (PARODI, 2007, p. 166).
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Afinal, não se fala em atribuir preço ao afeto, especialmente no âmbito familiar, mas
se questiona se os pais tem o direito de não cuidar dos filhos, sem que a possibilidade destes
ínfimos buscarem, através do Estado-juiz, a reparação do dano causado.
4.1 Abandono material dos filhos
No tocante aos filhos menores, é dever dos pais zelar pela sua assistência, criação e
educação e, inversamente, os filhos maiores têm o dever de ajudar os pais na velhice. Sendo
assim, a família existe enquanto local onde persiste a reciprocidade. Nesse sentido, ganha
importância a disposição contida no seu art. 229, uma vez que atribui à prole o dever de
amparo e assistência aos pais36, espelhando o espírito de colaboração que se assenta no
interior de qualquer espécie familiar, pois “o pai não deve alimentos ao filho menor – deve
sustento, no dizer de Villela” (apud DIAS, 2007, p. 468).
O poder familiar independe de relação conjugal entre pai e mãe, como quis o Estatuto
da Criança e do Adolescente, derivando, aí sim, da relação de paternidade. E é nessa esteira
que se apresenta a sua análise, posto que compreende o tema desenvolvido, tão logo
verificado que da relação paterno-filial social também inferem direitos e deveres atribuídos
aos pais, todos reunidos no art. 384 do Código Civil de 1916 e mantidos literalmente pelo art.
1.634 do novo Código, a exemplo:
Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação; II - tê-los em sua companhia e guarda.
Criação e educação são deveres que integram diretamente a função parental. São
indícios de uma relação de paternidade responsável37 que permitem, perante a sociedade, o
reconhecimento, através do tratamento, da condição de filho. "Esse é o dever principal que
incumbe aos pais, provê-los com os elementos materiais para a sobrevivência, bem como
36 Art. 229 - Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. 37 A paternidade responsável não se reduz a um planejamento familiar à limitação de filhos. Envolve uma concepção global do ser humano e da sua dignidade. Os pais, nesse sentido, devem analisar a capacidade de sustentar a formação da prole, de modo a assegurar sua inserção na sociedade. Assim, a paternidade responsável pode ser definida como aquela em que se desenvolve a partir de um planejamento familiar responsável, em que o filho é concebido e criado num ambiente permeado de amor, afeto e carinho, no qual as virtudes são realmente vivenciadas.
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fornecer-lhes educação de acordo com seus recursos, capaz de propiciar ao filho, quando
adulto, um meio de ganhar a vida e de ser elemento útil à sociedade.38"
O dever de sustento tem natureza notadamente patrimonial39 e se cumpre com a
colocação de meios condizentes com a necessidade dos filhos à disposição destes, por parte
dos pais.
A obrigação alimentar caracteriza a família moderna. É uma manifestação de
assistência e solidariedade econômica que existe em vida entre os membros de um mesmo
grupo, substituindo a solidariedade política de outrora. Assim, a prestação substitui o auxílio
que o Estado deveria dar ao desamparado, na medida em que, socorrendo com os recursos de
um as necessidades preementes de sobrevivência de outro indivíduo, é de interesse público.
Essa característica, a propósito, justifica a existência de instrumentos legais coercitivos para a
efetiva observância do dever, permitindo, inclusive, restrição à liberdade pessoal do
inadimplente - art. 5º, LXVII da Constituição Federal e art. 733 § 1º do CPC.
A finalidade dos alimentos é assegurar o direito à vida, substituindo a assistência da família a solidariedade social que une os membros da coletividade, pois as pessoas necessitadas, que não tenham parentes, ficam, em tese, sustentadas pelo Estado. O primeiro círculo de solidariedade é o da família, e somente na sua falta é que o necessitado deve recorrer ao Estado (WALD, 2000, p. 40).
Em consonância com Wald, Fachin (apud PEREIRA, 2006, p. 242):
Os alimentos estão fundamentados no princípio da dignidade humana e no da solidariedade social, constituindo-se em prestações personalíssimas entre as partes que compõem essa relação jurídica, ligada pelo vínculo de parentesco (inclusive socioafetivo). Mas não apenas por esses vínculos, pois nessa dimensão plural e aberta do conceito de família, trata-se de um vínculo extensivo e ampliado, dado que o dispositivo legal (art. 1.694, CC) se refere aos parentes, cônjuges e companheiros.
Quando da inexistência da convivência familiar causada pela constante ausência,
daquele pai ou mãe que não detém a guarda do filho, no caso de separação do casal, e que se
compromete, além dos alimentos a também fazer visitas periódicas ao filho, e deixa de fazê-
lo, surge a figura do abandono, tanto na esfera material quanto em âmbito afetivo.
38 TJRS - Apelação Cível nº 70003110574 - 7ª C. Cível - Rel Des. Luiz Felipe Brasil Santos - J. 14.11.2001. 39 O caráter imperativo das normas sobre alimentos situa-se no fato de que estes são irrenunciáveis, como o próprio direito à vida, consoante art. 1707 do Código Civil. Também reza o mesmo artigo que são impenhoráveis, atendendo a sua própria finalidade, que consiste em assegurar a manutenção do alimentando, e são indisponíveis, pela sua natureza personalíssima, por se tratar de direito vinculado à própria pessoa. O direito a eles é também imprescritível e, por fim, intransmissível.
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Deixar de depositar ou entregar o valor da pensão alimentícia é uma das duas únicas
hipóteses de prisão civil, pelo preceito constitucional brasileiro. Contudo, quando aquele pai
ou mãe deixa de visitar o filho, deixando de entregar afeto, carinho, o que o ordenamento
jurídico prevê atualmente? Teria o filho prejudicado o direito a uma reparação de caráter
civil?
A resposta a estas questões não são claramente evidenciadas na legislação brasileira40,
forçando, assim, realizar-se uma interpretação aproximada ao caso, à luz do princípio da
dignidade, da isonomia e do melhor interesse da criança e do adolescente.
O que se deseja demonstrar, neste estudo, é que o fim do relacionamento dos pais não
leva à cisão dos deveres dos mesmos, em relação aos filhos. Ou seja, nada pode comprometer
a continuidade dos vínculos parentais, pois o exercício do poder familiar em nada é afetado
pela separação dos pais (DIAS, 2006).
Inobstante ressaltar os dizeres da autora supra, em relação aos danos impostos aos
filhos nesse processo:
Os filhos, querendo ou não, participam dos conflitos e se submetem aos entraves inerentes à dissolução do laço amoroso entre os pais, sofrendo consequências desse desenlace41. Lembra a psicologia que são os filhos quem mais sofrem no processo de separação, pois perdem a estrutura familiar que lhes assegura melhor desenvolvimento psíquico, físico e emocional. Consideram-se rejeitados e impotentes, nutrindo um profundo sentimento de solidão, como se os pais estivesses violando as obrigações da paternidade. O divórcio é uma experiência pungente, dolorosa e de longa permanência na memória do filho, que convive com a sensação de que está sozinho no mundo42. O fim do relacionamento dos pais não pode levar à cisão dos direitos parentais. O rompimento da relação de conjugalidade não deve comprometer a continuidade da convivência dos filhos com ambos os genitores. É preciso que eles não se sintam objeto de vingança, em face dos ressentimentos dos pais (DIAS, 2006).
Assim, evitando gerar no filho a sensação de desamparo e dificuldade de organizar sua
rotina de vida, é fundamental que não exista qualquer obstáculo na comunicação entre os pais,
pois o interesse do filho, bem como sua proteção como pessoa em desenvolvimento, deve
estar em primeiro lugar. Este é um dos deveres inerentes à autoridade parental.
40 Quando o Código Penal dispõe sobre o abandono de incapaz, em seu artigo 133, ele se refere à falta de proteção a esse incapaz, expondo-o a riscos. Este abandono é diferente daquele que quer se tratar no presente estudo. 41 Lenita Pacheco Lemos Duarte, In: A guarda dos filhos na família em litígio:..., p. 202. 42 Judith S. Wallerstein e Sandra Blekeslee, In: Sonhos e realidade no divórcio, p. 41.
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4.2 Abandono moral e afetivo dos filhos
O abandono afetivo consiste na hipótese de um dos pais virem a faltar com seus
deveres como pais, seja educando ou simplesmente servindo de referência na formação dos
filhos. Os pais devem cuidar dos filhos, se não com o afeto, no mínimo com o respeito a eles
devido.
Aqui faz-se configurar o uso ilícito da paternidade pelos pais, fato este que gera o
dever de indenizar.
Ainda que a presença dos pais seja uma constância na vida dos filhos, não basta a
presença física, sendo mister que a presença se consubstancie no bom desempenho das
funções parentais (HIRONAKA, 2006)43.
Nesse sentido, o Código Civil, em seu art. 932, inciso I, prevê a responsabilização dos
pais por possíveis danos causados aos filhos44.
Como preconiza a Carta Magna, em seu art. 227, é dever da família colocar a criança e
o adolescente a salvo de toda forma de negligência. Nesse sentido, Madaleno (2007, p. 123)
explica:
Há negligência do genitor que se omite injustificadamente em prover as necessidades físicas e emocionais de um filho menor, seja por espírito emulativo; aja por dar mais atenção a filhos de um novo relacionamento ou motivando a propiciar pesar e transtornos à antiga esposa ou companheira.
Mister, portanto, refletir acerca do abandono moral e afetivo e da negligência, esta sim
passível de responsabilização, pois incide diretamente na omissão dos deveres decorrentes da
paternidade.
Imperioso salientar que tais condições se manifestam pela incapacidade dos pais em
proporcionar ao filho um ambiente de tranquilidade e pela ausência de afeto.
A figura do abandono moral e afetivo não tem uma previsão legal expressa que enseja
condenação em dano moral, e justamente por isso o STJ entendeu não ser possível sua
incidência:
43 Nesse contexto, é que se têm assistido, nas últimas décadas, à tentativa de transferir à escola o dever de educação das crianças, quando na verdade, este é o dever dos pais. À escola cabe a função de instrução e formação intelectual, 44 Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia.
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RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. A indenização por DANO MORAL pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono AFETIVO, incapaz de reparação pecuniária. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 757411 / MG ; RECURSO ESPECIAL 2005/0085464-3 Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES. Julgado em 29/11/2005).
Não se falava em dano moral antes da vigência da CFB/1988 e do CC/2002.
O ilícito, fato gerador da indenização, segundo a decisão do STJ, acima transcrita, está
no descumprimento do exercício do poder familiar (art. 1.634 do Código Civil) que gera um
dano aos direitos de personalidade da criança. Contudo, tal entendimento (o de não dar
provimento ao pedido) difere de outros julgados no país, o que abre espaço para novas ações
terem decisão diversa.
Ainda que o pai pague pensão alimentos regularmente, pode acontecer de serem
completamente omissos no seu papel como pais. Negligência, desprezo, falta de interesse são
alguns dos traços que configuram o abandono afetivo. Em que pese a proteção à criança e ao
adolescente, tal omissão é passível de responsabilização civil.
Nesse contexto, Hironaka (2006) reflete acerca da delicada questão do abandono
afetivo:
Podem um pai ou uma mãe ser responsabilizados civilmente – e por isso, condenados a indenização – pelo abandono afetivo perpetrado contra o filho? A procura pelo fundamento da resposta a essa pergunta levaria à seguinte indagação: a denominada responsabilidade paterno-filial resume-se ao dever de sustento, ao provimento material do necessário ou do imprescindível para manter a prole, ou vai além dessa singela fronteira, por situar-se no campo do dever de convívio, a significar uma participação mais integral na vida e na criação dos filhos, de forma a contribuir em sua formação e subsistência emocionais.
Segundo a autora, muitos foram os julgados que deram respaldo à convicção de que a
responsabilidade pela mantença material dos filhos seria o suficiente a ser feito em prol de
alguém a quem não se deseja por perto. Contudo, essa meia-responsabilidade não foi jamais
suficiente, mas o paradigma de outrora não abria chance para tal análise, porque a importância
da vontade e do querer adulto sempre foi significativamente mais importante que a
necessidade e a carência infantil45.
45 Foi o caso, por exemplo, da menina judaica abandonada afetivamente por seu pai logo após o nascimento, quando ele se separou de sua mãe e, em seguida, casou-se com outra mulher, com quem teve outros três filhos. Por serem todos membros da comunidade judaica, o pai e sua nova família encontravam-se freqüentemente com a menina abandonada, e nessas ocasiões o pai fingia não conhecê-la, de modo a desprezá-la reiteradamente. O interesse do pai em formar nova família, completamente desvinculada da família anterior – independente de
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Felizmente, os Tribunais passando a uma análise cuidadosa do que se pleiteia na
atualidade, não mais permitem que questões tão importantes fiquem contidas dentro da restrita
esfera das relações familiares mal resolvidas ou sem solução. Nesse sentido, cita-se como
exemplo o caso do menino, igualmente abandonado por seu pai,46 que, por razões
semelhantes, deixou-o desprovido de sua presença, de seu carinho, de seu interesse por sua
criação e por seu desenvolvimento, o que lhe causou significativo déficit emocional e
psicológico. Pela produção de tal dano moral ao filho, o pai foi condenado pelo Poder
Judiciário, em segunda instância, a reparar a falha praticada, a omissão perpetrada e a
responsabilidade por tantos anos ignorada (ANEXO A). Desta forma, ainda que não exista um
respaldo consistente e preciso na legislação (havendo apenas dispositivos que corroborem),
pode ocorrer de que determinado caso apresente elementos de convencimento suficientes para
fundamentar uma condenação do genitor ausente.
Não obstante, a ausência de regulamentação não pode escusar a impossibilidade de
tutela, que pode e deve ser prestada pelos meios existentes no Direito.
Assim, o tema encontra amparo, sobretudo, nas decisões jurisprudenciais, embasadas
na CFB/1988 (art. 227 e art. 229), no Código Civil (arts. 186, 932,I, 1.634, I e II e 1.638, II)),
bem como no ECA (art. 19)47, entre outros.
Imperioso ressaltar que uma interpretação restritiva sobre o Art. 1.638, II, não se
coaduna com a sistemática constitucional deste país. De acordo com Ferrara (1921), a
interpretação devia ser objetiva e desapaixonada, equilibrada, porém não revolucionária, sem
perder a audácia, mas sempre atenciosa e respeitadora da lei:
Compreender, pois que o termo “abandono” vai além do aspecto material, para alcançar o aspecto moral entre os pais e sua prole, pode até configurar uma exegese revolucionária ou audaciosa, mas é acima de tudo é uma reverência a lei que a exprime. Portanto, os pais são obrigados a absterem-se de abandonar afetivamente os filhos. O abandono afetivo, expressão de sentido bastante elástico, significa mais que privar os filhos de amor, carinho e ternura. Ela representa acima de tudo, privação de convivência, a omissão em sua forma mais erma e sombria. O mesmo
quais tenham sido as razões que o levaram a assim agir – foi mais importante e imperativo que o interesse da menina. Essa situação provocou, desde logo, os sentimentos de rejeição e de humilhação, os quais se transformaram em causas de danos importantes, como significativo complexo de inferioridade, demandando cuidados médicos e psicológicos por longo tempo. Só bem mais tarde, na verdade, essa criança encontrou guarida na resposta jurisdicional para os anseios, as frustrações e os traumas que a acompanharam por toda a vida. (HIRONAKA, 2005). 46 Esse segundo caso é o relatado pelo acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Ap. Cível n. 408.550-5, relator desembargador Unias Silva, 7ª Câmara Cível, TJMG, j. DJMG 29/04/04) 47 Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.
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que inclinar a mente infanto-juvenil a entender seus genitores como meros personagens da reprodução, figuras estanques e frias que a deixam por muito tempo ou mesmo por toda a vida a mingua de uma amizade pura, exilando-a a um desenvolvimento indigno, vulnerável e solitário.
A importância deste tema, segundo Pereira (2008), que transcende a esfera do
particular, é que ele traz uma nova reflexão ao Direito: um pai ou uma mãe que se nega a
conviver com seu filho menor, ou não dá afeto, está infringindo a lei e deve, ou pode, ser
punido por essa falta? No exercício do poder familiar está claro que este é um dos deveres dos
pais em relação aos seus filhos.
Obviamente, não se pode coagir um pai a amar seu filho, pois, afinal, o amor não tem
preço e não há como obrigar alguém a amar outrem, nem mesmo pais aos filhos, ou vice-
versa. No entanto:
[...] a esta desatenção e a este desafeto devem corresponder uma sanção, sob pena de termos um direito acéfalo, um direito vazio, um direito inexigível. Se um pai ou uma mãe não quiserem dar atenção, carinho e afeto àqueles que trouxeram ao mundo, ninguém pode obrigá-los, mas à sociedade cumpre o papel solidário de lhes dizer, de alguma forma, que isso não está certo e que tal atitude pode comprometer a formação e o caráter dessas pessoas abandonadas, afetivamente. Afinal, eles são os responsáveis pelos filhos e isto constitui um dever dos pais e um direito dos filhos. O descumprimento dessas obrigações significa violação ao direito do filho. (PEREIRA, 2008).
Como se observa, a ausência injustificada do pai ou da mãe origina evidente dor
psíquica e conseqüente prejuízo à formação da criança, decorrentes da falta não só do afeto,
mas do cuidado e da proteção que a presença paterna representa na vida do filho. Além da
inquestionável concretização do dano, também se configura, na conduta omissiva dos
genitores, a nítida infração aos deveres jurídicos de assistência imaterial e proteção que lhe
são impostos como decorrência do poder familiar. É uma questão de respeito ao ser humano.
Como denota Madaleno (2007), não procede afirmar que “ninguém será obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”,48 (ANEXO B) usando como
48 INDENIZAÇÃO. 2. DANO MORAL. 3. OBJETIVO INDENIZATÓRIO DEDUZIDO POR FILHA CONTRA O PAI, VISANDO COMPENSAÇÃO PELA AUSÊNCIA DE AMOR E AFETO. 4. NINGUÉM ESTÁ OBRIGADO A CONTEMPLAR QUEM QUER QUE SEJA COM TAIS SENTIMENTOS. 5. DISTINÇÃO ENTRE O DIREITO A MORAL 6. INCIDÊNCIA DA REGRA CONSTITUCIONAL, PILAR DAS DEMOCRACIAS MUNDO A FORA E A LONGO TEMPO, ESCULPIDA NO ART. 5º, II, DE NOSSA CARTA POLÍTICA, SEGUNDO A QUAL "NINGUÉM SERÁ OBRIGADO A FAZER OU DEIXAR DE FAZER ALGUMA COISA SENÃO EM VIRTUDE DE LEI". 7. PRETENSÃO MANIFESTAMENTE MERCANTILISTA, DEDUZIDA NA ESTEIRA DA CHAMADA INDÚSTRIA DO DANO MORAL, COMO SEMPRE PROTEGIDA POR DEFERIMENTO DE GRATUIDADE DE JUSTIÇA. 8. CONSTATAÇÃO DE MAIS UMA TENTATIVA DE GANHO FÁCIL, SENDO IMPERIOSO EVITAR A ABERTURA DE LARGA PORTA COM PRETENSÕES DO GÊNERO. 9. SENTENÇA QUE MERECE PRESTÍGIO. 10. RECURSO
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pretexto o art. 5º, inciso II, da CFB/1988, pois é a própria Carta Magna que expressa como
direito fundamental da criança e do adolescente ser resguardado de toda forma de negligência.
Hironaka (2005), procurando facilitar o entendimento para o sentido da
responsabilização paterna, explica:
Por um lado – nesta vertente da relação paterno-filial em conjugação com a responsabilidade – há o viés naturalmente jurídico, mas essencialmente justo, de buscar-se indenização compensatória em face de danos que os pais possam causar a seus filhos por força de uma conduta imprópria, especialmente quando a eles são negados a convivência, o amparo afetivo, moral e psíquico, bem como a referência paterna ou materna concretas, o que acarretaria a violação de direitos próprios da personalidade humana, de forma a magoar seus mais sublimes valores e garantias, como a honra, o nome, a dignidade, a moral, a reputação social; isso, por si só, é profundamente grave. Por outro lado – é invencível e imprescindível esta menção – outros casos considerados como assemelhados não foram recepcionados pelo Poder Judiciário49 –e de modo acertado, segundo o meu sentir – exatamente porque as decisões não reconheceram, nos casos concretos, a existência de danos morais indenizáveis decorrentes do fato de um eventual abandono afetivo, ou porque não houve dano, ou porque não houve abandono, ou porque não estava estabelecida a relação paterno-filial da qual decorre a responsabilidade em apreço, ou, finalmente, porque não se estabeleceu o imprescindível nexo de causalidade, causa eficiente da responsabilização civil in casu.
Nesse sentido:
Nem todas as falhas ou omissões dos pais podem ensejar a responsabilidade civil dos pais – definida como dever de indenizar. Há casos em que o abandono material e intelectual da própria família envolve indistintamente pais e filhos. Todos são vítimas. Não há como apontar um culpado na própria entidade familiar (LIMA, 2004, p. 629).
Assim, imperioso destacar que há que se ater para o caso em discussão, a fim de evitar
a incorreta aplicação de uma sanção aos pais, analisando-se as relações familiais e
IMPROVIDO.( Rel. Dês. Mario dos Santos Paulo, 4ª CC do TJRJ, AC nº 2004.001.13664, julgado em 08/09/2004). No caso aqui exposto, o pai nunca expressou prazer e satisfação em ser pai da autora da demanda, ao contrário, considerava o relacionamento com a mãe da autora como uma ‘aventura amorosa passageira’. Contudo, o pai nunca se aproximou ou se deixou aproximar da filha por mais de quarenta anos. Na sentença do caso em análise, o magistrado destacou não haver conduta ilícita no abandono moral capaz de gerar reparação, pois não há norma legal que imponha a qualquer pessoa a obrigação de amar seus descendentes, negando o direito de indenização a autora, ante a seguinte justificativa: Por óbvio, ninguém está obrigado a conceder amor ou afeto a outrem, mesmo que seja filho. Da mesma forma, ninguém está obrigado a odiar seu semelhante. Não há norma jurídica cogente que ampare entendimento diverso, situando-se a questão no campo exclusivo da moral, sendo certo, outrossim, que sobre o tema, o direito positivo impõe ao pai o dever de assistência material, na forma de pensionamento e outras necessidades palpáveis, observada a lei. Não há amparo legal, por mais criativo que possa ser o julgador, que assegure ao filho indenização por falta de afeto e carinho. Muito menos já passados mais de quarenta anos de ausência e descaso (.( Rel. Dês. Mario dos Santos Paulo, 4ª CC do TJRJ, AC nº 2004.001.13664, julgado em 08/09/2004). 49 São casos assim, por exemplo, aqueles mencionados pelas decisões do mesmo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (do qual foram desembargadores Luciano Pinto, Márcia Paoli Balbino e Irmar Ferreira Campos – relator,) e pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (Ap. Cível n. 2004.001.13664, rel. desembargador Mário dos Santos Paulo – juiz a quo André Veras de Oliveira, 4ª Câmara Cível, TJRJ.)
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comunitárias, em vários níveis (emocionais, afetivos, entre outros), pois o que deve restar
comprovado é o real prejuízo emocional ao filho.
Nesse diapasão, há que se mencionar o Projeto de Lei n. 700/2007 (ANEXO D), do
Senador Marcelo Crivella, que visa a responsabilizar na esfera civil o pai por abandonar
afetivamente o filho. Se aprovado, o texto trará nova redação ao Estatuto da Criança e do
Adolescente, trazendo um precedente jurídico interessante e bastante polêmico sob o ponto de
vista legal. De acordo com o projeto, o art. 4º, § 2º, do Estatuto da Criança passa a ter a
seguinte redação: “Compete aos pais, além de zelar pelos direitos de que trata o art. 3º desta
Lei, prestar aos filhos assistência moral, seja por convívio, seja por visitação periódica, que
permitam o acompanhamento da formação psicológica, moral e social da pessoa em
desenvolvimento”. (grifo nosso)
O assunto, objeto deste estudo, teve sua discussão ampliada por recentes decisões que
invocaram o tema do abandono afetivo, motivando a iniciativa de Crivella.
O Projeto de Lei é controverso, polêmico e, portanto, deve ser discutido e tratado com
cautela, a fim de evitar decisões precipitadas e equivocadas por parte dos tribunais, bem como
responsabilizações inexistentes sob o ponto de vista ético e jurídico vigentes em nossa
sociedade, pois deposita no afeto e no amor questões de ordem legal, que fogem da esfera
sentimental.
No entanto, o afeto e o cuidado, como valores jurídicos a serem preservados, devem
servir de instrumentos de valorização da convivência familiar, haja vista que os vínculos de
afetividade projetam-se no campo jurídico como a essência das relações familiares. Nesse
sentido:
Tratar a criança com afeto, carinho e respeito serve de amparo e estímulo, ajudando-a a suportar e enfrentar dificuldades, ao mesmo tempo em que lhe dá inspiração e ânimo para um relacionamento pacífico e harmonioso com os que a cercam. A falta de afeto faz crianças tristes e revoltadas; mostram-se rebeldes, indisciplinadas, ou simplesmente incapazes de agir com segurança e serenidade (DALLARI; KORCZAK, 1986, p. 37).
No mesmo sentido, explica Maturana (apud PEREIRA, 2006, p. 236), identificando no
amor o fenômeno biológico capaz de impedir a alienação anti-social:
O amor é a fonte da socialização humana e não o resultado dela. Qualquer coisa que o destrói, qualquer coisa que destrói a congruência estrutural que ele implica, destrói a socialização. A socialização é o resultado do operar no amor e ocorre somente no domínio em que ele ocorre.
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Portanto, o abandono moral e afetivo deve ser entendido a partir de um conjunto de
princípios (da proteção integral de crianças e adolescentes, da afetividade e da dignidade
humana), que extrapolam os limites expressos na legalidade. Não se pode esquecer que o
afeto já se incorporou como elemento identificador nas relações familiares.
Atos ou omissões voluntárias ou negligentes ou ainda imprudentes que causem dano a
alguém são passíveis de penalização do agente através de condenação ao pagamento de
indenizações pecuniárias ou a reparação do dano causado. Dispõe o ordenamento jurídico
brasileiro que aquele que violar direito ou causar dano a alguém, ainda que exclusivamente
moral, comete ato ilícito.
É inquestionável o dano causado pela conduta omissiva, geradora de infração aos
deveres de assistência imaterial e proteção que derivam do poder familiar. Nesse liame:
a paternidade prova o surgimento de deveres. Examinando-se o Código Civil vigente à época dos fatos, verifica-se que a lei atribuía aos pais o dever de direção da criação e educação dos filhos, e de tê-los não somente sob a sua guarda, mas também sob sua companhia (art. 384, I e II). Há, portanto, fundamento estritamente normativo para que se conclua que a paternidade não gera apenas deveres de assistência material (CIRILLO, 2000) [...].
Assim, a conduta que viole direito da personalidade, entre eles a dignidade da pessoa
humana, é ilícita conforme preceituado pelo artigo 186 do Código Civil, seja ela decorrente
do Direito de Família ou não.
Neste caso, a negligência de que trata o art. 186 do CC, torna defensável o dever dos
pais de indenizar o filho por dano pessoal ou material.
Nesse contexto:
A negligência se traduz na incapacidade de proporcionar à criança a satisfação dos cuidados básicos de higiene, alimentação, afeto e saúde, indispensáveis para que o crescimento e desenvolvimento ocorram em normalidade. A negligência pode manifestar-se sob a forma ativa, em que há a intenção de causar dano à criança, ou sob a forma passiva, que geralmente resulta da incompetência dos pais em assegurar os referidos cuidados. Constitui uma forma muito comum de maus-tratos, a qual acarreta graves repercussões para a criança, desde alterações de comportamento, atraso de crescimento e de desenvolvimento, até os acidentes e mesmo o risco de morte (CANHA, 2000 apud PEREIRA, 2006, p. 247).
De acordo com Hironaka (2006, p. 134):
é certo que não se pode obrigar ninguém ao cumprimento do direito ao afeto, mas é verdade também que, se esse direito for maculado – desde que sejam respeitados certos pressupostos essenciais - seu titular pode sofrer as conseqüências do abandono afetivo e, por isso, poderá vir a lamentar-se em juízo, desde que a ausência ou omissão paternas tenham-lhe casado repercussões prejudiciais, ou negativas, em sua esfera pessoal – material e psicológica – repercussões essas que passam a ser consideradas, hoje em dia, como juridicamente relevantes.
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O abandono afetivo se configura, desta forma, pela omissão dos pais, ou de um deles,
pelo menos referente ao dever de educação, permeada de afeto, carinho, atenção e cuidado.
Conforme Hironaka (2006, p. 137), esta é a fundamentação jurídica para que os pedidos sejam
levados ao Poder Judiciário, na medida em que a Constituição Federal exige um tratamento
primordial à criança e ao adolescente e atribui um dever correlato aos pais e à sociedade.
4.3 Considerações sobre a responsabilidade civil
O termo responsabilidade pode ser assim definido:
A palavra responsabilidade tem sua origem o verbo latino respondere, significando a obrigação que alguém tem de assumir com as consequências jurídicas de sua atividade, contendo, ainda, a raiz latina de spondeo, fórmula através da qual se vinculava, no Direito Romano, o devedor nos contratos verbais (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2008, p. 2).
A acepção que se faz de responsabilidade, portanto, está relacionada ao surgimento de
uma obrigação derivada de um fato, ou seja, um dever jurídico sucessivo em função da
ocorrência de um fato jurídico latu sensu50.
Rotineiramente, o termo responsabilidade, quando referente aos pais, denota, antes, as
atribuições que lhe são confiadas, ou seja, a responsabilidade como tarefa ou obrigação dos
pais. Nesse sentido, conforme explica Pereira (apud LIMA, 2004, p. 628), “o agente tem
competências que lhe geram deveres ou atribuições frente às pessoas ou organizações.”
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seus artigos 70 a 73, procurou garantir o
cumprimento das diretrizes constitucionais do art. 227, CF, e estabeleceu a responsabilização
do Estado, família e sociedade, abrangendo as hipóteses de ocorrência de ameaça ou violação
dos direitos da infância e adolescência51.
Segundo Hironaka (2006), o dever de indenizar decorrente de abandono afetivo
fundamenta-se na funcionalização das entidades familiares e nos elementos da
responsabilidade civil, quais sejam:
a) conduta (positiva ou negativa);
b) dano;
50A culpa latu sensu se divide em duas espécies: culpa em sentido estrito e dolo. O dolo ocorre quando o agente pretende o resultado danoso. A culpa em sentido estrito ocorre quando o agente causador do dano não pretendia o resultado danoso, porém por conta da negligência, imprudência ou imperícia, alcançou o resultado danoso. 51 Declara expressamente o art. 73 do ECA: A inobservância das normas de prevenção importará em responsabilidade da pessoa física ou jurídica, nos termos desta Lei.
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c) nexo de causalidade.
Assim, a responsabilização civil aqui tratada pressupõe um dano52 à personalidade do
filho, que é vítima da inobservância dos deveres dos pais.
Nesse contexto, o dano ou prejuízo pode ser conceituado, como sendo “a lesão a um
interesse jurídico tutelado – patrimonial ou não -, causado por ação ou omissão do sujeito
infrator” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2008, p. 36), no caso, os genitores em relação
aos filhos.
Com efeito, com o estabelecimento de um vínculo de afetividade será mais fácil
configurar o dano decorrente da cessação do contato e da convivência entre pais e filhos, na
exata medida em que se conseguir demonstrar e comprovar que a sensação de abandono foi
nociva à criança. (HIRONAKA, 2006). Por outro aspecto, o fato de os pais não estabelecerem
vínculos com os filhos, inclusive de afeto, é motivo, igualmente relevante, para caracterizar o
dever de indenizar.
Interessante observar os dizeres de Costa (apud HIRONAKA, 2006, p. 141), para
quem o dano vinculado ao abandono afetivo, bem como o consequente dever de indenizar não
podem se configurar em face de adultos, haja vista estes já terem sua personalidade totalmente
formada:
Assim, só os filhos menores de idade, ou incapazes, têm legitimidade para pedir indenização aos pais pela omissão do afeto. Em relação aos filhos maiores de idade e capazes, não tem cabimento indenização pela ausência de afeto por parte dos pais, porque não estão em fase de formação da personalidade.
No entanto, não há estudo que comprove que a personalidade não se modifique mais
quando a etapa adulta da vida seja alcançada, haja vista que a personalidade – enquanto
atributo da dignidade humana – seja um processo de contínua evolução.
Além da concretização do dano como elemento da configuração do dever de indenizar,
é necessário verificar a conduta, ou seja, a comprovação da culpa do genitor (pai ou mãe), que
52 Sobre esse elemento, Carlos Alberto Bittar assevera: Havendo dano, produzido injustamente na esfera alheia, surge a necessidade de reparação, como imposição natural da vida em sociedade, e exatamente, para a sua própria existência e o desenvolvimento normal das potencialidades de cada ente personalizado. É que investidas ilícitas ou antijurídicas no circuito de bens ou valores alheios perturbam o fluxo tranqüilo das relações sociais, exigindo, em contraponto, as reações que o Direito engendra e formula para a restauração do equilíbrio rompido. (...) Realmente, a construção de uma ordem jurídica justa – ideal perseguido, eternamente, pelos grupos sociais – repousa em certas pilastras básicas, em que avulta a máxima de que ninguém se deve lesar. Mas, uma vez assumida determinada atitude pelo agente, que vem a causar dano, injustamente, a outrem, cabe-lhe sofrer os ônus relativos, a fim de que se possa recompor a posição do lesado, ou mitigar-lhe os efeitos do dano, ao mesmo tempo em que se faça sentir ao lesante o peso da resposta compatível prevista na ordem jurídica (BITTAR apud GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2008, p.20).
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deve ter deliberadamente se negado a conviver com o filho e a participar de seu
desenvolvimento. “Dessa forma, se configurará a omissão, presente na infração aos deveres
jurídicos de assistência imaterial e proteção que lhes são impostos como decorrência do poder
familiar” (HIRONAKA, 2006, p. 143).
Convém destacar que alguns doutrinadores vem defendendo a ideia do dano in re ipsa,
pelo qual o puro e simples abandono afetivo ensejaria a compensação, sem ser necessário
provar a culpa do genitor na conduta ilícita. Pelo dano in re ipsa, há a necessidade de se
comprovar apenas o evento danoso, a conduta ilícita do genitor capaz de causar danos no
filho, ou seja, é “suficiente a violação de um interesse constitucionalmente protegido, relativo
ao princípio da dignidade da pessoa humana” (MORAES, 2005, p. 62-63), não precisando se
provar a culpa do sujeito.
No entanto, se o genitor demonstra a ocorrência de caso fortuito ou força maior, ele se
exonera da responsabilidade, porque pelo dano in re ipsa a culpa não decorre das
circunstâncias em que ocorreu o evento danoso, bastando provar a existência do evento
danoso para que fique presumida a culpa do genitor.
Há ainda outro aspecto a ser considerado na caracterização do dever de indenizar por
abandono afetivo, e que, segundo Hironaka (2006), é o mais difícil de ser comprovado: o
nexo de causalidade.
Assim, não basta estabelecer somente a existência do dano, como a sua causa. É
necessário estabelecer, em caráter retrospectivo, a época em que os sintomas do dano sofrido
pelo abandono vieram a se manifestar no filho, pois não se poderá imputar ao pai um dano
que tenha se manifestado anteriormente ao ato negligente deste.
Outrossim, para que o dano seja efetivamente indenizável, é necessária, além da
certeza do dano, a violação do interesse jurídico tutelado, neste caso, o dano à personalidade,
o que configura o dano moral.
O reconhecimento formal do instituto do dano moral encontra-se insculpido no Art.
186 do CC e, consequentemente, por força do Art. 927 do CC, sua reparabilidade:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. (grifo nosso). Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
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Depreendendo-se do disposto no artigo 186, acima mencionado, concebe-se que o
dano moral é aquele que lesiona a esfera personalíssima da pessoa (seus direitos de
personalidade), violando, por exemplo, sua dignidade e identidade, bens jurídicos tutelados
constitucionalmente.
Na hipótese de suposta violação à dignidade humana – o que ensejaria a
responsabilização civil -, se faz imperioso destrinchar os princípios corolários que a
compõem. Nesse passo, o substrato material da dignidade da pessoa humana pode ser
decomposto nos seguintes princípios jurídicos: princípio da igualdade, da integridade física e
moral, da liberdade e da solidariedade. Haverá, portanto, dano moral, quando houver
“violação a algum desses aspectos ou substratos que compõem, e conformam, a dignidade
humana” (MORAES, 2003, p. 11). Importa ainda considerar que, em se tratando de um valor,
a dignidade da pessoa humana atrairá direitos fundamentais e, uma vez sendo negado o direito
à paternidade, ao amor, ao convívio familiar, estar-se-á negando a própria dignidade.
Nessa esteira, Moraes (2003, p. 157-158) conceitua dano moral, levando em conta o
entendimento atual da doutrina e da jurisprudência acerca do tema.
Assim, no momento atual, doutrina e jurisprudência dominante tem como adquirido que o dano moral é aquele que, independentemente de prejuízo material, fere direitos personalíssimos. Isto é, todo e qualquer atributo que individualiza cada pessoa, tal como a liberdade, a honra, a atividade profissional, a reputação, as manifestações culturais e intelectuais entre outros. O dano é ainda considerado moral, quando os efeitos da ação embora não repercutam na órbita de seu patrimônio material, originam angústia, dor, sofrimento, tristeza, humilhação à vítima trazendo-lhe sensações e emoções negativas. Neste último caso, diz-se necessário, outrossim, que o constrangimento, a tristeza, a humilhação, sejam intensos a ponto de poderem facilmente distinguir-se dos aborrecimentos e dissabores do dia-a dia, situações comuns a que todos se sujeitam, como aspectos normais da vida cotidiana.
Nesse sentido, o dano moral:
Trata-se (...) do prejuízo ou lesão de direitos, cujo conteúdo não é pecuniário, nem comercialmente redutível a dinheiro,como é o caso dos direitos da personalidade, a saber, o direito à vida, à integridade física(...), à integridade psíquica (...) e à integridade moral (honra, imagem e identidade), havendo quem entenda, como o culto Paulo Luiz Netto Lôbo, que “não há outras hipóteses de danos morais além das violações aos direitos de personalidade” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2008, p. 20).
Nessa esteira, observar que a responsabilidade civil possui três funções primordiais –
compensatória do dano à vítima, punitiva do ofensor e desmotivação social da conduta lesiva
(GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2008)-, sendo a reparatória, relativamente aos danos
morais é a mais utópica, pois é praticamente impossível recompor o status quo ante a prática
do ilícito.
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Nesse contexto, conforme os autores acima referidos, na função compensatória ou
reparatória do dano:
Encontra-se o objetivo básico e finalidade da reparação civil: retornar as coisas ao status quo ante. Repõe-se o bem perdido diretamente ou, quando não é mais possível tal circunstância, impõe-se o pagamento de um quantum indenizatório, em importância equivalente ao valor do bem material ou compensatório do direito não redutível pecuniarmente (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2008, p. 21).
Na mesma linha de ideias, Teixeira (2005, p. 143) afirma que “todo dano moral, por
sua natureza, induz a uma compensação, tendo em vista ser impossível recompor a situação
nos moldes anteriores à prática do ato danoso”.
A responsabilidade civil, como lembra Facchini, citado por Santos (2005, texto
digital53), tem como função básica a reparação dos danos materiais ou a compensação dos
danos extrapatrimoniais. Entretanto, conforme o mesmo autor:
Outras funções podem ser desempenhadas pelo instituto. Dentre essas, avultam as chamadas funções punitiva e dissuasória”. Pela primeira, busca-se “punir alguém por alguma conduta praticada, que ofenda gravemente o sentimento ético-jurídico prevalente em determinada comunidade. Com a segunda, procura-se sinalizar a todos os cidadãos sobre quais condutas a evitar, por serem reprováveis do ponto de vista ético-jurídico (FACCHINI apud SANTOS, 2005, texto digital).
Da função punitiva decorre a dissuasória (ou exemplar), a qual se encarrega de
disseminar na sociedade que determinada conduta é reprovável na esfera ética e jurídica. É
nesse sentido que muitos doutrinadores e operadores jurídicos situam a indenização por
abandono afetivo, cabendo ressaltar os dizeres do autor supracitado:
As críticas mais acerbas aos julgados em exame trazem como argumento o fato de que a concessão de indenização em casos como esses representa excessivo alargamento do conceito de danos indenizáveis, e acabam por incentivar a monetarização do afeto. Além disso, não faria com que o pai, arrependido, buscasse a reaproximação com o filho. Embora respeitando tal entendimento, não posso com ele assentir. Primeiro, porque [...] nós aqui cansamos de dar indenização por dano moral por negativações, apontes, etc., situações que ninguém vai ter coragem de afirmar que são equiparáveis à negativa do reconhecimento de uma paternidade. Com efeito, idêntico raciocínio se aplica à situação do pai que, mesmo tendo reconhecido o filho, o abandona afetivamente, negando-lhe a assistência não apenas material a que está ética e juridicamente obrigado, mas igualmente negando-lhe a sustentação emocional que é essencial à sua formação como pessoa, pelo simples fato de que é responsável pelo ser que gerou. Segundo, porque a indenização deferida nesse contexto não tem a finalidade de compelir o pai ao cumprimento de seus deveres, mas atende duas relevantes funções, além da compensatória : a punitiva e a dissuasória. (grifo nosso) (SANTOS, 2005, texto digital).
Nesse mesmo sentido, Madaleno (apud SANTOS, 2005, texto digital) afirma que:
53 SANTOS, L. F. B. Indenização por abandono afetivo. Disponível em: <www.gontijo-familia.adv.br/ tex252.htm>. Acesso em: 08.abr.2009.
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A punição pecuniária pelo dano imaterial tem um caráter nitidamente propedêutico e, portanto, não objetiva propriamente satisfazer a vítima da ofensa, mas, sim, castigar o culpado pelo agravo moral e, inclusive, estimular aos demais integrantes da comunidade (…) a cumprirem os deveres éticos impostos pelas relações familiares.
Estando esclarecidos alguns elementos da responsabilidade civil, e tendo por base a
despatrimonialização das relações familiares, é imprescindível que se busque estabelecer
limites ao dever de indenizar decorrente de abandono afetivo, sob pena de se monetarizar o
afeto e as relações familiares em geral.
4.4 Responsabilidade civil dos pais por abandono moral e afetivo dos filhos
Há uma acentuada tendência de ampliar o instituto da responsabilização civil
decorrentes das relações afetivas, deslocando o cerne do elemento do fato ilícito para a
reparação do dano injusto. As transformações nos direitos de personalidade fez aumentar as
hipóteses de ofensa a tais direitos, ampliando, assim, as oportunidades para o reconhecimento
da existência de danos (AGUIAR JR. apud DIAS, 2006), ou seja, para esta última autora, “a
busca de indenização por dano moral transformou-se na panacéia para todos os males.
Visualiza-se abalo moral diante de qualquer fato que possa gerar algum desconforto, aflição,
apreensão ou dissabor.”
De acordo com a mesma especialista, tal tendência reflete-se nas relações familiares,
em que a tentativa é ampliar a responsabilidade para o âmbito dos vínculos afetivos. Sob o
fundamento da necessidade do amor nas relações familiares, se está querendo transformar a
desilusão pelo fim dos vínculos afetivos (ou a falta de) em obrigação indenizatória:
O âmbito jurídico se opunha à indenização do dano moral porque dor e a honra seriam sentimentos de valor inestimável e de difícil aferição monetária; todavia, até por previsão constitucional, hoje se considera suficiente o simples fato da violação, dispensando-se prova do prejuízo concreto.
Assim, a aflição sofrida pelo abandono paterno, que despoja o filho do amparo afetivo, moral e psíquico, permite o socorro de indenização por ofensa ao princípio da dignidade da pessoa. (GIORGIS, 2007, p. 61).
Como se vê, a indenização por motivos afetivos gera polêmica entre os operadores do
Direito. Porém, há que se salientar os deveres dos pais para com os filhos existem e devem ser
cumpridos, pois o exercício da paternidade deve ser um ato responsável.
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Não existe fundamento que autorize o pai ou a mãe a abandonar seu filho. Deve haver
um mínimo de convivência afetiva entre ambos, não bastando, portanto, apenas o
cumprimento do dever alimentar.
Diante das grandes conquistas no âmbito da responsabilidade civil, Cavalieri Filho
(apud PEREIRA, 2006, p. 247) menciona o “dever de cuidado objetivo traduzido na cautela,
atenção ou diligência necessárias para que o atuar da pessoa não resulte lesão a bens jurídicos
alheios. A inobservância do dever de cuidado torna a conduta culposa.”
Assim:
O que evidencia a culpa é, na verdade, uma conduta deficiente, quer decorrente de uma deficiência da vontade, quer de inaptidões próprias ou naturais. Exprime um juízo de reprovabilidade sobre a conduta do agente, por ter violado o dever de cuidado quando, em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo (CAVALIERI FILHO, 2004 apud PEREIRA, 2006, p. 247).
Ações requerendo indenização por dano moral aos filhos ainda são raras nos tribunais.
Vê-se com muito maior freqüência, o pedido de alimentos. Porém, alguns julgados desta
natureza começam a aparecer.
Um exemplo de julgado que retrata os argumentos trazidos no presente trabalho é o
Processo n.º 141/1030012032-0, da Comarca de Capão da Canoa do Rio Grande do Sul:
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. REVELIA. Dever moral e legal do pai de prestar afeto, carinho e amor ao filho. O não cumprimento de uma das obrigações inerentes à paternidade obriga o pagamento pelo requerido de indenização por danos morais. Sentença procedente (BRASIL. Comarca de Capão da Canoa, 2ª Vara, Processo 141/1030012032-0 (ação de indenização), Juiz Mario Romano Maggioni. Sentença em 15/09/2003).
Na sentença, o Juiz Mario Romano Maggioni condenou o pai por abandono moral e
afetivo de sua filha a pagar uma indenização por danos morais, no valor de 200 (duzentos)
salários mínimos, e indica com muita propriedade que:
Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos (art. 22, da lei nº 8.069/90). A educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, amor, carinho, ir ao parque, jogar futebol, brincar, passear, visitar, estabelecer paradigmas, criar condições para que a criança se autoafirme. Desnecessário discorrer acerca da importância da presença do pai no desenvolvimento da criança. A ausência, o descaso e a rejeição do pai em relação ao filho recém-nascido ou em desenvolvimento violam a sua honra e a sua imagem. Basta atentar para os jovens drogados e ver-se-á que grande parte deles derivam de pais que não lhe dedicam amor e carinho; assim também em relação aos criminosos. De outra parte se a inclusão no SPC dá margem à indenização por danos morais pois viola a honra e a imagem, quanto mais a rejeição do pai (BRASIL. Comarca de Capão da Canoa, 2ª Vara, Processo 141/1030012032-0 (ação de indenização), Juiz Mario Romano Maggioni. Sentença em 15/09/2003).
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O magistrado fundamenta sua decisão no art. 5º, inciso X da Constituição Federal e
artigo 22 da Lei n.º 8.069/90 para condenar o acusado:
III – Face ao exposto, Julgo procedente a ação de indenização proposta por D. J. A. contra D. V. A., forte no art. 330, II, e no art. 269, I, do CPC, c/c com o art. 5º, X, da Constituição Federal e art. 22 da Lei nº 8.069/90 para condenar o demandado ao pagamento de R$ 48.000,00 (quarenta e oito mil reais), corrigidos e acrescidos de juros moratórios a partir da citação. Condeno o demandado ao pagamento das custas processuais e honorários do patrono da parte adversa que arbitro em 10% sobre o valor da condenação a teor do art. 20, § 3º do Código de Processo Civil, ponderado o valor da causa e ausência de contestação (BRASIL. Comarca de Capão da Canoa, 2ª Vara, Processo 141/1030012032-0 (ação de indenização), Juiz Mario Romano Maggioni. Sentença em 15/09/2003).
Outro exemplo de julgado da mesma natureza é encontrado na Apelação Cível nº
408.550-5 de 01.04.2004 da Comarca de Belo Horizonte, Minas Gerais (ANEXO A):
EMENTA – RESPONSABILIDADE CIVIL – INDENIZAÇÃO - DANO MORAL – RELAÇÃO PATERNO-FILIAL – DESCUMPRIMENTO DE DEVER FAMILIAR – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizada, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana. (Minas Gerais. Tribunal de Alçada. Apelação Cível nº 408.550-5. Relator: Des. Juiz Unias Silva. Julgado em: 01 abr. 2004).
Como argumento para a condenação do réu, o Julgador expõe que:
A relação paterno-filial em conjugação com a responsabilidade possui fundamento naturalmente jurídico, mas essencialmente justo, de se buscar compensação indenizatória em face de danos que pais possam causar aos seus filhos, por força de uma conduta imprópria, especialmente quando a eles é negada a convivência, o amparo afetivo, moral e psíquico, bem como a referência paterna ou materna concretas, acarretando a violação de direitos próprios da personalidade humana, magoando seus mais sublimes valores e garantias, como a honra, o nome, a dignidade, a moral, a reputação social, o que, por si só, é profundamente grave.
[...] ao meu entendimento, encontra-se configurado nos autos o dano sofrido pelo autor, em relação à sua dignidade, a conduta ilícita praticada pelo réu, ao deixar de cumprir seu dever familiar de convívio e educação, a fim de, através da afetividade, formar laço paternal com seu filho, e o nexo causal entre ambos. [...] depreende-se que a responsabilidade não se pauta tão-somente no dever alimentar, mas se insere no dever de possibilitar o desenvolvimento humano dos filhos, baseando no princípio da dignidade da pessoa humana. (Minas Gerais. Tribunal de Alçada. Apelação Cível nº 408.550-5. Relator: Des. Juiz Unias Silva. Julgado em: 01 abr. 2004).
Outro julgado que merece respaldo é o proveniente da 31ª Vara Cível da Comarca de
São Paulo, no qual o Juiz Dr. Luis Fernando Cirillo, condenou um pai, por danos morais, a
indenizar sua filha, no importe de 190 salários mínimos, aproximadamente, reconhecendo que
a "paternidade não gera apenas deveres de assistência material, e que além da guarda, portanto
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independentemente dela, existe um dever, a cargo do pai, de ter o filho em sua companhia".
Apesar de considerar não ser razoável que um filho "pleiteie em Juízo indenização do dano
moral porque não teria recebido afeto de seu pai", o ilustre magistrado sentenciante, ponderou
de outro norte que:
não se pode rejeitar a possibilidade de pagamento de indenização do dano decorrente da falta de afeto simplesmente pela consideração de que o verdadeiro afeto não tem preço, porque também não tem sentido sustentar que a vida de um ente querido, a honra e a imagem e a dignidade de um ser humano tenham preço, e nem por isso se nega o direito à obtenção de um benefício econômico em contraposição à ofensa praticada contra esses bens (31a. Vara Cível Central de São Paulo – Processo n° 000.01.036747-0 – julgado em: 07.06.2004).
Prestar a assistência material (alimentos) não afasta os demais deveres implícitos no
poder familiar dos pais. A guarda e a educação dos filhos não abrangem apenas a
escolaridade, mas, sobretudo, a convivência familiar, o afeto, o amor, o respeito, a dignidade,
a participação, a presença constante de ambos os genitores no desenvolvimento da criança:
Não se deve confundir a obrigação de prestar alimentos com os deveres familiares de sustento, assistência e socorro que tem [...] os pais para com os filhos menores, devido ao poder familiar, pois seus pressupostos são diferentes. A obrigação alimentar é recíproca [...], ao passo que os deveres familiares não têm o caráter de reciprocidade por serem unilaterais e devem ser cumpridos incondicionalmente (DINIZ, v. 5, 2002, p. 468).
Ademais, imperioso ressaltar os dizeres de Vieira (apud LIMA, 2004, p. 628-629),
acerca da inegável responsabilidade dos pais para com os filhos:
Devem os genitores, solteiros, casados, separados, divorciados ou viúvos, ter a exata consciência de seu mister como pais e educadores de cidadãos do futuro, sendo certo que atos por eles praticados poderão gerar graves prejuízos em face desses filhos.
Nesse sentido, a tão debatida questão acerca dos genitores que não visitam os seus filhos, a eles negando a mínima atenção. Há que se desvincular a imagem do doutro genitor, por vezes fonte de dissabores, e ter ciência de que as crianças e os adolescentes não podem padecer em virtude de sentimentos menores de adultos que têm a obrigação de estar preparados para exercer a paternidade/maternidade ou de encontrar meios para fazê-lo.
Outro ponto em questão e tão já debatido diz respeito aos genitores que, mesmo reunindo condições financeiras para tanto, negam à prole por vezes o necessário à própria subsistência, uma vez mais confundindo os menores com a imagem do outro genitor.
Assim, não se pode duvidar que quando se ofende a dignidade e os direitos do filho –
sujeito de direitos -, estes terão de ser reparados pelo pai causador, pois “Não se trata de dar
preço ao amor, tampouco de estimular a indústria dos danos morais, mas sim lembrar a esses
pais que a responsabilidade paterna não se esgota na contribuição material” (SILVA, 2004, p.
142).
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Nesse sentido, o fundamento para a compensação dos danos morais é a dignidade da
pessoa humana, que contempla os direitos de personalidade.
O art. 205 da CF/1988 impõe à família o dever de educar e, igualmente, o art. 227, do
referido diploma legal, estabelece deveres à família, sociedade e Estado. O art. 229 imputa
aos pais o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, sempre respeitando o princípio
da afetividade.
O ECA, em seu art. 3º, prevê que toda criança e o adolescente gozam de todos os
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral, ou seja,
os filhos devem ter sua dignidade preservada, incluindo nela a atenção e os cuidados que os
pais devem ter com estes.
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Outrossim, o art. 249 determina sanção administrativa a qualquer dos pais que
infringir os deveres do pátrio poder (termo erroneamente ainda utilizado pelo ECA), impondo
assim, maior responsabilidade a eles:
Art. 249. Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao pátrio poder ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar:
Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.
Diante do exposto, verifica-se que a legislação brasileira impõe aos pais não somente a
obrigação de sustento e manutenção financeira, mas impõe a estes o dever de oferecer todo o
amparo afetivo para o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social do filho. O
que enseja que o não cumprimento destes deveres pode ser exigido pelos filhos, seja na
reparação civil, seja até mesmo como obrigação de fazer, sob pena de destituição do poder
familiar.
Nesse diapasão, a omissão à assistência imaterial, ao afeto, à convivência familiar, à
criação e à educação à prole constitui conduta ilícita, por violar preceitos da Constituição
Federal, do Código Civil e do estatuto da Criança e do Adolescente, devendo incidir a
indenização por danos morais.
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Em virtude disso é a natureza jurídica da indenização, no caso de falta de afeto e
convívio com o filho, não é verdadeiramente reparatória54, e sim compensatória. E, além de
compensar o dano, sanciona o agente, atribuindo ainda o caráter punitivo. Afinal, a dor, o
sofrimento e a humilhação provocados pelo abandono são insuscetíveis de avaliação
pecuniária.
Imperioso ponderar sobre a responsabilização por abandono afetivo, a fim de
proceder-se a uma correta análise do dever de indenizar, quando sua configuração realmente
existir.
Nesse sentido, interessante mencionar o entendimento jurisprudencial do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, em ação movida pela filha em face do pai (ANEXO E), sob a
alegação de abandono afetivo55:
...a ausência paterna em hipótese alguma se transmudará em reparação monetariamente mensurável. Entendo que agrado não se compra, se conquista. O caso vertente não é daqueles dissabores amiúde analisados, facilmente convertidos em moeda. É preciso, pois, frenar as chicanas indenizatórias, mormente as tais quais a ora analisada. Acolhido o pedido, não tardaria a virar modismo ações deste calão, sobretudo quando se antevê a possibilidade de ganhos fáceis. E sabido que isso gera cobiça, das mais repugnantes.Imagine só, então, a pletora de demandas vãs que acorreriam ao crivo do Judiciário. Louvariam-se elas, tão-só, em solicitar judicialmente do pai biológico aquilo que representaria caudalosos anos de ausência.
Viver à mingua de pai. Enfim, eis a questão: Dano indenizável (in)existente? Nada, absolutamente nada, faz supor a existência do dano moral então pleiteado. Com efeito, o pedido de ressarcimento denota, por via oblíqua e temerária, a pretensão da autora de satisfazer-se às expensas do pai faltoso. Quiçá, adiantamento de herança. Dinheiro é efêmero, se esvai ao tempo, o carinho é indelével. Isto é evidente. Há incompatibilidade lógica e jurídica entre ambos. Um não substitui o outro. É recomendável não levar a cabo indenizações rendidas por inércia paterna ou materna. É preciso ir além. É preciso conscientizar os pais da necessidade da presença, não só física, mas notadamente afetiva, ao lado de seus filhos. A tônica do relacionamento familiar deve ser pautada na convivência voluntária e consciente. A coação judicial, o meio, não justifica o fim, que é a de suprir a figura paterna. Coação judicial pois os pais, molestados em seus bolsos, passariam a ministrar verdadeiro carinho travestido, quando o que se busca é o afeto desinteressado (RIO GRANDE DO SUL. Poder Judiciário. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 70011497393. 9ª Câmara Cível. Rel. Desa. Íris Helena Medeiros Nogueira. Pelotas, 8 de junho de 2005).
54 Pois impossível reparar algo que nunca houve; neste caso o afeto, a convivência, a participação na vida da prole. 55 No caso ora analisado, a filha foi criada pelo pai afetivo sem que, nem o pai afetivo, nem o pai biológico e nem a filha, soubessem da verdade biológica entre eles, ou seja, que o pai biológico não era a mesma pessoa do pai afetivo e registral. Assim sendo, o pai afetivo desempenhou papel de pai biológico, autora da ação como se sua filha fosse. O pai biológico só foi saber que era pai da menina e vice-versa quando ela já era uma mulher. Assim, a filha foi criada pelo pai afetivo e registral sem saber que ele não era seu pai biológico, só vindo a saber desse fato por volta dos 40 anos de idade. Os distúrbios sofridos pela autora deste caso foram provenientes de um conflito de identidade, ocorrido na maturidade, e não em função do abandono afetivo paterno, que influencia o crescimento e desenvolvimento das crianças.
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De todo o exposto, a conclusão que se pode tirar, a princípio, quanto à possibilidade de
responsabilizar civilmente um pai por ter abandonado afetivamente seu filho, é que
primeiramente torna-se necessário analisar cada caso concreto como único, com todas as suas
peculiaridades, analisando se efetivamente houve danos na formação da criança, se esses
danos foram decorrentes do abandono afetivo advindo da falta de convivência familiar, moral
e psíquica na relação paterno-filial e se a convivência entre genitor e filho era possível.
Nesse mesmo sentido, ao sentenciar quanto à indenização devida ao filho em função
do abandono afetivo causado, a Julgadora prolatou que nesses casos:
há que se seguir a prudência, a lógica do razoável, propugnando pela manutenção do justo equilíbrio das relações sociais. O julgador é artífice, criador e responsável por condutas sociais. O que se cristaliza na decisão, transforma-se em parâmetro ou paradigma para as condutas futuras. Desse modo, pode tornar-se o Judiciário responsável pela monetarização dos valores, das crenças, dos ideais, das aspirações do ser humano sempre infinitas e inimagináveis. O julgador cria, no sentido de que confirma determinados fatos sociais, legitimando-os, criando modelos. Assim, é formulador de regras sociais de comportamento e, inevitavelmente, transformador do próprio ambiente social, alterando-lhes valores (RIO GRANDE DO SUL. Poder Judiciário. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 70011497393. 9ª Câmara Cível. Rel. Desa. Íris Helena Medeiros Nogueira. Pelotas, 8 de junho de 2005).
Em consonância com tal entendimento, Schuh (2006, p.72), a respeito da indenização
pecuniária por abandono afetivo, enfatiza que “parece demasiadamente tormentoso
estabelecer uma reparação em pecúnia quanto ao suposto mal causado ao filho, visto que as
obrigações podem ser impostas, os laços afetivos somente conquistados”.
Entretanto, o necessita restar esclarecido é que o fato de não haver lei específica ao
presente tema não deve ser visto como óbice à reparação, vez que há de se alertar que existe
violação a princípios constitucionais de cunho moral, além de haver violação a preceitos
estabelecidos no Código Civil, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Constituição
Federal, ou seja, em interpretação conjunta verifica-se violação de normas que permitem a
responsabilização por abandono afetivo.
Nesse diapasão, Nogueira56 afirma que:
O tecido jurídico (a ordem jurídica positiva) não é impermeável. Ele não vem delimitado e com resposta escrita para a solução da infinitude de relações conflituosas que a imaginação humana é capaz de inventar. Sempre, a essência contém-se no princípio de tudo.
56 RIO GRANDE DO SUL. Poder Judiciário. Tribunal de Justiça..., op cit.
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Ademais:
O silêncio da lei, por si só, não é motivo bastante para arrefecer a necessidade do ser humano em buscar a felicidade. Tímida e, por vezes, preconceituosa, a justiça deve encontrar as possíveis soluções àqueles que batem a sua porta, visto que é da essência humana o permanente conflito na busca da satisfação pessoal. Tal situação exige que a tutela jurisdicional invocada esteja alerta para atender toda espécie de demanda, dando a resposta justa, mesmo àqueles de caráter eminentemente subjetivo, como é o caso das indenizações por abandono afetivo, as quais adentram no campo da responsabilidade civil (SCHUH, 2006, p. 61-62).
De todo o exposto, concebe-se que os casos de indenização por abandono afetivo não
devem fugir à realidade. Pelo contrário, devem adaptar-se ao figurino da responsabilidade
civil, instituído juridicamente há muito tempo, pois conforme Hironaka (2006), a obrigação
perante os direitos existe há muito tempo. O que se assiste na atualidade é o necessário
repensar destes direitos e deveres, permeando-os com afeto, sob os alicerces da dignidade
humana. Este princípio, por sua essência e valor, jamais poderá ser ponderado, visto que, é
considerado absoluto. Ou seja,
[...] a dignidade da pessoa humana afirma-se como o principal critério substantivo na direção da ponderação de interesses [...] Nenhuma ponderação pode implicar em amesquinhamento da dignidade da pessoa humana, uma vez que o homem não é apenas um dos interesses que a ordem constitucional protege, mas a matriz axiológica e o último desta ordem (SARMENTO, 2002, p. 76).
Efetivamente, o pai não tem culpa de não amar seu filho, porém há culpa por ter
negligenciado ao filho, aos deveres inerentes ao papel de pai. Assim, o que se pretende não é
que o pai ame seu filho, mas que cumpra com seus deveres, criando, educando, sustentando
material e moralmente, se comportando como se o amasse.
A pretensão, portanto, não é dar valor ao afeto, ou coagir um pai a amar seu filho, mas
sim que o pai seja responsabilizado por não cumprir com seus deveres de criação, educação,
sustento, assistência material e moral.
Nesse liame, por certo, segundo Maria Celina Bodin de Moraes (2005, p.57):
pode mesmo não haver qualquer ‘prazer’ ou ‘satisfação’ em ter um filho gerado acidentalmente. No entanto, sendo o aborto proibido, este é um encargo que deve ser assumido tanto pela mãe quanto pelo pai, de quem a lei espera e exige que (...) assuma, perante a sociedade e o Estado, (...) a responsabilidade pela criação e o sustento da criança. (...) É evidente que a lei não exige que um pai ame seus filhos, mas ela demanda que o pai se comporte como se os amasse, criando-os, educando-os e sustentando-os. Tal responsabilidade não é facultativa. É a lei a impor o dever, além do sustento, de criação e educação dos filhos.
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Nesse viés, deve-se ilustrar que a responsabilidade civil por abandono afetivo não visa
que um genitor ame seu filho, mesmo porque o amor não é tutelado pelo direito e ele ‘não tem
preço’ e ‘não se compra’. O que se tutela são os direitos dos filhos.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As relações entre pais e filhos se alteraram substancialmente no decorrer da
civilização. Durante muito tempo, os pais detinham uma extensa gama de direitos sobre os
filhos. Nesse diapasão, o conjunto de direitos sobre os filhos era exercido somente pelo pai e
somente os filhos legítimos ou legitimados se submetiam a estes direitos.
No que se refere à entidade familiar, sua concepção foi se transformando ao longo do
tempo e hoje se fala em família constitucionalizada, que contempla outras formas de família e
a igualdade entre filhos. Quanto ao pai, que detinha absoluto poder sob os membros da
família, passa a ser detentor do dever de cuidado e proteção. Passou-se do pátrio poder ao
poder parental ou poder familiar, que impõe aos pais deveres muito além dos deveres de
guarda e sustento, devendo ser exercido em benefício dos filhos e em prol de seus direitos
como pessoa humana. A paternidade responsável passou a ser contemplada pela Constituição,
sob o entendimento de que o Estado não pode intervir no planejamento familiar, mas este
deve ter como fundamento a paternidade responsável e a dignidade da pessoa humana.
Normativamente, a mudança na relação entre pais e filhos ocorreu com a promulgação
da Constituição Federal de 1988, recepcionando a família eudemonista. Ela estabeleceu
paradigmas em defesa dos direitos humanos, consagrando a dignidade da pessoa humana
como pilar da democracia. Ademais, outorgou igualdade entre homem e mulher, aniquilou as
diferenças entre os filhos, elucidando a doutrina da proteção integral (a qual mais tarde foi
consagrada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente), entre outros, como o reconhecimento
de outras formas de entidade familiar além daquela constituída pelo casamento entre homem e
mulher.
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Outro marco foi a efetivação do princípio da afetividade, motivada pelo fenômeno da
repersonalização nas relações familiares, mediante a qual o afeto tornou-se valor jurídico a ser
preservado e vivenciado no âmbito familiar.
Nesse diapasão, o conteúdo do pátrio poder se alterou substancialmente, sendo
deslocado, juridicamente, o seu ponto central, do direito dos pais sobre os filhos para o
melhor interesse do filho. Assim, esse ‘novo’ conteúdo inaugurou o instituto do poder
familiar – melhor identificado como poder-dever ou autoridade parental-, que se refere ao
exercício dos deveres parentais de ambos os pais, em igualdade de condições, de forma a
cumprir as determinações legais referente aos direitos dos filhos incapazes.
Tal alteração passou a não mais corresponder com a nomenclatura utilizada pela
Constituição Federal, pois não se tratava mais de um conjunto de poder dos pais, mas um
conjunto de deveres dos pais a serem exercidos em prol dos filhos, com fiscalização do
Estado e da sociedade, sendo exercido por estes na impossibilidade dos pais o exercerem. Tal
nomenclatura foi repetida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo alterada somente
pelo Código Civil de 2002, que adotou a nomenclatura de poder familiar, tentando adequar o
termo à realidade sócio-jurídica vivida pela sociedade.
O poder familiar, nesse contexto, é tido como um encargo dos pais de atender ao filho,
assegurando todos os direitos fundamentais elencados pela Constituição Federal, pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Código Civil por meio da promoção da
assistência, criação e educação dos filhos. Tais deveres devem ser desempenhados por ambos
os pais de forma conjunta e em condições de igualdade visando o melhor interesse do filho,
cabendo ao filho respeitar e obedecer aos pais, seguindo suas determinações.
Há de se ressaltar que os deveres paternos preceituados pela Constituição Federal, pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Código Civil não se restringem ao aspecto
material, são muito mais abrangentes pelo fato da família atual ser pautada no princípio da
afetividade. Nesse contexto, os deveres paternos devem-se cingir, além do aspecto material, a
educar, assistir e criar os filhos no aspecto moral, intelectual, ético, dando-lhes suporte para
um desenvolvimento sadio, respeitando a dignidade do filho como sujeito de direito.
Para efetivar os deveres de criar, educar e assistir aos filhos no aspecto moral
pressupõe-se a necessidade de afeto, amor, carinho, obediência, compreensão, respeito entre
pais e filhos, primordiais para desenvolver o melhor interesse dos filhos e a preservação da
família.
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Nesse caso, o papel da família contemporânea é garantir à criança além de suas
necessidades básicas de subsistência, também o apoio moral, afetivo e psicológico. Quando
isso não ocorre, coloca-se em risco o desenvolvimento pleno da criança, enquanto pessoa
humana.
O princípio da afetividade é um dos atuais elementos constitutivos da família, o qual
abarca todos os sentimentos acima citados, onde cada membro deve respeitar a dignidade do
outro, pois a família não mais se baseia em uma relação mercantilista, de caráter econômico e
produtivo, baseia-se, atualmente, no afeto, no amor e no respeito mútuo, com o intuito de
realização pessoal afetiva de seus membros.
O princípio da afetividade é vislumbrado principalmente nos seguintes preceitos
constitucionais: arts. 226, § 4º, 227, § 5º e 6º e 229. Para que esses preceitos sejam efetivados,
em sua plenitude, deve ser respeitada, também, a dignidade da pessoa humana, princípio
estruturante de todos os demais.
A Constituição, ao estabelecer a dignidade da pessoa humana como basilar, confere
novo paradigma aos direitos da personalidade, aumentando sua gama, protegendo-os de suas
constantes violações geradoras de danos de cunho extrapatrimonial (dano moral).
Imperioso destacar que os princípios da responsabilidade civil se aplicam ao Direito de
Família, visto que nenhum ramo do direito é completamente autônomo, além de que há
princípios gerais do direito que se aplicam a todas as esferas, isso ocorre, por exemplo, com
os princípios constitucionais.
Destaca-se, nesse sentido, que a responsabilidade civil deve ser aplicada ao Direito de
Família porque ele é protegido pela Constituição Federal, protegido contra atos que violem a
dignidade de seus membros.
Assim, a conduta que viole direito da personalidade, entre eles a dignidade da pessoa
humana, é ilícita conforme preceituado pelo artigo 186 do Código Civil, seja ela decorrente
do Direito de Família ou não.
A dignidade da pessoa humana é um princípio constitucional, bem como a proteção
integral da criança e do adolescente. Assim, se um desses princípios forem violados, seja essa
violação decorrente de culpa ou dolo, e dessa violação decorrer um dano, o agente causador
deve ser responsável pelo dano causado.
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Toda violação normativa que cause dano a outrem deve ser objeto de
responsabilidade, seja ela civil, administrativa e/ou penal. Insta destacar que uma esfera da
responsabilidade não impede a responsabilização em outra esfera.
Assim, no caso em análise, o não exercício do poder familiar, por um dos genitores ou
o seu não exercício de forma satisfatória pode desencadear responsabilização civil,
administrativa e penal.
A responsabilidade administrativa ocorre por violação às normas estabelecidas no
Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 24 e 249), podendo inclusive haver a perda do
poder familiar nos casos mais graves. A responsabilidade penal, ultima ratio do direito,
decorrente da violação ao Código Penal (arts. 244 a 249) podendo implicar em detenção e/ou
multa.
Referente à responsabilidade civil por abandono afetivo é importante destacar que
além dos danos sofridos pelo filho e o nexo causal, deve haver uma conduta do genitor,
conduta essa ativa ou omissiva, decorrente ou não de culpa em sentido lato.
Tal responsabilidade se fundamenta na falta de convivência familiar da criança com
um dos genitores, direito esse consagrado pelo artigo 227 da CF/88 e artigo 1.634 do CC,
sendo que a sua ausência pode gerar danos de ordem psicológica, moral, ética, entre outros, ao
filho.
A violação desse direito da criança (convivência familiar) bem como o fato de o
genitor não dispensar assistência, educação e criação, de cunho imaterial, pode gerar danos
aos filhos. Nesse sentido, cumpre ressaltar que a paternidade/maternidade são funções reais,
ou seja, se um filho foi concebido, fruto da relação entre os genitores, este merece, tem o
direito de ter sua dignidade respeitada, deve ser criado num ambiente de afeto, respeito,
igualdade e responsabilidade, entre outros.
Os danos sofridos pela criança, decorrentes do abandono afetivo, devem ser provados,
averiguando-se se, efetivamente, os danos sofridos são decorrentes do abandono afetivo por
parte de um dos genitores, por parte do descumprimento dos direitos dos filhos pelo genitor.
Assim, como os pressupostos da responsabilidade civil são a conduta ilícita, seja ela
decorrente de culpa ou dolo, dano e nexo de causalidade, caberá aos profissionais
especializados em psicologia infantil averiguarem se efetivamente o dano ocorreu e se ele é
proveniente do abandono afetivo.
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A culpa do agente decorre de uma culpa presumida, também denominada de culpa in
re ipsa, segundo Sérgio Cavalieri Filho. Deste modo, a culpa se presume de forma que a
vítima não precisa provar que o agente agiu com culpa ou dolo, cabe assim, uma inversão do
ônus probatório, de tal forma que o agente deverá provar que agiu dentro de uma das
excludentes possíveis para se eximir de responsabilização.
Tal entendimento é verossímil porque, geralmente, pelo artigo 333 do CPC, incumbe o
ônus da prova a quem alega, assim, caberia ao filho provar que o pai agiu com culpa, o que é
praticamente inviável. Contudo, o filho se encontra em posição de ‘hipossuficiência’, além de
que o filho, pela doutrina da proteção integral, deve ser protegido, assim, a inversão do ônus
da prova referente à culpa, tornando-a presumida até que se prove o contrário, se faz
necessária.
Pela culpa presumida cabe ao genitor provar que agiu dentro de uma das excludentes
(caso fortuito, força maior, culpa exclusiva de terceiro, desconhecimento da paternidade,
impedimento do outro genitor, imputabilidade, entre outros) para descaracterizar a
responsabilidade civil.
Assim, caracterizada a conduta do genitor, seja ela ativa ou omissiva, decorrente de
culpa em sentido estrito ou dolo, de abandonar seu filho (ausência de criação, educação,
assistência e convivência no aspecto moral), causando-lhe danos de ordem imaterial, há a
responsabilidade civil do tipo indenização por danos morais de responsabilidade do genitor.
Em se tratando de dano moral, a reparação do dano é utópica, uma vez que é
impossível re-estabelecer o status quo ante, sendo que em assim sendo, a responsabilidade
civil terá outras funções. As funções da responsabilidade civil por abandono afetivo devem
visar recompensar o sofrimento do filho, punir o genitor pela sua conduta de forma a
conscientizá-lo a não mais agir de tal forma e alertar a sociedade de que, condutas que violem
os direitos dos filhos pelos pais, não são aceitas e serão fontes de responsabilidade civil
(caráter tríplice: compensatório, punitivo e dissuasório).
Por fim, a responsabilidade civil por abandono afetivo é tutelada pelo ordenamento
jurídico brasileiro, apesar de não haver norma expressa tão específica, por violar a dignidade
da pessoa humana, atentando contra a proteção integral da criança e do adolescente e ao
princípio da afetividade.
Nesse diapasão, a omissão à assistência imaterial, ao afeto, à convivência familiar, à
criação e à educação à prole constitui conduta ilícita, por violar preceitos da Constituição
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Federal, do Código Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente, devendo incidir na
indenização por danos morais.
O argumento sobre a impossibilidade de se querer quantificar o preço do amor não
pode servir de amparo à recusa da reparação, pois a situação atual do direito, com a pessoa
como centro das discussões, torna insuportável tal fundamento.
Nesse viés, deve-se ilustrar que a responsabilidade civil por abandono afetivo não visa
que um genitor ame seu filho, mesmo porque o amor não é tutelado pelo direito e ele ‘não tem
preço’ e ‘não se compra’. O que se tutela são os direitos dos filhos, que não pediram para
nascer, mas que têm o direito de ter um pai presente em suas vidas, auxiliando o outro genitor
a exercer o poder familiar de forma a fazer valer os direitos de sua prole.
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ANEXOS
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LISTA DE ANEXOS
ANEXO A – Acórdão TJMG nº 2.0000.00.408550-5/000(1)............................................. 109
ANEXO B – Acórdão TJRJ nº2004.001.13664...................................................................114
ANEXO C – STJ Recurso Especial nº 757.411...................................................................120
ANEXO D – Projeto de Lei Nº 700/2007.............................................................................135
ANEXO E – Acórdão TJRS nº 7000.114.97393..................................................................140
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ANEXO A – Acórdão TJMG nº 2.0000.00.408550-5/000(1)
Número do processo: 2.0000.00.408550-5/000(1)
Relator: UNIAS SILVA Relator do Acordão: Não informado Data do Julgamento: 01/04/2004 Data da Publicação: 29/04/2004 Inteiro Teor: EMENTA - INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS - RELAÇÃO PATERNO-FILIAL - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE
O dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana.
A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL Nº 408.550-5 da Comarca de BELO HORIZONTE, sendo Apelante (s): ALEXANDRE BATISTA FORTES MENOR PÚBERE ASSIST. P/ SUA MÃE e Apelado (a) (os) (as): VICENTE DE PAULO FERRO DE OLIVEIRA,
ACORDA, em Turma, a Sétima Câmara CÍVEL do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais DAR PROVIMENTO.
Presidiu o julgamento o Juiz JOSÉ AFFONSO DA COSTA CÔRTES e dele participaram os Juízes UNIAS SILVA (Relator), D. VIÇOSO RODRIGUES (Revisor) e JOSÉ FLÁVIO ALMEIDA (Vogal).
O voto proferido pelo Juiz Relator foi acompanhado, na íntegra, pelos demais componentes da Turma Julgadora.
Assistiu ao julgamento pelo apelante, a Drª. Thais Câmara Maia e Produziu sustentação oral pelo apelado, o Dr. João Bosco
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Kumaira.
Belo Horizonte, 01 de abril de 2004.
JUIZ UNIAS SILVA
Relator
V O T O
O SR. JUIZ UNIAS SILVA:
Trata-se de recurso de APELAÇÃO interposto por Alexandre Batista Fortes - menor púbere representado por sua mãe - contra a r. sentença que, nos autos da ação de indenização por danos morais ajuizada contra seu pai, Vicente de Paulo Ferro de Oliveira, julgou improcedente o pedido inicial, ao fundamento de que inexistente o nexo causal entre o afastamento paterno e o desenvolvimento de sintomas psicopatológicos pelo autor.
Sustenta o apelante, em síntese, que o conjunto probatório presente nos autos é uníssimo ao afirmar a existência do dano resultante da ofensa causada pelo apelado. Afirma que a dor sofrida pelo abandono é profundamente maior que a irresignação quanto ao pedido revisional de alimentos requerido pelo pai. Aduz que o tratamento psicológico ao qual se submete há mais de dez anos advém da desestruturação causada pelo abandono paterno. Pugna, ao final, pelo provimento do recurso.
Contra-razões às fls. 105-407.
É o relatório necessário.
Conheço do recurso, pois que presentes os pressupostos de sua admissão.
A relação paterno-filial em conjugação com a responsabilidade possui fundamento naturalmente jurídico, mas essencialmente justo, de se buscar compensação indenizatória em face de danos que pais possam causar a seus filhos, por força de uma conduta imprópria, especialmente quando a eles é negada a convivência, o amparo afetivo, moral e psíquico, bem como a
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referência paterna ou materna concretas, acarretando a violação de direitos próprios da personalidade humana, magoando seus mais sublimes valores e garantias, como a honra, o nome, a dignidade, a moral, a reputação social, o que, por si só, é profundamente grave.
Esclareço, desde já, que a responsabilidade em comento deve cingir-se à civil e, sob este aspecto, deve decorrer dos laços familiares que matizam a relação paterno-filial, levando-se em consideração os conceitos da urgência da reparação do dano, da re-harmonização patrimonial da vítima, do interesse jurídico desta, sempre prevalente, mesmo à face de circunstâncias danosas oriundas de atos dos juridicamente inimputáveis.
No seio da família da contemporaneidade desenvolveu-se uma relação que se encontra deslocada para a afetividade. Nas concepções mais recentes de família, os pais de família têm certos deveres que independem do seu arbítrio, porque agora quem os determina é o Estado.
Assim, a família não deve mais ser entendida como uma relação de poder, ou de dominação, mas como uma relação afetiva, o que significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção.
Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não somente do sangue.
No estágio em que se encontram as relações familiares e o desenvolvimento científico, tende-se a encontrar a harmonização entre o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, até como necessidade de concretização do direito à saúde e prevenção de doenças, e o direito à relação de parentesco, fundado no princípio jurídico da afetividade.
O princípio da efetividade especializa, no campo das relações familiares, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal), que preside todas as relações jurídicas e submete o ordenamento jurídico nacional.
No estágio atual, o equilíbrio do privado e do público pauta-se
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exatamente na garantia do pleno desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que integram a comunidade familiar.
No que respeita à dignidade da pessoa da criança, o artigo 227 da Constituição expressa essa concepção, ao estabelecer que é dever da família assegurar-lhe "com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária", além de colocá-la "à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família.
Assim, depreende-se que a responsabilidade não se pauta tão-somente no dever alimentar, mas se insere no dever de possibilitar o desenvolvimento humano dos filhos, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana.
No caso em comento, vê-se claramente, da cuidadosa análise dos autos, que o apelante foi, de fato, privado do convívio familiar com seu pai, ora apelado.
Até os seis anos de idade, Alexandre Batista Fortes, ora apelante, manteve contato com seu pai de maneira razoavelmente regular. Após o nascimento de sua irmã, a qual ainda não conhece, fruto de novo relacionamento conjugal de seu pai, este afastou-se definitivamente. Em torno de quinze anos de afastamento, todas as tentativas de aproximação efetivadas pelo apelante restaram-se infrutíferas, não podendo desfrutar da companhia e dedicação de seu pai, já que este não compareceu até mesmo em datas importantes, como aniversários e formatura.
De acordo com o estudo psicológico realizado nos autos, constata-se que o afastamento entre pai e filho transformou-se em uma questão psíquica de difícil elaboração para Alexandre, interferindo nos fatores psicológicos que compõem sua própria identidade.
"É como se ele tentasse transformar o genitor em pai e, nesta
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árida batalha, procurasse persistentemente compreender porque o Sr. Vicente não se posiciona como um pai, mantendo a expectativa de que ele venha a fazê-lo." (fls. 72).
"Neste contexto, ainda que pese o sentimento de desamparo do autor em relação ao lado paterno, e o sofrimento decorrente, resta a Alexandre, para além da indenização material pleiteada, a esperança de que o genitor se sensibilize e venha a atender suas carências e necessidades afetivas." (fls.74).
Assim, ao meu entendimento, encontra-se configurado nos autos o dano sofrido pelo autor, em relação à sua dignidade, a conduta ilícita praticada pelo réu, ao deixar de cumprir seu dever familiar de convívio e educação, a fim de, através da afetividade, formar laço paternal com seu filho, e o nexo causal entre ambos.
Desta forma, fixo a indenização por danos morais no valor equivalente a duzentos salários mínimos, ou seja, R$ 44.000,00, devendo ser atualizado monetariamente de acordo com a Tabela da Corregedoria Geral de Justiça e com juros de mora em 1% ao mês, a contar da publicação do presente acórdão. Pelo que, condeno o apelado a pagar ao procurador do apelante, a título de honorários sucumbenciais, o valor relativo a 10% do valor da condenação em danos morais.
Com base em tais considerações, DOU PROVIMENTO AO RECURSO, para julgar procedente o pedido inicial, modificando a r. decisão ora objurgada.
Custas pelo apelado.
sol/mc
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ANEXO B – Acórdão TJRJ nº2004.001.13664
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ANEXO C – STJ Recurso Especial nº 757.411
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Anexo D – Projeto de Lei Nº 700/2007 PLS 700/2007 Autor: Senador Marcelo Crivella PROJETO DE LEI DO SENADO nº 700, de 2007 Modifica a Lei nº. 8.069, de 13 de julho de 1990 ("Estatuto da Criança e do Adolescente") para caracterizar o abandono moral como ilícito civil e penal, e dá outras providências. O CONGRESSO NACIONAL decreta: Art. 1º O art. 4º da Lei nº. 8.069, de 13 de julho de 1990, passa a vigorar acrescido dos seguintes §§ 2º e 3º, renumerado o atual parágrafo único como § 1º: "Art. 4º ..................................................................... § 1º. .......................................................................... § 2º. Compete aos pais, além de zelar pelos direitos de que trata o art. 3º desta Lei, prestar aos filhos assistência moral, seja por convívio, seja por visitação periódica, que permitam o acompanhamento da formação psicológica, moral e social da pessoa em desenvolvimento. § 3º. Para efeitos desta Lei, compreende-se por assistência moral devida aos filhos menores de dezoito anos: I - a orientação quanto às principais escolhas e oportunidades profissionais, educacionais e culturais; II - a solidariedade e apoio nos momentos de intenso sofrimento ou dificuldade; III - a presença física espontaneamente solicitada pela criança ou adolescente e possível de ser atendida.(NR)" Art. 2º Os arts. 5º, 22, 24, 56, 58, 129 e 130 da Lei nº. 8.069, de 13 de julho de 1990, passam a vigorar com as seguintes alterações: "Art. 5º. .................................................................... Parágrafo único. Considera-se conduta ilícita, sujeita a reparação de danos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, a ação ou a omissão que ofenda direito fundamental de criança ou adolescente previsto nesta Lei, incluindo os casos de abandono moral. (NR)" "Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda, convivência, assistência material e moral e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais (NR)." "Art. 24. A perda e a suspensão do pátrio poder serão decretadas judicialmente, em
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procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que aludem o art. 22. (NR)" "Art. 56. ................................................................... .IV - negligência, abuso ou abandono na forma prevista nos arts. 4º e 5º desta Lei. (NR)" "Art. 58. No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, morais, éticos, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura. (NR)" "Art. 129. São medidas aplicáveis aos pais ou responsável: ... Parágrafo único. Na aplicação das medidas previstas nos incisos IX e X deste artigo, observar-se-á o disposto nos arts. 22, 23 e 24. (NR)" "Art. 130. Verificada a hipótese de maus-tratos, negligência, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor ou responsável da moradia comum. (NR)" Art. 3º A Lei nº. 8.069, de 13 de julho de 1990, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 232-A: "Art. 232-A. Deixar, sem justa causa, de prestar assistência moral ao filho menor de dezoito anos, nos termos dos §§ 2º e 3º do art. 4º desta Lei, prejudicando-lhe o desenvolvimento psicológico e social. Pena - detenção, de um a seis meses." Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. J U S T I F I C A Ç Ã O A Lei não tem o poder de alterar a consciência dos pais, mas pode prevenir e solucionar os casos intoleráveis de negligência para com os filhos. Eis a finalidade desta proposta, e fundamenta-se na Constituição Federal, que, no seu art. 227, estabelece, entre os deveres e objetivos do Estado, juntamente com a sociedade e a família, o de assegurar a crianças e adolescentes - além do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer - o direito à dignidade e ao respeito. Mas como conferir dignidade e respeito às crianças e adolescentes, se estes não receberem a presença acolhedora dos genitores? Se os pais não lhes transmitem segurança, senão silêncio e desdém? Podem a indiferença e a distância suprir as necessidades da pessoa em desenvolvimento? Pode o pai ausente - ou a mãe omissa - atender aos desejos de proximidade, de segurança e de agregação familiar reclamados pelos jovens no momento mais delicado de sua formação? São óbvias as respostas a tais questionamentos. Ninguém está em condições de duvidar que o abandono moral por parte dos pais produz sérias e indeléveis conseqüências sobre a formação psicológica e social dos
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filhos. Amor e afeto não se impõem por lei! Nossa iniciativa não tem essa pretensão. Queremos, tão-somente, esclarecer, de uma vez por todas, que os pais têm o DEVER de acompanhar a formação dos filhos, orientá-los nos momentos mais importantes, prestar-lhes solidariedade e apoio nas situações de sofrimento e, na medida do possível, fazerem-se presentes quando o menor reclama espontaneamente a sua companhia. Algumas decisões judiciais começam a perceber que a negligência ou sumiço dos pais são condutas inaceitáveis à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Por exemplo, o caso julgado pela juíza Simone Ramalho Novaes, da 1ª Vara Cível de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, que condenou um pai a indenizar seu filho, um adolescente de treze anos, por abandono afetivo. Nas palavras da ilustre magistrada, "se o pai não tem culpa por não amar o filho, a tem por negligenciá-lo. O pai deve arcar com a responsabilidade de tê-lo abandonado, por não ter cumprido com o seu dever de assistência moral, por não ter convivido com o filho, por não tê-lo educado, enfim, todos esses direitos impostos pela Lei". E mais: "O poder familiar foi instituído visando à proteção dos filhos menores, por seus pais, na salvaguarda de seus direitos e deveres. Sendo assim, chega-se à conclusão de ser perfeitamente possível a condenação por abandono moral de filho com amparo em nossa legislação." Por outro lado, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça não demonstrou a mesma sensibilidade, como deixa ver a ementa da seguinte decisão: "Responsabilidade civil. Abandono moral. Reparação. Danos morais. Impossibilidade. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária." (Recurso Especial nº. 757.411/MG, Relator Ministro Fernando Gonçalves, julgamento em 29/11/2005). Entretanto, com o devido respeito à cultura jurídica dos eminentes magistrados que proferiram tal decisão, como conjugá-la com o comando do predito art. 227 da Constituição? "Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, COM ABSOLUTA PRIORIDADE, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão." Ou, ainda, com o que determina o Código Civil: Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 que Institui o Código Civil "Art. 1.579. O divórcio não modificará os direitos dos pais em relação aos filhos. Parágrafo único. Novo casamento de qualquer dos pais, ou de ambos, não poderá importar em restrição aos direitos e deveres previstos neste artigo. Art. 1.632. A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quando ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos. Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: ... II - tê-los em sua companhia e guarda;"
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Portanto, embora consideremos que a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Código Civil contemplem a assistência moral, entendemos por bem estabelecer uma regra inequívoca que caracterize o abandono moral como conduta ilícita passível de reparação civil, além de repercussão penal. Fique claro que a pensão alimentícia não esgota os deveres dos pais em relação a seus filhos. Seria uma leitura muito pobre da Constituição e do ECA. A relação entre pais e filhos não pode ser reduzida a uma dimensão monetária, de cifras. Os cuidados devidos às crianças e adolescentes compreendem atenção, presença e orientação. É verdade que a lei assegura o poder familiar aos pais que não tenham condições materiais ideais. Mas a mesma lei não absolve a negligência e o abandono de menores, pessoas em formação de caráter, desprovidas, ainda, de completo discernimento e que não podem enfrentar, como adultos, as dificuldades da vida. Portanto, aceitam-se as limitações materiais, mas não a omissão na formação da personalidade. Diante dessas considerações, propusemos modificações em diversos dispositivos do ECA, no sentido de aperfeiçoá-lo em suas diretrizes originais. Ao formular o tipo penal do art. 232-A, tivemos a preocupação de dar contornos objetivos ao problema, exigindo o efetivo prejuízo de ordem psicológica e social para efeito de consumação. Lembramos que compromissos firmados por consenso internacional, e ratificados pelo Brasil, também apontam para a necessidade de aprimoramento das normas legais assecuratórias dos direitos das nossas criança e adolescentes, vejamos: Declaração dos Direitos da Criança Adotada pela Assembléia das Nações Unidas de 20 de novembro de 1959 e ratificada pelo Brasil pelo Decreto nº. 99.710/1990 PRINCÍPIO 2º A criança gozará proteção social e ser-lhe-ão proporcionadas oportunidade e facilidades, por lei e por outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade. Na instituição das leis visando este objetivo levar-seão em conta sobretudo, os melhores interesses da criança. ... PRINCÍPIO 6º Para o desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, a criança precisa de amor e compreensão. Criar-se-á, sempre que possível, aos cuidados e sob a responsabilidade dos pais e, em qualquer hipótese, num ambiente de afeto e de segurança moral e material, salvo circunstâncias excepcionais, a criança da tenra idade não será apartada da mãe. (...) PRINCÍPIO 7º
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(...) Ser-lhe-á propiciada uma educação capaz de promover a sua cultura geral e capacitá-la a, em condições de iguais oportunidades, desenvolver as suas aptidões, sua capacidade de emitir juízo e seu senso de responsabilidade moral e social, e a tornar-se um membro útil da sociedade. Os melhores interesses da criança serão a diretriz a nortear os responsáveis pela sua educação e orientação; esta responsabilidade cabe, em primeiro lugar, aos pais. CONVENÇÃO DA ONU SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA Adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil em 1990 ........................................................................................ ARTIGO 9 3. Os Estados Partes respeitarão o direito da criança que esteja separada de um ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos, a menos que isso seja contrário ao interesse maior da criança. Assim, crendo que a presente proposição, além de estabelecer uma regra inequívoca que permita a caracterização do abandono moral como conduta ilícita, também irá orientar as decisões judiciais sobre o tema, superando o atual estágio de insegurança jurídica criado por divergências em várias dessas decisões, é que confiamos em seu acolhimento pelos nobres Congressistas, de sorte a permitir a sua rápida aprovação. Sala das Sessões, Senador MARCELO CRIVELLA
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ANEXO E – Acórdão TJRS nº 7000.114.97393
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
IHMN Nº 70011497393 2005/Cível
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. PATERNIDADE AFETIVA. CONSANGÜINIDADE. - A responsabilidade civil assenta-se em pressupostos (ação ou omissão culposa, dano e nexo de causalidade) que se somam, de modo que, ausente um deles, não há falar em dever de indenizar. - A perda da fruição das benesses da vida, a ausência e a carência de afeto que o pai biológico poderia ter proporcionado ao filho, cuja relação consangüínea veio a ser conhecida em juízo, mediante ação investigatória de paternidade e depois da maturidade e idade adulta (mais de 40 anos), não serve como causa de pedir da ação de indenização por danos morais, sobretudo como no caso presente em que a requerente nasceu, cresceu e desenvolveu-se dentro de uma família, com todos os paradigmas de um crescimento psicologicamente sadio e de formação do caráter. - O elemento caracterizador do estado de filiação é o vínculo afetivo, privilegiado pela Constituição Federal, resultando ter-se como verdadeira paternidade aquela que se funda no afeto, podendo coincidir, ou não, com a paternidade biológica. Prevalência dos vínculos afetivos desenvolvidos em família sobre as questões de ordem genética e patrimonial. APELO IMPROVIDO.
APELAÇÃO CÍVEL
NONA CÂMARA CÍVEL
Nº 70011497393
COMARCA DE PELOTAS
MARIA REGINA RAMALHO COELHO
APELANTE
JOSÉ ROBERTO GOMES RAMALHO
APELADO
A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos os autos.
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Acordam os Desembargadores integrantes da Nona Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento ao apelo, nos
termos do voto da Desembargadora relatora.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além da signatária, os eminentes
Senhores DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA (PRESIDENTE) E DESA.
MARILENE BONZANINI BERNARDI.
Porto Alegre, 08 de junho de 2005.
DESA. ÍRIS HELENA MEDEIROS NOGUEIRA, Relatora.
R E L A T Ó R I O
DESA. ÍRIS HELENA MEDEIROS NOGUEIRA (RELATORA)
MARIA REGINA RAMALHO COELHO apela de sentença que julgou
improcedente sua ação de indenização por danos morais proposta contra o pai
biológico, alegando (a) conter contradições e graves equívocos; (b) violar a
legislação vigente e (c) contrariar a prova dos autos.
Parto da petição inicial.
Disse ter nascido em 20 de março de 1955 e registrada com o nome
de Maria Regina da Silveira Lauz, filha de Ariosto Lauz e Elda da Silveira Lauz.
Por ter ouvido comentários de que seu pai biológico seria outro - JOSÉ
ROBERTO GOMES RAMALHO -, obteve da mãe a confissão de que, à época da
concepção, o pai Ariosto encontrava-se internado no Hospital Psiquiátrico São
Pedro, em tratamento da saúde mental.
Em vista disso e para esclarecimento dos fatos, ajuizou, em dezembro
de 1996, investigatória de paternidade onde, com exame de DNA, resultou
confirmada a relação sangüínea de filiação paterna com José Roberto, tendo sido
expedido a seu favor mandado de retificação do assento de nascimento em 13 de
janeiro de 2000 (fl. 206).
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Em 07 de março de 2003, ajuizou a presente ação contra ele, pedindo
a condenação a lhe pagar indenização a título de danos morais. Sem indicar o
quantum pretendido, deu à causa o valor de R$ 1.000.000,00. Disse (a) ter sido
sempre por ele rejeitada, nunca dele ter recebido afeto, apoio moral e financeiro,
mesmo sabendo de todas as dificuldades e de sua saúde frágil, contrastando com a
situação de homem de muitas posses (famoso estancieiro, proprietário de muitos
bens) e que, relegando sua situação de filha, teria sempre direcionado sua atenção
às duas netas e a elas tendo já doado mais de 7.000 há de terras; (b) estar cuidando
de Ariosto, que com ela vive, mesmo sabendo não ser ele o pai e conquanto
submetida a precária sua situação financeira; (c) terem-lhe sido subtraídas as
oportunidades da vida em decorrência da identidade civil incompleta, sem o apelido
paterno, complemento de sua qualificação social, sujeitando-a a uma infância e uma
vida de privações e de sofrimentos. A indenização teria finalidade punitivo-
pedagógica (castigar o culpado e servir de lição aos demais pais) e, com base na
culpa presumida, reparar todos os danos sofridos durante toda a vida. Invocou os
arts. 5°, V e X, da CF, 186, 927, 942 e 944 do CC para fundar a indenização pelos
danos morais, e os arts. 5°, 227, par. 6°, da CF, 20, da Lei n. 8.069/90, 1.596 do CC,
a embasar o direito a um tratamento digno.
O juízo a quo julgou improcedente a ação por falta de suporte (fls.
279/84), entendendo indevida a indenização por danos morais, não podendo
substituir-se por pagamento em dinheiro e mediante a coação judicial, as atenções e
o afeto paternos, indicando a medida, mais, um adiantamento de herança.
Inconformada, veio com este apelo (fls. 286/300) em que transcreve,
ipsis literis, os termos da inicial, inclusive quanto aos pedidos finais de citação do réu
sob pena de revelia e confissão, de concessão do benefício da AJG e na
condenação nas custas e honorários.
Nas contra-razões (fls. 303/11), o demandado se disse surpreendido,
depois de quarenta anos, com a investigatória de paternidade, já que de todos
sabido ter ela nascido do lar formado pelo casal Ariosto e Elda Lauz, ressaltando o
caráter de interesse econômico da demanda, explicitado desde a inicial. Observa a
existência de uma série de exames que indicam plena saúde física, carteira do
trabalho sem registro de atividade remunerada. Entende exagerado o valor pedido,
disfarçando obter herança de pessoa viva.
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Os autos vieram a este Tribunal e a mim conclusos, por distribuição, no
dia 25 de maio p.p.
É o relatório.
V O T O S
DESA. ÍRIS HELENA MEDEIROS NOGUEIRA (RELATORA)
Eminentes Colegas, a ação é de indenização por danos morais. Sob
tal enfoque jurídico há de ser tratada a matéria.
Já na primeira leitura do processo convenci-me da improcedência do
pedido e, pois, do improvimento do presente recurso, intuição que se consolidou
após exame mais acurado de todos os elementos que integram os autos, conjugado
com a legislação vigente, a doutrina, a jurisprudência, os usos e costumes, os
princípios gerais do Direito e o meu posicionamento jurídico pessoal a respeito da
matéria e na qualidade de julgadora.
O juiz deve aplicar a lei ao fato, ao tempo e ao lugar em que se insere.
Suas decisões, pois, contêm valorações, e a sentença, um juízo axiológico, o que se
confirma pelo art. 131 do CPC: “o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e
circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes”, embora é exigido
tenha de indicar os “motivos que lhe formaram o convencimento”, pena de nulidade (art.
98, inc. IX, CF). Embora deva ser imparcial, ou seja, não utilizar-se de juízo próprio,
individual e particular de crenças e convicções subjetivas alheias ao sistema jurídico,
deve empregar como critérios valoradores as pautas axiológicas da ordem jurídica
vigente (legislação em vigor) e tratar de interpretar tais cânones em relação ao fato
concreto, mediante investigação a respeito dos critérios hierárquicos de valor sobre
os quais essa ordem jurídica se funda e se inspira. “Puesto el Derecho nace de la vida
humana social y está destinado a la vida humana social, habrá de reflejar los caracteres de esa vida
humana, de las situaciones concretas de la misma”, diz o filósofo Luis Recasens Siches (in
“Nueva Filosofia de la interpretacion del Derecho”, Editorial Porrúa, S.A., México,
1980, 3ª ed., p. 276). E continuando sua doutrina, segue ensinando que “... una
norma jurídica es um pedazo de vida humana objetivada, que en la medida en que está vigente es
revivida de modo actual por las personas que la cumplen y por las personas que la aplican, y que
al ser revivida debe experimentar modificaciones para ajustarse a las nuevas realidades en que es
revivida y para las cuales es revivida”.
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O tecido jurídico (a ordem jurídica positiva) não é impermeável. Ele
não vem delimitado e com resposta escrita para a solução da infinitude de relações
conflituosas que a imaginação humana é capaz de inventar. Sempre, a essência
contém-se no princípio de tudo. Por isso, escreveu RUI PORTANOVA, no seu livro
“Princípios do Processo Civil” (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995, p. 13):
“Geraldo Ataliba (1981, p. 11) garante: “o princípio é muito mais importante do que uma
norma”. E, citando Agostinho Gordillo complementa: “... (o princípio) é uma norma; mas é mais
do que uma norma, uma diretriz, é um norte do sistema, é um rumo apontado para ser seguido
por todo o sistema. Rege toda a interpretação do sistema e a ele se deve curvar o intérprete,
sempre que se vai debruçar sobre os preceitos contidos no sistema”. E continua a falar o
autor, segundo o qual “os princípios não são meros acessórios interpretativos. São enunciados
que consagram conquistas éticas da civilização e, por isso, estejam ou não previstos na lei,
aplicam-se cogentemente a todos os casos concretos”. Tanto assim que a Constituição
Federal é expressa a respeito, dizendo que os direitos e garantias nela expressos
não excluem outros, decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados (par.
1º do art. 5º).
Nesse universo principiológico, ressalta-me, no momento, afora a
observância à legislação vigente, como de suma importância, um olhar prudente e
carregado de razoabilidade. A lógica do razoável, no Direito, circunscrita,
condicionada e influída pela realidade histórico-social e particular na qual e para a
qual as regras jurídicas são produzidas, regida, pois, por razões de congruência ou
adequação, há de acompanhar a interpretação e aplicação da lei ao caso presente.
Assim dizendo, procuro a solução que a mim parece justa, adequada e
razoável na dimensão jurídico-axiológica que pauta meu posicionamento de
julgadora.
Conquanto existentes premissas diversas para o silogismo sentencial,
parto do princípio de que uma indenização deve corresponder a efetivo dano ou
prejuízo. Em se tratando de danos morais, em face de sua característica imaterial,
não há outra maneira de se os ter configurado, já que não se os pode medi-los ou
quantificá-los, senão mediante a presunção (intuição), baseada na experiência, dos
efeitos nocivos que determinada ofensa (ato ilícito) ou lesão pode produzir. É o
dano in re ipsa, ou seja, que decorre naturalmente do próprio ato contrário ao direito,
prescindível de comprovação.
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Neste caso, passando em revista as normas, as categorias conceituais
jurídicas e os princípios gerais do direito que possam ser úteis ao caso, não consigo
deduzir tenha a apelante, nas circunstâncias específicas do caso concreto, sofrido
danos morais a justificar um pedido de indenização ao pai biológico. A lógica do
razoável, intuição que revela algo objetivamente válido, sugere-me, sim, uma
pretensão de ordem puramente material que poderia qualificar-se como danos
emergentes e lucros cessantes, ou hipótese de crédito alimentar, campo diverso do
de ordem moral.
Embora se trate de pedido indenizatório e, como tal, inserido no âmbito
da responsabilidade civil, devo socorrer-me do Direito de Família para decidir, aqui,
já que sob tal enfoque os fatos são apresentados.
Nesse sentido, excluindo as questões de ordem patrimonial, concordo
com o julgador a quo da impossibilidade de se substituir a ausência e o afeto do pai
biológico por uma polpuda soma de dinheiro, comprando-lhe o afeto de anos de
ausência.
Ao propor a ação investigatória, Maria Regina já contava mais de 41
anos de idade, já era casada, tinha sua própria família. Quero dizer, já era pessoa
em plena maturidade física e psíquica. Nasceu, cresceu e viveu dentro de uma
família, dentro de um lar, dentro de um grupo de parentesco e de relações sociais de
determinada comunidade, foi feliz, namorou, casou, formou sua própria família.
Construiu seu projeto de vida dentro dos básicos referenciais de valores de família e
sociedade em que estava regularmente inserida. Conheceu os paradigmas do
grupo familiar, a figura do pai, da mãe, de irmãos (o doc. da fl. 191 mostra a
existência de um irmão mais velho), certamente, de avós, tios, sobrinho, primos...
Não demonstrou (nem poderia) a existência de seqüelas de ordem moral pela
ausência da figura do pai ou de seu afeto durante a infância e a adolescência, idade
de crescimento, desenvolvimento e formação do caráter. Teve um pai (pessoa que
desempenhou tal função no lar e que, segundo se deduz, sequer sabia não ser ela
sua filha biológica), um nome e sobrenome, o referencial paterno-filial. Sua
identidade, sua imagem, a auto-estima, sua honra não poderiam ser por nada
atingidas. E gravames de ordem comportamental e psicológica surgidos após a
descoberta de sua verdadeira origem genética não se pode concluir, no caso (dada
a maturidade). Pelo contrário, em termos de razoabilidade, tal fato (o de saber que
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tem um pai biológico de poder econômico) só pode lhe trazer alegria,
contentamento, satisfação, e não prejuízos.
“Yo soy yo y mis circunstancias”, disse o filósofo espanhol ORTEGA Y
GASSET, isto é, a realidade (o que é real) é a interação entre o eu e tudo o que o
rodeia ou condiciona. Nesse sentido, pai é Ariosto, quem a viu crescer a amou como
filha. Nesse sentido, sem idade e mais atual do que nunca é o dito segundo o qual
pai não é o que gerou, mas o que cria, sustenta e ama.
Diante dos avanços da genética, já não mais nos espantamos com
novos termos e expressões, indicando realidades novas que o campo inesgotável da
ciência vem desvendando, tais: clonagem, manipulação biológica, fertilização in
vitro, inseminação artificial, banco de sêmen, criopreservação, locação de útero ... e
por aí vai, gerando novos modelos e formas de agrupamentos familiares, alterando o
conceito de família, de maternidade/paternidade e filiação, evidenciando que o
caracterizador do estado de filiação é o vínculo afetivo (aliás, privilegiado pela
Constituição Federal), não o mero resultado do ato de copular, ou seja, a
paternidade biológica, o que relegaria o ser humano à condição de mero elemento
bioquímico, desprovido de aculturamento e socialização. Daí as novas realidades
que a sociedade criou, e já conceitualizadas, tais a “paternidade socioafetiva”,
“desbiologização da paternidade”, para afirmar que a verdadeira paternidade é a que
se funda no afeto, podendo, ou não, coincidir com a paternidade biológica.
E esse conceito tende a se expandir, fazendo com que os laços
afetivos desenvolvidos na vida em família se sobreponham às questões de ordem
genéticas e patrimoniais.
Sabe-se que o caráter do indivíduo é construído sobre a base adquirida
na convivência familiar, convergindo para isso todos os seus referenciais de vida e
percepção de si próprio como sujeito individual, único e incomparável, com um
nome, um sobrenome, um grupo familiar identificado (pais, irmãos, avós, tios,
primos...). Sobressaem as interações afetivas no grupo familiar como os elementos
mais significativos para o desenvolvimento regular e a afirmação de uma identidade
psíquica sadia. O afeto é a matéria prima do desenvolvimento da criança, dizem os
educadores e profissionais da psicologia.
Tendo crescido em ambiente familiar, satisfez-se o seu direito de ter
um pai, circunstância que vai além e acima do conhecimento da origem genética e
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da coexistência do genitor, repito (que não se confunde com a palavra pai). Segundo
GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA (in “Anais do II Congresso
Brasileiro de Direito de Família – A família na travessia do novo milênio”. Belo
Horizonte: Del Rey, 2000, p. 177), “... por direito ao pai deve-se entender o direito atribuível
a alguém de conhecer, conviver, amar e ser amado, de ser cuidado, alimentado e instruído, de se
colocar em situação de aprender e apreender os valores fundamentais da personalidade e da vida
humanas, de ser posto a caminhar e a falar, de ser ensinado a viver, a conviver e a sobreviver....”.
E isso Maria Regina não nega e não pode negar. O pai não mais é o doador do
sêmen, senão uma instituição, em decorrência do fato de ser a família uma
instituição cultural. Não é ela a base natural, mas cultural da sociedade, uma
edificação psíquica em que cada um dos membros que a compõem exerce uma
função: pai, mãe, filho... (enquanto perdurar essa composição, que pode modificar-
se, em face das rápidas mutações sociais), sem que haja necessidade de vínculo
biológico.
Nasceu em 20 de março de 1955. Foi concebida, portanto, no ano de
1954, em relação extramatrimonial de ambos os seus geradores. Conquanto
circunstância de relevância secundária na solução do processo, situo o fato na
época, quando a legislação objetivava a preservação do instituto do matrimônio,
chegando a impedir o reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento,
enquanto vigente (art. 364 do CC/16). Ocorre que o Código Civil de 1916 veio do
Brasil colonial e consagrou os modelos de família da época, patriarcal, funcional,
com hegemonia do poder do pai, hierarquização das funções, desigualdade de
direitos e deveres entre marido e mulher, discriminação dos filhos,... enfim, no
predomínio dos interesses patrimoniais em detrimento da relevância das interações
afetivas. Os filhos havidos no matrimônio desfrutavam do privilégio da legitimidade
(art. 337) frente aos “ilegítimos” (os havido de forma extramatrimonial), relegando o
legislador a plano secundário a questão biológica em favor de valores morais e
éticos desenhados pelo sistema vigente da época e em nome da paz familiar e na
proteção do patrimônio da família.
Até o advento da Lei n. 7.841/89 (decorrência da CF/88), o art. 358 do
CC/16, por exemplo, proibia o reconhecimento de filhos incestuosos ou adulterinos,
quer dizer, os genéticos.
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Mais, conforme o art. 344 desse mesmo CC/16, a contestação de
filiação havida na constância do casamento era privativa do marido.
Nesse contexto histórico, a paternidade se apresentava com
característica conceitual de presunção de que pater vero is est justae nuptiae demonstrant,
consagrada pelos arts. 338 a 341 do CC/16, deixando claro que, embora sob outro
enfoque, a identidade genética tinha importância secundária. Maria Helena era filha
de Ariosto e Elda, porque Ariosto e Elda eram marido e mulher. Nada mais natural
perante a sociedade. E, como a própria apelante diz, nunca soube não ser Ariosto o
seu pai. Natural o tenha consigo e a ele dispense o afeto e a atenção de filha que
merece. Não passa alguém a ser pai, no sentido mais profundo da palavra, por
causa de uma decisão judicial. Também não o deixa de sê-lo em razão de uma nova
descoberta científica, porque a autêntica paternidade não se funda na verdade
biológica, mas calça-se na verdade afetiva, como venho salientando.
Não estou a afirmar a negativa do direito de a autora conhecer as
suas origens. O que entendo, de outro modo, é o fato de que carece de fundamento
o pedido para que se condene o pai a pagar uma compensação financeira (e
milionária!) para suprir prejuízos morais que não consigo objetivar. Em searas outras
que não a dos limites desta ação, repito o que disse antes, a procedência da ação
investigatória de paternidade só pode ser acolhida como benéfica, partindo-se do
pressuposto (por ela indicado) segundo o qual o pai biológico seria pessoa
abastada, já que o sistema jurídico lhe assegura uma série de benesses em face da
qualidade de filha. O universo jurídico oferece outros meios de busca das
necessidades de cunho material que não a ação travestida de indenização por
danos morais, mas com fim diverso e que o nome contempla.
E não há como o Estado-(Juiz) interferir na intimidade de uma pessoa,
impor os sentimentos (passados e presentes) de amor e afeto, simplesmente porque
copulou, dizendo: ame, dê afeto ou pagará uma pena indenizatória, substituindo o
insubstituível com polpuda conta bancária, premiando-se o filho sem que se cogite
de, com tal medida, fazer nascer o amor do pai pelo filho. Nesse passo, posiciono-
me com o julgador a quo, transcrevo e incorporo, aqui, parte dos fundamentos da
sentença, postos nestes termos:
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“... a ausência paterna em hipótese alguma se transmudará em reparação
monetariamente mensurável.
Entendo que agrado não se compra, se conquista. O caso vertente não é
daqueles dissabores amiúde analisados, facilmente convertidos em moeda. É preciso,
pois, frenar as chicanas indenizatórias, mormente as tais quais a ora analisada.
Acolhido o pedido, não tardaria a virar modismo ações deste calão, sobretudo
quando se antevê a possibilidade de ganhos fáceis. E sabido que isso gera cobiça, das
mais repugnantes.
Imagine só, então, a pletora de demandas vãs que acorreriam ao crivo do
Judiciário. Louvariam-se elas, tão-só, em solicitar judicialmente do pai biológico
aquilo que representaria os caudalosos anos de ausência.
Viver à míngua de pai. Enfim, eis a questão: Dano indenizável (in)existente?
Nada, absolutamente nada, faz supor a existência do dano moral então
pleiteado. Com efeito, o pedido de ressarcimento denota, por via oblíqua e temerária,
a pretensão da autora de satisfazer-se às expensas do pai faltoso. Quiçá,
adiantamento de herança.
Dinheiro é efêmero, se esvai ao tempo, o carinho é indelével. Isto é evidente.
Há incompatibilidade lógica e jurídica entre ambos. Um não substitui ao outro.
É recomendável não levar a cabo indenizações rendidas por inércia paterna ou
materna. É preciso ir além. É preciso conscientizar os pais da necessidade da
presença, não só física, mas notadamente afetiva, ao lado de seus filhos.
A tônica do relacionamento familiar deve ser pautada na convivência
voluntária e consciente. A coação judicial, o meio, não justifica o fim, que é a de
suprir a figura paterna. Coação judicial pois os pais, molestados em seus bolsos,
passariam a ministrar verdadeiro carinho travestido, quando o que se busca é o afeto
desinteressado.
Logo, falece de supedâneo o pedido indenizatório versado”.
Este egrégio Tribunal de Justiça, em órgão fracionário de competência
de matéria de família, já teve oportunidade de apreciar questão semelhante, com o
diferencial de que lá se tratava de menor de sete (7) anos de idade, e decidiu,
embora por maioria, pela improcedência da demanda (Embargos Infringentes (de n.
70000271379). Seu relator, o eminente Des. ANTONIO CARLOS STANGLER
PEREIRA buscou afastar o argumento da ilicitude ao pai na oposição de medidas
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contrárias à ação de reconhecimento da paternidade: “Somente se caracteriza o dano
moral se estiver configurado, por parte do réu, comportamento que vise prejudicar o autor,
retardando o seu reconhecimento, com expedientes processuais de cunho eminentemente
protelatório”. E continua: “Não há elementos nos autos que permitam o reconhecimento da
ocorrência do dano moral, uma vez que o réu somente se defendeu da paternidade que lhe foi
imputada, pela falta de certeza de ser o pai do investigante. Defendeu-se frente a incerteza da
paternidade”.
A Desembargadora MARIA BERENICE DIAS, por sua vez e no mesmo
acórdão, fundou seu voto na inexistência de dano à criança de sete (7) anos em face
da ausência do pai, assim justificando: “Ainda que a tese me seja simpática e ache até viável
reconhecer a obrigação de pagamento de indenização por dano moral ao pai ou à mãe que se
omitem em desempenhar seu papel, sua função, quando traz gravames de ordem
comportamental e psicológica à prole, o reconhecimento dessa responsabilidade, não é da
tradição da nossa Justiça. In casu, descabe apenar o réu pois quando ingressou a ação de
investigação de paternidade, a criança já tinha sete anos, e eventuais seqüelas, ao certo, já teriam
advindo“.
Em outra oportunidade, na Apelação Cível n. 596124757, a 5ª Câmara
Cível, este Tribunal de Justiça também negou provimento ao apelo. De relatoria do
Desembargador ARAKEN DE ASSIS, transcrevo a ementa do acórdão:
“Não tem o filho pretensão para haver do pai, após o
reconhecimento forçado da paternidade, indenização pelas
privações sofridas em virtude da negligência deste a título de
dano moral, porque a condição de filho que baseia a demanda é
efeito da investigação acolhida”.
Disso colhe-se que, conquanto declaratória a sentença, os danos
morais não se produzem por fatos antigos (de mais de cinqüenta anos – idade da
apelante, hoje) e sequer conhecidos. Somente danos diretos e efetivos, por efeito
imediato do ato culposo, encontram suporte de ressarcimento. O interesse legítimo,
além de dar condições gerais de reparação, reside na realidade do dano.
Pelas razões expostas, não vejo configurados danos morais. E, como
não se cogita de responsabilidade jurídica sem dano, o pedido improcede.
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À apelante não faltou a figura do pai, o afeto, a família, um nome, uma
identidade civil; logo, respeitados foram os seus direitos de personalidade. Não vejo
dor, sofrimento, vexame, desonra, diminuição da própria imagem, da auto-estima,
descrédito à sua pessoa decorrente do fato de não ter o pai biológico assumido a
paternidade espontaneamente.
O pedido de condenação ao pagamento de da importância de R$
1.000.000,00 me impressiona e me indica tratar-se de uma busca de equiparação
social/econômica com a família do pai biológico, igualando-se às netas, já que, no
arrazoado, insiste na sua condição de pessoa necessitada em confronto com a
capacidade financeira do demandado, do não ter usufruído das benesses que o
nome poderia lhe conferido, tal um status social diverso. A meu sentir,
compensação financeira, de auto-afirmação, relacionada a um pedido de status
social, não pode receber o nome de indenização por danos morais.
A situação me põe a me perguntar se idêntica ação indenizatória teria
proposto, se soubesse de um pai biológico desonrado, em situação financeira
degradante, precisando de auxílio afetivo, moral e financeiro. Conquanto não exerça
influência na decisão, o questionamento se baseia no fato de que, assim como
entendeu o juiz de primeira instância, não se pode monetarizar os sentimentos e
condenar alguém por não amar ou por não dar afeto, sobretudo nas relações entre
adultos, como neste caso. Corre-se o risco de criar uma conduta social de tudo
transformar em mercadoria, inclusive as emoções e, logo, criar-se um regramento
mercadológico dos valores humanos. Nesse universo, logo surgem os navegadores
espertos no mar das permissividades e tolerâncias, que se cai na tentação de
qualificar de ousadia inovadora, criando situações nem sempre legítimas mas
legitimadas pelo Judiciário, de enriquecimento sem causa ou de causa duvidosa.
Não estou a negar, com isso, os legítimos direitos a quem os detêm; reclamo
prudência e respeito aos mais salutares princípios do Direito, sempre preservando o
justo. IMMANOEL KANT (in “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”. Tra.
Paulo Quintela, Lisboa: Ed. To, 1986) procurou distinguir aquilo que tem um preço,
seja pecuniário seja estimativo, do que é dotado de dignidade, a saber, do que é
inestimável, do que indisponível, do que não pode ser objeto de troca: “No reino dos
fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em
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vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço e,
portanto não admite equivalente, então tem ela dignidade”.
Falando a respeito do dano moral, Sérgio Cavalieri Filho no livro
Programa de Responsabilidade Civil (4ª ed., RJ, Malheiros, 2003, p. 98), diz e alerta:
“O que configura e o que não configura dano moral? (...)
ultrapassadas as fases da irreparabilidade do dano moral e da sua
inacumulabilidade com o dano material, corremos, agora, o risco
de ingressar na fase da sua industrialização, ..........
Este é um dos domínios onde mais necessárias se tornam as
regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida
das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida.
Tenho entendido que, na solução dessa questão, cumpre ao juiz
seguir a trilha da lógica do razoável, em busca da concepção
ético-jurídica dominante da sociedade. Deve tomar por
paradigma o cidadão que se coloca a igual distância do homem
frio, insensível, e o homem de extremada sensibilidade”.
Como também alertou o magistrado sentenciante, há que seguir a
prudência, a lógica do razoável, propugnando pela manutenção do justo equilíbrio
das relações sociais. O julgador é artífice, criador e responsável por condutas
sociais. O que se cristaliza na decisão, transforma-se em parâmetro ou paradigma
para as condutas futuras. Desse modo, pode tornar-se o Judiciário responsável pela
monetarização dos valores, das crenças, dos ideais, das aspirações do ser humano
sempre infinitas e inimagináveis.
O julgador cria, no sentido de que confirma determinados fatos sociais,
legitimando-os, criando modelos. Assim, é formulador de regras sociais de
comportamento e, inevitavelmente, transformador do próprio ambiente social,
alterando-lhe valores. Dou-me conta do grau de responsabilidade do julgador.
Propala-se a existência, na jurisprudência brasileira, de três decisões
condenatórias por danos morais envolvendo o relacionamento pai e filho. Saliento,
no entanto, que todas as três dizem com o abandono do filho pelo pai em situação
de menoridade, quando imprescindível, para o crescimento psiquicamente sadio da
pessoa, a relação afetiva paternal, que não é o caso presente.
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Neste Estado, na comarca de Capão da Canoa, houve uma sentença,
em 16 de setembro de 2003 (Processo n. 141/1030012032-0), proferida pelo juiz
Mario Romano Magioni, da 2ª Vara, que condenou o pai (em situação de revelia) a
pagar R$ 48.000,00 por abandono afetivo, baseado no art. 22 da Lei n. 8.069/90,
considerando o julgador indispensável o carinho e a presença paterna no
desenvolvimento da criança, não se podendo restringir ao repasse da verba
alimentar.
Outro julgamento noticiado ocorreu na 7ª Câmara Cível do Tribunal de
Alçada Civil de Minas Gerais (Apelação Cível n. 408550-5, decisão 1º de abril de
2004), cuja ementa está assim posta: “A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono
paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser
indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana”.
Um terceiro exemplo de decisão nesta matéria vem da 31ª Vara Cível
Central de São Paulo (Proc. n. 000.01.036747-0, julgado em 07/06/2004), conforme
registro no “Repertório de Jurisprudência IOB, 1ª quinzena de abril de 2005, n.
7/2005, v. III, p. 222. Nesse caso, a paternidade fora exercida e depois negada, ou
seja, o pai teria abandonado o lar após alguns meses de seu nascimento,
constituindo nova família, onde houve perícia judicial que constatou conflitos de
identidade, necessitando a criança de tratamento psicológico.
Neste caso, afora tratar-se de situação de fato bem diversa, em que
não se pode dizer da ausência do pai e do seu afeto, as circunstâncias histórico-
sociais quanto as do Direito merecem consideração. Tratou-se de relação
extramatrimonial de ambos (pai e mãe). Ambos possuíam uma família. Em tais
circunstâncias, poderia o pai biológico propor investigatória de paternidade, se Maria
Regina (a demandante) era filha de Ariosto? Repito o que antes disse: a legislação
sequer permitia tal pretensão. Mais. O fato foi ocultado pela mãe que, segundo a
autora afirma, somente depois dos quarenta anos de idade lhe arrancou a confissão,
não de ser o demandado José Roberto o pai, mas de ter com ele mantido relação
sexual enquanto Ariosto encontrava-se hospitalizado. Anoto que a mãe, ao
confessar, não teria afirmado a paternidade, mas deixado dúvidas (tanto assim que
disse ter ajuizado a investigatória para obter esclarecimentos). Nesse sentido,
mesmo tivesse o demandado auxiliado a mãe quando do seu nascimento, diante da
dúvida e da situação de casados de ambos, não poderia adiantar-se e intrometer-se
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na família de Ariosto. Dessa sorte, a mim não se evidencia a ilicitude da conduta do
pai biológico, tipificada, segundo a apelante, no não-reconhecimento espontâneo da
filiação.
Observo que, no trato dos problemas humanos, dentre eles os
jurídicos, nem sempre a melhor solução é aquela que o direito positivo indica (como
no início apontei), em virtude da enorme e complicadíssima multitude de
componentes heterogêneos que intervêm nas interações do tipo das aqui
envolvidas. Nesse contexto, pode-se justificar a conduta da mãe em ocultar a dúvida
a respeito da origem da filha. Mais. Vieram aos autos documentos que comprovam o
parentesco, podendo originar-se dele a aventada semelhança física da autora.
Isso somado dificulta o reconhecimento da ilicitude também da conduta
do demandado por se ter defendido em juízo, sobretudo que tal prerrogativa constitui
direito constitucional de defesa. Somo mais o fato de não ter havido prova de ter ser
dolosa ou maliciosa, com intuito de prejudicar, a defesa do demandado. E, direito e
ilicitude são antíteses; um exclui o outro (art. 188, I, CC.
Conquanto digam doutrina e jurisprudência prescindível a prova da
ocorrência do dano moral por defluir do próprio ilícito, não se dispensa a
demonstração da conduta antijurídica e o nexo de causalidade como integrantes da
causa de pedir autorizadora da condenação ao pagamento da indenização a tal
título.
Os fatos-base configuradores da ilicitude seriam o não-reconhecimento
espontâneo da paternidade, desde o nascimento, a resistência oposta à ação
investigatória, a falta de atenção do pai. Todos restaram afastados, não servindo
tais como fundamento do pedido indenizatório.
Meu voto, pois, é pelo improvimento do apelo, mantendo a sentença
pelos seus próprios fundamentos, aos quais acrescento as razões aqui deduzidas.
DESA. MARILENE BONZANINI BERNARDI (REVISORA) - De acordo.
DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA (PRESIDENTE) - De acordo.
APELAÇÃO CÍVEL Nº 70011497393 – “Negaram provimento ao apelo. Unânime.”
Julgador(a) de 1º Grau: JOAO LUIS PIRES TEDESCO
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