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O(s) significado(s) dos objetos em novos contextos:
duas exposições em museus de arte parisienses.1
Francieli Lisboa de Almeida/Unicamp
Resumo
O projeto em torno da criação do museu do quai Branly de “artes primeiras” em Paris a
partir dos anos 90 (mas que veio a ser inaugurado em 2006) promoveu todo um debate em torno das
artes ditas primitivas, primeiras, tribais, étnicas, etc, que mobilizou e tem mobilizado dentro e fora
da França não apenas museólogos, mas também antropólogos, historiadores da arte, marchands
(comerciantes especializados), curadores, colecionadores, dentre outros.
A alteração no estatuto do objeto2 de testemunho etnográfico para obra de arte acaba
trazendo a tona diversas questões. Desde a validade da mudança deste estatuto até questões
relacionadas à autoria dos objetos (individual/coletiva), sua autenticidade, as somas vultuosas na
comercialização, os pedidos de repatriamento pelos grupos de origem, assim como a própria
identificação ora como arte tradicional ora contemporânea.
Pretendo neste trabalho apresentar duas exposições temporárias ocorridas em Paris no
inverno de 2008/2009 para a partir delas propor alguns pontos para a reflexão no campo da
antropologia da arte. As exposições são:“Jackson Pollock et le chamanisme” e "Recettes des
dieux”, ocorridas respectivamente na Pinacoteca de Paris e no museu do quai Branly.
Palavras-chave: antropologia da arte; exposições de arte; objetos etnográficos.
Introdução
Em minha estada em Paris há quase dois anos atrás fui afetada por máscaras esquimós,
pinturas aborígenes australianas, bolis africanos, ornamentos plumários bororo. Esses objetos estão
em diversos lugares da cidade, seja em museus e galerias de arte ou então em lojas especializadas
na comercialização de artes ditas primitivas.
É possível perceber diferenciações nos status dos objetos. Nos museus e galerias ora são
apresentados aos visitantes como objetos etnográficos, que procuram testemunhar a existência de
grupos e sociedades sem registros escritos e distantes da sociedade ocidental (não necessariamente
1 Trabalho apresentado na 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil.
2 Aqui estou sempre me referindo ao objeto, mas não me limito às produções materiais. Mas essas acabam sendo mais recorrentes nos contextos de museus e galerias de arte devido a sua materialidade.
1
no espaço) e ora como obras de arte, transitando entre uma arte mais tradicional e a contemporânea.
Tais nuances chamam a atenção.
O meu incômodo inicial era ser uma espectadora brasileira que pela primeira vez estava
vendo inúmeros objetos provenientes de diversos grupos indígenas brasileiros fora do meu país,
assim como objetos de diversos grupos tidos por “não ocidentais”. E ainda, objetos que em sua
maioria foram levados para a França a partir de missões realizadas nas antigas colônias da Europa,
sendo algumas justamente para fins de coleta de material etnográfico, como a missão francesa
Dakar-Djibouti (1931-1933). A própria coleção Lévi-Strauss no museu do quai Branly me chamou
especialmente a atenção. Ela possui 1457 objetos, sendo em sua grande maioria objetos das etnias
Nambikwara, Bororo e Kaduveo3 (mas há também objetos de grupos indígenas da costa noroeste
americana colecionada no período que ele lá esteve).
Foi a partir desse estranhamento que procurei olhar mais atentamente cada objeto, procurá-
los nos museus menos evidentes (como a princípio me parecia ser os de arte contemporânea), assim
como também pesquisar bibliograficamente o que antropólogos, historiadores da arte, curadores e
marchands (comerciantes de arte) estavam dizendo sobre o tema que pudesse ajudar na minha
reflexão sobre o sentido daqueles objetos nesses espaços.
Realizando um percurso um pouco atento pela cidade é possível notar a quantidade de
galerias que expõem ao lado das já tradicionais pinturas e esculturas de artistas ocidentais, objetos
produzidos por grupos não ocidentais, identificados nos termos “primitivos”, “étnicos”, “tribais”,
“primeiros”, etc, sendo a maioria desses objetos, máscaras e esculturas. Há inclusive galerias
especializadas neste tipo de arte, localizadas em regiões de prestígio na cidade, como é o caso da
Rive Gauche.
Além disso, pode-se encontrar essas produções em diversos museus. E não apenas naqueles
que se dedicam a este tipo de arte, como no caso do museu do quai Branly (“des arts premiers”),
Dapper (“arts d’Afrique”) ou Guimet (“des arts asiatiques”). Também estão presentes em museus
como o d’Orsay, cujos acervos são de arte moderna, como é o caso da peça “Idole à la coquille”,
presente na sala que apresenta a obra de Paul Gauguin, adquirida pelo pintor em sua primeira estada
no Taiti no fim do século 19; no Centre Georges Pompidou - arte moderna e contemporânea – onde
puderam recentemente ser vistos os objetos que fazem parte do seu acervo permanente (na sala
dedicada a André Breton, uma das importantes referências do surrealismo4), mas também aqueles
presentes na exposição “Donations Daniel Cordier. Les désordres du plaisir”5; as peças de “art
3 Disponível para consulta no site do museu: http://www.quaibranly.fr.4 CLIFFORD, J. “Sobre o surrealismo etnográfico”. A experiência etnográfica. Antropologia e literatura no século
XX. Ed. UFRJ, 1998.5 No inverno europeu (2008/2009).
2
nègre” da coleção particular de Picasso presentes no Museu Nacional Picasso-Paris; as máscaras
esquimó Inupiak, os artigos de xamãs Tlingit, as figuras totêmicas de diversos grupos da América
do Norte na exposição “Jackson Pollock et le chamanisme” na Pinacoteca de Paris e finalmente, a
exposição dos “chefs-d’oeuvre” do museu do quai Branly no Pavillon des Sessions6 do Louvre.
Essa é apenas uma pequena amostra do que pôde ser visto mais recentemente em Paris. E
com isto, já é possível ter uma ideia de quão disseminados esses objetos estão por lá, além dos
lugares que têm especialmente ocupado neste início de século 21: os espaços de arte.
A forma e os sentidos das exposições desses objetos são diferentes uma das outras, de um
museu para outro, de uma curadoria para outra, o que implica em diferenças importantes nas
significações dadas a eles. Essas diferenciações ficarão mais evidentes quando tratar das duas
exposições que escolhi trazer para a discussão.
O devir-xamã em Pollock
A exposição “Jackson Pollock et le chamanisme” aconteceu na Pinacoteca de Paris a partir
do dia 15 de outubro de 2008 foi até 15 de fevereiro de 2009. A curadoria ficou a cargo de Stephen
Polcari e Marc Restellini, que propuseram um diálogo da obra do artista estadunidense Pollock
(1912-1956) com o universo mítico do xamanismo de diversos grupos indígenas da América do
Norte.
Máscaras (eskimo Inupiak, Tlingit), cajados, estátuas (Thulé), totens (Haida, Nootka),
amuletos (Tlingit), faca de combate (Tlingit), esculturas de animais (Inuit), eram parte de um todo
formado também pelos vídeos etnográficos de rituais xamânicos, textos explicativos em cada sala
da exposição e as telas que não eram apenas de Pollock, mas também de André Masson (pintor
surrealista francês que viveu entre os anos de 1896-1987). Era esse conjunto que deveria permitir
que o espectador pudesse acessar a releitura da obra de Pollock proposta pela curadoria da
exposição.
E tal proposta era a seguinte, segundo Marc Restellini: realizar uma “releitura revolucionária
de sua obra” (RESTELLINI, 2008:07) tendo em vista que o período dos “drippings” - conhecido
como o do expressionismo abstrato americano - é geralmente tido como o momento em que o artista
abandona a sua referência ancorada na arte indígena, principalmente a do noroeste americano,
6 Esses objetos fazem parte do acervo do Museu do quai Branly São 120 “chefs d’oeuvre”, em sua grande maioria esculturas, organizadas por “aires géographiques” em 1200 m2 do prestigiado museu parisiense. Esta “antena” do museu do quai Branly como foi chamada, foi inaugurada pelo então presidente francês Jacques Chicac em abril de 2000. Vale destacar que dez anos antes, Jacques Kerchache (colecionador de “arte primitiva” e marchand, e que anos depois faria parte do projeto que concebeu o Museu do quai Branly) organizou um manifesto pela entrada das “artes primeiras” no Louvre, manifesto que foi assinado por diversos antropólogos franceses e publicado no jornal Libération do dia 15 de março de 1990 (GOLDSTEIN, 2008: 294; GROGNET, 2007:177.
3
conhecida por Pollock a partir da exposição “Indian Art of the United States” do Museu de Arte
Moderna de Nova Iorque em 1941(idem: 28).
Assim, a curadoria da exposição pretendeu conduzir o observador a olhar os “drippings”
não como arte puramente abstrata
[...] mas também obras simbólicas com elementos de referência ao xamanismo ou aos rituais xamânicos. (...) a lógica abstrata se desmorona em proveito de uma intenção deliberada do artista de acreditar na extinção do tema para, exatamente como no ritual xamã de iniciação, aceder aos portais míticos que nem todos poderiam ver, mas que seria reservado a alguns iniciados. Assim, o trabalho de Pollock chamado 'abstrato' é abstrato somente para esconder o tema secreto, visível apenas aos iniciados". (RESTELLINI, 2008:09 – tradução minha).
Para Laymert Garcia dos Santos (2009) a partir de seu referencial deleuzeano, é como se
Pollock tivesse acessado na fase dos drippings um “devir-chamã” (2009:26). Depois de ter sido
iniciado, a partir dessas referências indígenas que o afetaram, o artista estadunidense pôde aceder
aos “portais míticos”, momento a partir do qual a sua pintura vem a ser aquela onde os temas se
dissolveram.
Reconstruindo aqui brevemente o percurso da exposição essa foi organizada em nove
ambientes, sendo eles: i) início – obras de juventude; ii) o sacrifício e a morte; iii) a fusão do
homem e do animal; iv) a fusão do homem e da mulher; v) germinação e nascimento; vi) a pintura
gráfica – os pictogramas; vii) as abstrações; viii) a dança e finalmente, ix) o êxtase.
Untitled, c. 1939-1940. Colored pencils and crayons, 36,2x27,9 cm. Collection Mandy and Jonathan O’Hara, New York
Amuleto, apanhador de alma - Um amuleto“apanhador de alma” xamânico Tlingit esculpido em dente de baleia.7
7 Ambas imagens foram retiradas do flyer de divulgação da exposição disponível na internet em pdf. PINACOTHÈQUE DE PARIS. Press kit. 2008.
4
Cada uma dessas salas da exposição foram montadas com as telas de Pollock assim como
com os objetos. Um simples exemplo disso que trago aqui são o das figuras acima, que formam
junto com outras obras a sala 3: “a fusão do homem e do animal”.
A da esquerda é de uma tela de Pollock, que segundo comentários da curadoria:
O motivo superior do trabalho mostra um ser humano e cabeça de um animal angular, que poderia pertencer a um cavalo ou, mais provavelmente, a um pássaro. A metade inferior mostra um homem ajoelhado, também assimilada a um cavalo. O desenho sugere que o homem adormecido ou em transe, dá à luz uma figura totêmica, e é, portanto, submetido a uma transformação, permitindo-lhe atingir um nível superior de elevação. (PINACOTHÈQUE DE PARIS, 2008:07 – tradução minha)
Já a figura da direita é a de um amuleto xamânico do grupo Tlingit que também segundo a curadoria:
O Xamã é mostrado com as mãos cruzadas entre duas figuras de espíritos sobrenaturais: em uma extremidade, um salmão ou mais provavelmente, uma baleia corcunda, e na outra a cabeça de um pássaro. A cabeça do Xamã é colocado sobre o aparelho respiratório da baleia. Aos lados, podemos ver a barbatanas, bem como a espinha da baleia, símbolos recorrentes no espírito totêmico. Os olhos são incrustados com casca de conchas haliote. (PINACOTHÈQUE DE PARIS, 2008:07 – tradução minha)
Nessa exposição os objetos indígenas não são mobilizados para demonstrar uma influência
formal na obra de Pollock. Sinal disso pode-se dizer que é a maneira como a exposição está
organizada, ou seja, por temática. Os curadores vão fazendo as aproximações a partir de temas que
procuram estabelecer links entre as obras da trajetória de Pollock e os objetos, vídeos e música que
remetem ao xamanismo indígena da costa noroeste americana.
Para Santos (2009) a proposta da curadoria de uma nova leitura do artista estadunidense só
foi possível a partir da organização e disposição do conjunto que faz parte da exposição. Como o
autor vai afirmar, as telas de Pollock e os objetos das etnias indígenas neste contexto:
“[...] são convocados a revelar a potência de uma dimensão mítica que se atualiza em ambos embora de modo diferenciado. Portanto, neste caso, o chamanismo não é uma noção abstrata que quadros e objetos representariam, mas aquilo que se incorpora nas pinturas e nos fetiches e instrumentos rituais como imagens chamânicas, cuja ‘resolução’ é operada por métodos e técnicas diferentes quando ‘trazidas’ (rendered) pela via de Pollock ou pela via dos índios. Assim, a exposição é montada de tal modo que a percepção do expectador seja deslocada, e sua perspectiva ocidental habitual desconstruída, para que as imagens sejam vistas não como se apresentam, mas como se presentificam, isto é, como vetores da visualização de um outro mundo possível,
5
isto é, como ‘imagens do invisível’, na expressão precisa de Stephen Polcari.” (SANTOS, 2009:24).
Nessa longa mas necessária citação Santos procura defender de que forma a curadoria da
exposição “ajuda o expectador a ver” (SANTOS, 2009:25) (pela constituição de uma atmosfera
propícia) aquele conjunto de uma forma diferente, que não apenas telas e objetos, mas numa relação
significativa que atualiza as potências de ambos, conferindo ao conjunto um novo sentido que é o
que possibilitaria essa “releitura revolucionária” da obra de Pollock.
O foco da exposição sem dúvida é Pollock e não os objetos indígenas. Tanto que a ideia dos
curadores é fazer a nova leitura da obra desse artista, embora essa passe neste caso necessariamente
pelo xamanismo. A minha questão é: os objetos neste contexto “representam” o xamanismo ou
“são” o xamanismo? Pois se numa nova antropologia da arte a partir de Alfred Gell em que se
concebe que os objetos efetivamente “agem”, como poderíamos pensar no contexto dessa exposição
aqui apresentada? Ou por outra, esses objetos atualizam suas potências quando em outros
contextos? Aqui entendendo “potência” como define Overing (1996) como sendo as capacidades
dos objetos de transmitir efeitos no mundo.
Uma outra questão que pode-se pensar nesse contexto é a respeito da relação arte/artefato8,
pois aqui parece que não está em questão se os objetos indígenas são peças de arte, questionamento
que geralmente está por trás dessa relação. O status do objeto não é posto em questão. O artista
nessa exposição é Pollock, embora os objetos não sejam meros coadjuvantes.
E nesse sentido e a ela relacionado está a questão em torno do anonimato dos artistas nativos
(nos termos de Price, 2000). Pois os objetos são apresentados como sendo de tais ou tais grupos,
como por exemplo: machado haïda; amuleto tlingit; máscara inupiak, escultura thulé, etc. Mas em
alguns casos não há tampouco nos objetos a indicação da etnia em que foi encontrado, como é o
caso por exemplo de um mastro totêmico onde está somente a indicação do nome do colecionador:
Steven Michaan Collection ou a máscara de morte do xamã (espírito do pássaro-falcão) do mesmo
colecionador, sendo esta última a máscara que está no cartaz de divulgação da exposição, como
podemos ver a seguir.
8 GOLDSTEIN (2008), LAGROU (2007, 2009), PRICE (2000), VIDAL (2001), etc. Para uma distinção um tanto quanto breve a partir de Lagrou: arte como objetos que foram produzidos para serem contemplados e artefato como os que foram produzidos para serem usados. (2009:14).
6
Máscara de morte do xamã, espírito do pássaro-falcãoc. 1840-1870Esculpida e pintada em madeira, com dentes de conchas de haliote20,5 cmSteven Michaan Collection
© Steven Tucker © ADAGP Paris 2008. Conception et création graphique: Gilles Guinamard
Com as imagens acima vou concluindo esse momento do trabalho para tratar da exposição
seguinte.
O objeto fetiche ou o fetiche do objeto
De 03 de fevereiro a 10 de maio de 2009 o museu do quai Branly realizou a exposição
“Recettes des dieux. Esthétique du fetiche” (“Receitas dos deuses. Estética do fetiche”), cuja
curadoria foi de Nanette Jacomijn Snoep9. Foram apresentados 92 “objetos divinatórios” (“objets
de divination”) que foram concebidos pela curadoria como fetiches de diferentes grupos africanos.
Parte deles nunca havia saído do acervo de reserva do museu, de forma que ainda não haviam sido
expostos ao público mais amplo.
O tema central dessa exposição foi a estética “informe” dos objetos (QUAI BRANLY,
2008:05). Parte considerável deles foi produzida com materiais orgânicos, materiais “considerados
não nobres”, nas palavras da curadora10, como ossos, terra, fibras vegetais, sangue coagulado,
conchas, dentre outros.
De acordo com a curadora
Chifres ou sacos mágicos, objetos de proteção ou de adivinhação, essas obras são vestidas, amarradas, furadas de pregos e lâminas, envolvidas por fios de algodão ou pele, ou revestidas de crostas de elementos sacrificiais, ao ponto que a forma original nem
9 É responsável pela unidade patrimonial das coleções do museu e professora de História da arte africana na universidade Paris X e na escola da Louvre. Musée du quai Branly. Recettes des dieux, esthétique du fétiche et Mangareva, Pantheón de Polynésie. Paris, 2008. p. 07. (material de divulgação das exposições com entrevistas aos respectivos curadores).
10 Idem, p. 05.
7
sempre é reconhecida. A exposição explora essas diferentes maneiras de representar o invisível sem recorrer à representação humana.
Refazendo aqui brevemente o percurso da exposição, logo abaixo do título de apresentação
da exposição havia uma breve citação da obra de Hamlet de Shakespeare (ato III, cena IV) como
prólogo do que seria visto.
Hamlet: Ne voyez-vous rien là? (A senhora não vê?)La reine: Rien du tout; pourtant tout ce qui est, je le vois. (Não vejo nada; e vejo tudo que há.)
Ao adentrar o espaço destinado a exposição havia antes de tudo uma reprodução em tecido
quase transparente do desenho do inglês Henry Moore intitulada “Multidão contemplando um
objeto revestido muito alto e amarrado com barbante” (1942).
Segundo a curadora: “[...] Este prólogo sozinho resume o tema desta exposição que não é
etnográfico no sentido em que ela não explica o que é um objeto de adivinhação. Eu preferi destacar
a ‘gramática visual’ que estas formas nos convidam a descobrir.”11.
Neste sentido Snoep vai afirmar ainda que os objetos foram organizados em função “de la
gestuelle”, ou seja, estavam expostos juntos objetos que haviam sido concebidos a partir de técnicas
próximas. Como por exemplo os que eram envoltos por outros materiais ou que continham outras
substâncias, os que eram formados por nós e outras formas de ligadura, os que levavam aplicações
de pregos e outros objetos e os formados por sobreposições de elementos orgânicos.
Para se ter uma ideia mais precisa, no primeiro espaço da exposição havia os seguintes
dizeres para introduzir os objetos expostos:
Objeto mágico Bo, Fon12, BéninMaxilar inferior humano, amarrado a uma cabeça de iguana13.
Atar, amarrar e juntarA morte, a doença, os acasos da natureza ou a violência dos homens estão na origem das práticas rituais que fizeram surgir esses objetos, fazendo a ligação entre aqui e lá.Reunir os elementos com a ajuda de fios para criar uma nova figura, aprisionar uma forma e um emaranhado de nós: o nó ata e desata, religa e separa. É assim que fazem os adivinhos para captar e depois controlar as potências as quais eles dominam a arte de manipulação.Atando, amarrando e juntando os elementos, captura-se as forças, domando-lhes e restaura-se o equilíbrio.
11 Recettes des dieux, esthétique du fétiche et Mangareva, Pantheón de Polynésie. Paris, 2008. p. 05. Tradução minha.12 Grupo africano que o produziu.13 Imagem retirada de informativo de divulgação da exposição. MUSÉE DU QUAI BRANLY. Recettes des dieux.
Esthétique du fetiche. Exposition dossier. Paris, 2008. p. 06.
8
Além deste primeiro espaço em que há os objetos que são predominantemente amarrados
por fios, unindo outros objetos por sua vez, há também os que foram divididos pelos seguintes
títulos dados pela curadoria: ii) envolver, untar e cobrir (nesta parte que está o Boli que é o objeto
do cartaz de divulgação); iii) estofar, empilhar e conter (onde há por exemplo sacos de tecido com
diversos objetos dentro que seriam ingredientes mágicos); iv) pregar, perfurar e fixar (como as
estátuas mágicas que levam diversos pregos); v) acumular e reunir (como a cruz fetiche em que há
pendurados diversos objetos para espantar o mau olhado); vi) objetos da natureza (como nós
vegetais que são encontrados já desta forma) e, finalmente, vii) objetos achados, objetos
deformados (que fazem referência às peças de vidro deformadas pela erupção do Monte Pelée na
Martinica em 1902 que formavam a coleção de André Breton).
Segundo informações do museu: “‘Recettes des dieux’ é uma instalação de objetos e
matérias: a exposição é inspirada em uma instalação de arte contemporânea, assim como em um
altar de um adivinho africano.”14.
Um dos objetos de maior destaque desta exposição, com lugar a parte reservado em outro
ambiente, é o “Boli”. Sem dúvida é o que mais se adequa a concepção de “informe”. É um objeto
de fetiche da população Bamana (Mali) de fins do século XIX ou meados do XX formado por
sangue animal coagulado, madeira, cera, terra, fibra vegetal e demais materiais orgânicos15. Foi
colocado numa sala com pouca iluminação, onde ocupa o lugar central e de destaque, no interior de
uma vitrine iluminada. Segundo as informações que o identificavam, sua origem é de um “santuário
da sociedade de iniciação Kono”. A etiqueta de identificação do objeto trazia o seguinte aos
espectadores:
Amálgama de terra, pedra, minérios, metal, madeiras, cortiças, raízes e folhas, couro, garras, dentes, chifres, ossos, cabelos, fragmentos dos corpos de antepassados, placenta, cada boli distingue-se pelo seu conteúdo, sua forma e sua dimensão. Devido às aspersões de cerveja de painço, às projeções das nozes cola mastigadas, aos jatos das cinzas e dos pós e ao pagamento de sangue, o boli está perpétua mudança (devenir). Conservada geralmente ao abrigo dos olhares, a sua receita é secreta16
[destaque meu].
O boli exposto é semelhante ao que foi roubado por Griaule e Leiris nos anos 30 durante a
missão Dakar-Djibouti e foi relatado no diário de Leiris que seria publicado um ano após o retorno
da expedição (em 1934) sob o título de “A África fantasma”, tendo sido o trecho em que relata o 14 Disponível no sítio do museu na internet: http://www.quaibranly.fr/fr/programmation/expositions/expositions-
passees/recettes-des-dieux/index.html - acesso em 15 de junho de 2009. Tradução minha do trecho. 15 Imagens e outras informações disponíveis no sítio do museu na internet: http://www.quaibranly.fr/es/collections/la-
vida-de-las-collecciones/adquisiciones/adquisiciones-recientes/index.html - acesso em 15 de junho de 2009.16 Texto copiado no local pela autora do dia 22 de fevereiro de 2009. Tradução minha.
9
roubo motivo de grande polêmica na época. É importante destacar que neste período a antropologia
francesa buscava a sua institucionalização enquanto disciplina científica, sendo que as missões
etnográficas tinham por objetivo formar o acervo de museus como o do Trocadéro até 1938 e depois
o museu do Homem (L'ESTOILE, 2007). É importante destacar aqui que a etnologia francesa
esteve fortemente vinculada aos museus principalmente em seus primórdios.
O espectador está olhando neste contexto algo que deveria ser mantido para além dos
olhares dos Bamana não iniciados (nos dizeres da legenda da exposição referente ao objeto), o que
pode tornar incômoda a sua visualização, ainda mais como obra de arte, ou seja, no sentido de mera
fruição.
Abaixo segue imagens do Boli, sendo uma retirada da seção de catálogo dos objetos de
pertencentes ao museu e a outra da seção de informações da referida exposição.
© musée du quai Branly, photo Patrick Gries
© musée du quai Branly, material de divulgação
Além do Boli, há objetos como o caso de uma máscara-marionete M’Bouri do território téké
(Congo) que deve cobrir todo o corpo de quem o veste, possuindo vestígios de terra e sangue, sendo
que na parte interna há pequenos sacos contendo substâncias mágicas a base de minerais, vegetais e
restos animais pulverizados; uma cruz-fetiche berbere que está envolta em tecidos, com diversos
elementos pendurados, como fragmentos de espelho e outros pequenos objetos, sendo que ao seu
centro está uma luva branca repleta de sal, que seria para espantar o mau-olhado próximo de onde
são construídas as casas; e finalmente, como exemplo, cito um objeto divinatório Bo (Benin) que é
composto pelo esqueleto de uma cabeça de iguana encaixada em um maxilar humano encontrado
sobre o corpo de uma amazona morta em combate (armada francesa contra a de Béhanzin, rei de
10
Abomey, março de 1890).
Este último objeto a que me refiro acima, assim como vários outros da exposição, para não
falar de quase todos os objetos do museu, foram trazidos para a França por missionários e militares
europeus, principalmente no período em que as colônias não tinham ainda conquistado suas
independências. Segundo Snoep, isso era evidência e testemunho “[...] da fascinação que os
militares franceses experimentaram: o ‘fetiche dos outros’ toma um novo significado. Ele guarda
sua parte de mistério ao mesmo tempo em que leva os nossos olhos para uma outra dimensão.”.
(musée du quai Branly, 2008:09, tradução minha).
Segundo Bonnot (2009), em artigo sobre a exposição:
[…] Em nenhum momento os textos da exposição pretendem dar uma última interpretação de um fetiche e do ritual ao qual está associado: essa receita é intimamente tributária das ações dos homens que os manipulam e os constituem ao mesmo tempo. Extrair o objeto desta situação sempre singular é cortar o efeito produzido pela interação que reúne lugares, homens e mulheres, objetos, animais, vegetais, sol e chuva. Pretender ressuscitar este efeito diante das vitrines de um museu teria sido ilusório. A coleta, qual foi a sua natureza – achado, roubo, requisição, doação -, interrompeu um processo no qual os objetos se encarregam de matérias, mas também de narrativas, palavras e gestos. Sua metamorfose pára, portanto? A janela de configuração, nos diz Jacomijn Snoep, 'é assim como a fixação do último gesto realizado sobre o objeto.'. Talvez, apesar da retenção na reserva e da atribuição de um número do inventário, certos aglomerados orgânicos continuem a trabalhar em surdina, perpetuando assim a dinâmica da coisa?” (BONNOT, 2009 – tradução minha).
Esse trecho levanta aspectos e questões interessantes, que penso também suscitadas por
certos espectadores. Acrescento: qual o poder de ação dos objetos para os fins da exposição quando
são 'fixados' no tempo e no espaço objetos com capacidade altamente transformativas? E aí o
próprio uso de materiais orgânicos na sua elaboração dão noção dessa dimensão dinâmica da vida
dos objetos, que por sua vez se relaciona com suas potências mágicas e divinatórias.
Há um momento anterior que afetou a minha percepção desta exposição. Antes mesmo de
vê-la, participei de uma oficina promovida pelo próprio museu a respeito da restauração e
conservação dos objetos expostos nesta exposição. A profissional responsável por coordenar este
trabalho no museu, procurou demonstrar de que forma a sua equipe trabalhava para paralisar
processos de decomposição dos materiais, para que os objetos tivessem uma vida longa. Mas até
que ponto a paralisação ou o retardamento da decomposição não intervem na tão cuidada e
perseguida pelos museus e galerias autenticidade do objeto? Ou ainda: será que a decomposição não
faria parte da trajetória de vida desses objetos de fetiche que em sua grande maioria foram feitos
11
justamente com matéria orgânica que tem em si uma vida mais curta?
E neste ponto volto à questão final de Bonnot sobre o trabalho silencioso dos materiais e a
perpetuação da dinamicidade do objeto para lançar a minha hipótese: de que este trabalho dinâmico
não segue, foi interrompido e que o trabalho de “fixação do último gesto realizado sobre o objeto”,
nas palavras da curadora, acabam por transformá-lo em qualquer outra coisa, quem sabe, agora, em
fetiche para a sociedade ocidental como um objeto de arte conceitual.
E sendo assim, até que ponto esses objetos atualizam suas potências agindo nesta realidade?
De que forma esses objetos podem informar/afetar o espectador a respeito da feitiçaria nas distintas
etnias africanas?
Penso em que medida os fetiches ao serem expostos como obras de arte não acaba
exotizando a magia, confundindo o espectador, distanciando-o dos objetos, da feitiçaria e quem
sabe ainda mais do continente de origem destes objetos. Pois não sejamos ingênuos, o museu que os
abriga parece servir em certa medida para brancos europeus observarem dimensões desconexas de
outrem.
Conclusão
Diversas questões foram propostas ao longo do texto e a ideia aqui era justamente instigar e
não concluir ou resolver. Nelas estão pontos que tem mobilizado não apenas a antropologia (como
um todo17), mas também a história da arte, a museologia, curadores de exposições, comerciantes de
arte.
O ponto que eu quero levantar aqui para finalizar é no sentido de como pode ser possível
apresentar objetos advindos dos mais diversos grupos do mundo em exposições de arte sem exotizá-
los? E como compreendermos os objetos sem termos acesso aos pensamentos que os
elaboraram/elaboram? As legendas costumam trazer informações da curadoria somente e nada
muito além de: título, ano/período em que foi fabricado, material e etnia. Raramente há mais que
isso. E aqui estou elegendo o caso do recente museu do quai Branly de apresentação das peças.
Esses objetos, portanto, podem transmitir algo para além dos seus atributos estéticos?
Lagrou, antropóloga que tem se dedicado há anos a compreender o universo estético
kaxinawa, em seu livro sobre as artes indígenas brasileiras faz a seguinte afirmação: “Com relação
17 Penso que evidência disso pode ser o debate que ocorreu em 1993 na universidade de Manchester que contou com a participação de antropólogos renomados que trabalham com antropologia da arte e antropologia estética, assim como também com etnologia indígena, como eram os casos de Joanna Overing e Peter Gow, sendo amazonistas. Este debate ocorreu em torno da seguinte proposição: “A estética é uma categoria transcultural”. Mas não deixou de ser uma reflexão sobre a própria antropologia num sentido mais amplo. Sinal disso é o volume em que se encontra: Key Debates in Anthropology. Organizado por Ingold e publicado em 1996 junto com outros debates contemporâneos da antropologia.
12
às artes visuais surge a questão da percepção nativa que somente pode ser entendida se captarmos a
maneira como o pensamento nativo concebe a realidade.” (LAGROU, 2009:82). Portanto aqui me
parece que está um dilema: como o espectador em exposições de arte pode apreender os objetos
produzidos por sociocosmologias distintas da sua (ocidental) sem ter elementos para saber de que
forma os “pensamentos nativos” elaboraram (ou são) tais objetos?
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