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Para citar esse documento:
EMILIO, Douglas de Camargo. M.C e D.E - Crise enquanto composição coreográfica. Anais do V Encontro Científico Nacional de Pesquisadores em Dança. Natal: ANDA, 2017. p. 425-444.
www.portalanda.org.br
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M.C e D.E - Crise enquanto composição coreográfica
Douglas de Camargo Emilio
RESUMO: Este estudo é resultado do artigo final da Especialização Estudos Contemporâneos em Dança do PPGDança da UFBA, com orientação da Profª Drª Gilsamara Moura. São colocadas em evidência questões sobre a noção de crise em procedimentos que enfatizam a importância e o poder da imprevisibilidade, estabelecendo modos operacionais do pensar composição coreográfica. Neste artigo, encontrará associações de pesquisas que, em caráter de conversa, se relacionam em [fake] entrevista com os artistas interlocutores, ou enquanto proposição dialógica sobre práticas em dança e composições coreográficas, criando estratégias atemporais de modo a reorganizar linhagens coreográficas. Sobretudo, trabalhos revelados artisticamente pelo coreógrafo Merce Cunningham, especulado também pelo artista da dança Douglas Emilio, descrevendo e analisando os processos de suas próprias composições artísticas a partir do uso da crise/acaso. Para tanto, autores como Jacques Monod (1971), Jorge Albuquerque Vieira (2006, 2007), Ilya Prigogine (1996, 1997), Humberto Maturana e Francisco Varela (1997, 2001) referenciam este estudo.
Palavras-chave: DANÇA. CORPO. CRISE. COMPOSIÇÃO COREOGRÁFICA
M.C and D.E – Crisis as choreographic composition ABSTRACT: This study is a result of the final article of the Specialization in Contemporary Studies in Dance of the PPGDança of the UFBA, with the guidance of Prof. Dr. Gilsamara Moura. Questions about the notion of crisis in procedures that emphasize the importance and power of unpredictability are put in evidence, establishing operational modes of thinking choreographic composition. In this article, it will be found research associations that, in a conversational character, relate to [fake] interview with the interlocutors artists, or as dialogic proposition about practices in dance and choreographic compositions. Creating timeless strategies in order to reorganize choreographic lineages. Mainly works artistically revealed by the choreographer Merce Cunningham, also speculated by dance artist Douglas Emilio,
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describing and analyzing the processes of their own artistic compositions from the use of crisis / random. Therefore, authors such as Jacques Monod (1971), Jorge Albuquerque Vieira (2006, 2007), Ilya Prigogine (1996, 1997), Humberto Maturana and Francisco Varela (1997, 2001) will support this study.
Keywords: DANCE. BODY. CRISIS. CHOREOGRAPHIC COMPOSITION
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Não existe conhecimento velho, existe conhecimento não conhecido
O que acontece com o corpo e o processo de composição quando se inclui a
crise como efeito molar da prática coreográfica? O que o corpo faz para sobreviver?
Quem é que pode falar por mim? Foram perguntas que levaram a pensar
procedimentos complexos dos trabalhos coreográficos iniciados por Merce
Cunningham (1919 – 2009), possibilitando o diálogo com muitos dos aspectos
trabalhados na trajetória artística do coreografo e que até os dias atuais encontram
possibilidades outras para composição de dança; indeterminação como fundamento
articulador da prática, e, como esses modos operacionais criam interlocução.
Mercier Philip, iniciou sua trajetória em aulas de sapateado, mas foi o teatro
que o encantou e fez ir para Cornish School for Performing and Visual Arts em 1937,
foi na mesma que fez amizade com ainda estudante de música John Cage1, mais
tarde viria a ser seu grande amor e parceiro artístico por toda a vida. Entre muitos
aspectos, os mais importantes foram quando em 1939 começou a se chamar Merce
em vez de Mercier e Cunningham tomando o lugar do sobrenome Philip, junto com o
que podemos chamar de inicio da sua carreira como coreógrafo, ficando mais
evidente seu pensamento contrario da narrativa e do conteúdo de representação
emocional que a dança moderna trazia em seu modo de criação. Cunningham
constrói, assim, seu próprio pensamento estético para a dança que resumia de
forma clara e complexa “Dança, para mim, é movimento no tempo e no espaço”
(SONTAG, 1990: 8. apud LANGENDONCK, 2004, p. 34)
A estética da dança de Cunningham se arquitetou na mudança de direção na
qual a dança moderna havia trilhado. Cunningham oferece ao mundo inúmeras
1 John Cage, compositor americano, pesquisador musical e escritor < http://johncage.org/about.html > Acesso em 27 de julho de 2017.
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mudanças de paradigmas no fazer da dança, principalmente no uso do acaso em
suas construções coreográficas, e, é nesse recorte particularmente que o artigo vai
se debruçar, entender o acaso como proposta coreográfica e da dança: Cunningham
costumava descreve-la “uma transformação constante da vida” (LANGENDONCK,
2004, p. 38).
É dessas formas, com a implicação do acaso e das quebras de sequências do
movimento organizados pela linguagem, que se (re) conectava com as leis do
universo, sendo elas primordialmente evolutivas, assegurando na crise acometidas
pelo acaso um problematizador das estruturas, possibilitando muitas direções para a
proposta, deixando com que o acaso dê conta das relações estabelecidas pelo
evento, deserarquizando a relação estabelecida quando estão em codependência.
Cunningham se relaciona com a noção de acaso a partir da probabilidade,
aleatoriedade na composição, alteração e complexidade que sempre atravessaram a
obra, as enfatizando a partir de métodos de sorteio, dados e moedas. Para cada
apresentação uma sequência de composição apresentada.
[...] Eu tinha estudado durante dois anos com Suzuki o que é a filosofia do Zen Budismo, eu queria encontrar uma maneira de libertar o meu trabalho de meus gostos e desgostos [...] Queria adotar uma disciplina que iria trabalhar no campo da música e que seria tão rigorosa quanto ficar sentado com as pernas cruzadas [...] me deparei com I Ching (livro chinês das mutações), foi um meio de se trabalhar com o arremesso da sorte, três tipos, seis vezes para obter dois números entre 1 e 64 [...] comecei no inicio dos anos cinquenta e eu não encontrei qualquer razão para mudar para algum outro modo de trabalho, eu incluí outros meios para continuar usando essas operações [...] As pessoas pensam que sou escravo dessas operações do acaso, mas eu sou grato de pensar que a musica como elas tem uma utilidade ou algo como um ar puro, são como aguas limpas. (John Cage in: Chance Conversation, 1981. Tradução nossa)
[...] Bem, eu uso a operação do acaso, eu uso o I Ching. Em certas peças “Torse” por exemplo, é totalmente criada através do uso dos números de I
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Ching. Eu tenho que editar certas coisas, que ainda poderiam ser descobertas, mas eu uso outros tipos de acaso como jogar moedas e assim por diante... Para decidir quantas pessoas vão fazer determinadas frases ou se vai ser do sexo masculino ou feminino, estes tipos de coisas de usos do acaso... Ele é provavelmente diferente de peça pra peça, depende de quantas pessoas estão na peça, do tipo de peça, pode ser também quanto tempo eu tenho para fazer uma peça. (Merce Cunningham in: Chance Conversation, 1981. Tradução nossa)
Em interlocução as propostas de acaso, a pesquisa de Douglas Emilio,
iniciada no/com Coletivo KD (Universidade de Sorocaba) a partir de jogos de
interferência orientado por Andréia Vieira Abdelnur Camargo, artista e professora da
Escola de Artes Cênicas da USP/SP. Hoje, na pesquisa de Douglas Emilio pensa-se
a estratégia da instabilidade como forma de possibilitar a crise no sistema
coreográfico, então, inicia-se a parceria com os artistas de dança da cidade de São
Paulo Clarice Lima2 e Cristian Duarte3. Dando continuidade as experimentações,
propõe uma problemática com a questão da instabilidade, legitimando a mudança e
a adaptabilidade, desclassificando os ambientes “estáveis” no exercício da
composição e apresentação da obra coreográfica, mostrando nesse artigo uma
dinamicidade, cuja gestão do fazer da dança seja de auto-organização.
Na busca de colaborações científicas para o entendimento desses
procedimentos em dança, as contribuições de epistemologias de outras áreas do
conhecimento têm tido um papel importantíssimo para se pensar o corpo e
procedimentos. Esta fundamentação teórica, aliada aos conhecimentos da
epistemologia da própria dança, tem explicado, de um modo mais científico, como se
2 Clarice Lima, artista da dança < http://www.claricelima.org > Acesso em 27 de julho de 2017. 3 Cristian Duarte, artista da dança < http://www.cristianduarte.net/biografia-breng/ > Acesso em 27 de julho de 2017.
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realizam, por exemplo, os movimentos/pensamentos em conexão e coexistência
com ambiente; como os corpos se organizam no espaço e no tempo; como se lida
com o imprevisto, crise, caos e acaso:
Esta expressão reconduz-nos, evidentemente, ao domínio a proposito do qual o problema da evolução foi discutido com mais precisão, o da biologia. No excelente livro onde comenta, as implicações filosóficas das descobertas da biologia molecular, Jacques Monod conclui que a evolução biológica, e portanto, o homem dela saído são produto do acaso e da necessidade: acaso das mutações e necessidade das leis físicas e das leis estáticas da seleção natural. (PRIGOGINE, 1997, p.141)
As bases dos estudos práticos são norteadas por dispositivos coreográficos.
Esses dispositivos servem de estrutura/organização4 e colocam em discussão a
irreversibilidade do tempo, a contaminação de informações, energia e matéria, as
noções de espaço e tempo como instâncias relativas e não absolutas, a clareza da
noção de crise como fator primordial para um sistema poder evoluir, e, por fim, o
entendimento do corpo que é mídia de si mesmo e não mídia de algo que está fora
dele “...Corpo que movimenta o movimento que faz o corpo ser corpo, que se
movimenta pelo movimento que se faz movimento neste corpo, que se faz corpo
este movimento, que...” (KATZ, 2005, p. 30).
A crise, não é pretexto para chegar à análise do discurso cênico e ao seu
processo de construção do sentido, mas é fator primário de onde se inicia o diálogo
com a pesquisa corpórea de ambos os artistas. Jacques Monod” a partir da
afirmação de Demócrito filósofo grego “Tudo que existe no universo é fruto do acaso
4Entende-se organização as relações que devem ocorrer entre os componentes de algo, para que seja possível reconhece-los como membro de uma classe específica. Entende-se por estrutura de algo os componentes e relações que constituem concretamente uma unidade particular e configuram sua organização. (MATURANA; VARELA, 2001, p. 54)
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e da necessidade” (MONOD, 1971: 05). Estrutura a concepção de acaso pelas
probabilidades em certas leis da bioquímica, e, suas estruturas se explicam
quimicamente resultando de uma série de escolhas ao acaso legitimando as ações e
decisões da vida, conduzindo os resultados pela imprevisibilidade e adaptabilidade.
Nesse artigo entende-se a dança como uma arte viva, que não difere do mecanismo
das espécies vivas, onde corpo/tempo/espaço é assunto. Tudo se dá a ver sob a
mesma condição de trocas, de auto-organização e que se conecta a processos de
(re) invenção, desenvolvendo experimentações em busca de aprimoramento do
conhecimento, a partir de reações adaptativas advindas do acaso gerando crises, e,
como essas crises acontecem na estrutura coreográfica a partir das interferências
sofridas no corpo de quem dança.
Todo sistema permanece no tempo e tende a durar
Todos os sistemas têm que evoluir para que possam durar no tempo. A
condição básica para essa permanência é que sejam compassivas aos seus
ambientes, porque é do ambiente e das ressonâncias internas do sistema que as
crises comprometem suas permanências. Quando ocorre uma perturbação no
ambiente, é percebida pelo sistema cognitivo por dispositivos sensíveis que o ser
humano ampliou a partir dos sentidos, essa perturbação, ocorre – de diferentes
modos – no ambiente e nos corpos de todos envolvidos diretamente no evento.
A pesquisa não esta focada na opção previamente estruturada, mas é a partir
desse sistema que os primeiros experimentos coreográficos começam a estabelecer
critérios, correspondendo a uma partitura coreográfica fechada que se repete em
uma organização circular. A composição coreográfica, aqui pensada, possui uma
relação intrínseca com a noção de composição coreográfica mais abrangente de
definição “Organizar coisas, no tempo e no espaço” (CVEJIĆ, 2013, p. 21),
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continuando, para William Forsythe “Coreografia é o termo que preside uma classe
de ideias: uma ideia é, talvez, neste caso, um pensamento ou sugestão quanto a um
possível curso de ação” (FORSYTHE, 2011, p. 91). Coreografia, para o autor é
forma de organização e seleção cênica (ou não), estabelecendo critérios de
correlação e coerência, definindo padrões de configuração compositiva.
Quando se propõe composição a partir da crise, ocasionalmente ocorre
microfissuras na estrutura que é viva, esses descompassos são ocasionados pela
relação do corpo com ele mesmo, com o tempo e ambiente. A relação de flutuação
no corpo ocorre por inúmeros motivos, os mais comuns são fatores da necessidade,
desejo e emergência, que de surpresa assaltam o corpo em muitos momentos
durante a dança; e a duração aqui, está posto na relação de permanência, ou seja,
tempo e espaço estão em coevolução numa sequência de constante alteração em
relação ao corpo, afetando e sendo afetado em virtude de sua organização
autopoiética 5 , compreendendo que as trocas ocorridas são em virtude e
subordinação a sua existência e conservação. (MATURANA; VARELA, 1997, p. 79).
As ações coreográficas ocorrem na justa posição do hiperplano do presente,
nossos sentidos assim como a movimentação mesmo pré-estruturada
coreograficamente acontecem no agora. Toda movimentação entra em grau de
estabilidade, que chamaremos de metaestabilidade, mas para o sistema evoluir ela
passa por uma crise. O interesse está justamente nas flutuações dessa
movimentação que precisa se adaptar, para ajustar a coreografia em sua nova forma
de se relacionar com o espaço/tempo, percebendo o corpo como estrutura longe do
equilíbrio, se desorganizando e se reorganizando frequentemente Essa é a 5 Autopoiese é um termo utilizado para designar organizações/estruturas vivas, que se caracterizam por ser um sistema organizado de forma autossuficiente, auto se gerando, produzindo a si próprios. (MATURANA; VARELA, 2001, p. 52)
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existência organizacional de um sistema vivo, no caso aqui o corpo, pois o corpo
vivo não se organiza como um pêndulo sem atrito, os pêndulos por exemplo, são
sistemas que variam perto do equilíbrio, adquirindo uma característica no qual as
flutuações são praticamente irrelevantes, mas os sistemas vivos são sistemas que
variam longe do equilíbrio em maiores desestabilidades a níveis de flutuações.
(PRIGOGINE, 1996)
É somente possível formular as condições suficientes de estabilidade, a que demos o nome de “critério geral de evolução”. Esse critério põe em jogo o mecanismo dos processos irreversíveis de que o sistema é a sede. Ao passo que, no equilíbrio e perto do equilíbrio as leis são universais, longe do equilíbrio elas se tornam específicas, dependem do tipo de processos irreversíveis. Esta observação é conforme a variedade dos comportamentos da matéria que observamos ao nosso redor. Longe do equilíbrio, a matéria adquire novas propriedades em que as flutuações, as instabilidades desempenham um papel essencial: a matéria torna-se mais ativa. (PRIGOGINE, 1996, p. 67).
A crise acontece no agora (presente), no tempo-espaço da percepção, mas a
complexidade humana pode criar alternativas diversas para resolver seus
problemas, interessa na pesquisa o que o corpo faz, e, o porquê o corpo faz. É claro
que o parâmetro que gerencia os processos evolutivos é a constância sistêmica,
para isso os sistemas abertos sujeitos a crise, sempre se reestruturam, adaptando–
se e se reorganizando atingindo a metaestabilidade6.
6 Metaestabilidade - Um estado de equilíbrio é estável, quando o sistema está no seu nível mínimo de energia livre e cujas transformações são espontâneas. Existem estados de equilíbrio que não são estáveis, ou seja, podem ser permanentemente alterados como um resultado de alguma pequena perturbação. Estes são chamados de metaestáveis.
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A normalmente chamada “crise” é o evolon7, sendo o passo elementar da
evolução da dialética organização/ desorganização, entropia/ negentropia. Evolon é
a transição de um nível de metaestabilidade para outro. Nesse processo, os
sistemas se apegam ao esforço de permanência para manter-se estáveis. Os
encadeamentos de evolons atingem o jacente, toda escala evolutiva na verdade
propõe a “meta estável”. O evolon se divide em duas evoluções diferentes:
(Extensiva e a Intensiva), ou seja, a evolução extensiva é o escape do nível de
estabilidade, compreendendo as fases: Rompimento e Preparação, e, a Intensiva
que envolve a aproximação para um novo atractor, compreendendo as fases:
Expansão, Transição, Maturação, Clímax e Instabilidade (VIEIRA, 2006, p. 60-63).
A pesquisa propõe crises ao corpo e as estruturas do pensamento da cena,
este gerado por problemas inesperados ou por problemas procurados, disparando
um evolon no sistema conceitual organizado no formato de composição
coreografica. São organizações que se estabelecem sobre um nível de ordem/
desordem e ou desordem/ ordem. Para Christine Greiner:
[…] relações entre o corpo e o ambiente se dão por processos co-evolutivos que produzem uma rede de pré-disposições perceptuais, motoras, de aprendizado e emocionais. Embora corpo e ambiente estejam envolvidos em fluxos permanentes de informação, há uma taxa de preservação que garante a unidade e a sobrevivência dos organismos e de cada ser vivo em meio à transformação constante que caracteriza os sistemas vivos. [...] capturadas pelo nosso processo perceptivo, que as reconstrói com as perdas habituais a qualquer processo de transmissão, tais informações passam a fazer parte do corpo de uma maneira bastante singular: são transformadas em corpo. (GREINER, 2005, p. 130).
7 Evolon – Processo de evolução por consequência de uma crise, o trânsito de um nível de estabilidade a outro. (Mende, 1981, p. 196.)
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O problema sempre é ‘bem-vindo’ já que a procura é por um corpo e uma
composição visivelmente alterada, desestabilizando e se organizando
frequentemente, buscando o domínio da percepção e de suas implicações; é sobre
um corpo que encontrou no movimento particular uma forma de perceber a realidade
e adaptar – se à permanência. Em dança essas afirmações foram ‘bem-aceitas’,
pois nenhum corpo é um sistema isolado, do contrario, ele se extinguiria num alto
grau de entropia.
[ Fake ] ENTREVISTA: O[s] dançarino[s] e a dança - [fake] conversa com Merce
Cunningham [e Douglas Emilio] por Jacqueline Lesschaeve8.
A arte é o tipo de conhecimento que explora as possibilidades do real (VIEIRA, 2006. p. 83)
Como você[s] virou [viraram] dançarino[s]?
Merce Cunningham – Eu não virei dançarino, sempre dancei. Sempre tive
um apetite pela dança. Mas devo dizer que também foi algo que me ocorreu
de repente, aos cinco anos de idade, que eu pudesse virar dançarino. Não
há nada na história da minha família para sugerir que eu fosse me tornar
dançarino. Meu pai era advogado e meus dois irmãos também. Um deles
agora é juiz. Ambos sempre viveram na mesma cidade Washington.
(CUNNINGHAM, 2014 p.30)
8 Jacqueline Lesschaeve é jornalista e autora do livro “O dançarino e a dança: conversas com Jacqueline Lesschaeve/Merce Cunningham. O livro mostra conversas da jornalista com o dançarino e coreógrafo Merce Cunningham ao longo das décadas de 70 e 80, publicado pela primeira vez em 1988 na França. (CUNNINGHAM, 2014)
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[Douglas Emilio9] – Eu vivia dançando pela casa, pelo quintal, pelas ruas, na
escola, até que um dia fui fazer aulas de dança no bairro onde eu morava. Minha
família nunca foi ligada a arte: Ninguém toca, ninguém canta, ninguém escreve,
ninguém pinta ou desenha. Minha mãe se emociona ouvindo músicas italianas
antigas e meu pai gosta de jogar videogame.
Sei que você[s] não gosta[m] nada de falar sobre dança. Prefere[m] dançar, e
entendo isso. Se levanto esse tema é para poder encarar a contradição entre as
artes mudas, visuais, e as artes da linguagem uma contradição frequentemente
evocada por artistas que, como você[s], trabalham com seus corpos.
[D.E] – Penso que organizo meu pensamento pela dança e as palavras/voz não são
muito diferentes no meu processo criativo, o discurso é movimento e vai formando
uma teia de sentidos irreversíveis que dialogam com a pesquisa.
M.C - Sim, é difícil falar sobre dança. Ela não é tão intangível quanto efêmera. Eu comparo ideias sobre a dança, e a dança em si, à agua. Seguramente, descrever um livro é mais fácil do que descrever a água ou o que é dança, mas essa própria fluidez as torna intangíveis. Não estou falando sobre a qualidade da dança, mas sobre a sua natureza. (ibidem, p. 24)
Acho que TORSE10, por causa das muitas questões que levanta, seria uma
boa base para o estudo do processo de composição.
9 Douglas Emilio é ator, bailarino e pesquisador independente. Realiza seus trabalhos, colaborando e propondo parcerias com artistas vinculados ao modo de pesquisa e criação para continuidade de seus projetos e pensamentos sobre arte no mundo. [ (DUCK, 1985) ] 10 “TORSE” é um espetáculo de dança de Merce Cunningham estreado em 1976. Ver mais em <http://www.mercecunningham.org/index.cfm/choreography/dancedetail/params/work_ID/105/> Acesso em junho de 2017.
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M.C – Vou dar isso num workshop. Não vou ser capaz de mostrar o espetáculo do jeito que os meus dançarinos o fazem, mas vou mostrar aos alunos o processo básico. O que é interessante aí é que lidamos com todos os elementos ao mesmo tempo, e ainda que para algumas pessoas TORSE pareça um trabalho clássico, na verdade não é. Os movimentos têm de fato uma certa ênfase na linha, mas ela não é nem um pouco a linha de balé clássico. (ibidem, p. 17)
[D.E] – Eu particularmente tenho interesse no uso do ACASO e da CRISE enquanto
dispositivo nos processos de composição e apresentação. Esse pensamento em
dança dialoga muito com os processos que venho realizando.
Uma palavrinha sobre a música de Torse [e de Mais ou menos assim11].
M.C – [...] Não sei como descrevê-la, ela quase não se ouve. Ás vezes não há som algum. De vez em quando ouço um trem de ferro. São quase sons subliminares. É muito silencioso. Meio parado. (ibidem, p. 21)
[D.E] – A música segue os mesmos princípios, ela é metaestável, trabalhada com
algumas bases que se alteram de acordo com a movimentação. Para isso utilizamos
sensores (controles de videogame), que mapeiam meu movimento para compor sua
própria sonoridade e por conta do uso da crise como desorganizador e
reorganizador da estrutura coreográfica a musicalidade também se modifica
coevolutivamente.
Mas se tivermos em mente o que você[s] falou [falaram] sobre fluidez na
dança, é, sobretudo o fluxo que assume o controle.
M.C – Sim, você tem que saber se deixar levar. Produzindo o ritmo; canalizar a energia e sustenta-la; alcançar as posições. É como tentar constantemente se equilibrar, é o que pode haver de vigoroso nisso.
11 “MAIS OU MENOS ASSIM” é um espetáculo de dança de Douglas Emilio estreado em 2014, com orientação de Cristian Duarte e Clarisse Lima.
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Nenhuma dessas coisas, sozinhas, é suficiente. Em vez de pensar que isso basta, ou que isso é melhor, deve-se ver que as três são essenciais e devem ser consideradas tanto separadamente quanto ao mesmo tempo. Por exemplo, quando fazemos SCRAMBLE e mudamos a ordem das seções, o que acontece com as formas, com o ritmo, com a energia e as posições? É algo com que, enquanto dançarino, você tem que se preocupar o tempo todo. (ibidem, p. 123)
[D.E] – A crise vai determinar quais os momentos, em qual relação de tempo, por
quanto tempo, com quais condições corpóreas, etc. É quase um “deixar rolar para
ver no que vai dar”. A crise assume o controle.
Por que [Mais ou menos assim] “solo sem título”?
[D.E] – MAIS OU MENOS ASSIM, pela incerteza.
M.C – Trabalhar com moedas era muito novo para mim naquela época, eu não sabia o que era, e chamei de “sem titulo” porque realmente não havia título. (ibidem, p. 81)
Quantas páginas para RUNE [e MAIS OU MENOS ASSIM]?
M.C – São dois cadernos, umas quarenta páginas, escritas à mão com diretrizes espaciais e bonequinhos. (ibidem, p. 99)
[D.E] – Muitas, pois divido minha escrita com os desenhos, anotações no geral,
colagens... Ao final tem um material bastante vasto. Uma das coisas que me
estimularam a entender a minha obra com a sua Cunningham foram principalmente
os registros, que são bem próximos das que eu faço sobre diretrizes espaciais e
bonequinhos [risos]
Figura 05 - Merce Cunningham’s choreographic notes for the 1979 work Roadrunners.
Figura 06 - Caderno de registros coreográficos de Douglas Emilio para o espetáculo MAIS OU
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MENOS ASSIM.
Fonte: Courtesy of the Merce Cunningham Trust.12
Fonte: Elaborada pelo autor (Caderno de registros)
Figura 07 - Spread from Changes: Notes on Choreography, by Merce Cunningham
Figura 08 - Caderno de registros coreográficos de Douglas Emilio para o espetáculo MAIS OU MENOS ASSIM.
12 Disponível em < http://www.nycitycenter.org/Home/Blog/March-2015/Saving-Cunningham> Acesso em 27 julho de 2017.
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Fonte: Merce Cunningham - architectural association13
Fonte: Elaborada pelo autor
Figura 09 - A window from the animation Figura 10 - Caderno de registros coreográficos
de Douglas Emilio para o espetáculo MAIS OU MENOS ASSIM.
13 Disponível em < https://www.creativereview.co.uk/forms-of-inquiry/> Acesso em 27 de julho de 2017.
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Fonte: Software program Lifeforms developed in collaboration with Cunningham in the early 1990s14
Fonte: Elaborada pelo autor
Então temos aqui uma pista sobre como você[s] constrói [constroem] seus
espetáculos. Eles são todos, como Torse [e Mais ou menos assim], construídos em
torno de tais questões?
M.C – Sim. Todos eles. A questão pode ser simples para uma dança e complexa para outra, ou pode haver diversas questões. Todas as danças nascem de algo desse gênero. (ibidem, p. 62)
[D.E] – Estou sempre pesquisando e experimentado novos modos de compor, mas
a busca é sempre por um corpo claramente desestabilizado.
Poderíamos falar, também na dança, em “composição” coreográfica? Isso
quase nunca é feito, mas é possível, não é?
M.C – Sim, isso certamente vai acontecer. Vai ser diferente quando houver mais literatura. Durante séculos a dança foi transmitida entre as pessoas sem notação, o que ainda é amplamente feito, embora as coisas estejam mudando lentamente. (ibidem, p. 25)
[D.E] – Estou aqui para conversar com vocês justamente para isso.
Já vi o público ligeiramente irritado com você[s], sentindo de alguma forma
que, nas condições em que estava enquanto plateia, não tinha acesso fácil. Além
disso, a maioria das pessoas que dizem “vou me preparar para isso”, quando
chegam lá nada acontece...
14 Disponível em < http://seeding-projects.blogspot.com.br/p/images-3-source-john-burrows.html> Acesso em 27 de julho de 2017.
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[D.E] – Pode não acontecer da forma que elas esperavam, mas sempre acontece.
Uma vez, desenhei um elefante na floresta amazônica, minha professora me
explicou que não existiam elefantes nas florestas brasileiras. Fiquei chateado e por
um tempo odiando a floresta amazônica, depois de um tempo eu compreendi e parei
de querer encontrar elefante onde não tinha.
M.C – Exatamente, e aí elas têm que pensar sobre, bem, o que fazer a seguir? (risos) Isso é basicamente uma ideia ocidental, ir de causa a efeito, enquanto há ideias orientais que permitem um sentido muito mais amplo do mundo, do mundo espiritual, além de outras formas de pensar; por exemplo, o fato de que você não é a única coisa no mundo. Essa cadeia de causa e efeito tem haver sobretudo com a ideia do ego sendo levado a algum lugar, ou levado a si mesmo. E se você, uma vez só, conseguisse sair de si mesmo... (ibidem, p. 164)
Há uma grande descontinuidade entre o que aqueles que praticam esse tipo
de arte estão fazendo juntos e o que é deixado para o público alcançar
individualmente.
M.C – A dança não é dirigida a eles, ou feita para eles. Ela é apresentada para eles. Suponha que numa dança em que dirige algo numa direção especial, o som tenha ido para outro lugar. Ele tem sua própria modulação. A parte visual pode dar ênfase a algo totalmente diferente, então o que resta ao público é olhar essas três coisas e lhes dar um sentido. Mas, como disse, o espectador tem uma escolha. Pode se levantar e ir embora. Ou pode ficar e tentar encontrar sentido. (ibidem, p. 172)
[D.E] – Exatamente. Não é algo para o público alcançar.
O que esta no seu repertorio agora, em 1984?
M.C – Danças completas? Cross Currents, Rune, Torse, Fractions, Tango, Scramble, Signaisl, Locale, Changing Steps, Roadrunners, Chanenels/Inserts, Fielding Sixes, Duets, Tens With Shoes, Trails, Gallopade, Quartet, Coast Zone, Inlets 2, Roaratorio, Pictures, Double e Phrases. Bem, parece ser o bastante. (ibidem, p. 187)
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[D.E] – Nada por enquanto! Só vou NASCER no ano que vem.
Referências
CUNNINGHAM, Merce. O dançarino e a dança: conversas com Jacqueline Lesschaeve/ Merce Cunningham, Jacqueline Lesschaeve; tradução Julia Sobral Campos – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Cobogó, 2014.
[ DUCK, Donald. O nascimento do bailarino; tradução Gilsamara Moura – 1. Ed. – Nova Iorque/ Maranhão: Disney, 1985. ]
CVEJIĆ, Bojana. Choreographing Problems: Expressive Concepts in European Contemporary Dance. This thesis is being submitted in partial fulfillment of the requirements for the award of PhD – Centre for Research in Modem European Philosophy, Kingston University, Faculty of Arts and Social Sciences – London, 2013.
FORSYTHE, William. William Forsythe end the practice os choreography / edited by Steven Spier. Library of Congress Cataloging-in-Publication Data – First published. – New York, 2011.
GREINER, Christine. O corpo: Pistas para estudos indisciplinares. – São Paulo: Annablume, 2005.
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