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Perspectivas feministas descoloniais: sobre um processo de auto-
conhecimento e re-existência na universidade
Elen Cristina Ramos dos Santos1
Universidade de Brasília- UnB
Email: elencrisramos@gmail.com
Resumo: Este escrito tem como finalidade dialogar com e a partir de algumas pensadoras
feministas “terceiro-mundistas” - que em suas obras e projetos políticos se centram na
crítica e resistência ao cânone acadêmico hétero-patriarcal e racista. Através de
perspectivas feministas, de gênero, raça e classe nos pensamentos das autoras, buscarei
refletir sobre os efeitos da colonialidade no meio acadêmico e na minha própria
subjetividade, atentando para a forma como fui e estou sendo transformada quando
insurgentes encontros com práticas e discursos descoloniais tematizados por mulheres
negras e indígenas irradiam em diversos lugares de minha (re)existência - na academia,
na vida íntima, na relação com minha mãe e minhas mais velhas.
Palavras-chave: De-colonialidade; Feminismos terceiro-mundistas, resistências
“A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ninar os
da casa grande e sim para incomodá-los nos seus sonos injustos” Conceição Evaristo
“Para crear um texto tu tienes que empoderar tu própria voz. Tu tienes
que tener claro que hay algo que tu conoces mejor que nadie, que es tu própria vida. Y que tu própria vida es um condensado de
experiências que se há transmitido a través de una genealogia profunda”
Silvia Rivera Cusicanqui
Introdução
1 Licencianda em Ciências Sociais na Universidade de Brasília. Estudante de mobilidade acadêmica na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).
A proposta que se segue neste escrito é de diálogo com perspectivas, teorias e
movimentações propostas por mulheres - feministas negras, lésbicas, indígenas, indianas
- que centralizam em suas expressões intelectuais e políticas a subversão das fronteiras
colonialistas, misóginas, sexistas e racistas sob as quais subsiste o pensamento cientifico
da academia.
Para emitir um argumento próprio sobre empenhos que vêm de ancestralidades de
mulheres fortes e frágeis no enfrentamento das violências tantas, creio ser válido que eu
me coloque na construção deste texto como um corpo-mulher inserido e atuante no
universo acadêmico. Um corpo e mente herdeiro das vozes e discursos de mulheres
inscritas nos meandros de uma história que lhes impuseram negações e invizibilizações.
Acredito na escrita acadêmica como um marco de resistência para mulheres negras e
indígenas principalmente. Me localizo como um ser crítico às bases da estrutura
positivista e patriarcal que regem os espaços universitários e intelectuais no Brasil e no
mundo, através de minha escrevivência2 é uma possibilidade íntima e ao mesmo tempo
coletiva de resistência às estruturas “invisíveis”, que nunca foram invisíveis para nós
mulheres.
Das vozes e expressões intelectuais de escritoras negras (minha escola) e indígenas
“terceiro-mundistas” das diversas áreas de conhecimento, ecoa a certeza de que nossas
vidas interiores se coadunam ao nosso trabalho enquanto, teóricas, poetas, mães,
lésbicas, negras, indígenas... Às nossas mais diversificadas e complexificadas formas de
ser e estar. E é com base nesse fluxo de movimentos e ideias que almejo e busco praticar,
resistentemente, uma produção acadêmica emanada de nossas experiências mais
agudas, mais concentradas em nossas vivências no âmago de nossa cultura, na nossa
localização no mundo.
Como comprovado pela escritora feminista bell hooks3 o posicionamento de mulheres
negras intelectuais, no que tange a produção de teoria e afirmação enquanto intelectuais,
tem sido historicamente negada e vilipendiada, uma vez que sobrevive no imaginário
social a crença de que mulheres negras são “só corpo sem mente” (hooks, 1995).
Sexualizadas, objetificadas e animalizadas dentro e fora da academia, a resistência de
mulheres negras e indígenas, transcorre no tempo e espaço em suas práticas insurgentes
à dominação/colonização de corpos, mentes e corações.
Mais que sobrevivências garantidas por alheamentos e auto imposições de discursos
eurocentrados que costumeiramente presenciamos na universidade, nós, presenças
“estranhas” em espaços dominados pela hegemonia branca, demandamos vidas
plenificadas, pensamentos autônomos, germinados de nossas intimidades e vivências em
2 Palavra cunhada por Conceição Evaristo (2007), escritora brasileira, para designar a escrita como ação que se expressa através de suas vivências diaspóricas enquanto mulher negra. 3 A autora bell hooks (assina todo o seu nome em letras minúsculas, tendo optado por essa grafia porque, segundo ela, o foco das pesquisas deve-se concentrar na escrita e não no nome de quem as produz.
comunidade. É neste sentido que o pensamento feminista negro, “terceiro-mundista”
“marginal” “subalterno”, entre outras tantas classificações, contempla e faz florescer
outras visões, representações e reivindicações sobre a realidade e as relações sociais de
(nós) mulheres. Quando proponho “outras” no lugar de “novas” penso em Jurema
Werneck (2009) quando nos convida a desconfiar das classificações que historicamente
tem nos colocado em posição de não existência. Nossas práticas, realizações e produções
que não são contempladas, por exemplo, por um feminismo branco-ocidental restrito
muitas vezes a experiência unitária medidora das “novas” experiências (Talpady, 2008).
“Outras” aqui no sentido amplo e plural do termo contrárias a noção de outredade
iniciada pelo colonizador, quando se posiciona hierarquicamente como padrão de
universalidade . Me convido então reflexão conjunta com a autora:
“O que apresentarei aqui não são ideias minhas. Falo do que vi,
aprendi, li, ouvi, a partir de minha inserção em comunidades
heterogêneas, de diferentes gerações, sexualidades, racialidades,
escolaridades, possibilidades econômicas, culturais, políticas e
muito mais. Penso que a originalidade que possa me ser conferida
refere-se à tentativa de juntar aqui muitas fontes, diferentes
vozes. Não vou nomear cada uma delas, não porque queira
ocultá-las, mas para destacar a riqueza e a amplitude da
circulação de ideias que não sabemos onde começam, que se
entrelaçam, que se propagam especialmente entre mulheres,
criando comunidades de saber cujas fronteiras são imprecisas”. (
Werneck, 2009, p. 151)
Imprecisar e romper as fronteiras da colonialidade têm sido o rastro da presença-agência
das mulheres feministas do/no terceiro mundo, do sul global, ou qualquer classificação
que valha dado contexto do qual emerge.
Nessa perspectiva, a análise realizada ao longo do texto tem a finalidade de dialogar
pensadoras negras, indígenas, do “terceiro mundo” - que em suas obras se direcionam
na crítica ao cânone acadêmico masculino e ocidentalizado, incluindo críticas também ao
próprio pensamento feminista (ocidental) e sua pretensão de universalidade.
Considero necessária uma reflexão ampliada que abarque as movimentações e
pensamentos concebidos por mulheres dentro de uma perspectiva decolonial e também
para que o sentido da abertura e ao diálogo seja uma constante para nós que intentamos
nos descolonizar. No entanto, é necessário também me perceber limitada dentro destes
universos. Uma vez que avalio lugar de vivencia e de interesse importantes, minha fala-
escrita se conduzirá pelos ventos que sopraram sussurros contundentes aos ouvidos de
minha ancestralidade feminina negra, resgatando-me a partir de um processo de
construção racial entremeado por interrogações constantes por ser “negra de pele clara”.
Este escrito trata de minha imersão na minha autoafirmação como mulher negra. Para
me exercer no tema, apuro o sentidos aos sopros de Neusa Santos, diante das tentativas
de essencialização da diversidade da população negra em um país de passado
escravagista e colonial como o Brasil: “Uma das formas de exercer autonomia é possuir
um discurso de si mesmo. Discurso que se faz muito mais significativo quanto mais
fundamentado no conhecimento concreto da realidade” (Santos, 1990). De onde quer
que venham tentativas de restringir e negar minha existência, resistirei.
“Minhas amigas, sempre haverá alguém tentando usar uma parte
de vocês, e ao mesmo tempo exigindo que você esqueça ou
destrua todos os outros eus. E eu digo, isso é morte. Morte a você
enquanto mulher, morte a você enquanto poeta, morte a você
enquanto ser humano. Quando o desejo por definição, própria ou
outra, vem de um desejo por limitação e não de um desejo por
expansão, nenhuma face verdadeira pode emergir” (Lorde, ano)
Situo também meu processo de (re)conexão com essas produções intelectuais e
movimentos, que durante toda a vida e formação acadêmica- escolar e universitária-
foram invisibilizadas. Quanto mais adentro nas historias de nossas resistências e descubro
seus apagamentos, sinto-os como se sempre tivessem me acompanhado de alguma
forma sutil e encoberta que agora enquanto meu processo de tomada da consciência
caminha, vai ganhando, finalmente, formas e pulsões. A produção deste ensaio é uma
parte do caminho.
Aqui me ressoa Du Bois ( 2012) , quando elabora sua teoria da “dupla consciência”:
“reconheceu em si mesmo uma tênue revelação de seu poder, da sua missão. Começou
a ter um vago sentimento de que, para obter o seu lugar no mundo teria de ser ele mesmo
e não um outro”. Me re-conheço cada vez que leio essas mulheres e entro em contato
com espaços comunitários de saber-es.
Dito isso, dialogarei em grande parte com autoras de pensamentos feministas. Na
Dialogarei em grande parte com autoras de pensamentos feministas. Na primeira parte
tentarei construir um entendimento com alguns autores do grupo da opção da decolonial
que contribuem em suas teorias para a noção de um fazer-sentir-ser como uma
perspectiva que se apresenta como opção outra e aberta em face da pretensão de único
e universal das formulações impregnadas historicamente pela ciência ocidental. Adjunto
a esse diálogo me dedicadei em mobilizar perspectivas e práticas de pensadoras negras,
indígenas e “terceiro-mundistas” com a finalidade de entender junto com elas os
feminismos e movimentos de mulheres dentro e fora da academia como formas de ser,
estar e fazer descolonizadoras no mundo.
Por fim, realizarei o resgate de minha trajetória acadêmica confluída de minha relação
com minha mãe, quando encontrei e fui encontrada pelas coletividades e teorias negras-
diaspóricas indígenas com Sueli Carneiro Jurema Werneck, Ochy Curiel, Rigoberta
Menchu, bell hooks, e a indiana Chandra Talpadhy.
Perspectivas decoloniais
Para mim é válido iniciar pela tentativa de entender o crescente movimento de estudos
da de-colonialidade/modernidade na academia, principalmente nas ciências sociais, uma
vez que a reflexão se faz desde dentro de uma experiência universitária. Tais estudos, bem
como suas críticas, são importantes aqui uma vez abordam as estruturas de poder
(Quijano), de saber (Lander) e de ser (Mgnolo) encerrados no imperialismo moderno
europeu.
Segundo as contribuições de Lander (2005) é principalmente por meio das ciências sociais
organizadas desde a perspectiva eurocentrada de neutralidade e universalidade que a
colonialidade do saber se expressa no mundo. A “naturalização da sociedade liberal como
a forma mais avançada e normal de existência humana não é uma construção recente
que possa ser atribuída ao pensamento neoliberal, (...) trata-se de uma idéia com uma
longa história no pensamento social ocidental dos últimos séculos” (Lander, 2005, p. 8).
Para Mignolo (2017) uma forma de contradizer essa pretensão de universalidade e
neutralidade do pensamento ocidental é a desobediência epistemológica. Explica que
experiência da colonialidade é elemento chave para entender o sentir-pensar-fazer
fronteiriço, base fundante da opção decolonial. Nesse sentido a epistemologia fronteiriça
se caracteriza pela “percepção bio-gráfica” do corpo-mente-alma de diaspóricos. São
vivências e histórias de pessoas e comunidades que tiveram na experiência da
colonialidade a supressão de suas formas de ser, sentir e estar no mundo. (Mgnolo, 2017).
Provas vivenciais de tais supressões nos meandros do pensamento científico-acadêmico
são as movimentações e teorias formuladas por mulheres racializadas. Historicamente os
“feminismos de cor”, como inculcado por Ochy Curiel (2007) são deslegitimados e
invisibilizados ante o discurso cientificista - de caráter andocêntrico, sexista e racista.
Em crítica ao cânone acadêmico da de-colonialidade, Cusicanqui (2006) tenciona sobre a
face andocêntrica de tal corrente, uma vez que protagonizada por homens brancos,
professores universitários majoritariamente.
Curiel localiza as lutas por direitos civis em África e Estados Unidos no contexto do
apartheid e o que ela chama de “feminismos feitos por mulheres racializadas”
afrodescendentes e indígenas atuantes já desde a década de 1970 que rompem com a
lógica colonizada e racista do pensamento acadêmico e que são marginalizadas até
mesmo nos estudos da decolonialidade.
“Sin utilizar el concepto de “colonialidad” las feministas racializadas, afrodescendentes y indígenas han profundizado desde los años 70 em el entramado de poder patriarcal y capitalista, considerando la imbricación de diversos sistemas de
dominación (racismo, sexismo, heteronormatividad, clasismo) desde donde han defendido sua proyectos políticos, todo hecho a partir de uma crítica pós-colonial” (Curiel, 2007, p. 94)
A autora critica que os discursos vigentes sobre “subalternidade” na contemporaneidade
tem sido feitas desde posições elitistas e andocêntricas. Curiel traça então os movimentos
empenhados por movimentos e mulheres feministas de cor nos Estados Unidos, America
Latina e Carybe para propor uma desorganização do cunho andocêntrico e racista
predominante na academia, como superação da pretenção de universalidade das ciencias
ocidentalizadas:
"Debido al caracter universalista y al sesgo racista que le ha transpasado. Son ellas (nosotras) las que han respondido al paradigma de modernidad universal: hombre-blanco-hetero; pero son tambien las que desde su subalternidad, desde su experiencia situada han impulsionado un nuevo discurso y una practica política crítica y transfomadora". (Curiel, 2007, p. 94)
Fecho esse tópico com as considerações e críticas de Ochy Curiel pela poderosa
contribuição que esta autora faz aos estudos e movimentos descoloniais. Ochy Curriel
abre os caminhos para a imergência nas autoras que me contemplam e seguem no
próximo tópico.
Perspectivas feministas terceiro-mundistas 4
Aqui contarei sobre a relação íntima que estabeleci com as autoras da bibliografia, a forma
como as descobri e me descubro através delas, de seus questionamentos e
posicionamentos às estruturas de poder patriarcais, sexistas, racistas da universidade e
intelectualidade acadêmica. São muitas, não uma minoria. Queria conseguir contemplá-
las sensivelmente neste texto, mas pelo espaço e tempo que estou me empenhando
neste ensaio se torna irresponsável que as cite sem a necessária imersão. No entanto,
tudo que escrevo aqui, em cada frase, que acredito que eu não teria tecido
4 Utilizo aqui o termo “terceiro-mundistas” ou “terceiro-mundo” no mesmo sentido apresentado por Mohanthy (2008), assumindo o teor problemático do termo uma vez que “términos como tercer y primer mundo son muy problemáticos, tanto al sugerir uma similitude sobresimplificada entre las nociones así denominadas, como al reforzar implicitamente las jerarquias económicas, culturales e ideológicas”. Utilizarei como terminologia de afirmação para melhor abranger a reflexão que aqui se faz. O argentino Mignolo (2014) concebe o terceiro mundo, como espaço do pensamento de fronteira, como forma de sobverter a posição projetada de universalidade do pensamento do primeiro mundo.
solitariamente, há uma contribuição diferente vindas desses corpos-mulheres. É um
trajeto íntimo, trilhado sob acolhimentos e curas coletivas.
A teoria maquinada desde a experiência da modernidade-colonialidade, que impregna a
estrutura de qualquer espaço de aprendizagem-ensino e pesquisa, nos incutiram a
sensação assoladora de inferioridade, de incapacidade, de feiura, de existência anormal
que nos acompanha desde a infância. É comum evocarmos das lembranças de nossas
experiências escolares o doloroso sentimento que a hierarquia do pensamento e dos
corpos nos provocou. No jogo de autoridade do conhecimento hegemônico enrocentrado
encenados pelas instituições e seus representantes, nossas vozes e desejos de crítica são
sufocados, nossas epistemologias relegadas aos “epistemicídio” 5de que Sueli Carneiro e
Boaventura de Souza Santos nos falaram (Carneiro, 2005).
Diante disso, sob outras percepções bell hooks (2003) me ensinou recentemente a
encontrar prazer na teoria. Encontrar transgressão no pensar, ler e produzir no espaço
universitário. Me recordo, e ainda sinto, a empolgante sensação de ler os textos de
pensadoras que contemplavam as mais profundas interrogações, receios, medos,
angústias. Foi/É um inicio de cura e potencialidades em um lugar que se acreditava
inferior e incapaz dentro de mim. Começa/va a ser possível uma produção emanada do
que realmente sou e que me constitui:
“Encontrei um lugar onde eu podia imaginar futuros possíveis, um
lugar onde a vida podia ser diferente. Essa experiência “vivida” de
pensamento crítico, de reflexão e análise se tornou um lugar onde
eu trabalhava para explicar a mágoa e fazê-la ir embora.
Fundamentalmente, essa experiência me ensinou que a teoria
pode ser um lugar de cura. (...) Quando nossa experiência vivida
da teorização está fundamentalmente ligada a processos de
autorrecuperação, de libertação coletiva, não existe brecha entre
a teoria e a prática. (hooks, 2003, pp. 85-86)
Anzaldúa (2000) convida também:
Joguem fora a abstração e o aprendizado acadêmico, as regras, o
mapa e o compasso. Sintam seu caminho sem anteparos. Para
alcançar mais pessoas, deve-se evocar as realidades pessoais e
sociais — não através da retórica, mas com sangue, pus e suor
(Anzaldúa, 2000, p. 235)
5 “O epistemicídio para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente da produção da indigência cultural: pela negação do acesso a educação, sobretudo de qualidade, pela produção de inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do[a] negro[a] como portador e produtor de conhecimento, de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou comprometimento da auto-estima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo” (Carneiro, 2005, p. 97)
Não creio ser possível que descolonizemos o mundo se não começarmos por tratar de
nossas próprias dores. A dor ante relação às imposições racistas e colonizadoras que senti
durante a vida passaram a ser a essência que necessitava de transformação para construir
um novo discurso sobre mim mesma, sobre meus lugares e como eles me guiariam por
caminhos de justiça e cura. “Sempre que aquelas/es de nós que são membros de grupos
oprimidos se atrevem a interrogar criticamente nossas posições, as identidades e
lealdades que informam como vivemos nossas vidas iniciamos o processo de
descolonização” (hooks, 2017)
Negra, periférica, agora na graduação em ciências sociais em universidade federal... Ao
ingressar na universidade rapidamente me vi sedenta por espaços e leituras que
alimentassem a crítica e promovessem mudanças. E em uma busca inicial, primeiramente
tive contato com coletivos de um pensamento feminista de esquerda progressista, que
apesar de importantes contribuições reflexivas sobre a realidade, foi gerando rachaduras
e distanciamentos no relacionamento com a representação essencial do que hoje tenho
de feminismo: dona Cleuza, minha mãe. Mulher negra, migrante de terras da catinga
baiana para o território da “terra prometida” Brasília, trabalhadora doméstica e tudo o
que não posso expressar em classificações sobre sua presença no mundo.
Reconheço hoje que foi um distanciamento brusco, porque na maioria das vezes não era
a minha realidade que ali se buscava mudar. O feminismo universitário ainda carrega/va
as marcas de um paternalismo e a pretensão de universalidade de uma experiência muito
centradas na mulher branca ideal, cujas vivências de opressão são diferenciadas das de
mulheres negras. Mas evidentemente fui acolhida por professoras e coletividade
negras/os nesse espaço me abriram as portas para dialogar, debater, ler autorias
femininas negras. Posteriormente cursas disciplinas com propostas de ementas mais
abrangentes.
Cito aqui a indiana Chandra Talpade Mohanthy (2008) tencionando sobre o que ela chama
de “colonização discursiva” recorrente nas formulações teóricas do feminismo
hegemônico do ocidente (que senti nesse início de trajetória acadêmica) em relação as
mulheres do terceiro mundo. Aqui a autora aponta que há uma apropriação e codificação
da produção acadêmica e do conhecimento acerca das mulheres do terceiro mundo que
as tornam um “sujeito monolítico singular”, limitadas na relação com arquétipos de
“outras não–ocidentais” em face de uma categoria de “Mulher” de pretensa
universalidade. A crítica central do texto faz referência a hegemonia implícita no discurso
feminista do ocidente, no entanto a crítica “también se aplica a acadêmicas del tercer
mundo que escriben a cerca de sus próprias culturas utilizando las mismas estratégias
analíticas” (Mohanthy, 2008, p.113)
Nas críticas das brasileiras Sueli Carneiro (2003) Jurema Werneck (2009), Luiza Bairros
(1995) e Lelia Gonzalez (1984), descobri apontamentos sobre a forma como a ciência e
o pensamento social estereotipa e retira de sua complexidade a experiência de mulheres
negras e suas agências e resistências na relação com a sociedade heterossexista,
patriarcal e racista. “Enegrecer o feminismo” como propõe Sueli Carneiro:
“Em geral, a unidade na luta das mulheres em nossas sociedades
não depende apenas da nossa capacidade de superar as
desigualdades geradas pela histórica hegemonia masculina, mas
exige, também, a superação de ideologias complementares desse
sistema de opressão, como é o caso do racismo” O racismo
estabelece a inferioridade social dos segmentos negros da
população em geral e das mulheres negras em particular,
operando ademais como fator de divisão na luta das mulheres
pelos privilégios que se instituem para as mulheres brancas.
Nessa perspectiva, a luta das mulheres negras contra a opressão
de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a
ação política feminista e antirracista, enriquecendo tanto a
discussão da questão racial, como a questão de gênero na
sociedade brasileira” (Carneiro, 2003)
O feminismo negro e sua particularidade é a ponte que me reconectou com as formas de
ser e de estar no mundo de minha mãe com mais zelo e cuidado por suas vivências. Esse
retorno a casa quase que literalmente representativo dessa re-conexão, com afirmar um
lugar, as mulheres que me circundam, de entende-las como formadoras do mundo que
existo. Começo entender minha mãe, como elo íntimo e primeiro com nossa
ancestralidade feminina negra. Retorno desse lugar de despertencimento formulado pela
hegemonia branca para a minha matrifocalidade familiar para mirar junto a mãe, tias,
primas, irmãs da luta... potencialidades que mudaram e construiriam outras narrativas e
poesias.
“A partir daí, é possível viabilizar, no interior destas articulações
as diferentes possibilidades a que as mulheres negras recorreram
[e recorrem], os diferentes repertórios ou pressupostos de
(auto)identificação ou de identidade e organização política. Tais
possibilidades partem deste reconhecimento: estamos diante de
diferentes agentes históricas e políticas- as mulheres negras –
intensas como toda diversidade” (Werneck, 2009, p. 153)
Me lembro dos variados sentimentos e reconhecimentos que tive quando li a primeira
vez Rigoberta Menchú (ano) em “La madre tierra”. Com o respeito a sua história e
vivências como mulher indígena que são únicas e interiores dela, de seus lugares e seu
povo, peço licença para fazer aproximações com esse momento que tive de retorno a
casa, quando ela se refere às descobertas sobre sua mãe :
“Después yo empecé a descobrir que mi madre era mucho más
grande do que yo La conocí. Era no solo partera, comadrona,
curandera, sino al mismo tiempo era uma madre que poseía
muchos de lós valores de nuestros antepasados (...) Tenía razon
cuando ella decía que sus manos eran grandes e invisibles”
(Menchú, 1998, p. 114)
Me proponho aqui a revisitar constantemente os nossos- meus- processos e quem são
nossas antecessoras. A leveza e tranquilidade para assumir minha propria voz no
caminhar deste texto só é verdadeira porque fui acolhida por mulheres negras na teoria,
nos colos, nos círculos de debate e entre as minhas mais velhas e irmãs. Acredito no que
bell hooks nos ensina sobre a experiência da memória, de utilizar a dor e partir dela não
para alimentá-la, mas para a re-construção de nós mesmas, almejando outras formas de
viver.
“Esse ponto de vista não pode ser adquirido por meio de livros,
tampouco pela observação distanciada e pelo estudo de uma
determinada realidade. Para mim, esse ponto de vista privilegiado
não nasce da “autoridade da experiência” mas sim da paixão da
experiência, da paixão da lembrança (...) Quando uso a expressão
“paixão da experiência”, ela engloba muitos sentimentos, mas
particularmente o sofrimento, pois existe um conhecimento
particular que vem do sofrimento. (hooks, 2013, p. 122)
É ir reconhecendo limitações, jogos de poder, disputas pra ver florescer formas
autônomas, íntimas e coletivas de me fazer ouvir e existir, mais perto de ser plena. Eu
trago a beleza de ter começado a me encontrar, consciente de que o processo se faz
andando, e que por isso não está acabado. Sigo com a alma e o coração abertos, o corpo
fechado pra imposições, mesmo que não seja imune a elas.
Esse ensaio é um pedido de empatia, de acolhimento, uma vontade de partilhar os
prazeres e as dores do suado caminho, que não fiz sozinha, até chegar a universidade
federal. É sobre a forma que achei de resistir pelas epistemologias de mulheres negras,
indígenas, subalternizadas, do “terceiro-mundo”. É sobre eu não visualizar outra forma
possível de transformação e produção neste espaço que não seja pelas potencias de ser
mulher negra, periférica, filha de Cleuza e Manel, neta de Anita, Gezilda, Waldemar e
Nelson...
Sem consideração final
Optei por abrir caminhos e não fechá-los. Sigo buscadora...
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