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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Julio César Minga Tonetti
“NOSSA SENHORA APARECIDA: A NOVA PADROEIRA DO BRASIL”
DIÁLOGOS SOBRE A DEVOÇÃO POPULAR E A ROMANIZAÇÃO
MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
SÃO PAULO
2019
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Julio César Minga Tonetti
“NOSSA SENHORA APARECIDA: A NOVA PADROEIRA DO BRASIL”
DIÁLOGOS SOBRE A DEVOÇÃO POPULAR E A ROMANIZAÇÃO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em História Social, sob a orientação da
Prof.ª. Dra. Olga Brites.
SÃO PAULO
2019
Sistema para Geração Automática de Ficha Catalográfica para Teses e Dissertações com dados fornecidos pelo autor
CDD
Minga Tonetti, Julio César “NOSSA SENHORA APARECIDA: A NOVA PADROEIRA DOBRASIL” DIÁLOGOS SOBRE A DEVOÇÃO POPULAR E AROMANIZAÇÃO / Julio César Minga Tonetti. -- SãoPaulo: [s.n.], 2019. 144p. ; cm.
Orientador: Olga Brites.Dissertação (Mestrado em História) -- PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo, Programa deEstudos Pós-Graduados em História, 2019.
1. Devoção popular. 2. Nossa Senhora Aparecida. 3.Romanização. 4. Representação. I. Brites, Olga . II.Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,Programa de Estudos Pós-Graduados em História. III.Título.
Julio César Minga Tonetti
“NOSSA SENHORA APARECIDA: A NOVA PADROEIRA DO BRASIL”
DIÁLOGOS SOBRE A DEVOÇÃO POPULAR E A ROMANIZAÇÃO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em História Social, sob a orientação da
Prof.ª. Dra. Olga Brites.
Aprovado em: ____/____/___
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Prof.ª. Dra. Olga Brites – PUC/SP
______________________________________________
Prof.ª. Dra. Maria do Rosário Cunha Peixoto – PUC/SP
______________________________________________
Prof.ª. Dra. Norma Marinovic Doro – UFMS
Bolsista contemplado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES) durante o ano de 2018. Detalhe do
Processo nº 88887.163151/2018-00 do Programa PROSUC.
Dedico este trabalho aos meus sobrinhos Arthur Tonetti Nobre e Alice
Tonetti Nobre, ao futuro das juventudes brasileiras!
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, revelado e encarnado na imagem de todos que lutam
por um mundo melhor e colocam na pauta de suas vidas a solidariedade e a alegria. Cheio de
gratidão pelo dom da vida e da liberdade agradeço a Nossa Senhora, em especial a “Senhora
Aparecida” em seus diversos olhares: “Mariama”, “Mamãe Oxum”, “Morenita”.... A ela o
meu eterno agradecimento por me abençoar de tantas maneiras nos momentos de desânimo e
nas horas dedicadas ao de estudo e a pesquisa.
A memória dos meus queridos avós Enedina Minga e Sabino Minga, agradeço por
transmitirem a mim o interesse pelo sagrado e pelo popular. Aos meus pais Helena Maria
Minga Tonetti e Idinirço Tonetti, agradeço a formação cristã que me deram, é dela que brota
todo o movimento que me faz caminhar em busca de uma sociedade solidária. Aos meus
irmãos Sabrina Lúcia Tonetti Nobre e Jefferson Wando Minga Tonetti, por sempre me
apoiarem nas minhas escolhas e me ensinarem o valor do trabalho junto com meu cunhado
Anderson Paulo Nobre.
A Jonas da Silva Leão Neto, pela disposição em me acompanhar aos arquivos e por ter
paciência em ouvir minhas reclamações sempre me incentivando, animando e transmitindo os
valores místicos das matrizes africanas que muito contribuiu para este trabalho. A minha
prima Nídia de Oliveira, agradeço a disposição e a alegria dos cafés nas tardes frias.
Ao Programa de Pós-Graduação PUC - SP, na figura da minha orientadora Olga
Brites, professora e mulher de resistência política, sem a sua colaboração, paciência e
orientação esse trabalho não teria se concretizado. Agradeço imensamente a sua generosidade
em partilhar o conhecimento e me animar a não desistir.
A Professora Maria do Rosário Peixoto, uma acadêmica engajada nas lutas sociais e
no sonho de um país melhor, agradeço as grandes contribuições a minha temática, tanto nas
aulas quanto no exame de qualificação.
A querida amiga e Professora Norma Marinovic Doro, com quem aprendi desde o
início da vida acadêmica o compromisso social com a educação. Que a sua trajetória continue
a inspirar outros jovens como eu a buscar um mundo melhor.
A Jorge Paulo de Souza e Silva, amigo de infância agradeço as palavras de incentivo
desde o início da minha caminhada acadêmica, sua fé na vida sempre me revigora.
Aos colegas de turma Andresa, Lucas, Edney e Amanda que me incentivaram durante
as aulas com momentos de descontração e partilha nas resistências, elementos da pesquisa e
da vida.
Ao Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida na figura da querida Dorotheia
Barboza e a todos os funcionários do Centro de Documentação e Memória (CDM), agradeço
a acolhida precisa e a disposição efetiva em compartilhar as narrativas em torno da imagem
de Nossa Senhora Aparecida.
Aos amigos e amigas do Centro de Juventude Anchietanum, por tecerem tantos sonhos
ao meu lado.
A CAPES por incentivar a minha pesquisa através da bolsa, sem esse financiamento
ela não teria sido possível.
A todos os devotos e devotas de Nossa Senhora Aparecida que partilham comigo
através de seus olhares a fé na vida...
TONETTI, Julio César Minga.“Nossa Senhora Aparecida: a nova padroeira do Brasil”.
Diálogos sobre a devoção popular e a romanização. Dissertação de Mestrado (Mestrado em
História Social), Pontifícia Universidade católica de São Paulo, São Paulo,2019.
RESUMO
Essa dissertação apresenta um estudo sobre a institucionalização da devoção popular a Nossa
Senhora Aparecida feita pela Igreja Católica do Brasil durante o processo de romanização.
Seu objetivo é analisar a instrumentalização da devoção como estratégia política utilizada
pela mesma. No final do século XIX, a Igreja do Brasil iniciou uma tentativa de
“romanização” das devoções populares buscando fortalecer sua unidade através dos rituais e
celebrações. A principal devoção mariana neste período foi o culto a Nossa Senhora
Aparecida, reconhecida como padroeira principal do Brasil pelo Papa Pio XI no ano de 1930.
Segundo a tradição popular contada pela Igreja o “encontro” da imagem teria se dado por
volta do ano de 1717 na região de Guaratinguetá-SP. A imagem que fora encontrada por três
pescadores transformou-se em um ícone de veneração e popularizou-se com a divulgação de
seus milagres. Essa devoção atravessou diversos períodos históricos da política nacional e foi
oficializado no dia 31 de maio de 1931, na cidade do Rio de Janeiro (capital federal no
período) em cerimônia religiosa e cívica dirigida pelo Cardeal Arcebispo D. Leme com os
demais bispos brasileiros. Nesta cerimônia Nossa Senhora Aparecida foi proclamada
Padroeira principal do Brasil “romanizando” de acordo com os cânones da Igreja esta
devoção popular.
Palavras-chave: Devoção Popular; Romanização; Nossa Senhora Aparecida; Imprensa;
Representação.
TONETTI, Julio César Minga. "Our Lady Aparecida: the new patroness of Brazil". Dialogues
on popular devotion and romanization. Master's Dissertation (Master's Degree in Social
History), Pontifical Catholic University of São Paulo, São Paulo, 2019.
ABSTRACT
This dissertation presents a study on the institutionalization of the popular devotion to Our
Lady Aparecida made by the Catholic Church of Brazil during the process of Romanization.
Its purpose is to analyze the instrumentalization of devotion as a political strategy used by it.
At the end of the 19th century the Church of Brazil began an attempt to "romanize" popular
devotions, seeking to strengthen their unity through rituals and celebrations. The main Marian
devotion in this period was the cult of Our Lady Aparecida, recognized as the principal
patroness of Brazil by Pope Pius XI in the year 1930. According to popular tradition told by
the Church, the "encounter" of the image would have occurred around the year of 1717 in the
region of Guaratinguetá-SP. The image that was found by three fishermen became an icon of
veneration and became popular with the spread of his miracles. This devotion crossed several
historical periods of national politics and was officially made on May 31, 1931, in the city of
Rio de Janeiro (federal capital in the period) in a religious and civic ceremony led by Cardinal
Archbishop D. Leme with the other Brazilian bishops. In this ceremony Our Lady Aparecida
was proclaimed the principal Patroness of Brazil "romanizing" according to the canons of the
Church this popular devotion.
Keywords: Popular Devotion; Romanization; Our Lady Aparecida; Press; Representation
Romaria
É de sonho e de pó
O destino de um só
Feito eu perdido em pensamentos
Sobre o meu cavalo
É de laço e de nó
De gibeira ou jiló
Dessa vida cumprida a sol
Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
E funda o trem da minha vida
O meu pai foi peão
Minha mãe, solidão
Meus irmãos perderam-se na vida
A custa de aventuras
Descasei, joguei
Investi, desisti
Se há sorte eu não sei, nunca vi
Me disseram, porém,
Que eu viesse aqui
Pra pedir de romaria e prece
Paz nos desaventos
Como eu não sei rezar
Só queria mostrar
Meu olhar, meu olhar, meu olhar
Compositor: Renato Teixeira De Oliveira
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................13
1. Devotos e Devoções: expressões culturais do catolicismo
popular.........................................................................................................................26
1.1. O Catolicismo Devocional das Minas ao Ciclo Paulista........................................39
1.2. Devoção Popular e Romanização ..........................................................................49
2. A Santa “Aparecida”: Trajetos de uma Devoção
Popular..........................................................................................................................58
2.1.Origem da imagem...................................................................................................63
2.2. Os pescadores e os primeiros milagres ..................................................................73
2.3. Edificações do culto e reconhecimentos.................................................................71
3. Aparecida: da devoção popular a Fé
Romanizada..................................................................................................................86
3.1. O projeto de uma Nova Padroeira ..........................................................................92
3.2. A Proclamação do Padroado .................................................................................100
3.3. A viagem a Capital Federal ...................................................................................106
4.4. A nova Padroeira ...................................................................................................113
CONSIDERAÇÕES ...................................................................................................124
FONTES ESCRITAS..................................................................................................131
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................132
ANEXOS......................................................................................................................137
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Mapa da região das minas e sudeste (1707) ....................................................................... 12
Figura 2 - Criação de Dioceses no Brasil por Regiões, até 1930 ......................................... 52
Figura 3 – Fotografia da imagem original de Nossa Senhora Aparecida, antes de ser
restaurada....................................... ....................................................................................... 68
Figura 4 - Fotocopia do Jornal Santuário Num.42................................................................. 88
Figura 5 - Jornal "Santuário D'Apparecida ........................................................................... 89
Figura 6 - Dos prelados presentes no Jubileu de Prata da Coroação da imagem de N.S.A
............................................................................................................................................... 92
Figura 7 - Comissão de Aparecida - SP que acompanhou a imagem ao Rio de Janeiro
................................................................................................................................................ 99
Figura 8 - Foto do Congresso Mariano na Igreja de Sto. Afonso ....................................... 103
Figura 9 - Vagão / capela que levou a imagem até o Rio de Janeiro ................................. 109
Figura 10 - Chegada da imagem de N. S. Aparecida no Rio ........................................ 112
Figura 11 - Missa realizada em frente a Igreja São Francisco de Paula em 31/05/1931,
publicada no Almanaque de Aparecida 1932 ..................................................................... 114
Figura 12 - Imagem sendo conduzida para a Catedral após a missa solene ....................... 116
Figura 13 - Início da Procissão solene em frente a Catedral do Rio de Janeiro ................. 117
Figura 14 - Bispos Brasileiros visitando o Presidente da República Getúlio .................... 119
Figura 15 - Chegada da imagem em Aparecida - SP em 01/06/193.................................. 122
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
C.S.S.R Congregação do Santíssimo Redentor
CDM Centro de Documentação e Memória “Padre Antão Jorge”, Aparecida – SP
E.F.C.B Estrada de Ferro Central do Brasil.
ECOS MARIANOS Almanaque de Aparecida.
MARIANO Aquilo que se relaciona a devoção a virgem Maria.
N.S.A Nossa Senhora Aparecida.
13
INTRODUÇÃO
Era uma das noites frias do mês mariano1, precisamente dia 30 de maio do ano de
1931, uma vez mais as velas que iluminavam o entardecer do dia eram dedicadas a Virgem
Maria, no estreito Vale do Rio Paraíba do Sul. As velas tremulavam com o sopro da brisa que
vinha das montanhas. Entre rezas e súplicas se ouve a voz do Cardeal, consolando o povo de
Aparecida e entoando uma “ave Maria” pela comunidade aparecidense que tristemente
acompanhava a saída da imagem morena do pálido santuário localizado na Praça do Carmo.
Os alunos que estudavam no Seminário Santo Afonso despediram-se da imagem em
frente à Estação da Companhia Central do Brasil entoando o “Ave Maris Stella”, o arcebispo
levou a imagem para seu altar no salão capela, depois dirigiu palavras de consolo ao povo...2
A pequenina imagem3 de Nossa Senhora da Conceição, vulgarmente chamada de
“Aparecida” que fora encontrada por três pescadores em 1717 no rio Paraíba do Sul estava
viajando para o Rio de Janeiro, Capital Federal, para ser solenemente aclamada como
Padroeira do Brasil. Ato perpetuado por uma carta assinada pelo Papa Pio XI no dia 16 de
julho do ano anterior.
Poderíamos discorrer inúmeros aspectos relacionados ao curto processo cronológico
que levou está devoção popular torna-se uma das maiores em exercício do país e alcançar o
reconhecimento da hierarquia do catolicismo brasileiro, se nos atrevêssemos a escrever sobre
isso o tempo tornar-se-ia demasiadamente um período muito longo, dado as proporções
sociais que este culto no Brasil faz evocar e o grande número de campos de estudos que se
possibilitam a indagar tais fatores.
Deste modo o objetivo pontual deste trabalho é indagar a maneira que a imagem
encontrada em uma aldeia de pescadores, região de passagem para as minas em terras
brasileiras do século XVIII tem o seu reconhecimento de culto oficializado no processo
1 Mariano (a): Substantivo utilizado para designar o culto a Virgem Maria, e tudo aquilo que se refere a este culto, nas
práticas oficiais do catolicismo ou na piedade popular. Cf.: Boff “ a piedade Mariana é muito mais que a metade do conjunto
da piedade popular”. (BOFF,2006, p.551) 2 Cf. Almanaque de Nossa Senhora Aparecida de 1932, p.28, pasta s.d, Centro de Documentação e memória do Santuário
Nacional de Nossa Senhora Aparecida (CDM). 3 A importância da utilização de imagens rituais para o cristianismo católico está associada a sua doutrina teológica e pode
ser considerada como uma catequese para proporcionar um contato com os dogmas da Igreja. Quando se trata da utilização
de imagens utilizadas no contexto devocional essa proporção catequética é substituída na maioria das vezes por uma ideia
mística de personificação do sagrado no meio da natureza humana. Para Eliade (1991) “ as imagens constituem “aberturas
para um mundo trans-histórico. Não é, entretanto, seu menor mérito: graças a elas, as diversas “histórias” podem se
comunicar. (p.174)
14
ritualístico e místico da Igreja católica no século XX, dentro da chamada política de
“romanização”, proposta pela Igreja no mesmo período. Podemos considerar muitas coisas
quando tratamos das imagens de devoção. As imagens de devoção concentram em seus traços
artísticos elementos que são interpretados a luz da tradição religiosa do lugar em que elas são
cultuadas. Elas possuem diversas narrativas, é justamente as narrativas em torno delas que
revelam e fomentam a veneração.
Em torno, das imagens de devoção, acredito que não apenas no Brasil, há
uma narrativa comum composta pelos mesmos mitemas: o encontro da
imagem por pessoas que vivem à margem dos círculos do poder econômico
ou eclesiástico, a definição do local de adoração que não coincide com o
espaço institucionalizado da Igreja, a disputa (em alguns ausente, mas
bastante comum de qualquer forma pela posse da imagem. Nessa disputa,
aparece a luta pela legitimidade do culto, que, quase sempre, arrasta a
contragosto a hierarquia da Igreja. (ABUMANSSUR,2017, p.114)
A saída da imagem da cidade de Aparecida no dia 30 de maio de 1930 é resultado de
um processo histórico de disputa pela constituição mística e espiritual de um exercício de
culto católico, ora, a imagem quebrada e escura encontrada por três pescadores não mais
pertencia a simples e pobre aldeia de pescadores de Itaguaçu da Vila de Guaratinguetá como
fora naqueles idos de 1717 e sim se tornaria um dos patrimônios mais sacros do catolicismo
brasileiro, a padroeira da nação.
Constitui-se tradicionalmente no catolicismo que os santos padroeiros, ou seja, os que
são patronos ou oragos guardam e protegem o lugar, região ou pessoas que a eles são
confiados, tendo como missão profícua diante de Deus “rogar” por aqueles que a eles
recorrem em suas insatisfações e desafios humanos. O Brasil tinha como seu padroeiro São
Pedro de Alcântara, cargo que lhe fora dado por Dom Pedro I em 1822 quando foi
Proclamada a Independência. O fato é que São Pedro de Alcântara foi destituído do seu posto
dando lugar para Nossa Senhora Aparecida, que vai ser reconhecida como padroeira nacional,
ou seja, padroeira da nação4 conceito que vai além de povo pela notoriedade toponímica que
essa palavra abrange.
Os dados em relação a devoção a São Pedro de Alcântara no Brasil são concentrados
em indícios de fontes da administração da Igreja do Santo de mesmo nome, Capela Imperial,
localizada na cidade de Petrópolis – RJ, fragmentos que não se concentram em registrar as
práticas de veneração ao Padroeiro e sim a relação financeira e administrava que a coroa
imperial brasileira tinha com a mesma capela. Afastado da realidade do povo brasileiro do
4 Cf.Cf. Chauí, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
15
início do século XIX, o orago “franciscano e espanhol” não reunia em torno de si um grande
número de devotos em todo o território nacional, dados que podemos constatar ao analisarmos
a existência de apenas duas igrejas paroquiais que tem o santo como Padroeiro até os dias
atuais.5
A dissertação que apresentamos não tem como principal objetivo fazer um
mapeamento estatístico das devoções presentes no Brasil durante o processo de escolha da
nova padroeira. A proposta é entendermos qual a relação imediata do processo de
romanização com a devoção a Nossa Senhora Aparecida que consequentemente vai expandir
a mesma em uma esfera nacional e com aprovação oficial da Igreja e do Papa.
Ao problematizarmos e levantarmos hipóteses sobre o processo que levou Nossa
Senhora Aparecida se tornar padroeira da “nação brasileira”destacamos que este estudo é
muito importante para contribuir com as análises diversas que estão surgindo dentro da
historiografia brasileira, nas pesquisas sobre questões religiosas no Brasil, muitas apontam
para Nossa Senhora Aparecida como parte da construção de ícones Nacionalistas e discorrem
de forma subjetiva da utilização da devoção popular para este efeito. Torna-se necessário um
estudo mais aprofundado dos sujeitos protagonistas dessa devoção que por enquanto
aparecem pouco pesquisados nas abordagens da historiografia e das apropriações de memória
oficial feitas pela própria Igreja6 no Brasil.
Na dissertação defendida por Lourival dos Reis (2000), pioneira sobre este tema da
devoção a Nossa Senhora Aparecida, a hipótese levantada pelo pesquisador é perceber a
relação do nacionalismo com a devoção a nova padroeira, bem como relacionando a isso a cor
negra da imagem como um elemento simbólico utilizado pela Igreja em momentos oportunos
para buscar legitimar uma identidade nacional construída na ideia da miscigenação. Para isso
o autor utilizou como fonte para a sua pesquisa uma coleção de “santinhos” de Nossa da
Conceição Aparecida propagados pelo Brasil de 1854 - 1978, tendo como questionamento
principal o “escurecimento” das reproduções da imagem ao longo do processo de expansão do
5 Atualmente existe uma Igreja Paroquial dedicada a São Pedro de Alcântara no município de mesmo nome no estado de
Santa Catarina com data de criação em 23/04/1843; também na cidade de São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro, possui
uma Igreja dedicada ao santo. 6 Atualmente dispomos dos seguintes trabalhos acadêmicos que enfatizam a imagem de Nossa Senhora Aparecida como
parte das constituições de símbolos nacionais brasileiros: Peters, José Leandro. Nossa Senhora Aparecida no discurso da
Igreja (1854-1904). (Dissertação de Mestrado). Juiz de Fora: UFJF,2012. SANTOS, Lourival dos. Igreja, Nacionalismo e
Devoção Popular: as estampas de Nossa Senhora Aparecida – 1854-1978. (Dissertação de Mestrado). São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2000. ALVES, Andréa Maria Franklin De Queiroz. Pintando uma imagem Nossa Senhora
Aparecida – 1931: Igreja e Estado na construção de um símbolo nacional. (Dissertação de Mestrado). Dourados:
UFGD,2005.
16
culto. Um processo artístico e político que possibilitou uma afirmação de “identidade negra”
para a Padroeira de uma terra de mestiçagem como é o nosso país.
Já na dissertação de Andréa Maria Franklin De Queiroz Aves (2005) o enfoque
principal é a utilização da imagem religiosa de Nossa Senhora Aparecida no ano de 1931 pela
Igreja e pelo Estado na construção de um símbolo nacional. A utilização política da imagem
pela Igreja como elemento centralizador de sua unidade frente ao golpe que deu início a
chamada Era Vargas (1930 -1945) é analisada através de fontes da imprensa, relacionando a
construção do nacionalismo como forma de controle social da ordem objetivada pelo líder
político. Dentre os principais símbolos nacionais a imagem da Padroeira abraça a bandeira
brasileira em seu manto, possibilitando uma nova representação da mesma com o sagrado.
As dimensões simbólicas que são pontuadas nas pesquisas acima se diferenciam no
tocante as hipóteses que produzem: a primeira parte para o simbolismo através da reprodução
gráfica da imagem de Nossa Senhora Aparecida, e a segunda indaga como está mesma
imagem é utilizada como símbolo político dentro do contexto de fundamentação das bases de
um nacionalismo brasileiro.
O que fica evidente nestas duas pesquisas é a grande contribuição ao olhar a figura
religiosa de Nossa Senhora Aparecida em sua relação com a sociedade brasileira como um
todo, não apenas com o universo católico de modo que problemáticas até então não visitadas
por historiadores pudessem constituir um discurso cientifico e acadêmico diferente do que foi
concebido no mundo do pensamento intelectual católico brasileiro.
Alguns apontamentos de pesquisa sobre a mesma temática aparecem no pensamento
intelectual Católico Brasileiro, a representação da imagem de uma nova padroeira busca
identificar um estilo de “catolicismo brasileiro”, reflexão pautada na necessidade de um
rompimento com o processo de romanização fator contraditório as teorias e pesquisas
acadêmicas que não estão imbricadas ao pensamento reflexivo desta instituição.7
Os símbolos religiosos nos ajudam a indagar a existência de conflitos humanos
diversos uma vez que os mesmos são constituídos e propagados por sujeitos que compõem o
cenário social, econômico e político de variadas formas. Esses sujeitos assumem identidades
ligadas as suas crenças e místicas constituindo um grupo de atores que propagam uma
“devoção” que extrapola o âmbito individual e doméstico, caso contrário o culto a imagem de
7 Cf.: VILLAÇA, Antônio. O pensamento católico no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
17
Nossa Senhora Aparecida não teria chegado até os dias de hoje com tanto destaque no cenário
religioso do país. No caso de “Aparecida” os pescadores e ribeirinhos assumem um papel
predecessor ao dos clérigos e representantes da Igreja nesta devoção
É importante, entretanto, não nos deixarmos imobilizar pela
perspectiva histórico-cultural, e perguntarmo-nos se além da sua própria
história um símbolo, um mito, um ritual, podem nos revelar a condição
humana, enquanto modo de existência em um próprio universo.
(ELIADE,1991, p.176)
Ao revelar a condição humana, suas construções e articulações, os rituais e mitos
proporcionam meios eficazes de questionamentos sobre as experiências e vivências das
situações que são inevitáveis dentro dos processos sociais que vão sendo constituídos. A
experiência religiosa é uma forma de questionamento sobre as realidades existenciais
humanas, indagações que podem ser alimentadas por sentimentos de luta e esperança,
melhorias ou simplesmente favorecem certa conformidade com a ordem social vigente e com
os desafios cotidianos, daí a importância de identificar os sujeitos que primeiramente
assumem e propagam essa crença.
A proposta principal desta pesquisa é justamente traçar uma linha dentro do grande
mosaico que é a devoção brasileira a Nossa Senhora Aparecida, como forma de resistência
nas ações cotidianas através de uma experiência pessoal, que mesmo sendo reconhecida
oficialmente pela Igreja não deixa estática e centrada em dogmas as construções particulares
que aparem em torno da figura da mesma.
A crença também é política e uma construção cultural, ela ilustra um espaço que o ser
humano toma em sua posição social. A expressão de crença mais comum para o homem
religioso é a “devoção”, substantivo que já pontuamos nesta introdução e conceito que
melhor iremos definir no primeiro capítulo deste texto. Portanto, a forma como foi
institucionalizada esta devoção a Nossa Senhora Aparecida dentro da política de romanização
proposta pela Igreja é a nossa principal indagação.
Cada imagem encontrada, cada nova devoção que surge em meio aos
pobres torna-se uma crítica à incapacidade das instituições de oferecer, com
exclusividade, o livramento necessário buscado por essas pessoas. As
devoções populares são a evidência, pois de que as formas
institucionalizadas de religião não são capazes de esgotar a demanda ou de
monopolizar a oferta de bens de salvação. (ABUMANSSUR, 2017, p.115)
Pesquisas relacionadas ao devocionismo, ao simbolismo, ao ritualismo e ao mítico são
desafiadoras para os historiadores. O fenômeno religioso é manifestado na história e através
18
da história. E, pelo simples fato de estar manifestado na história, ele é limitado, é
condicionado pela história. (ELIADE, 1991, p.27)
Interpretamos o fenômeno religioso a partir da tradição cultural em que ele se
manifesta, portanto, o campo historiográfico que permite uma discussão teórica mais assertiva
em relação a devoção é sem dúvidas a História Cultural.
Um dos expoentes deste campo historiográfico Peter Burke em seu livro “O que é
História Cultural?” (2008) assinala que o terreno comum dos historiadores culturais pode ser
descrito como a preocupação com o simbólico e suas interpretações. “Símbolos, conscientes
ou não, podem ser encontrados em todos os lugares, da arte à vida cotidiana [..]” (p.10)
Os símbolos religiosos como citamos anteriormente possuem em torno de si uma
narrativa que transmite ao devoto uma inserção de experiência mística que culturalmente vai
envolvendo o mesmo em torno de um mistério. Através desse espaço do mistério se percebe
uma imersão na realidade do sagrado que constitui a experiência individual com a devoção,
ou seja, um movimento que caracteriza essa presença no cotidiano ocasionando um
hibridismo cultural nos diversos espaços de circularidade dos sujeitos envolvidos.
Ao tratar da circularidade cultural, salienta Ginsburg:
Os historiadores só se aproximaram muito recentemente – e com certa
desconfiança – desses tipos de problema. Isso se deve em parte, sem dúvida
nenhuma, à persistência de uma concepção aristocrática de cultura. Com
muita frequência ideias ou crenças originais são consideradas, por definição,
produtos das classes superiores, e sua difusão entre as classes subalternas um
fato mecânico de escasso ou nenhum interesse; como se não bastasse,
enfatiza-se presunçosamente a “deterioração”, a “deformação”, que tais
ideias ou crenças sofreram durante o processo de transmissão. (2006, p.12)
Desse modo, não podemos considerar a cultura apenas como um elemento a ser
investigado a partir das classes superiores, esse fator nos desafia metodologicamente no
decorrer de qualquer pesquisa sobre religiosidade, tendo em vista que a maior parte dos
indícios e fontes que temos para investigar esse campo estão nos arquivos destas instituições e
desafiam o historiador a uma leitura a contrapelo para buscar ali elementos de estudo em
relação aos sujeitos envolvidos.
Ao analisar os métodos em relação as pesquisas culturais Pesavento (2007) resume
que a História Cultural pressupões um método, trabalhoso e meticuloso, para fazer revelar os
significados perdidos no passado sugerindo potencializar a interpretação por meio de um
19
maior número possível de relações entre os dados pesquisados. Dentro desta metodologia o
conceito que mais se aproxima de devoção popular é a cultura popular.
Nesta perspectiva, ao problematizar o campo popular da cultura o pesquisador
Chartier (1995) ressalta que a definição de cultura popular pode ser resumida em dois grandes
modelos de interpretação: o primeiro concebe a cultura popular como um sistema simbólico
autônomo que funciona segundo uma lógica absolutamente alheia a da cultura letrada, o
segundo percebe a cultura popular em suas dependências e carências em relação a cultura dos
dominantes.
Compreendemos que essas duas definições podem ser encontradas a partir das
diversas abordagens que esse tema pode estar inserido. Faz-se necessário destacar, no entanto,
que a interpretação do conceito de cultura popular utilizada dentro deste texto concebe a
cultura popular como um sistema simbólico autônomo que possui as suas características
indiferentes da cultura letrada, como afirma o autor na definição citada no parágrafo anterior.
Portanto, o que denominamos devoção popular não é simplesmente aquilo que não é
reconhecido oficialmente pela Igreja, e sim as práticas que dialogam ou não com as dinâmicas
institucionalizadas pela mesma e ainda assim resistem e são transmitidas.
Em Stuart Hall (2003) vamos encontrar o seguinte esclarecimento:
Quero afirmar o contrário que não existe uma ‘cultura popular’ íntegra,
autentica e autônoma, situada fora o campo de força das relações de poder e
de dominação culturais. Em segundo lugar, essa alternativa subestima em
muito o poder da inserção cultural. Este é um ponto delicado, pois ao ser
apresentado abra-se à acusação de que está apoiando a tese da implantação
cultural. O estudo da cultura popular fica se deslocando entre esses dois
polos inaceitáveis: de ‘autonomia’ pura ou do total encapsulamento. (p. 254)
Deste modo, através das sociabilidades ou dos interesses que permeiam o campo
religioso podemos entender que este campo da cultura é mutável e passa por alternâncias a
partir dos espaços e sujeitos envolvidos, fator que novamente reafirma o conceito de
hibridismo presente nas manifestações culturais que são movidas pelas relações sociais.
Ao problematizar as relações culturais Benjamim (1940) nos alerta que a cultura não é
isenta através do seu processo de transmissão, ou seja a propagação e utilização de símbolos
20
está relacionada a um contexto de apropriação das reminiscências do passado que contempla a
busca da solução dos enfrentamentos sociais do “agora”8.
Através das práticas culturais dos exercícios de devoção popular que são os objetos
desta pesquisa cabe questionarmos a tolerância da Igreja em relação aos mesmo podemos
identificar espaços culturais de resistência que rompem com a ideia de conformismo, daí a
necessidade que o historiador busque analisar os documentos produzidos por instituições
problematizando além do que é proposto e informado pelas mesmas, produzindo então uma
história a contrapelo.
A documentação referendada para a construção deste texto em sua maioria, fazem
parte do acervo do Centro de documentação e memória – Padre Antão9 Jorge localizado no
segundo anda da torre do Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, na
cidade de Aparecida – SP.
O acervo que foi criado no final da década de 1990, e abriga uma grande
documentação relacionada ao culto a Nossa Senhora Aparecida e o seu desenvolvimento no
Brasil. Segundo informações obtidas através de relatos de funcionários do acervo um seleto
número de pesquisadores busca o local como meio de obtenção de registros e fontes para os
seus trabalhos em torno da temática, sendo em sua maioria historiadores e religiosos que
fazem trabalhos acadêmicos nas áreas de teologia, ciências da religião e arquitetura.
O acervo do memorial é composto por uma série de jornais, revistas, livros religiosos
diversos (desde livros devocionais a livros de cantos e partituras litúrgicas), plantas e projetos
de construção arquitetônica, material áudio visual e fotográfico que registram desde os
exercícios de culto a Nossa Senhora Aparecida até a construção de todo o complexo do
Santuário Nacional, bem como os reconhecimentos oficiais feitos pelos papas e autoridades
políticas em relação ao mesmo.
A utilização de boa parte deste material é feita por outras divisões de trabalho dentro
do próprio Santuário Nacional, devido à grande demanda de informações que as várias
instancias que articulam os serviços neste local requerem, tais como: a manutenção do museu
8 Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. In Walter Benjamin - Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios
sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. 9 MOTTA, Bruna Gisele.; BIZELLO, Maria Leandra. Memória, lugares e documentos: centro de documentação e memória
Pe. Antão Jorge CSSR do Santuário Nacional de Aparecida. Disponível em :<http://www.brapci.inf.br> Acesso em : 17 de
Novembro de 2017.
21
e do memorial dos devotos, a preparação de festas religiosas ligadas a datas históricas do
culto a Nossa Senhora Aparecida e também fomentos para programas de Rádio e TV do
próprio Santuário Nacional.
Através de solicitações ao Santuário Nacional e de visitas para pesquisas separamos
um número considerável de documentos que mesmo fragmentados em sua maioria
possibilitaram o desenvolvimento deste trabalho. Parte desta documentação se encontrava
digitalizada, e foi necessário retomar aos impressos originais para reconsiderar partes de
periódicos que não estavam disponíveis por inteiro nos arquivos digitais. O acervo
digitalizado é organizado em uma espécie de hemeroteca o que dificulta o trabalho do
pesquisador já que para se levantar questões a partir de periódicos e fotografias é muito
importante entender como são construídas estás séries em sua diagramação e redação. Como
descrito acima podemos perceber que o acervo é muito mais para uso da própria instituição
religiosa do que para pesquisadores de fora da mesma, devido a sua forma de organização ser
precisa e específica nas denominações litúrgicas da Igreja.
Os documentos escritos que utilizamos para alcançar os objetivos desta pesquisa são
em sua maioria Jornais comerciais e confessionais, e também revistas religiosas. O memorial
consta com todas as edições do Jornal “Santuário”, que foi fundado pelos Missionários
Redentoristas no ano de 1900, congregação responsável pelo Santuário Nacional de
Aparecida e pelo editorial do jornal que existe até hoje, sendo o veículo de comunicação de
imprensa católica mais antigo do Brasil.
Além das informações relacionadas ao âmbito religioso e de propagação do culto a
Nossa Senhora Aparecida, o periódico que era publicado frequentemente também trazia
informações acerca dos conflitos políticos internacionais, destacando aspectos econômicos e
locai da região do Vale do Paraíba Paulista e informando os devotos das atividades a serem
realizadas no santuário tanto no âmbito do cerimonial religioso, como nas promoções
beneficentes de apoio as obras dos missionário redentoristas nas regiões de Aparecida –SP.
Material este que se torna um documento histórico de grande valor para a
compreensão social do período, destacando que é através deste periódico que grande parte das
tentativas de “purificação” de costumes de diversas devoções católicas vão ser publicadas,
pois, como citado anteriormente é o primeiro periódico religioso a ser lançado no Brasil.
Um outro material analisado é o “Manual do devoto de Nossa Senhora Aparecida”,
livro impresso com autorização eclesiástica no ano de 1928, contendo os principais milagres
22
da santa em ordem cronológica e orações próprias da liturgia cristão, com uma série de
orientações de exercícios espirituais em relação ao culto da “imagem milagrosa”.
Portanto, as fontes para o conhecimento da prática devocional são cada vez mais
múltiplas: “Ou seja, qualquer fonte documental que for mobilizada para qualquer tipo de
história nunca terá uma relação imediata transparente com as práticas que designam. Sempre
a representação das práticas tem razões, códigos, finalidades e destinatários particulares.
Identifica-los é uma condição obrigatória para entender as situações ou práticas que são
objetos de representação”. (CHARTIER,2001, p.16)
Como apoio as discussões trazidas pelo jornal “Santuário” em 1927 foi feito o
lançamento de um subsidio anual o “Almanak de Nossa Senhora Aparecida”, diferente dos
almanaques existentes no período o almanaque de Aparecida possuía uma diagramação bem
mais elaborada que facilitava a diversidade de seu conteúdo que possuía um grande espaço
para uma matéria intitulada “Crônicas de Aparecida” onde eram publicas as manchetes mais
destacadas de setembro a setembro do ano anterior pelo jornal “Santuário”. Neste material é
predominante a utilização de fotografias e ilustrações que se relacionam com as matérias
elencadas. Ele se encontra preservado e conservado em todas as suas edições no centro de
documentação e memória citado anteriormente.
Para a temática e período que buscamos analisar utilizaremos as publicações do
Almanaque dos anos de 1931-1932 que trazem de maneira detalhada aspectos do processo de
Proclamação de Nossa Senhora Aparecida como padroeira do Brasil, possibilitando um
diálogo historiográfico com as fotografias que ilustram as matérias e tópicos destacados por
este editorial.
A utilização da fotografia como documento histórico é resultado da busca cada vez
maior de uma ampliação do olhar sobre o homem e sua complexidade algo que as novas
correntes historiográficas se propõem a fazer, comparadas com outras fontes como revistas,
livros de tombo e registros paroquiais, descrição de discursos entre outros documentos a
fotografia vem contribuindo com uma maneira muito objetiva de se pensar e escrever a
história, possibilitando problematizações junto aos documentos escritos que ajudam a
questionar os fatores sociais e construtores das memórias históricas.
De maneira maior quando colocamos em destaque festa, devoção e representação,
elementos culturais presentes nas crenças institucionais ou populares. Nessa perspectiva, a
imagem não meramente ilustra o texto, nem o texto apenas explica a imagem, ambos se
23
complementam, concorrem para propiciar uma reflexão sobre os temas em questão
(GODOLPHIM,1995 p.180).
Dialogando com fronteiras interdisciplinares como a antropologia e as Ciências da
Religião esta pesquisa pretende ampliar os estudos já existentes sobre as devoções populares
no Brasil e foi intensificada no período da Era Vargas (1930-1945). Sabemos que esta fase
da história brasileira já mereceu atenção por parte de inúmeros estudiosos10 relacionando as
práticas religiosas legitimadoras utilizadas pelo estado. Entretanto, várias questões ainda
permanecem desconhecidas. Uma delas é a ação romanizadora da Igreja Católica durante
esse período através de práticas de representação e utilização de grande valor simbólico para
o fortalecimento do nacionalismo e combate de ideias consideradas contra o governo
republicano.
Fazemos uma delimitação dentre estes fatores. Nesta temática conforme já foi
salientado buscamos estudar a representação na Proclamação de Nossa Senhora Aparecida
como Padroeira do Brasil em 1931 como uma política de apropriação da devoção popular e
institucionalização do Catolicismo Romano, ou seja, o processo de romanização desta prática
religiosa.
Consequentemente, o símbolo que a imagem da nova Padroeira carrega representa de
algum modo a mudança no olhar institucional da Igreja para esta devoção popular e transmite
significados tanto para o campo religioso quanto para o social, desse modo utilizamos o
conceito “Representação” para problematizarmos metodologicamente esse processo em que a
imagem tendo recebido o título de padroeira ganha uma nova significância.
De acordo com Chartier (2011) a noção de representação modificou profundamente a
compreensão do mundo social, obrigando-nos a repensar as relações do ser social ou do
poder político. Deste modo, ao analisarmos a crença a Nossa Senhora Aparecida como
crescente devoção mariana popular do povo brasileiro, percebemos que sua representação
também ganhará um cunho político, tanto na administração da própria Igreja como nas
relações seculares entre Igreja e Estado.
As relações entre essas duas tradições possuem um amplo alcance historiográfico que
pode ser traduzido através do conceito de “Representação”, as representações simbólicas
tendem a legitimar certas práticas sociais e culturais. Neste estudo de caso a “Romanização”
10 Cf: Discussões propostas pelo autor onde são relacionadas as ações da religiosidade no discurso nacionalista da Era
Vargas (1930-1945) LENHARO, Alcir. A sacralização da política. Campinas: Papirus, 1986.
24
de algumas “devoções da piedade popular” caminham em busca da centralização de uma
representatividade assertiva e com um peso político considerável.
As sugestões de capítulo buscam ilustrar um pouco a organização de temáticas que
propomos fazer na dissertação:
No Primeiro Capítulo “ Devoções e devotos: expressões culturais do catolicismo
popular”,propomos uma discussão em torno do conceito de “devoção”, problematizando a
empregabilidade do mesmo no processo de formação do catolicismo no sudeste brasileiro. O
objetivo principal é localizar na constituição do espaço histórico e geográfico da formação do
vale do Paraíba paulista como local estratégico para a propagação e manutenção de crenças
exercitadas sem a manutenção do catolicismo oficial, possibilitando reconhecer a influência
europeia nestas práticas e ressaltando a importância dessa região como eixo de ligação entre a
capital do Rio de Janeiro e as regiões das minas durante o chamado ciclo do ouro. Dentro
dessa abordagem problematizamos a concentração de diversas nomenclaturas que compõem
o conceito de “Devoção popular”, tais como: piedade popular, catolicismo popular,
religiosidade popular.
No segundo capítulo intitulado “ A Santa “Aparecida”: Trajetos da devoção
popular” centralizamos a discussão em torno da figura de Nossa Senhora Aparecida, a
origem da sua imagem, dos seus primeiros devotos e as primeiras organizações propostas
para este culto. As relações da devoção a Santa Aparecida com as demais práticas
devocionais do Vale do Paraíba possibilitam entender o processo de popularização da
mesma, imbricando a análise de conjuntura histórica de transformação desta imagem em um
símbolo miraculoso que aos poucos vai ganhando uma proporção de territorialidade que
começa a ser aproximada da prática oficial de culto do catolicismo naquele período. Este
capítulo possibilita um panorama da evolução da devoção a Nossa Senhora Aparecida e sua
transformação em um símbolo sagrado de proporção nacional na ressignificação feita pela
Igreja em relação a mesma. O hibridismo cultural e a noção de representação possibilitam
elementos teóricos para analisarmos essa conjuntura histórica.
No terceiro capítulo “A Nova Padroeira: devoção popular e o processo de
romanização” a partir da análise de documentos da imprensa e fotografia buscamos levantar
hipóteses acerca da institucionalização das práticas devocionais a Nossa Senhora Aparecida
através da tentativa de romanização destas mesmas práticas, destacando a presença de
membros da Igreja como o Cardeal Leme que empreenderam uma política de purificação
25
destes exercícios devocionais ao conseguir a aprovação do Papa Pio XI em 1930 das práticas
e honras litúrgicas próprias de padroeiros de lugares e nações, dado que é neste momento que
Nossa Senhora Aparecida é proclamada padroeira do Brasil. De maneira atenta propomos
uma problematização através do diálogo com essas fontes analisando como foram os festejos
desta celebração ocorrida no dia 31 de maio de 1931 na cidade do Rio de Janeiro, reiterando
as consequências subsequentes de fatores imbricados nesta celebração.
O objetivo da presente pesquisa é, portanto, buscar o entendimento das ações de
apropriação da devoção popular pela Igreja no Brasil durante o processo romanizador, cada
qual em seu tempo histórico fazendo um estudo das representações simbólicas e das relações
de interesses de ambos na apropriação e utilização da devoção popular e da crença como
meio de dominação política.
26
1. DEVOTOS E DEVOÇÕES: EXPRESSÕES CULTURAIS DO
CATOLICISMO POPULAR
“Era um cristianismo de muita reza e pouco padre, muito terço e pouca
missa. ”
Hoornaert
A epígrafe acima nos propõe uma problemática baseada em fatos cotidianos que se
desenvolveram na formação da sociedade brasileira desde o século XVI, no início da
formação da América Portuguesa.11 A presença da Igreja no Brasil faz parte de uma
transição que está aliada a política colonizadora catequética onde a tentativa de substituição
das práticas religiosas dos povos originários desta região pode ser observada por aspectos
diversos sejam pelas pesquisas historiográficas ou pelas fontes que utilizamos para delimitar
essa pesquisa.
Grande parte destes estudos dividem o catolicismo desenvolvido na sociedade
brasileira em duas partes distintas, a primeira desde o processo catequético iniciado por
volta de 1534 até 1960, e a segunda de 1968 até a atualidade nos pós concílio Vaticano II
que redefiniu as estruturas teológicas e catequéticas de toda a Igreja. Podemos considerar
que está divisão se relaciona muito mais ao campo do desenvolvimento dos estudos do
pensamento teológico na Igreja do Brasil do que propriamente uma divisão de período na
História da Igreja no Brasil que considerasse outros objetos de pesquisa.
A organização deste capítulo dentro de uma normatização cronológica de modo
algum quer assinalar que nas diversas conjunturas históricas acontece um processo de
forma linear, ou reforçar um debate teórico historiográfico já superado de que o “agora”
depende do “antes” e que os acontecimentos são consequências pré-determinadas por
períodos e séculos. A ordem utilizada aqui é apenas com o intuito de facilitar didaticamente
a leitura dos fatos a partir das fontes consultadas.
Para Benjamin (1987) “a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o
tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de "agoras"(p.232). Consequentemente
a opção por uma sequência cronológica nos fatos que aqui apontamos são comparativos
11 Cf. AZZI, Riolando. A instituição eclesiástica durante a primeira época colonial. In: HOONAERT, Eduardo
et.al.,coords. História Geral da Igreja no Brasil. São Paulo/Petrópolis, Vozes/Paulinas,1983.
27
que atualizam essa dimensão de circularidade nas diversas conjunturas históricas, e tendem
apenas a colaborar com a organização das ideias dentro do texto.
Neste primeiro capítulo a partir da análise de dois periódicos que fazem parte da
imprensa regional do vale do paraíba, datados da segunda metade do século XIX, propomos
uma análise de algumas práticas devocionais que encontramos nas notas e colunas de
ambos.
O jornal “Parahyba”, disponibilizado em hemeroteca do arquivo do Museu de Santo
Antonio de Sant’Ana Galvão, da cidade de Guaratinguetá SP era um periódico semanal que
circulou na região na segunda metade do Século XIX. Poucos exemplares deste periódico
estão disponibilizados para consulta, sobre este jornal salienta Assis:
Jornal considerado “de direita”, O Parahyba sempre defendeu os
interesses do Partido Conservador, tendo que disputar público, a partir da
década de 1880, com outros veículos locais de natureza distinta, como O
Liberal, criado em 1881 (C. MARCONDES, 1973). Até 1884, era
impresso em prelo de madeira, cuja capacidade permitia a tiragem de, no
máximo, 100 exemplares por edição; a partir de então, começou a ser
rodado em tipografia de ferro. (2008, p.02)
Nesta perspectiva podemos compreender que o número de tiragem não era muito
grande, portanto, o jornal possuía um público leitor pré-determinado na região do vale
paulista e fluminense. Os exemplares que analisamos destacam pequenas notas informativas
no que se refere a religiosidade, como convite para missas de sétimo dia ou in memoriam e
outras informações sobre festas e cronogramas paroquiais.
De acordo com Capelato (1988) a imprensa nos oferece “inúmeras” possiblidades de
pesquisa:
A imprensa oferece amplas possibilidades para isso. A vida
cotidiana nela registrada em seus múltiplos aspectos, permite compreender
como viveram nossos antepassados – não só os” ilustres”, mas também os
sujeitos anônimos. O Jornal, como afirma Wilhelm Bauer, é uma
verdadeira mina de conhecimento: fonte de sua própria história e das
situações mais diversas; meio de expressão de idéias e depósito de cultura.
Nele encontramos dados sobre a sociedade, seus usos e costumes,
informes sobre questões econômicas e políticas. (1988, p.21)
Um outro periódico analisado é o jornal “Liberdade”, que possui todo o seu acervo
digitalizado e disponível para consulta pela internet. O jornal teria circulado entre os anos
1924 e 1928, tendo como principal foco a emancipação do distrito de Aparecida em cidade,
foi dirigido por um professor Julio Machado Braga e sobre a religiosidade e vida paroquial
28
da cidade de Guaratinguetá e região se concentra mais em notificar as celebrações e visitas
que ocorreram no Santuário de Aparecida, valorizando desta forma a religiosidade em torno
da santa.
Entendemos que inúmeras construções culturais são feitas por aqueles que
protagonizam o período histórico em que vivem12, e existem práticas diversas nestas
conjunturas históricas que vão além da problematização teológica. Essas práticas também se
referem ao universo religioso, as expressões criadas estão associadas a circularidade cultural
que proporcionam trocas de saberes, e constroem a partir desses saberes novas construções
culturais.
Essas construções não fogem da influência do espaço geográfico e da cultura local,
ou seja, o desenvolvimento da crença representa uma maneira transcendente de conexão
com o sobrenatural a partir do natural, imbricando as tensões culturais que podem ser
localizadas no olhar para cada uma delas. É exatamente desta maneira que surge a prática da
devoção. Consequentemente, as devoções podem ser construídas, reforçadas e difundidas na
vida cotidiana.
O conceito de devoção aparece durante a reformulação social do cristianismo na
Europa do século XVI, ou seja, durante a Reforma Protestante13 onde um contato de forma
direta com o divino vai sendo consolidado nesta sociedade humana visando uma ruptura
com as estruturas de uma prática ritualística medieval.
A propagação de um cristianismo medievalista estava condicionada a realização de
ritos comunitários como peregrinações, procissões e romarias promovendo uma crença
onde as manifestações rituais eram mediadas por figuras religiosas eclesiásticas como
bispos e padres que possuíam um poder simbólico institucional de contato com o místico
onde podiam relacionar a natureza humana com as sobrenaturais. As práticas religiosas do
imaginário medievalista mostram indicadores de uma religiosidade comunitária e
hierarquizada onde suas temáticas eram propostas e redigidas por membros de uma
instituição14. A aprendizagem da prática religiosa estava ligada a família e a sociedade em
que o indivíduo estava inserido.
12 In: GEERTZ, Cliford. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1973.
13 In: SEFFENER, Fernando. Da Reforma a Contrarreforma.Coleção História geral em documentos. São Paulo: Atual.
14 Ibid.
29
Para Hoornaert (1991) um novo modelo de prática religiosa vai se expandir, as
chamadas “devoções”. As práticas de devoção se propagam durante o início da Idade
Moderna no século XV, em poucos anos a devotio conquista a Europa cristã mesmo sem
receber um apoio da hierarquia da Igreja.
A palavra devoção vem do latim, devotione, ou seja, dedicar-se a um encontro de
experiência mística, não através da razão, e sim através de uma prática de fé. Várias
discussões dentro das ciências humanas alertam para a construção cultural do conceito de
devoção, que vem sendo explorado por diversos teóricos da antropologia, sociologia e
teologia. Podemos considerar que a expressão cultural que mais caracteriza a crença após a
sociedade moderna para o homem religioso é a devoção.
As devoções populares também se constituem em um conjunto rico
e diversos em suas práticas, origens e configurações. Há devoções em
torno de santos reconhecidos pela hagiografia oficial da Igreja e há
aquelas que surgem de tradições imemoriais da cultura dos povos e
comunidades. Algumas estão mais próximas do controle eclesiástico,
outras não são sequer reconhecidas como práticas aceitáveis. Há devoções
que sustentam dois níveis de narrativas, uma formal, que pode e é usada
na catequese, e outra centrada no caráter extraordinário – e legitimador- da
devoção, mantendo assim uma tensão dinâmica entre os ritos oficiais e a
espiritualidade mágica popular. (ABUMANSSUR, 2017, p.109)
Deste modo as práticas religiosas das devoções dão um novo significado ao
exercício do catolicismo, as devoções partem de uma experiência entre o místico e a sua
crença dando uma originalidade na relação entre o devoto e o exercício devocional, um
modelo inovador dentre as formas que são propagadas e institucionalizadas pela Igreja.
É através do estabelecimento de uma ligação mais próxima com a Virgem Maria, os
santos ou santas que o diálogo estabelecido pelo devoto propõe um novo significado com o
sagrado. O devoto pode dialogar de maneira mais objetiva com o seu santo, seja através das
promessas e ex votos, ou realizando trocas e barganhas múltiplas através de missas,
procissões, peregrinações, velas acesas, festas e até mesmo vestimentas. Ao analisar essa
ritualização no folclore brasileiro Câmara Cascudo assinala que:
Para o povo o sobrenatural é lógico pelas simples evidencia,
explicando-se pelo próprio mistério impenetrável às argúcias da
curiosidade humana. Ao contrário dos intelectuais, o popular não se
interessa pela explicação ao fenômeno, mas unicamente por sua
interpretação. Tem a intuição do silencio impassível a todas as perguntas,
infalíveis e inúteis. (2001, p.33)
30
As devoções propõem uma criatividade de relacionar o sagrado e o profano, o
pagão e o cristão de modo muito particular. A prática devocional dá um novo significado a
interpretações dogmáticas deste catolicismo oriundo das experiências particulares que
objetivam a santidade daqueles que as praticam. Desta maneira seria muito impreciso
considerar as devoções apenas como práticas que estão paralelas ao catolicismo oficial.
Os devotos possuem então práticas piedosas que são principalmente expressas
através da oração, das romarias, das peregrinações, benzimentos e festas de santos
exemplos citados anteriormente que fazem parte de um "culto privado" mais amplo, que é
chamado de piedade popular. 15
Conforme Londoño:
Nas diversas formas de piedade que a cristandade foi
estabelecendo, o culto a dezenas de santos, reconhecidos ou não
pelo magistério da Igreja, abriu um rico espaço para crenças, atos e
manifestações provenientes de outras religiões. Através do
reconhecimento de milagres e graças, a devoção aos santos, com sua
plasticidade, pode alojar a crença na eficácia de gestos rituais
alheios ao cristianismo, permitindo assim a permanência de
redefinidas referências de ordem e sentido. (LONDOÑO, 2001,
p.13)
Estas expressões populares de fé, consideradas piedade popular desenvolveram-se
à margem da liturgia oficial do catolicismo, mas elas, se forem sabiamente praticadas e
mantidas longe de qualquer superstição, são reconhecidas pela Igreja Católica como
importantes para o fomento da fé e da espiritualidade dos fiéis. De que maneira essas
práticas poderiam se manter longe daquilo que a Igreja considera como paganismo ou
superstição?
Uma outra prática comum na devoção popular é utilizar a imprensa como local para
pedir, agradecer e divulgar as graças que foram alcançadas em determinadas situações. Na
prece abaixo, intitulada “ O desespero do solteiro” publicada no jornal “ O Parahyba”,
podemos problematizar esse tipo de publicação:
15 De acordo com o Artigo Primeiro do Catecismo da Igreja Católica Nº1674, se considera que: Fora da liturgia dos
sacramentos e dos sacramentais, a catequese deve ter em consideração as formas de piedade dos fiéis e a religiosidade
popular. O sentimento religioso do povo cristão desde sempre encontrou a sua expressão em variadas formas de piedade,
que rodeiam a vida sacramental da Igreja, tais como a veneração das relíquias, as visitas aos santuários, as peregrinações,
as procissões, a via-sacra, as danças religiosas, o rosário, as medalhas, etc.
31
Perdido no mundo sem ella sem norte; És
triste caminho, sozinho, citado; Enquanto mais vivo, mais eu me
convenço; Deveres, não posso d’alguem ser amado; Oh Christo
bondoso, tu vês a desgraça; Que sempre me segue sem nunca
findar; Embora contricto as taltas confesse; Humilde de joelho as
aos pés do altar.[...] Tu creias que aceito, á toa , não peço; A vida
de moço no mundo perdido; E’ fraco barquinho, sem nauta, sem
leme; Nas ondas bravios dos mares varrido! São Paulo, Maio de 1879 J.A. (Nº 96325-6-1882)
Esse poema em forma de oração, permite percebermos que de fato a devoção
popular tem características próprias e diferentes das orações tradicionais, sempre evocando
uma característica ligada ao sofrimento e ao sacrifício. De que modo essas características
demonstram circularidade entre os elementos da devoção popular e a prática institucional
religiosa da Igreja?
Certamente o que pode ser considerado como diferença entre a prática religiosa
devota católica da prática religiosa oficial da Igreja não é algo a ser percebido apenas com
um simples olhar, ambas práticas dialogam entre si e em certos momentos imbricam,
ocasionando uma série de proficuidades das mesmas. Desde as procissões e novenas,
romarias, peregrinações, benzimentos e outros exercícios considerados de piedade popular,
é possível percebermos diferenças entre o que é considerado “sacro”, ou seja, o que está
dentro das normatizações doutrinárias da Igreja e o que é considerado
“religioso”, ou seja, elementos que podem até auxiliar o fiel em sua crença religiosa, mas,
não é reconhecido oficialmente dentro das normatizações da liturgia da Igreja.
A procissão, por exemplo, existe apenas dois atos processionais que fazem parte da
liturgia oficial do catolicismo: a procissão dos ramos, que é celebrada no Domingo de
Ramos conforme o calendário litúrgico católico e a procissão das velas, celebrada na festa
da apresentação do menino Jesus no templo no dia 02 de fevereiro, data fixada no
calendário litúrgico. Todas as outras procissões como a de Corpus Christi, são celebradas
de acordo com a cultura do lugar e ganham características de um ato devocional dentro de
uma celebração romanizada.
Um outro exemplo disso é a conservação doméstica de relíquias dos Santos e
Santas, as igrejas mantêm o costume de conservação de relíquias consideradas sagradas, só
que a forma de prática religiosa em torno desse hábito pode estar direcionada para
objetivos totalmente diferentes. Na tradição popular a relíquia de um santo aparece quase
como se fosse um “amuleto”, que afasta o perigo e protege o devoto que a ela se apega.
32
Em outras palavras, quando a Igreja em sua prática litúrgica oficial propõe aos fiéis
a veneração de uma relíquia ela busca enfatizar uma prática de representação, simbolizando
em um objeto os sinais dogmáticos de benção e catequese, admoestando os fiéis a seguirem
o exemplo daquele santo ou santa para que possam buscar a santidade. Isso na esfera do
catolicismo oficial, ou catolicismo romanizado.
Todavia na prática devocional popular, como pontuamos anteriormente, seja na
igreja ou em casa a conservação das relíquias absorve um sentido totalmente diferente,
aquele objeto se torna um amuleto para proteger o devoto contra os perigos cotidianos do
mundo natural, a relíquia o livra dos olhares maliciosos, das doenças e desastres que se
afastam da casa, ou da pessoa que conserva a mesma. Certamente em cada forma de
representação do místico e do sagrado proposta se possui uma sensibilidade diferente. O
entendimento que se tem é através da utilização desta relíquia e não um pressuposto
catequético.
Desta maneira Pesavento (2012) define que “ a representação, seria dada pela
exposição de uma imagem, que se substitui, algo/outro, ou mesmo pela exibição de objetos
ou ainda por uma performance portadora de sentidos que remetem a determinadas ideias. ”
(p.37)
Na definição de Berger:
No catolicismo, o homem vive em um mundo no qual o sagrado é
mediado por uma série de canais- os sacramentos da Igreja, a intercessão
dos santos, a erupção recorrente do sobrenatural em milagres-uma vasta
continuidade de ser entre o que se vê e o que não se vê, numa
continuidade entre o empírico e o supra empírico que pressupõe uma
união permanente dos acontecimentos humanos com as forças divinas que
permeiam o universo, efetuada (não apenas reafirmada, mas literalmente
restabelecida) repetidas vezes no ritual religioso (1985, p.124)
A série de canais entre o mundo natural e sobrenatural é esclarecida na experiência
dos rituais religiosos, a ligação desse rituais com as esferas do mundo cotidiano levam o
devoto a se identificar de maneira significativa com devoções caracterizadas a partir das
particularidades em que ele vive, por exemplo, em um período de seca a propagação de
procissões16 penitenciais e rogativas fazem um apelo a divindade pela chuva e boas
colheitas, na ocasião das epidemias e enfermidades a utilização de rezas e benzimentos.
Essas atitudes remetem a uma tradição cultural e nos levam a perceber como os movimentos
16 In: KANTOR, Iris. Pacto festivo em Minas colonial. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1996. Dissertação
de Mestrado. (Policopiada).
33
da vida e suas necessidades legitimam por conta própria ao devoto a práticas imbricadas na
sua crença.
A conjuntura de formação histórica do catolicismo popular brasileiro, que
pontuamos até aqui destaca uma prática com distanciamento do clero, aos olhos de muitos
religiosos este catolicismo era cheio de excessos e deveria ser combatido, conforme os
estudos de Câmara Cascudo:
Sem a intervenção minuciosa e suspicaz
do clero na vida mental, lenta e coerente do povo, foi possível a
manutenção da herança intocada de receitas e conceitos para julgar as
ocorrências do cotidiano. Essencial ao equilíbrio estável era a satisfação
notória dos deveres cristãos, as “obrigações” ao culto, e não a vivencia
doutrinal cristã. O entendimento popular não sente incompatibilidade
alguma entre seu pensamento aferidor das coisas e a consciência do
Catecismo, vagamente pressentido e venerado em potencial. Evita a
exibição ante o ministro sagrado que executa outro processo aliciante da
divindade. Quanto pensa e pratica fora natural e licito. Assim, conserva,
intatos, os santos dispensáveis do calendário, alguns de inarredável
predileção. (2011, p.32)
Podemos compreender que as ações cotidianas dos indivíduos vão sendo ligadas ao
mistério que se acredita, partindo da prática religiosa essas atitudes proporcionam um
diálogo diferente com o espaço do mundo do trabalho, das ideias, das festas e das
necessidades. A característica principal do devoto é reconhecer essa presença das ações
místicas em tudo aquilo que ele for fazer e observar seja nos momentos de felicidade ou
tristeza de algum modo ritualizando o seu dia e produzindo de maneiras diversificadas
ritos de passagem e integração social17.
As propagações de devoções dão as mesmas uma interpretação de popularidade, em
sua maioria as crenças descritas como populares são cheias de significados míticos e
interpretações baseadas na transmissão da oralidade e dos costumes populares, não estão
preocupadas com interpretações cientificas ou teológicas e sim com a relação estabelecida
entre o santo e o devoto.
O catolicismo popular brasileiro é tributário da religiosidade ibérica
que prevalecia no período da expansão colonial portuguesa. A maioria das
imagens, atualmente cultuadas, foi trazida para o Novo Mundo pelos
17 De acordo com Guilouski: “Entre os diversos tipos de rituais religiosos destacam-se: Iniciação ou passagem: rituais de
iniciação para vida adulta nas sociedades tribais, batismo cristão, crisma, casamento, investiduras e ordenações de líderes
das diversas tradições religiosas, Bar Mitzvah e Bat Mitzvah no Judaísmo, feitura na Umbanda e Candomblé...
(GUILOUSKI,2012, p.98).
34
padres colonizadores como, por exemplo, a Virgem de Nazaré ou o Bom
Jesus. Essas imagens serviram como foco de atração de uma religiosidade
frouxa e difusa, que se constituía pela interação com as religiões áfricas e
indígenas. Dadas a dimensão do território brasileiro e a sua insuficiência
da assistência pastoral, a religião que medrou por aqui se tornou
dependente da ação dos leigos. Essa religiosidade organizada em torno do
culto aos santos, das novenas, festas e romarias prescindia do clero para
se constituir. (ABUMANSSUR, 2017, p.111)
Com efeito as crenças nos santos, nas peregrinações e romarias, a prática de uma
oração individual e um encontro direto com o divino sem intermediação de um chefe
religioso vai ser o modo de fé tecido principalmente pelos grupos sociais que não possuíam
acesso a uma instrução catequética doutrinal da Igreja, dado que no Brasil como
analisaremos no terceiro capítulo as paróquias eram poucas, e as dioceses também. “ No
Brasil rural a assistência paroquial era dificultada pelas distâncias, pela própria ausência de
padres e sobretudo pela população a ser assistida”. (REIS, 1997, p.106)
A prática das romarias e peregrinações também eram incentivadas na região de
Aparecida – SP, mesmo sendo o santuário um local que recebe muitos peregrinos, a prática
devocional deste ritual também está presente o periódico “Liberdade” que circulou na
década de 1920 pela região fez a seguinte publicação:
As associações religiosas da Basílica promovem no dia 25 uma
romaria ao santuário do Sr. Bom Jesus de Tremembé, na qual poderão
tomar parte todos os catholicos praticantes da paróquia. Afim de tratar da
organização da romaria foi nomeada de acordo com o revmo.vigário uma
comissão composta dos srs. José de Freitas Valladão, Julio Machado
Braga e Feliciano de Freitas Valladão, cm os que podem ser adquiridas as
passagens cujo preço é 4$000. As inscrições terminaram no dia 24.
(Ed.84 11-12-1925)
O sr. Bom Jesus de Tremembé tem a sua imagem em um santuário na cidade de
mesmo nome, acorrem a ele devotos de várias localidades do vale do Paraíba. O que
poderia caracterizar essa prática como uma iniciativa dos exercícios de oração ligados a
devoção popular? Ora, o caráter significativo da romaria é reafirmado pelo sofrimento do
deslocamento, sendo a pé pelo esforço físico, se for feita por algum outro meio de
locomoção como carro, ônibus ou trem é justamente o gasto com a passagem que garante o
sacrifício feito pelo devoto. No caso do convite acima, fica evidente o protagonismo dos
organizadores que mesmo estando em “acordo” com o vigário, assumem o papel de
organizadores desse ritual.
35
Em sua maioria as igrejas eram dirigidas pelas irmandades religiosas e padres
missionários que pregavam “missões” onde realizavam os sacramentos como casamentos,
batizados e festas de padroeiros, sendo estes os poucos momentos que uma instrução
catequética profícua de acordo com a doutrina oficial da Igreja era possibilitada.
A prática de um catolicismo paroquial estava na maior parte do tempo relacionada a
vida urbana. Desse modo as irmandades e confrarias religiosas possuíam um caráter de
sociabilidade que ajudava na manutenção de práticas devocionais que na maioria das vezes
não eram assistidas por clérigos e possuíam uma certa autonomia em relação as práticas
litúrgicas do catolicismo oficial, como vimos anteriormente tanto na semana santa, como
nas peregrinações e romarias mesmo existindo a tutela do clero acontece um protagonismo
por parte daqueles que organizam tais atos, demonstrando que outras práticas ganhavam
espaço e aconteciam.
Consequentemente no cristianismo brasileiro práticas como a reza do terço, as
peregrinações e romarias, os compadrios em festas de São João, as excelências e ofícios
devocionais foram sendo estabelecidas nas tradições domésticas e algumas expandidas para
tradições locais ou regionais, buscando elementos e características próprias do lugar tais
como: a natureza, as relações de trabalho, as festas, os funerais, os nascimentos e os tempos
ligados ao calendário oficial católico. As devoções têm a sua marca na transmissão oral e
hereditária sempre se reafirmando através da língua local. “ Palavras e imagens são formas
de representação do mundo que constituem o imaginário”. (PESAVENTO, 2012, p.57)
Assertivamente o conjunto de representações distinguiria o simbólico e o
imaginário. O imaginário social é cada vez menos considerado como uma espécie de
ornamento de uma vida material destacada como a única “real”, ou seja, o imaginário é
reforçado através das representações simbólicas materiais. Materialidade esta que não
podemos delimitar quando tratamos da prática religiosa, pois está prática possibilita uma
experiência de transcendência ou mística que evoca sentimentos e abstrações que mesmo
sendo para resolver questões da vida material estimulam elementos do sobrenatural que
fazem parte do imaginário.
Podemos considerar que o imaginário se mostra um fator preponderante de mudança
a cada época, a cada crise individual ou social que faz com que o devoto intensifique a sua
prática, em um primeiro momento para pedir e no segundo momento para reclamar ou
36
receber a graça alcançada, fazendo com que o mesmo através do imaginário possa assimilar
ou integrar em suas determinações como algo corriqueiro. As escolhas de soluções para os
problemas que os devotos apresentam ao santo ou santa de devoção partem da solução
normal para a mística, transferindo essa resolução no imaginário para o divino.
Para Baczko:
“Sendo todas as escolhas sociais resultantes de experiências e
expectativas, de saberes e normas, de informações e valores, os agentes
sociais procuram, sobretudo em situações de crise e conflito graves,
apagar as incertezas que essas escolhas necessariamente comportam. É
assim que estas escolhas são muitas vezes imaginadas como as únicas
possíveis e mesmo como impostas por um destino inelutável. Uma das
funções dos imaginários sociais consiste na organização e controle do
tempo coletivo no plano simbólico. ” (1985, p.312)
Em outras palavras a prática devocional que parte dos imaginários sociais através de
seus reflexos simbólicos vai alcançando popularidade, ou seja, é uma prática religiosa que
se torna popular, sua popularidade está presente na forma como é divulgada e exercitada.
O simbolismo acrescenta um novo valor a um objeto ou uma ação,
sem por isso prejudicar seus valores próprios e imediatos. Aplicado a um
objeto ou uma ação, o simbolismo os torna “abertos”. O pensamento
simbólico faz explodir a realidade imediata, mas sem diminuí-la ou
desvalorizá-la; na sua perspectiva, o universo não é fechado, nenhum
objeto é isolado em sua própria existencial idade: tudo permanece junto,
através de um sistema precioso de correspondências e assimilações.
(ELIADE, 1991, p.178)
A maior parte dos rituais religiosos do catolicismo estão ligadas a figura simbólica
do clérigo e por ele são dirigidas, a alternativa da prática devocional ocasiona um outro
simbolismo é uma ligação direta com o divino sem necessidade do intermédio entre o
devoto e o santo.
De acordo com Hoornaert:
A influência da “devotio moderna” foi corrosiva em relação à ordem
hierárquica do cristianismo e por isso o movimento não foi bem visto em
Roma pelas autoridades eclesiásticas. Diante da repercussão da “devotio”
por toda a Europa elas não tiveram muito o que fazer senão esperar o
momento oportuno para revirar o quadro, o que aconteceu com o
paroxismo do protestantismo no século 16, que paradoxalmente ofereceu a
hierarquia as oportunidades para rearticular o projeto clerical. Nos séculos
14 e 15contudo houve uma aspiração crescente no corpo social cristão –
ocidental no sentido de se desclericalizar a vida cristã em geral e relegar as
distinções hierárquicas a um nível puramente operacional, esvaziando as
considerações pretensamente teológicas acerca da distinção entre
37
sacerdote e cristão comum. Na devoção toda eram afinal de contas
igualados diante dos santos e da tarefa de se santificar. (1991, p.65)
Conforme já destacamos a utilização do adjetivo “ popular” se refere a povo, ou
seja, uma prática que adquire popularidade. Portanto a devoção popular estaria ligada a um
culto aberto daqueles que dialogam com o catolicismo oficial e que lhe oferecem um novo
significado a partir de suas vivências cotidianas com distanciamentos do meio clerical. A
devoção popular pode ser relacionada ao conceito de cultura popular. A despeito disso,
Chartier (1995) afirma que:
Compreender a "cultura popular " significa, então, situar neste
espaço de enfrentamentos as relações que unem dois conjuntos de
dispositivos: de um lado, os mecanismos da dominação simbólica, cujo
objetivo é tomar aceitáveis, pelos próprios dominados, as representações e
os modos de consumo que, precisamente, qualificam (ou antes
desqualificam) sua cultura como inferior e ilegítima, e, de outro lado, as
lógicas específicas em funcionamento nos usos e nos modos de apropriação do que é imposto.(p.184185)
Para Boff (2006) “não existe piedade popular18 que não integre de fato uma
dimensão sociopolítica”, ou seja, a propagação da devoção seja de forma doméstica ou em
pequenos grupos é uma maneira política de questionar o papel dos clérigos nas funções que
lhes são socialmente determinadas. A construção de um pensamento religioso
desclericalizado, ou seja, com distanciamento dos clérigos não pode ser caracterizado
apenas uma necessidade ligada a subversões das questões hierárquicas. A Europa Moderna
vivia um processo de reestruturação da vida social quando as devoções começaram a se
popularizar.
O crescimento das cidades, a descoberta do novo mundo e a expansão do
protestantismo são fatores que levam a questionar a autoridade institucional do clero e
possibilitam o aumento de práticas representativas que reforçam a “igualdade” de clérigos e
não clérigos, em busca de objetivos relacionados a prática devocional que exercitam.
Acima de tudo é necessário pontuar que muitas das devoções se popularizam também
através de clérigos, aos poucos muitos foram se aproximando destas práticas. As ordens
religiosas que vieram para a América portuguesa trouxeram junto consigo inúmeras
invocações devocionais que possibilitaram uma imersão no processo catequético de um
“devocionismo”, abrindo brechas para uma rápida expansão de um catolicismo leigo
18 Conforme Hoornaert: “ Catolicismo vivido pelos pobres em geral”. (HOORNAERT,1974, p.98)
38
marcado pelas popularizações que persistem até os dias atuais com as invocações diversas
de santos e santas propagadas principalmente nos locais onde a presença de clérigos foi
quase inexistente.
A lógica do funcionamento da Igreja, a prática sacerdotal e, ao mesmo
tempo, a forma e o conteúdo da mensagem que ela impõe e inculca, são a
resultante da ação conjugada de coerções internas, inerentes ao
funcionamento de uma burocracia que reivindica com êxito mais ou
menos total do monopólio do exercício legítimo do poder religioso sobre
os leigos e da gestão de bens e salvação, e de forças externas que assumem
pesos desiguais de acordo com a conjuntura histórica. As coerções
internas surgem como imperativo da economia de carisma que deseja
confiar o exercício do sacerdócio, atividade necessariamente “banal” por
ser cotidiana e repetitiva, a funcionários intercambiáveis do culto e
dotados de uma qualificação profissional homogênea adquirida por um
processo de aprendizagem específica, e aparelhados com instrumentos
homogêneos capazes de possibilitar uma ação homogênea e homogeneizante (BOURDIEU, 2011, p. 65-66).
O processo de expansão do catolicismo devocional acontece concomitantemente
com a expansão do catolicismo nas terras além mar. Na América portuguesa a influência
do catolicismo devocional se torna muito forte principalmente com a fundação do Colégio
de Piratini pelos religiosos jesuítas em 25 de janeiro de 1554.
39
1.1. O catolicismo devocional das minas ao ciclo paulista
A propagação de um catolicismo devocional entre as regiões das minas acontece de
maneira tão forte no final do século XVII tornando propicias uma sequência de
manifestações ligadas a expressões artísticas como o “barroco” que vai caracterizar este
período da história brasileira.
Figura 1- Mapa da região das minas e sudeste (1707)
O mapa acima, reproduzido a partir de um mapa de 1707 nos ajuda a observar a
região de conjuntura histórica da devoção popular que propomos analisar. Importante eixo
de ligação entre a sede governamental do Rio de Janeiro e a chamada região das minas
podemos entender que esse trajeto é privilegiado, pois, é através dele que o abastecimento
dessa mesma região é proporcionado, incentivando o aparecimento de vilarejos, hoje
40
constituídos em cidades. Um ponto importante é entendermos que a proibição do
estabelecimento de ordens religiosas nestas regiões acontece justamente como uma forma
de prevenção da apropriação desses mesmos grupos como instituições de terras que
poderiam vir a ser encontrados veios de mineração. Fator que devemos considerar, dado a
influência da Igreja na formação da América portuguesa, como aliada a coroa no processo
educacional através da catequese.
Eventualmente a presença da Igreja como mantenedora do processo educacional e
catequético na América portuguesa estava atrelada as necessidades do processo
colonizador. A formação catequética da Igreja no ciclo paulista se torna muito eficaz e
produtiva com a utilização das devoções como método de instrução e propagação da fé
católica entre as classes que formavam.
Tão grande é a influência do cristianismo devocional na formação do
Brasil que podemos falar em duas forças sociais que modelaram o modo
de pensar do brasileiro em termos de religião: a força da instituição oficial
(a missão) e a força da devoção. Por onde a instituição oficial construiu
igreja s e catedrais, conventos e mosteiros, a devoção construiu uma
multiplicidade de santuários que vão desde os santuários domésticos
(oratórios) até os centros de romaria que até hoje congregam milhares e
milhares de devotos por ocasião das festas anuais. (HOORNAERT, 1991,
p.67)
De fato, a construção de um catolicismo devocional na região paulista e na região
das minas está ligada a representação do sagrado nas festas populares que muitas vezes
precediam ou aconteciam juntamente com as solenidades religiosas19, a maior parte dessas
festas preservavam uma estrutura de classes e algumas tentativas catequéticas por parte da
Igreja.
Conforme pontuamos é exatamente no final do século XVII que as práticas
devocionais vão adquirir um caráter público e social de formas diferenciadas. A grande
proliferação de construção das igrejas com invocações devocionais diversificadas atreladas
ao aparecimento de inúmeros altares nas naves laterais das mesmas que passam a ser
dedicados a inúmeros santos e santas oriundos das invocações domésticas propõem novas
formas sociais de relacionar o espaço público, de maneira que as ações religiosas começam
a ser reinventadas.
19 In: JANCSÓ, István; KANTOR, Iris, org. Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Hucitec:
EDUSP: FAPESP: Imprensa Oficial, 2001. 2v.
41
Boff (2006) salienta que as principais características da devoção popular são: “
sentimento, exuberância, expressividade, vitalidade e caráter maravilhoso”. Segundo a
doutrina católica, a devoção é um "culto privado (pessoal ou comunitário)", centrado no ato
de entrega ou consagração de si próprio ou da comunidade" ao amor de Deus (e, por
extensão, ao das pessoas divinas, aos santos" e à Virgem Maria).
No século XVIII a grande proliferação de irmandades e confrarias reunindo
diversos grupos em sociedades de devoção podem ser consideradas a melhor forma de
expressão comunitária de algumas devoções, desta forma a expansão do catolicismo
devocional na região das minas e no planalto paulista se torna não apenas uma prática
religiosa e sim uma prática de sociabilidade que garantia uma assistência para a alma do
devoto desde a sua existência terrena até a sua morte que era assistida obrigatoriamente
por todos os membros da irmandade.
“Em termos sociais, irmandades e confrarias possibilitaram a
organização e expressão de livres, libertos e escravos selecionando
membros, definindo regimentos e funções, fornecendo emblemas,
construindo espaços e estabelecendo tempos de festas e liturgias
claramente identificadas. ” (LONDOÑO,2001, p.14)
A grande expansão das irmandades e confrarias demonstram a necessidade de
orientar os devotos nas suas práticas devocionais proporcionando aos mesmo uma
identificação com os santos assistidos em cada uma delas. As irmandades se reuniam em
torno de uma mesa organizativa que era eleita na época de festa de seu santo homenageado,
essa mesa era responsável pela organização dos rituais e das festas ligadas ao santo
padroeiro e na manutenção das igrejas que construíam ou tomavam sob sua tutela.
Num pequeno periódico que circulou no Vale do Paraíba, na segunda metade do
século XIX, é comum encontramos notas como a transcrição a seguir:
Irmandade do S. Sacramento
O procurador abaixo assignado roga aos Irmãos do apostolado que
venhão pagar a sua joia anual. Já vencida na forma do art. 13 do
compromisso, que reza o seguinte: Os irmãos do apostolado d’um e outro
sexo são obrigados: A pagar cada um a jóia anual de 20$000, pela festa
do natal. Guaratinguetá, 8 de Fevereiro de 1878. O Procurador Antonieto
Theodosio de Faria Couto. (Jornal “ O Parahyba”, Nº 741,17-03-1878)
O jornal que tem edição assinada por Ismael Mafra, se declara um “órgão
conservador”, na edição referida trouxe em suas notas de última página a publicação acima.
42
O que poderia caracterizar as irmandades é a colaboração coletiva para a manutenção do
culto e dos prédios administrados pelas mesmas. Qual seria a relação dos membros dessas
irmandades com o culto religioso de fato?
Durante o ciclo do ouro na região das Minas (1700-1750) as presenças das
irmandades religiosas substituem o trabalho de clérigos e membros oficiais da Igreja, de
fato, aconteceu uma política de proibição da presença de ordens religiosas tradicionais na
região das minas tais como jesuítas, franciscanos, carmelitas, mercedários entre outras
ordens religiosas não podiam adquirir terras nesta região.
Neste espaço a presença das irmandades torna-se uma alternativa para a
implementação de práticas devocionais estruturadas principalmente pelos grupos religiosos
oficiais. Esse afastamento proporciona então uma expansão de catolicismo promovida por
pessoas que não estavam diretamente ligadas a um estado clerical. É durante este período
que a devoção a Nossa Senhora Aparecida começa a ganhar destaque no Vale do Paraíba
paulista:
Em meados do século XVIII, época do ciclo do ouro, a velha capela de
Aparecida torna-se uma referência oficial de peregrinações locais.
Guaratinguetá unia duas rotas fundamentais daquele período: a rota do
ouro e a rota das tropas de integração. A cidade interligava as terras
meridionais, além das terras paulistas, ao Rio de Janeiro, promovido em
1763 à sede colonial. (OLIVEIRA,2001, p.51)
Para Hoonaert (1974) é preciso lembrar que o catolicismo se propagou no Brasil
principalmente pelos leigos, pessoas que não eram ligadas à instituição eclesiástica. A
construção de um catolicismo devocional pode ser associada exatamente na forma como
ele se expandiu principalmente nas regiões que concentravam as principais relações
econômicas do período.
Os grupos sociais de acordo com as suas classes passam a serem organizados pelas
irmandades a quais são membros, sejam com devoções a santos negros como São Benedito
ou a Nossa Senhora do Rosário que reuniam escravos e forros ou a santos como São
Francisco, devoções ao santíssimo Sacramento a invocações diferentes da virgem Maria ou
ao Cristo relacionadas a sua paixão e morte.
De acordo com Dorado (1985) “ a teologia popular é o resultado de um processo de
assimilação da fé por uma pessoa ou por uma coletividade, no qual podemos distinguir dois
43
momentos ou dois níveis: um histórico e outro sociocultural”, ou seja, como já citamos o
sentido devocional é conduzido pelo momento histórico que o devoto se encontra inserido
podendo proporcionar uma tensão composta por tradição, oposição ou mediação em
relação a crença popular ou a crença oficial proposta pela Igreja.
As propagações feitas pelas irmandades das devoções ligadas ao cotidiano do
mundo terreno se tornam uma possibilidade de institucionalização e reconhecimento social
das invocações popularizadas entre grupos. As maiores influências dessas práticas podem
ser percebidas na forma como as expressões culturais ocasionam o surgimento de um
calendário litúrgico de festas que dão um novo significado as festas oficiais propostas pela
Igreja.
As festas que se estendiam de modo significativo nas cidades coloniais não eram
compostas apenas de missas, terços e procissões, muitas dessas celebrações estavam
organizadas em torno de danças e folguedos que homenageavam o patrono da irmandade e
misturavam elementos sociais das camadas diversas que compunham as mesmas.
As danças em louvor a São Gonçalo, as congadas em louvor a São Benedito
ilustram como as celebrações religiosas se tornam espaço de sociabilidade entre esses
grupos. Sobre a festa de São Benedito que ocorreria nas regiões do distrito de Aparecida
em 1924, o jornal “Liberdade”, publicou:
Realisa-se amanhã a festa de S.Benedicto em sua cappela. Hoje à
tarde já haverá reza solemne seguida de leilões de prendas. Amanhã
haverá missa cantada e sermão às 10 horas, procissão de tarde, à entrada
da qual haverá reza. A noite haverá de novo leilão de prendas, findo o
qual será queimada uma artística armação de fogos. O sr. José Fructuoso
Arantes Silva e a Sra. D. Palmyra Guedes, encarregados da festa no
corrente anno não tem poupado esforços para que a mesma tenha o
máximo de brilho possível. (Nº 6, Apparecida 20 de abril de 1924)
Os rituais reinventam os espaços sociais e o calendário religioso oficial. Impondo
um diálogo entre o sagrado e o profano no cotidiano. A nota acima mostra como a festa
religiosa estava caracterizada com práticas de sociabilidade e entretenimento: leilão e
queima de fogos. O elogio feito ao casal de festeiros pelo jornal nos dá indícios de que
ambos ocupam um lugar social de destaque pela organização da festas que movimentava
também a renda econômica das irmandades e da igreja do lugar.
Ao referir-se a tal assunto Dias considera que:
44
As procissões, e demais festas religiosas, que movimentavam o
cotidiano colonial, em algumas ocasiões, a depender de sua grandiosidade,
além do aspecto devocional, funcionavam também para movimentar a
economia local, fazendo circular dinheiro a partir de sua execução pois
envolvia o pagamento pela participação dos oficiais câmara, religiosos,
músicos, pessoas que se contratavam para levarem os carros alegóricos,
além dos ornamentos, entre outros. (2010, p.110)
O calendário religioso era assistido pelas irmandades que acrescentavam as
celebrações oficiais da igreja um modo de homenagear o santo protetor com elementos
místicos de cada região ou grupo social. As festas que marcam profundamente os períodos
de encontros sociais são oportunidades para que a presença social dos grupos não clericais
fosse reafirmada perante a instituição.20
Eram as irmandades que contratavam os padres para presidirem as suas celebrações
religiosas da melhor forma que lhes fora cabido. Essas atitudes provocam uma tensão
frequente entre clérigos e leigos.
Para Rodrigues (2005) a irmandade surge então como centro difusor de uma
identidade do “nosso” em função de um santo. Ponto intermediário entre o devoto e a
sensibilidade de sentir-se parte de algum grupo (p.49).
Consideremos então que as irmandades que propagavam e alimentavam devoções
estavam concentradas em uma nova perspectiva de ideia cristã, diferente da proposta pela
maior parte do clero. Essas devoções traziam elementos que oficialmente a Igreja não
conseguia alcançar na sua liturgia oficial tais como: a resistência a situações diversificadas
no mundo do trabalho ou resignação diante das mesmas.
Ao tratar das relações sociais no contexto da religiosidade brasileira Hoornaert
(1974) observa que “a devoção frequentemente é marginalizada socialmente, mas
eclesialmente ela pode apresentar documentos de veracidade insuspeita. Ela construiu um
legítimo modelo eclesial. ” (p.67)
A interiorização de elementos simbólicos ligada aos rituais, demonstra como a
devoção possibilita marcas até mesmo no espaço geográfico. É o caso do cruzeiro erguido
na região do distrito de Aparecida – SP utilizado como caminho de sacrifício para
20 Cf: SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: Identidade Étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
45
meditação da paixão de Cristo. Sobre o ritual de inauguração do cruzeiro o jornal lança a
seguinte nota:
Com grande concurrencia de povo efetuaram-se no domingo passado a
transladação e a erecção do grande cruzeiro no morro circunvizinho a esta
localidade. O acto foi abrilhantado pela banda de música “Aurora
Apparecidense e após as cerimônias o snr. Professor Amador de Lima
Junior fez um discurso alusivo ao acto.(1925, ed. 75 )
A participação da banda de música e a caminhada que leva o cruzeiro até o lugar em
que vai ser plantado, reforça a prática simbólica de sacrifico que discutimos no parágrafo
anterior, é essa mesma prática que é reforçada nas celebrações da semana santa.
Um outro fator importante é que as irmandades interiorizavam aspectos sociais da
necessidade humana, seja nos autos da paixão realizados durante a semana santa ou nas
procissões rogativas em que se pedia ao santo uma proteção particular contra pestes,
epidemias ou grandes secas fica evidente a imbricação de misticismos que possuem um
caráter social.
Uma publicação feita no jornal “Liberdade”, narra as celebrações da Semana Santa
em 1925:
Na Basílica de Nossa Senhora essas comemorações realizar-se-ão de
toda pompa de liturgia. Hoje haverá missa solene com distribuição das
palmas e tarde sahíra a tocante procissão dos passos, dando-se o encontro
no largo de São Benedicto. [...] Quarta feira- Ofício solene das trevas as
seis horas da tarde. Quinta feira- missa solene as 8 ½ horas com comunhão
geral em seguida procissão do Santíssimo Sacramento. [...] Sexta feira –
Sermão da Paixão as 8 horas havendo em seguida a missa dos
prossantiticados e demais solenidade próprias [...] as 5 horas entrará o
oficio das trevas e logo mais saíra, a procissão do enterro que percorrerá o
itinerário do costume. A entrada da procissão haverá o sermão da
solenidade. Sábado- A’s 7 horas bençam do fogo e do círio paschoal [...]
a’s 6 horas da tarde, officio solene da Ressureição e coroação de Nossa
Senhora [...] ( 05-05-1925)
As celebrações que aparecem no programa publicado pelo jornal, mostram como os
ritos oficiais litúrgicos da Igreja dividem espaço com os rituais da tradição popular em
celebrar a mesma semana, os “ofícios” chamados das trevas é fruto dos exercícios ligados a
irmandade da boa morte ou a procissão das trevas, onde é oportunidade para se fazer
memória da prisão de Jesus, a chamada procissão do foguetório, realizada em muitas
cidades na noite de quarta-feira da semana santa. Além dos ofícios mesmo com a pregação
do sermão feita por membros do clero a procissão do Senhor dos Passos e a do Senhor
morto assinalam o espaço da cultura popular presente nesta cerimônia. E por último a
46
coroação da imagem de Nossa Senhora que credita a figura da mesma como participante da
paixão e sofrimento do filho.
Convém lembrar que no caráter particular as devoções também sobreviviam sejam
nos benzimentos e rezas transmitidos de uma geração a outra ou até mesmo através das
imagens de santos que eram guardadas e conservadas como herança de família.
Considerando então um “catolicismo de muito terço e pouca missa”.
Conforme Dominique:
Entram a título de elementos no corte que uma análise histórica ou
sociológica opera realçando as unidades que considera pertinentes em
relação ao modelo interpretativo que se atribui. O que interessa ao
operador não é o estatuto da verdade dos enunciados religiosos que estuda,
mas as relações que esses enunciados mantêm com o tipo de sociedade ou
de cultura que os explicam. (1982, p. 160)
Um outro momento em que a devoção popular aparece muito forte são nos funerais e
rezas de encomendas. A crença de não ser assistido na hora da morte e a preparação para a
mesma é uma outra característica daqueles que estavam ligados as práticas devocionais. O
papel das irmandades de assistir os membros na hora da morte estava presente em suas
constituições. Um ponto a ser destacado são as entradas nas irmandades como garantia para
ser assistido pela mesma com o funeral, a construção de igrejas e cemitérios utilizadas para
enterrar membros das irmandades foi muito comum em algumas regiões brasileiras.21
Um dos parágrafos dos estatutos da irmandade de Nossa Senhora Aparecida por
exemplo, fundada em 1752 no Vale do Paraíba informa o seguinte: “ Os irmãos vestirão
Opas brancas e com elas assistirão as funções e acompanharão os irmãos defuntos, em duas
alas e o irmão que faltar sem motivo, será condenado a pagar dois vinténs a irmandade”22.
O compromisso com a ritualização da morte é destacado dentro dos Treze parágrafos
que constituem a formação da irmandade aprovada pelo Bispo de São Paulo no período,
Dom Frei Antonio da Madre de Deus, que advertia a necessidade de se conservar
inviolavelmente os compromissos que constam neste estatuto que foi deliberado em vinte e
cinco de setembro de 1756 pelo próprio bispo.
21 Retomamos aqui a seguinte discussão sobre os diversos fatores da falta de assistência religiosa de padres e clérigos na
formação do catolicismo brasileiro: “No Brasil rural a assistência paroquial era dificultada pela distância, pela própria
ausência de padres e sobretudo pela população a ser assistida [..] Fora da intermediação dos padres, desenvolviam-se
relações mais diretas com o divino [...] Reis, João José. O cotidiano da Morte no Brasil oitocentista. In: Alencastro, Luiz
Felipe (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das letras, 1997. 22 Cf. Estatuto da Irmandade de Nossa Senhora Aparecida In: MACHADO, P. Aparecida na História e na Literatura.
Campinas: Ed, do autor. 1975, p.209-211.
47
Culturalmente podemos destacar algumas formas de devoções presentes no ciclo
paulista e na região das minas: forte ligação aos santos protetores demonstradas através de
rezas e festas religiosas, pouca ou quase nula ligação com os clérigos das liturgias oficiais
católicas, celebrações ligadas aos períodos sagrados do calendário religioso oficial como
Natal e Semana Santa, uma constante preocupação com os ritos funerários ( desde a
participação nos funerais até a relação pós morte) e uma profunda reverencia a imagens e
objetos sacros.
As sensibilidades que surgem em relação aos rituais muitas vezes necessários para a
sobrevivência brotam no sentido que o devoto expressa na sua relação com os santos. O
mundo sobrenatural, a fragilidade da vida e o medo de morrer sem ser assistido
devidamente eram expressados através das festas e rituais religiosos.
De acordo com Grossi (1999) “nas Minas, muitas pessoas transitavam entre forças
divinas e malignas, como se a distinção entre elas desaparecesse por instantes. Buscava-se o
sobrenatural que fosse mais eficiente para a resolução do problema que afligia a alma ou o
corpo”.
A utilização de diversas imagens, relíquias e objetos no catolicismo popular ilustram
como a crença e a necessidade de proteção andavam juntas. A devoção popular assume uma
espécie de enfrentamento em relação ao poder oficial e ao poder maligno espiritual mesmo
que de forma inconsciente. Através de uma nova leitura sobre estes desafios um novo
imaginário de catolicismo pode ir sendo percebido no Brasil.
Da mesma forma que as devoções populares interiorizam práticas individuais elas
possuem uma essência renovada das práticas comunitárias, afinal de contas a maior parte das
suas expressões não são realizadas individualmente: as peregrinações, as romarias, as
procissões e festas extrapolam o culto privado e fomentam a ocupação de espaços sociais
diversificados.
Só percebemos da piedade popular restos frequentemente inorgânicos
cujas formas superpostas ou deformadas no curso dos séculos não permite
uma interpretação imediata: no lugar do objetivismo tranquilo dos
folcloristas do passado, que coligiam dados, somos obrigados a colocar a
interrogação que nos dirigem essas “índias do interior”, sem por isso
pretender apagar a história da repressão. (p.114)
Portanto, o catolicismo popular, suas manifestações culturais expressas em devoções
possuem uma origem mítica ligada ao mundo rural, devido à pouca assistência religiosa
48
proporcionada pelos membros oficiais da Igreja ( padres e bispos), deste modo as tradições
familiares e o exercício individual baseado na experiência que humaniza e torna espontânea
com uma certa originalidade a releitura de um catolicismo oficial propagado pela Igreja
através de suas catequeses e práticas burocrática administrativas (em relação aos seus
dogmas e percepções no exercício deles).
49
1.2. Devoção popular e romanização
A devoção popular e as práticas de religiosidade do povo, sempre foram
questionadas nas múltiplas características que sintetizam elementos considerados pagãos a
ritos litúrgicos oficializados pela Igreja. O pensamento católico influenciado por elementos
culturais que fogem a normatização do culto padrão teologicamente reconhecido pela Igreja
tornou-se alvo de uma política centralizadora instituída no Século XIX através do
movimento hierárquico da administração da Igreja no Brasil como resultado do Concílio
Vaticano I (1869-1870)23.
No Brasil, com a Proclamação da República em 1889 acontece a separação oficial
entre Igreja e Estado, extinguindo o regime do Padroado24 evento que irá proporcionar uma
maior aproximação da mesma com a figura do Papa, buscando uma horizontalidade
estrutural e política. Segundo Beozzo (1993, p. 31), “se não havia mais tutela do Estado, a
Igreja do Brasil entrou em estreitas relações com Roma, sob certos aspectos, substituiu uma
tutela por outra”.
Respaldada por uma estratégia de “romanização”25 do culto, tentou apropriar-se de
elementos culturais da piedade popular encontrados no meio devocional para
institucionalizar outros modos de crença cristã que não faziam parte da sua tradição
catequética.
Podemos considerar como principal característica do movimento da romanização a
tentativa de um controle maior sobre o curso do catolicismo brasileiro, o exercício de um
catolicismo considerado cheio de excessos e sem uma coesão doutrinária ligada e sustentada
apenas nos rituais da Igreja e nas orientações dos padres era algo a ser intensamente
combatido. Para Hoonaert (1991) podemos considerar que levantes feitos pelo próprio clero
23 De acordo com a dissertação de Carlos Moisés Silva Rodrigues (2005), defendida na PUC-SP, intitulada: “ No tempo das
irmandades”: Cultura, Identidade e Resistência nas Irmandades Religiosas do Ceará (18641900), ao tratar o início da
política de Romanização iniciada pela Igreja, onde o autor considera que:
Primeiro Momento: De Pio VII a Pio IX, que corresponde a consolidação da doutrina conservadora.
Segundo Momento: Pontificado de Leão XIII, que sem abandonar a doutrinação contra o mundo moderno, deu passos
decisivos para o estabelecimento de uma política de intervenção católica na realidade concreta, de que as concordatas são o
maior exemplo.
Terceiro Momento: De Pio X a XII, a conversão da doutrina em ação política, do discurso em práxis, através dos
Programas da Ação Católica, que acabaram por gerar as contradições que levaram a convocação do Concílio Vaticano II.
(p.132) 24 Ibid. 25 In: OLIVEIRA, P.R. Religião e dominação de classe; gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1985.
50
ao buscar reformar o catolicismo brasileiro na segunda metade do século XIX que foram
chamados de “Igreja Patriótica”, ou seja, que discordava de várias orientações da política de
romanização acabaram sendo unidos aos conceitos de “religiosidade popular”, ou então
“devoções populares”. É exatamente nesta conjuntura política que o processo de
romanização se intensifica.
O processo de normatização das paróquias passa a ser intensificado. Atos como a
reorganização da vida paroquial e do protagonismo do clero se torna uma das maneiras mais
intensas de percebermos a força política que as estratégias de romanização. É exatamente o
que o aviso a seguir publicado no jornal “Parahyba” nos ajuda a compreender:
Para comodidade dos parochianos, e bôa ordem no serviço parochial, o
sacramento do baptimso seá áhora em diante administrado em todos os
domingos e dias santos, immedia’tamente depois da missa conventual, e
nos mesmos dias as 3 horas da tarde, dando-se signal, no sino meia hora
antes. – e nas quintas feiras logo depois da missa do sacramento. Fóra
destes, dias e horas, só em caso de necessidade. O vigário Benedito
Teixeira da S. Panto (20-10-1872 N 460)
O aviso acima, apesar de tentar transparecer que era uma melhoria para a vida dos
paroquianos nada mais é que apenas uma tentativa de normatização dos horários e dias em
que o vigário poderia celebrar e administrar o sacramento do batismo. O sino que é
apontado como o sinal antes da celebração de maneira sutil demonstra como é o vigário
quem avisa e define como a prática sacramental é administrada, nesta nota fica evidente a
necessidade de reafirmação do clérigo como aquele que coordena a vida religiosa local.
Ao abordar aspectos do processo de valorização do clero e da diminuição da
participação dos leigos na administração das igrejas e mesas de ordens religiosas, bem como
a busca de valorização da criação de centros educacionais onde objetivamente se buscasse
uma formação centralizada no discurso catequético da Igreja o historiador Marin considera
que:
A ofensiva romanizante teria colocado os católicos em sintonia com as
crenças e práticas romanas, homogeneizando-os doutrinariamente. Ou
seja, os leigos passaram a ocupar uma posição subalterna em relação ao
clero, perderam toda a autonomia na condução dos serviços religiosos,
tornando-se passivos, submissos e tolerados apenas em funções
secundárias e sob tutela clerical. Enfim, a romanização seria o processo
pelo qual os agentes religiosos assumiam o controle e a autoridade na
condução de todos os assuntos religiosos. Essa visão reforça a ideia de
passividade, de incapacidade política e de falta de iniciativa do laicato.
Recentemente, algumas pesquisas ressaltaram os resultados parciais da
51
Igreja em reformar a religiosidade popular, sobretudo, devido à sua
permanência e vitalidade. (MARIN,2001, p.155)
A crítica lançada pelo autor, pode ser reforçada a partir da análise das diversas
fontes que estamos propondo: encontramos sempre na imprensa notas que concentram as
funções religiosas na figura do vigário, nas fotografias que iremos analisar a imagem dos
clérigos sempre colocam os mesmos como aqueles que levam a imagem, conduzem a
procissão, ou seja, o tempo todo são eles que aparecem como mentores das práticas
religiosas. Será que de fato era isso que acontecia? E os leigos? Realmente eram apenas um
grupo sem iniciativa e com passividade? Podemos responder a essas questões quando
retomamos a hipótese da necessidade de reestruturação do clero como foco principal da
política de romanização.
A necessidade da restruturação do clero justifica o enfoque determinante da
construção de seminários e da vinda de ordens e congregações religiosas europeias para
assumirem paróquias, centros catequéticos e educandários. Observa Hoonaert (1991) que
Era necessário estabelecer em primeiro lugar a disciplina eclesiástica através dos
seminários, a fim de garantir a proficuidade do processo de purificação do catolicismo
desenvolvido no Brasil.
O processo de criação de Diocese no Brasil vai ser totalmente intensificado após o
Concílio Plenário Latino Americano (1899)26, influenciado pelas novas diretrizes do
Concílio Vaticano I que já citamos, o aumento das diocese no Brasil é justificado pela
propagação rápida da política de romanização. A busca por um “catolicismo de reta
doutrina” exigia uma maior proximidade dos clérigos com o povo e uma intensificação de
uma catequese doutrinadora e ligada aos dogmas da Igreja.
Para melhor conseguirmos visualizar esses registros podemos analisar os dados que
apontados pela tabela abaixo:
26 Origem do Concílio Plenário Latino Americano: “O Papa Leão XIII convocou esse Concílio em 25 de dezembro de 1898
com a carta apostólica Cum diuturnum1 e realizou-se em Roma, entre os meses de maio e julho de 1899. Era a primeira vez
que se reunia num Concílio particular o episcopado de toda a América Latina. O Concílio Plenário marcou uma nova fase
da Igreja Latino-americana, pois ela Podia sair então de seu isolamento devido às várias circunstâncias, e substitui-lo por
uma coesão do episcopado. Ainda que muitos, naquela ocasião, não levassem, inicialmente em consideração os resultados
do Concílio, esse foi sem dúvida, o início de um novo tempo na vida da Igreja. A Igreja no Brasil, fizera uma primeira
experiência mais intensa de colegialidade episcopal no final do século XIX. Com a questão religiosa e a publicação da
Pastoral Coletiva em 1890, ela fez essa nova experiência de colegialidade episcopal com toda a Igreja da América Latina”.
(SILVA,2008, p.65)
52
Criação de Dioceses no Brasil por Regiões, até 1930
Regiões Períodos Total
1551 1676-1677 1719-1745 1848-1854 1890-1930
Amazônia - - 1 - 8 9
Nordeste 1 2 - 1 18 22
Sudeste - 1 2 1 27 31
Sul - - - 1 9 10
Centro-Oeste - - 2 - 6 8
Total 1 3 5 3 68 80 Figura 2 - Fonte: CERIS (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais),2000.
Em uma análise estática é muito fácil perceber a diferente proporção que vai
acontecer na criação de dioceses no Brasil, de 1551 com a criação do primeiro bispado na
Bahia até 1890 o aumento de diocese no país é quase mínimo, é claro que sabemos das
questões burocráticas e econômicas que são necessárias para o funcionamento destas sedes
episcopais, além disso as intencionalidades políticas das regiões onde são criadas sedes de
bispados adquirem um destaque maior que as territorialidades regionais específicas.
De 1890 até 1930 o Brasil tem a investidura episcopal de 68 novas dioceses, ou seja,
número exageradamente maior de dioceses criadas que nos últimos 300 anos analisados.
Destas 68 dioceses foram 27 criadas na região sudeste do país, a região que propomos
analisar no início deste capítulo. Ligada aos ciclos econômicos nacionais sendo o principal
eixo de veiculação de imprensa do país, fatores que podemos elencar para o rápido
reconhecimento de diversas cidades desta região como sedes de bispados.
De maneira bem esclarecida é válido ressaltar que o aumento das Dioceses no Brasil
está inserido em um período histórico estratégico onde a Igreja Católica vai empreender
uma série de ações para a centralização de sua unidade, buscando romper com os velhos
paradigmas coloniais e monárquicos que proporcionaram um catolicismo devocional de
“muito terço e pouca missa” como também de pouca ligação com o eixo Romano, é
53
justamente no contexto do Concílio Vaticano I que é divulgada a Constituição dogmática
Pastor Aeternus, sobre o primado e infalibilidade do Papa.
A constituição foi promulgada na Quarta Sessão do Concílio, em 18 de julho de
1870, pelo papa Pio IX27. Reafirmando a importância de uma Igreja ligada e centralizada na
figura do seu maior representante, e direcionada aos ensinamentos do mesmo. As
afirmações das “obrigações” do vigário paroquial aparecem em notas publicadas pela
imprensa local na região do vale do Paraíba:
Sendo um dos deveres mais importantes do Parocho, o ensino do
catecismo, por isso de hoje em diante, em todos os domingos e dias santos,
de 5 horas da tarde, cumprirei este dever, na Igreja Matriz desta cidade.
Peço, portanto, aos srs. Pais de família, e senhores de escravos, que
mandem seus filhos, e domésticos, para nos instruíres, na doutrina christã
O vigário Benedito Teixeira da S. Panto (20-10-1872 N 460)
A nota acima, publicada no jornal “Parahyba”, no ano de 1872, ilustra de maneira
objetiva a necessidade de afirmação sobre qual era a função do pároco na igreja que era a
ele confiada. Essa informação vai ao encontro da política de centralização da doutrina que
vai ser impulsionada pelo movimento romanizador. A catequese paroquial visa de modo
particular a manutenção e ordem da doutrina da Igreja, a maneira como o vigário afirma sua
“obrigação” em transmitir a doutrina do catecismo nos leva a entender que outras instruções
aconteciam para a transmissão da fé a crianças e escravos, proporcionando uma outra
formação dentro do catolicismo. Será que essa outra formação era a catequese pela
instrução devocional? Um catecismo muito mais prático que teórico?
Consequentemente no final do Século XIX a criação da Diocese de Taubaté e a
vinda da congregação religiosa dos Missionários Redentoristas da Europa para trabalhar na
direção do santuário de Aparecida – SP, bem como a mudança no quadro político brasileiro
com a Proclamação da República ocasionará uma intensificação de práticas que buscam
romanizar a devoção popular a Nossa Senhora Aparecida.
Sobre esse período salienta Marin:
A Igreja, durante a República Velha ampliou suas pretensões de
influência sobre a sociedade civil e o Estado. Entre as reformas a serem
alcançadas, foram destacadas: a moralização e ampliação de seus quadros
27 De acordo com a consulta no texto da Constituição dogmática Pastor Aeternus. Acesso em: 17 de novembro de 2017.
Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ivatican-council/index_po.htm>
54
de pessoal, a importação de Ordens e Congregações Religiosas
estrangeiras, a fundação de seminários, a realização de alianças com as
facções oligárquicas estaduais e com o governo federal .com vistas a
garantir um acúmulo patrimonial e apoio à política expansionista), a
montagem de uma nova estrutura organizacional e devocional segundo os
moldes do catolicismo romano e a difusão de uma rede de instituições
católicas de ensino privado para cristianizar as elites, para que estas, por
sua vez, cristianizassem o povo, o Estado e a legislação. (p.153,2001)
De acordo com Neto (2206) a chegada da congregação dos missionários
redentoristas para fazerem a administração do santuário de Nossa Senhora Aparecida em 28
de outubro de 1894, foi o impulso para a projeção nacional deste mesmo santuário.
É exatamente neste mesmo ano que D. Arcoverde assume a diocese de São Paulo,
sempre transmitindo em sua atenção pastoral a necessidade de dar novo espírito aos centros
de devoção e romarias, processo que vai ser estimulado com a criação da Diocese de
Taubaté.
No início do Século XX nesta mesma conjuntura histórica em 1908 a diocese de
São Paulo é elevada à condição de arquidiocese pelo Papa Pio X, a arquidiocese de São
Paulo, centralizaria nela a administração religiosa de várias outras dioceses criadas neste
período, destacamos também que juntamente foi circunscrita na mesma data a criação da
Diocese de Taubaté que teria como abrangência de região diocesana todas as cidades do
Vale do Paraíba paulista e toda a região norte do estado de São Paulo, que seria responsável
direta pela igreja diocesana de grande fluxo devocional, o santuário de Nossa Senhora
Aparecida, reconhecido como santuário episcopal da antiga diocese de São Paulo.
A prática de uma doutrinação a partir do catolicismo romanizado começa a se
expandir. Não podemos deixar de destacar aqui aspectos políticos desta doutrinação
assumidos pelo espaço institucional como Igreja que vinha a ser reconsiderado diante do
sistema político, bem como salientar que as facilidades de comunicação com Roma
possibilitavam uma maior integração das dioceses com a figura do Papa. Partindo desta
premissa são interessantes as considerações de Foucault:
A doutrina vale sempre como sinal, a manifestação e o instrumento de
pertença previa-pertença de classe, de status social ou de raça, de
nacionalidade ou de interesse, de luta, de revolta, de resistência ou de
aceitação. A doutrina liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes
proíbe, consequentemente, todos os outros; mas ela se serve, em
contrapartida de certos tipos de enunciação para ligar indivíduos entre si e
diferenciá-los, por si mesmo, de todos os outros. A doutrina realiza uma
dupla sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos ao grupo, ao menos
virtual, os indivíduos que falam. (1996, p.43)
55
No Vale do Paraíba importante eixo de ligação econômica do sudeste brasileiro as
estratégias doutrinarias de romanização do culto tendem a se intensificar, primeiro a nível
regional com a instalação da Diocese de Taubaté e a vinda de diversas congregações
religiosas europeias para trabalhar com o ensino em várias modalidades e formar um novo
clero através de seminários e núcleos eclesiásticos.
Encerrando o período de adaptação dos redentoristas em Aparecida,
ia a situação assumindo prognósticos bastante favoráveis. Pouco a pouco
disciplinava-se o culto religioso, romanizando-o, enquanto esgrimiam com
a natural dificuldade da língua. A popularidade dos padres missionários
bávaros crescia a cada dia [...]. (NETO,2006, p.174)
Depois, com a propagação do culto a Nossa Senhora Aparecida, após ter chegado ao
conhecimento do Papa Leão XIII (1878-1903) as mudanças em relação a esta devoção
começam a serem intensificadas.
A doutrina católica é reinterpretada e contextualizada pelos homens de
maneira diferente, de acordo com os meios e circunstâncias. Por exemplo,
na religiosidade popular as crenças e práticas estão misturadas aos dogmas
mais refinados. O termo católico, compreendido como aquele que professa
a religião católica, não contempla a multiplicidade das vivências na fé dos
indivíduos, que podem transitar por outras religiões e por diferentes e
variadas apropriações da doutrina católica.(MARIN, 2001, p.149)
A intensificação de ações em relação a estrutura litúrgica do culto a Nossa Senhora
Aparecida começa a ocorrer dez anos antes da coroação oficial da imagem. As festas em
homenagem a Nossa Senhora da Conceição Aparecida inicialmente eram realizadas no
primeiro domingo de maio, mês dedicado pela tradição popular como mês de festas a
virgem Maria. Após a instituição da festa da imaculada Conceição a ser celebrada no dia 08
de dezembro conforme instrução dogmática de 1854 a festa passou a ser comemorada neste
dia, estendendo-se também ao dia 08 de setembro quando tradicionalmente a Igreja celebra
a Natividade de Nossa Senhora.
“Em 1894, o Santo Padre Leão XIII, por meio de um Decreto, incluiu a
Virgem Aparecida no calendário da diocese de São Paulo e marcou dia
próprio para a sua festa, a saber: no quinto domingo depois da Páscoa. Foi
esse o primeiro grau de glória concedido pela Igreja a Nossa Senhora
Aparecida”28.
Podemos entender que entender o processo de romanização é algo muito amplo e
que não pode ser colocado como um sistema religioso e sim um processo histórico dentro
28 Cf.: “Estrela de Aparecida”, 1897 p.45 In: MACHADO, P. Aparecida: Na História e na Literatura. Campinas: Ed. Do
autor, 1975. 20 Cf.: Nota 01.
56
de determinados interesses institucionais. Um aspecto importante é perceber como os
exercícios de devoção popular durante o mês de maio, ou seja o mês considerado
“mariano”29 vão sendo inseridos dentro da estrutura litúrgica oficial da Igreja. Para Cascudo
(2011) ninguém sabe quando começou este costume e de onde veio essa tradição que
aparece intensificada após a segunda metade do século XIX no sertão brasileiro.
Entretanto, o primeiro domingo de maio, data fixa e tradicional
continuava a atrair maior concorrência de povo, e ser preferível à data
móvel do 5º domingo da Páscoa. Obteve-se, então a transferência – como
se lê nas lições do breviário: “Leão XIII permitiu que se celebrasse a festa
da SSma. Virgem, sob o título de Aparecida, no primeiro domingo de
maio”, com o privilégio de se utilizar na celebração litúrgica os textos
próprios do Comum das festas de Nossa Senhora. (MACHADO, 1975,
p.65)
Fica evidente que a tradição popular ganhou, não foi por instrução do decreto do
papa que a festa colocada no 5º domingo do tempo pascal transferiu a tradição do povo de
festejar a Senhora Aparecida durante o Mês popularmente mariano, dado que os domingos
do tempo pascal são celebrados de acordo com a data da festa da páscoa que no catolicismo
é uma festa de data móvel ocasionando que algumas vezes essa celebração não viesse a
ocorrer no mês de maio.
Somente em 1954 foi fixada a data de 12 de outubro como data da festa litúrgica de
Nossa Senhora Aparecida, fato que está extremamente ligado a Proclamação do padroado
em 1931, ato que buscamos analisar nesta dissertação. Portanto, podemos perceber que em
nenhuma das duas datas fixadas anteriormente pela Igreja a festa vai conseguir alimentar a
piedade do povo, dado que podemos considerar a partir das inúmeras reflexões que de
algum modo vão unificar os exercícios devocionais do mês de maio ao mês de outubro, que
posteriormente será consagrado em vários lugares do pais como o mês dedicado a padroeira
do Brasil, imbricando a isto o codinome de mês do santo Rosário, exercício típico da
devoção popular mariana.
A tentativa de romanização em atos como este pode ser considerada como um “olhar
pontual” dentro de todo o processo ocorrido no Brasil podendo ser percebido como de
maior visibilidade, dado a dimensão que a prática de crença a Nossa Senhora Aparecida
acabou atingindo. Ao tratar da diversidade no processo de romanização na sociedade
brasileira Marin considera:
29 Cf.: Nota de rodapé número 01.
57
No Brasil, a romanização ocorreu de forma desigual. Essa conclusão
antecipada incita novos olhares sobre a temática, principalmente daqueles
que não concluam previamente, que a romanização teria sido sempre
vitoriosa. Novos olhares e perguntas devem ser dirigidos às regiões já
analisadas e, principalmente, àquelas onde não foram realizados estudos
pontuais. Assim, pode-se observar ou não resultados diferenciados nas
múltiplas frentes de atuação da Igreja e uma romanização burocrática,
parcial ou plena. A elaboração de uma nova síntese da romanização, no
Brasil, deve considerar as especificidades do processo em apreço em todas
as regiões brasileiras. Os confrontos da Igreja com as diferenças foram, e
ainda são, permanentes. A pretendida homogeneidade da Igreja nunca se
configurou no real. (2001, p.159)
O processo de romanização no Brasil poder ser considerado um processo de
“romanizações”, esse processo vai ser unificado em torno da imagem de Nossa Senhora
Aparecida. Somente através da tentativa de reunir os católicos em torno de um ícone
nacional haveria a possibilidade de algum êxito nesse processo. Entretanto, esse processo
rendeu um resultado contrário: através da centralização religiosa em torno da imagem de
Nossa Senhora Aparecida a devoção popular em relação a mesma cresceu e circulou mais
ainda entre os diversos campos sociais ocasionando um fortalecimento da mesma. Como
veremos no capítulo a seguir as várias tentativas de romanização deste culto não foram
capazes de descaracterizar a sua essência de devoção popular.
58
2. A SANTA “APARECIDA”: TRAJETOS DE UMA DEVOÇÃO POPULAR
Frequentemente o dia 12 de outubro de cada ano aparece em várias notícias das mídias
sociais brasileiras que destacam o caráter de uma invocação popularmente aclamada: “ Viva
Nossa Senhora Aparecida, Rainha e Padroeira do Brasil”. Desde 1980 o dia 12 de outubro é
considerado feriado Nacional30, pois, é neste dia que os devotos de todo o Brasil prestam suas
homenagens a sua “santa Padroeira”.
A ligação do povo com essa data rememora historicamente um suposto
acontecimento: o encontro da imagem de Nossa Senhora ocorrido em meados de outubro do
ano de 1717 no Rio Paraíba do Sul. É exatamente essa a narrativa oficial relatada pela Igreja
para fazer memória do encontro da imagem de 36 centímetros que se tornou um dos maiores
símbolos do catolicismo no Brasil.
Precisamos retroceder cerca de 300 anos buscando entender o significado deste dia
para o povo brasileiro. Seria muita pretensão deste texto abordar de forma criteriosa uma
história ampla que atravessa três séculos. Similarmente podemos destacar inúmeras pesquisas
com estudos diversos científicos, memorialistas e religiosos que buscam entender a origem
do culto a Nossa Senhora Aparecida31. Trabalhos que resgatam as leituras oficiais e
populares em torno do encontro da imagem.
A construção da devoção mariana32 na América latina, ou seja, a devoção a Virgem
Maria, aparece de variadas maneiras e com diversos títulos. Em cada região encontramos um
tipo de apropriação cultural de uma “Senhora” que se torna “Nossa”, ou seja, “Nossa
Senhora”, considerada protetora e benevolente para determinado povo.
Aqui no Brasil popularizou-se “Nossa Senhora Aparecida”. Vários elementos do
cotidiano e do mundo do trabalho vão sendo incorporados a ação devocional e isso faz com
que cada “Nossa Senhora” vá absorvendo algo muito peculiar daquele grupo ou irmandade
do qual “ela” passa a fazer parte. Esse fenômeno que é atualizado a cada festa do dia 12 de
outubro nos instiga a uma investigação que vai além dos significados atribuídos oficialmente
pelo catolicismo institucional.
30 Conforme a Lei Nº 6.802 de 30 de junho de 1980, decreto votado pela Congresso Nacional assinado pelo Presidente João
Figueiredo (1918 – 1999) o dia 12 de outubro tornou-se feriado nacional para culto público a Nossa Senhora Aparecida,
Padroeira do Brasil. 31 BRUSTOLONI, J. J. História Abreviada do Santuário de Aparecida. 9. ed. São Paulo: Editora Santuário, 1996.
32 Aquilo que se refere a figura da virgem maria, cf. nota nº1.
59
Consequentemente, no segundo capítulo, buscamos, problematizar a devoção a Nossa
Senhora Aparecida partindo dos relatos oficiais assumidos pela Igreja e contrapondo aspectos
da devoção popular que são citados dentre os mesmos ou se tornam mais visíveis quando
interpelados a partir de outras fontes; fazemos uma análise a contrapelo, reafirmando como
objetivo central um esboço analisando os principais passos que caracterizam esta prática
devocional brasileira e o seu relacionamento com o catolicismo institucional.
De acordo com Pesavento (2012) “ o texto do historiador tem, pois, uma pretensão a
verdade refere-se a um passado real, mas toda a estratégia narrativa de prefigurar essa
temporalidade já transcorrida envolve representação e reconstrução” (2007, p.18). Buscamos
problematizar a partir da documentação pesquisada a narrativa construída em torno da origem
desta devoção popular brasileira.
Muitos brasileiros católicos e não católicos já conhecem de longa data a história desta
“imagem milagrosa” que evoca de certa maneira a proteção da Virgem Maria, aclamada sob o
título de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, podemos dizer que a invocação a Nossa
Senhora Aparecida se tornou um dos maiores símbolos nacionais do povo brasileiro33.
Portanto, a imagem de Aparecida começa a ser associada a busca de uma identidade
nacional34 e passa a ser utilizada tanto por instituições religiosas como por instituições
políticas de certo modo, como um espelho da sociedade brasileira em diversos períodos.
A imagem de Nossa Senhora Aparecida aos poucos vai se entrelaçando com a devoção
popular e personifica uma representação de ligação entre diversas classes sociais brasileiras,
entre uma prática religiosa tradicional e popular que de alguma maneira preenche uma lacuna
do sagrado nas sociedades humanas.
Podemos questionar: De que maneira a utilização de uma imagem dentro de uma
esfera mística e ritual pode permanecer durante tantos anos? Qual é o anseio dos devotos que
mantem essa tradição? De forma evidente as questões propostas estão ligadas a uma certa
racionalidade e cientificismo que não são objetivos daqueles que buscam fundamentar as suas
relações cotidianas em práticas ritualísticas e místicas ligadas a transcendência. As práticas
religiosas são reafirmadas nos sentidos rituais, prática que na maioria das vezes exclui de seu
terreno questionamentos históricos e filosóficos.
33 Cf. Chauí, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
34Cf. ALVES, Andréa Maria Franklin De Queiroz. Pintando uma imagem Nossa Senhora Aparecida – 1931: Igreja e Estado
na construção de um símbolo nacional. (Dissertação de Mestrado). Dourados: UFGD,2005.
60
Um outro ponto que devemos considerar é a apropriação cultural que vai sendo feita
desde a América Portuguesa e a circularidade cultural das relações neste período histórico. A
presença da Igreja no Brasil vai garantir a expansão de ritos hierárquicos que propiciam a
manutenção de certa organização em espaços diversos da sociedade. Ao tratar da forma como
a Igreja se organizou para expandir-se nestas terras Azzi considera que:
A organização da Igreja no Brasil entre 1500 – 1800 era em grande parte
controlada pelo padroado, uma prerrogativa da coroa portuguesa baseada no
fato de o rei ser grão-mestre de três tradicionais ordens militares e religiosas
de Portugal: a de Cristo (a mais importante), a de São Tiago da Espada e a de
São bento, a partir de 1551. A ordem de Cristo era herdeira dos templários e
gozava de grande influência. O direito de padroado foi cedido pelo papa ao
rei português com a incumbência de promover a organização da Igreja nas
terras “descobertas”, de forma que foi por meio deste padroado que a
expansão do catolicismo foi financiada. (AZZI, 1977, p.168)
A imagem de Nossa Senhora Aparecida, e outros santos populares, aos poucos vai se
tornando um elo de ligação religiosa entre as classes populares, dado o motivo (no caso Nossa
Senhora Aparecida) ter sido encontrada por pescadores que trabalhavam nas margens do rio
Paraíba. Era apenas mais uma devoção popular frente a estrutura rígida e hierárquica que a
Igreja possuía fortemente fundamentada com o regime do Padroado. Como discutimos no
capítulo anterior são as devoções populares que proporcionam uma crença católica paralela a
crença oficial e que em muitos casos contribuem para que a crença oficial continue existindo e
fazendo parte da vida social em muitos lugares35.
Esse catolicismo popular, ou seja, que tem as suas crenças e rituais transmitidos pelo
povo não é uma forma de crença que se opõe a catequese católica mas nasce de dentro da
formação católica, por exemplo: é através da catequese que oficialmente o catolicismo vai
sendo transmitido aos membros da comunidade católica, as devoções populares proporcionam
um aprendizado catequético diferente deste modelo, pois, ao invés de transmitirem
ensinamentos em formas teóricas e dogmáticas ocasionam aprendizados que provém de ideias
práticas e simbólicas.
A catequese doutrinal parte dos documentos da Igreja e está imbricada aos textos
bíblicos e as exegeses, a catequese devocional parte da intimidade entre o devoto e o santo e é
35 In: RODRIGUES, Carlos Moisés Silva. “No tempo das irmandades”: cultura, identidade e resistências nas
irmandades religiosas do Ceará (1864-1900). Dissertação de Mestrado. São Paulo: Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo,2005.
61
transmitida de forma oral, se constitui em sua maior parte por experiências místicas práticas
como: promessas, pedidos de cura, trocas de favores, proporcionando ao devoto um
conhecimento que parte de experiências vividas36.
Ao tratar dos rituais fúnebres brasileiros realizados no século XVIII se percebe que os
mesmos passam a imitar as procissões do enterro de Cristo ou de Nossa Senhora da Boa
morte37 que estão ligadas as celebrações devocionais da semana santa principalmente nas
regiões paulista, como pontuamos anteriormente. Portanto, a procissão devocional do enterro
de Cristo realizada nas tardes das sextas feiras santas são exemplos para o devoto de como
realizar os cortejos fúnebres em suas regiões, facilitando uma catequese muito mais prática do
que teórica em relação aos ritos e cerimonias na hora da morte.
Um convite publicado no jornal “ Liberdade” do distrito de Aparecida – SP, para as
celebrações Semana Santa, diz o seguinte:
Promettem revestir-se de grande brilho as solenimnidades da semana
santa, a se realizarem na Basilica de N. Senhora. Hoje a tarde sairá a
tradicional procissão dos Passos, com o sermão do encontro e do Calvario.(
Edição Nº 5, Aparecida 13 de Abril de 1924)
O convite faz referência a procissão do Encontro, exercício tradicional da devoção
popular, onde homens se reúnem em torno da imagem de Cristo carregando a cruz e as
mulheres em torno da imagem de Nossa das Dores, em um ponto pré-determinado acontece o
chamado “encontro das imagens”, essa cerimônia não está prevista dentro das celebrações
oficiais da Igreja, e, no entanto, é uma prática que até hoje ainda pode ser encontrada em
36 O trecho seguinte é de um poema intitulado “ Promessa” publicado como um ex-voto em agradecimento a
uma cura:
“De moléstia terrível que sofria
Já tinha recorrido à toda ciência
E meu mal que ninguém bem conhecia
Lá, então, progredindo com inclemência
Desesperado sempre e abatido
Um nervoso de mim se apoderava
Já me sentia bem desiludido
Enquanto o mau estar sempre aumentava.
Quando o recurso humano é importante
E parece se vai findar a vida
Lá no céu, há um Deus onipotente
Vou pedir a Senhora Aparecida.
Quero vê-la bem perto de meus olhos
E tenho a certeza de sarar
De minha vida tirará abrolhos
E ficarei muito forte para lutar”.
Mário de Oliveira 07/02/1931. In: Machado, Padre. Aparecida na História e na Literatura. Campinas: Ed. Do
autor, 1975. 37 Cf.: REIS, João José. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.116.
62
diversos lugares pelo Brasil. Acompanhar caminhando o sofrimento de uma mãe que tem seu
filho condenado a morte é fazer memória de todos os sofrimentos que fazem parte das
trajetórias de vida dos diversos sujeitos, proporcionando uma experiência muito mais
“visível” e “representada”, do que apenas uma análise teórica catequética que está baseada em
pensamentos teológicos. Não há nenhuma narrativa bíblica que ateste a presença de Maria,
mãe de Jesus no momento em que ele carregava a cruz para o Calvário, coube a tradição
popular acrescentar esse episódio as celebrações da semana santa.
Veremos no decorrer do capítulo como ao redor da imagem de Nossa Senhora
Aparecida vão se juntar personagens diversos: pescadores em suas vilas, o clero, os
reconhecimentos políticos ligados ao Estado e a Igreja, enfim uma sequência de fatos que de
alguma maneira legitimam e propiciam diálogo entre sujeitos diferentes que proporcionaram a
expansão dessa crença pelo Brasil e pelo mundo.
A pequena imagem que hoje é aclamada como Padroeira Principal do Brasil, segundo
o decreto assinado pelo Papa Pio XI em 16 de julho de 1930 torna- se um símbolo de união
nacional e marca de certo modo o pertencimento ao catolicismo brasileiro38. A aprovação do
papa a esta devoção popular é mais um sinal da força dos fiéis com suas práticas sociais
paralelas as da Igreja e da necessidade de que a hierarquia eclesiástica fundamentada desde o
início do processo colonizador tem, em manter as expressões religiosas que brotam do povo
aliando-as a conceitos teológicos, dogmas e origens europeias e romanas de culto.
38 In: CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo:2000.
63
2.1. Origem da imagem
Para Eliade (1991) é através da ação do divino na história humana que se assegura a
validade das Imagens e dos símbolos e esta mesma história acrescenta continuamente novos
significados a estes simbolismos.39 A origem do místico está justamente na história
estabelecida pela manifestação da presença do sagrado. Na narrativa que essas imagens
carregam.
As imagens aos poucos foram se tornando para muitos povos formas de contato com o
divino, com o sobrenatural. Desde imagens pintadas em seus próprios corpos, esculturas de
pessoas ou animais, expressões da natureza ou até mesmo uma pedra ou um poste foram e são
formas daqueles que professam uma crença terem um portal para se habitarem num mundo
onde se conhece o próprio mistério.
De variadas formas, a religião tenta ligar o homem ao mistério de sua existência.
Assim também promoveu e divulgou a necessidade de ícones sagrados em seus rituais de
cura, benção ou maldição, para chegarem a este objetivo.
Pode-se afirmar que, no catolicismo o homem é marcado por ritos que vão conduzindo
o seu contato com o místico e redirecionando aspectos intrínsecos nestes pontos que são
destacados de mistério e sua relação com os mesmos. Podemos questionar: De que maneira o
contato com uma imagem dentro de um ritual pode permanecer caminho de transcendência
durante tantos séculos? Qual é o anseio dos devotos que mantém esta tradição?
As imagens religiosas só ganham um sentido a partir das narrativas que se criam em
torno delas. Os milagres, os pedidos, os agradecimentos, as rezas só são fortalecidas pelos
depoimentos que “atestam” de fato o que a imagem representa.
A narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto
exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente,
com seus gestos [...] que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito.
(BENJAMIN, 1985, p.220-1)
Aliados as narrativas estão os gestos que reforçam ainda mais o poder encontrado
nestas imagens. Dessa forma a devoção popular a Nossa Senhora Aparecida começa a assumir
39 De acordo com ELIADE (1991), um objeto qualquer torna-se paradoxalmente uma hierofania, (o que o autor
considera como manifestação mística para o crente de alguma coisa sobrenatural em algo do mundo natural), as
imagens seriam um receptáculo do sagrado, ou seja, um objeto qualquer se torna uma hierofania mesmo
participando do mundo cósmico em torno de si.
64
um caráter mais sólido que a condicionará a sua condição: de santa popular a padroeira do
Brasil.
Várias são as hipóteses e narrativas que percorrem o imaginário popular em relação a
confecção e encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição, que posteriormente foi
chamada de “Aparecida”, ou seja, a forma como ela foi encontrada lhe propiciará um título e
uma invocação. O jornal “Diário de São Paulo”, em uma publicação do ano 1954 assinala
que “ a imagem pertencia a um religioso jesuíta do início da colonização no século XVI, um
religioso que abandonou os votos professos para se casar com uma filha do cacique Tibiriça.
A imagem teria após a sua morte lançada no rio por um de seus descendentes.
Uma outra hipótese que aparece publicada em uma revista católica chamada “Ave
Maria” no ano de 1967, discorre que “ a imagem compunha o acervo de uma capela de
escravos as margens do Rio Paraíba e que a mesma vitimada por uma enchente se perdeu nas
águas”. Um outro relato registrado em 1952 nos arredores do Vale do Paraíba Paulista nos diz
o seguinte:
Nossa Senhora Aparecida era de Jacareí... Devido a uma grande enchente
no Paraíba, apareceram dois monstros. Eles estavam fazendo terríveis
estragos, derrubando barrancos e pondo em grande movimento o rio.
Amedrontada uma velhinha que morava perto do rio, tirou a imagem de
Nossa Senhora que tinha em seu oratório, colocou numa gamelinha e soltou-
a na água com fé que a imagem da santa a faria desaparecer os monstros. Os
monstros rolaram vencidos água abaixo e a santa ficou no rio!...
Há uma segunda lenda: Em Jacareí havia uma grande fazenda onde os
escravos eram tratados sem piedade. Um dos escravos, pegando do barro
escuro, modelou grotescamente uma imagem. Era uma santa escura como
ele, escravo. E de seus lábios caía dolorosamente o segredo divino da oração.
Segredo daquela alma onde sentimentos desencadeados eram respostas as
chibatadas. A oração era uma caixa arrancada da dor e da revolta. Um dia o
feitor encontrou o escravo com a imagem nas mãos. Falou para o “sinhô” e
veio o castigo: teve que joga-la no rio com as suas próprias mãos e depois
ser algemado... O rio guardou a santa para um dia mostra-la a todo o mundo.
E essas lendas correm de boca a boca. (MACHADO, 1975,p. 152)
Na tradição popular a explicação dada para os eventos sobrenaturais sempre evoca um
sentido místico ligado a realidades históricas e culturais imbricadas em cosmogonias que se
fundamentam nos mitos de origem40. Essas lendas e cosmogonias buscam aplicar correções a
40 Ao discutir a atualização constante dos símbolos e imagens dentro da prática religiosa do Cristianismo, podemos entender
que essas práticas são conhecidas como uma intervenção sobrenatural na História humana. Conforme Eliade (1991) “ Em
suma o cristão é levado a aproximar-se de todo conhecimento histórico com “medo e temor”; pois, a seus olhos, o
acontecimento histórico mais banal, mesmo continuando a ser verdadeiro (ou seja, historicamente condicionado), pode
65
relações humanas consideradas injustas ou pecadoras, ou seja, o pertencimento sobrenatural
relacionado a algo sagrado que é considerado inexplicável para o cientificismo humano. As
narrativas em torno do encontro da imagem possuem características de histórias míticas que
evocam personagens e espaços considerados sagrados na tradição popular.
Esses relatos que são encontrados nos contos populares podem enfatizar a dimensão
cultural do início do culto a Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Nos dois relatos citados
acima podemos destacar a presença de elementos que estão de alguma maneira na história
oficial narrada em relação ao encontro da imagem como o rio Paraíba e a cor escura da
mesma.
A imagem da virgem, quadro ou estátua, é fundamental na
teologia popular latino-americana. É na imagem que se faz presente a mãe e
que permite relações humanas de proximidade [...]. Na imagem se estabelece
uma certa unidade entre a pessoa representada e a imagem, de tal forma que
se originaram relações humanas com ela. A imagem se constitui na padroeira
e é especialmente milagrosa. (DORADO,1992, p..71)
Oficialmente a Igreja possui uma pesquisa científica na qual justifica a origem da
imagem encontrada no rio Paraíba. A estátua de barro cozido tem a sua confecção um tanto
incerta, a mesma tem traços marcante do barroco brasileiro e segundo algumas especulações
teria sido feita por um monge Agostiniano que viveu no Século XVII na cidade de Santana de
Parnaíba, localizada na província de São Paulo. Atribui-se ao monge Frei Agostinho de Jesus
um santeiro baiano que teve como mestre o Frei Agostinho da Piedade .41
Os santeiros eram aqueles artesãos mestres em fabricar imagens religiosas
devocionais, ou seja, tinham habilidade em esculpir imagens de santos e santas ligados a
tradição religiosa de suas regiões, produzindo o que conhecemos como arte “religiosa”. A arte
religiosa, é a arte que valoriza o sentido devocional dos exercícios populares, essa arte é muito
diferenciada da arte sacra, que é um estilo artístico de uma arte produzida a partir das
exegeses catequéticas e que tem como estratégia principal facilitar a catequese doutrinal e o
culto divino institucional do catolicismo.
A narrativa abaixo é assumida oficialmente pela Igreja como a História do encontro da
imagem de Nossa Senhora da Conceição no rio Paraíba. O que leva a Igreja a registrar e
conservar essa narrativa? Qual seria a necessidade de registrar a devoção a Nossa Senhora
esconder uma nova Intervenção de Deus na História, em todo o caso, esse acontecimento pode ter uma significação trans-
histórica, pode portar uma mensagem. (p.171) 41 In: MACHADO,P. Aparecida: Na História e na Literatura. Campinas: Ed. Do autor, 1975.
66
Aparecida dentre as inúmeras devoções existentes no Vale do Paraíba? De acordo com o
registro do livro do Tombo da Paróquia de Guaratinguetá registrado no ano de 1743 pelo
Padre José Vilela o encontro da imagem ocorreu da seguinte forma:
No ano de 1719, pouco mais ou menos, passando esta vila para as
Minas, o governador delas e de São Paulo, o Conde de Assumar, Dom Pedro
de Almeida e Portugal, foram notificados pela câmara os pescadores pra
apresentarem todo o peixe que pudessem para o dito governador. Entre
muitos foram a pescar Domingos Martins Garcia, João Alves e Felipe
Pedroso com suas canoas. E principiando a lançar suas redes no Porto de
José Correia leite, continuaram até o Porto de Itaguassu, distancia bastante, sem tirar peixe algum. (Livro do Tombo da Paróquia de Guaratinguetá p.98)
O Conde de Assumar42, aparece neste relato portando um papel de representação,
representa o poder “temporal”, ou seja, uma autoridade que oprime em razão de um cargo
governamental.
E lançando nesse Porto João Alves e sua rede de rasto, tirou o corpo da
senhora, sem cabeça: lançando mais abaixo outra vez a rede tirou a cabeça
da mesma senhora não se sabendo nunca quem ali a lançasse. Guardou o
inventor esta imagem em um tal e qual pano, e continuando a pescaria, não
tendo até então tomado peixe algum, dali por diante foi tão copiosa a
pescaria em poucos lanços, que receoso, e os companheiros de naufragarem
pelo muito peixe que tinham nas canoas, se retiraram as suas vivendas,
admirados deste sucesso. (Livro do Tombo da Paróquia de Guaratinguetá
p.98)
O relato se mostra muito objetivo e ao mesmo tempo transpõe uma experiência
mística. Fatores que vão aparecer de formas diversas: a ligação da imagem com o rio e os
pescadores (a favor da classe laboriosa), a imagem aparece sem cabeça (as mortes por
decapitação na corrida do ouro), a imagem encontrada é “enegrecida” pelas águas do Rio
Paraíba ( relação da escravidão). Sobre as narrativas culturais Burke (2008) destaca que
“oferecem pistas importantes para o mundo em que foram criadas’. Além destes elementos o
rio é elemento importante nesta história.
Os rios desde a antiguidade evocam uma ligação com o sobrenatural, na crença cristã a
água revigora e é sinal de transformação, pureza e vida. Podemos ir a tempos longínquos e
pensar como a água marca a tradição cristã desde a sua origem: o batismo de Jesus no rio
42In: BRUSTOLONI, J. J. História Abreviada do Santuário de Aparecida. 9. ed. São Paulo: Editora Santuário, 1996, pg.31-
35.
67
Jordão marca o início da sua vida pública e é utilizado na tradição crista como o “momento
em que as águas foram santificadas”.43
Podemos nos aventurar de forma mais longínqua e pensar o relato da criação que é
transmitido pelo cristianismo “ o espírito de Deus pairava sobre as águas”44, ou seja a relação
do divino que passa pela água como elemento físico que evoca misticamente a presença de
uma transcendência sagrada e religiosa.
É assim que a imagem de Nossa Senhora da Conceição aparece naquelas águas do rio
Paraíba do sul, um rio que tinha um sentido muito forte para aquela região, proporcionava
sustento através da pesca e acorria as necessidades hidrográficas daquela sociedade45.
Na tradição popular, no relato que nos é proposto e descrito acima o rio é habitado por
um monstro, ou seja, um ente sobrenatural que não pertence ao mundo cotidiano e que é
combatido pela fé na virgem Maria, quando a sua imagem é lançada sobre o mesmo. De uma
maneira ou outra o espaço do rio e a ligação com as águas reforça a ligação com o
sobrenatural, importando seja no relato oficial ou no relato popular uma relação mística.
A estatueta que surge das águas carrega em si não apenas o lado, ou a lama do rio e
sim um sentido místico, um sinal das águas que ora possuíam o espírito cosmogônico e agora
materializa algo que estaria ligado a este espírito. Isso pode estar muito ligado a oficialização
do culto dada pela Igreja. “ Esses mitemas são recorrentes nas narrativas em torno das
imagens de devoção popular e atestam o caráter diferenciado dessas imagens, dando-lhes a
legitimidade necessária para se tornarem objetos da adoração e destino das romarias e
peregrinações. ” (ABUMANSSUR, 2017, p.110)
A imagem representa algo sobrenatural que protege e oferece segurança onde não se
encontra no mundo natural. A representação seria dada pela exposição de uma imagem, que
substitui algo outro, ou mesmo pela exibição de objetos ou ainda uma performance portadora
de sentidos que remetem a determinadas ideias (PESAVENTO,2007, p. 20).
43 In: RATZINGER, J. A transmissão e as fontes da fé. In.: Communio. Vol XXIII, N° 1, 2005, pp. 29-50. 44 In: Ibid.
45 In: BRUSTOLONI, J. J. História Abreviada do Santuário de Aparecida. 9. ed. São Paulo: Editora Santuário, 1996.
68
Figura 3- Fotografia da imagem original de Nossa Senhora Aparecida, antes de ser restaurada. Fonte: CDM. Aparecida -
SP
A fotografia acima, faz parte do acervo do centro de documentação e memória do
santuário Nacional de Aparecida, é uma das poucas fotografias da imagem original
encontrada no rio Paraíba sem o manto e a coroa, de acordo com dados do arquivo essa
fotografia foi feita durante a segunda metade do século XX. A imagem nos remete a uma
imagem de Nossa Senhora da Conceição, típica devoção portuguesa presente no Brasil, nesta
fotografia ela já se encontra apoiada no pedestal de prata que lhe foi fixado para facilitar o
transporte e a conservação.
Dois elementos chamam a atenção na imagem: os cabelos que estão incompletos e o
pescoço envolto em colares. Segundo a narrativa do santuário nacional, a imagem foi
encontrada assim, parte de seu cabelo teria sido comprometido pela água e o pescoço, como é
pontuado na narrativa oficial estava quebrado, sendo a cabeça fixada com cola e os colares
um costume popular para disfarçar a emenda das partes fixadas.
A imagem de Nossa Senhora da Conceição encontrada no rio estava decapitada, a
cabeça separada do corpo, estando submersa no rio paraíba no contexto do século XVIII a
69
tradição popular vai associar essa figura de linguagem a pena de morte46 que era legitimada
neste contexto de formação do império luso-brasileiro. Misticamente a associação feita a esse
contexto histórico busca representar ou de alguma maneira identificar a violência presente nas
ações legitimadas pela estrutura governamental como uma demonstração de poder temporal
que oprime as expressões humanas de grupos sociais menos favorecidos.
Será que de fato foi a devoção popular que colocou esses colares para encobrir a
emenda entre a cabeça e o corpo da santa? E esse significado atribuído as decapitações que
ocorriam no império, pode ser considerado com uma prática de questionamento político? A
constituição da imagem e a transcrição oficial feita em torno dela já nos apontam elementos
políticos que constituem as práticas religiosas, até mesmo as práticas de devoção popular.
De acordo com Moura:
“Tem-se aqui uma metáfora densa da sociedade brasileira, que o mito nos
lega, mas num plano inconsciente. Sociedade brasileira em que a cabeça da
sociedade, jamais se funde com o corpo, sempre associadas num equilíbrio
instabilíssimo, que se complica através de segmentações sociais, culturais e
raciais cada vez mais plurais. ” (MOURA,1997, p.132)
Os pescadores passam a serem vistos como oprimidos em um contexto social pela
ordem recebida da Câmara de Guaratinguetá, uma leitura que vai ser atualizada nos discursos
e publicações feitas pelo jornal “Santuário” na década de 1930, afinal tinham que pescar e
entregar uma grande quantidade de peixes para um representante do sistema monárquico em
uma época do ano que a pesca estava difícil, ou seja, realmente buscam um milagre.
Através desta experiência social acontece um encontro que vai ser caracterizado
místico e religioso e que culturalmente vai sendo definido por interpretações diversas até se
transformar em uma “prática de devoção”, a devoção a Nossa senhora Aparecida. Ao estudar
as práticas devocionais no contexto da região das minas e depois no vale do paraíba Moura
destaca:
Já não se está mais no sertão fazendeiro, aurífero e diamantino, mas
ainda o século XVIII, num período que precede em muito o ciclo cafeeiro.
Este achado se dá numa área onde a devoção à Virgem da Conceição e a
devoção à Virgem do Rosário são fortes, marcadas estas invocações pela
segmentação de santa de rico e santa de pobre, já descrita para Minas Gerais.
As devoções 'tradicionais", isto é, aquelas originárias da tradição
iberocatólica, são expressivas numa área cultural e geográfica que não só
está povoada de fazendas escravistas (perfil que no século XIX, o café
46 Ibid.
70
acentuará ainda mais) mas onde também ocorria o trabalho do agregado,
onde as vilas mais importantes eram passagens importantes do que restava
do ouro das Minas, do algodão de Minas Novas e os outros bens que deviam
atravessar a Mantiqueira e a Serra do Mar. Refiro-me às Vilas de Hepacaré,
Guaratinguetá, Cunha e, entre outras, Paraty, já na Província do Rio de
Janeiro. (MOURA,1997, p.125)
Portanto, desde as diversas narrativas que contam o encontro da imagem até a história
assumida como oficial registrada no livro do tombo da Paróquia de Guaratinguetá existem
elementos míticos que atestam o caráter de devoção popular que podemos encontrar em torno
da mesma, possibilitando leituras e problematizações que possibilitam outras leituras além da
que é oficialmente assumida pela Igreja católica no Brasil em torno deste ícone religioso.
71
2.2. Os pescadores e os primeiros milagres
Aspectos como estes levaram a devoção e culto a imagem “ que apareceu”, daí o
codinome que a mesma ganhou “ Nossa Senhora Aparecida”, que mais tarde vai se tornar
uma invocação, fazendo menção a forma como ela foi encontrada. Consequentemente, a
pescaria milagrosa em um rio que não tinha peixes se torna o primeiro milagre atribuído a
imagem, deste modo a fama que a referida imagem era milagrosa começa a se propagar.
Ao analisar aspectos diversos, relatados em entrevistas com devotos da Padroeira do
Brasil considerados “milagres”, salienta Santos:
Essa fé na capacidade da Padroeira em prover os seus filhos traduz-se na
expectativa de receber e agradecer pelas graças alcançadas: os milagres. O
maior milagre é a manutenção da família unida. O resto é decorrência desse
milagre principal: saúde, moradia, proteção da violência urbana, manutenção
e educação dos filhos, como podemos constatar através das entrevistas.
(2011, p.16)
Os pescadores que trouxeram a imagem do rio Paraíba são familiares, fato que atesta o
caráter inicial da devoção a mesma ser uma devoção doméstica, ou seja, privada. A partir
deste culto privado surge um culto público que com os passar dos anos assume um caráter
nacional.
Os três pecadores Felipe Pedroso, Domingos Alves Garcia e João Alves seriam os
primeiros a propagarem na região do antigo morro dos coqueiros a crença na Senhora
Aparecida. Qual seria a origem desses três pescadores? Como poderíamos afirmar a existência
dos mesmos? Alguns documentos da Paróquia de Guaratinguetá conservados na Cúria
Arquidiocesana da cidade de Aparecida – SP fazem referência a existência dos mesmos47.
Outro elemento comum a esses mitos é o lugar social das pessoas a quem
a Virgem ou os santos decidem se mostrar: são sempre pessoas que vivem à
margem dos circuitos sociais mais bem estabelecidos. São pescadores,
indígenas, escravos, lenhadores, pastores. Pessoas pobres de recursos
materiais que são socorridas em suas necessidades por intervenção divina.
São os mais pobres os depositários da confiança do divino. Não é sem razão
que o divino se manifesta, em especial, para os mais carentes, pois são eles
que têm as melhores disposições para receberem esse tipo de ajuda,
considerando que dificilmente, podem contar com o auxílio da ciência, da
tecnologia ou das organizações e instituições sociais modernas e
dependentes de uma cultura tipicamente urbana. (ABUMANSSUR, 2017,
p.110-111)
47 In: MACHADO, P. Aparecida na História e na Literatura. Campinas: Ed. Do autor, 1975.
72
Por determinação dos fatores sociais que foram acontecendo em torno da imagem
esses três pescadores são os primeiros a produzir o embrião da devoção a Nossa Senhora da
Conceição Aparecida. O primeiro milagre então é testemunhado por estes três protagonistas: a
pesca milagrosa.
A figura do peixe e da pesca aparece na tradição religiosa como símbolo das origens
do cristianismo, desde as primeiras comunidades cristãs o peixe é utilizado como um
presságio de benção e partilha de alimento, reforçando a dimensão da partilha e da
solidariedade como espinha dorsal dessas comunidades. Não é à toa então que após o
aparecimento da imagem, os pescadores tendo conseguido tanta abundância de peixes façam
uma ligação com o encontro da mesma imagem retirada das águas.
Para Moura:
No Vale do Paraíba paulista, no fim do século XVIII, é encontrada por
pescadores do Rio Paraíba uma imagem da Virgem. O mito nos fala de uma
pescaria convencional em que a rede ao invés de trazer peixe traz, em
primeiro lugar, o corpo de uma imagem e, numa segunda jogada, a cabeça da
mesma imagem [...]. A nova imagem acolhida, não da superfície do mar,
como a do Rosário, mas do fundo do rio mais importante o Paraíba em
condições excepcionais, propícias à crença nos milagres, que se sucedem,
uns após outros. Ela é surgida, aparecida, sai das águas desta terra,
diferentemente das outras, passageiras que de caravelas e galeões aqui
chegam, porque já eram e estavam. (MOURA,1997, p.125)
Temos, portanto, um paralelo, a imagem que aparece nas águas vai propiciar uma
mistificação que enaltece a prática popular de culto a virgem Maria, ou seja, não se tem mais
a imagem da Nossa Senhora da Conceição trazida por colonizadores além-mar e sim é uma
Nossa Senhora desta terra, destas águas que representa o povo do Vale do rio Paraíba.Tendo
como propagadores a figura dos três pescadores a narrativa em torno do milagre atesta a
dimensão sagrada em torno da imagem.
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram
todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que
menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores
anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de
múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se
temos presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem muito que contar”, diz o
povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. (
BENJAMIM, 1994, p.204)
A narrativa que vai ser conservada até transformar-se em texto escrito destaca a
popularidade que a imagem ganhou a partir do que é contado naquela aldeia de pescadores.
73
Após o episódio da pesca “milagrosa” teria o povo acorrido a imagem e lhe dedicado sempre
orações piedosas e preces populares garantindo a mesma um agradecimento pela graça
alcançada. Neste contexto pode se observar uma devoção doméstica ligada as características
rurais daquela região que a imagem apareceu.
Um pouco depois temos o registro do segundo milagre, que seria chamado de “milagre
das velas”, episódio narrado no livro do Tombo da Paróquia de Guaratinguetá.
Em uma destas ocasiões se apagaram duas luzes de cera da terra,
repentinamente, que alumiavam a Senhora, estando a noite serena, e
querendo logo Silvana da Rocha acender as luzes apagadas também se viram
logo de repente acesas, sem intervir diligência alguma: foi este o primeiro
prodígio, e depois em outra semelhante ocasião viram muitos tremores no
nicho e altar da Senhora, que parecia cair a Senhora, e as luzes trêmulas
estando a noite serena. (Livro do tombo da Paróquia de Guaratinguetá p. 98)
O milagre das velas ocorre durante a noite e logo é entendido como um segundo
milagre oferecido pela imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, a escuridão da
noite simbolizaria as trevas do mundo que separa o ser humano do divino sendo necessário
que os devotos pudessem transmitir luz nessa escuridão. Não temos data oficial que
demonstra qual seria o período em que aconteceu o milagre descrito nesse relato.
Provavelmente este fenômeno ocorrera durante a reza do terço que se torna popular na
devoção a Nossa Senhora Aparecida.
Muitos outros casos surgem no imaginário popular: cura de uma menina cega de
nascença, um caçador salvo dos dentes de um animal feroz em plena mata fechada, uma
criança salva das águas no rio Paraíba... O próximo trecho também é retirado do livro do
Tombo e novamente reforça a presença feminina de Silvana da Rocha, que se torna uma das
protagonistas ligada aos primeiros milagres relatados.
Em outra semelhante ocasião, em uma sexta feira para o sábado ( o que
sucedeu várias vezes) juntando-se algumas pessoas para cantarem o terço,
estando a Senhora em poder de Silvana da Rocha, guardada em uma caixa
ou baú velho, ouviram dentro da casa muito estrondo, muitas pessoas, das
quais se foi dilatando a fama até que patenteando-se muitos prodígios, que a
senhora fazia, foi crescendo a fé e dilatando-se a notícia, e chegando ao
vigário José Alves Vilela, este e outros devotos lhe edificaram uma
capelinha e depois demolida esta, edificaram no lugar em que hoje está com
grandeza e fervor dos devotos, com cujas esmolas tem chegado ao estado em
que de presente está.(Livro do tombo da Paróquia de Guaratinguetá p. 98)
A Igreja sancionou e divulgou os três primeiros milagres relatados, os mesmos fizeram
parte dos inúmeros processos que serviram para oficializar esta devoção popular.Os milagres
74
que hoje são conhecidos e de alguma maneira reconhecidos pela Igreja foram: as velas que se
acenderam sozinhas durante a reza do terço na casa de Silvana da Rocha, irmã de Felipe
Pedroso. E também o cavaleiro que ficou preso no átrio da igreja em seu animal por fazer
chacota e duvidar dos milagres atribuídos a santa.
Os prodígios desta imagem foram autenticados por testemunhas que se
acham no Sumário sem sentença, e ainda continua a Senhora com seus
prodígios, acudindo à sua santa casa romeiros de partes muito distantes a
gratificar os benefícios recebidos desta senhora. (Livro do tombo da
Paróquia de Guaratinguetá p. 98)
Sem nenhuma dúvida o milagre de maior destaque é a libertação dos grilhões do
escravo Zacarias, que sendo apanhado em fuga pediu para rezar em frente a imagem em sua
capela, e teve as correntes que o prendiam arrebentadas proporcionando-lhe a liberdade. No
imaginário popular muitos milagres surgiram, pois, de acordo com Brustoloni:
Para o povo, o termo “milagre” tem um significado muito mais amplo do
que aquele da Teologia Católica. Para a gente simples, o conceito “milagre”
abrange os dons naturais provenientes da natureza ou da habilidade humana.
A chuva que cai a seu tempo, a saúde dos animais, o clima favorável, as
plantações e colheitas, uma cirurgia bem-sucedida ou uma doença debelada,
um problema pessoal ou profissional bem solucionado, tudo isso conseguido
após um pedido a Nossa Senhora Aparecida é considerado milagre pelo
povo. (BRUSTOLONI, 1998, p.57)
Os milagres estão relacionados com a intervenção imediata em problemas sociais,
desde o encontro da imagem. De acordo com o botânico Saint Hilare que passou por
Aparecida em 1822 a imagem era vista como “milagrosa” a algum tempo.
A uma légua de Guaratinguetá, passamos em frente a capela de Nossa
Senhora da Aparecida. A imagem que ali se adora, passa por milagrosa e
goza de grande reputação, não só na região como nas partes mais longínquas
do Brasil. Aqui vem ter gente: dizem, de Minas, Goiás e Bahia, cumprir
promessas feitas a Nossa Senhora Aparecida. “ (HILARE, 1954, p.66)
O estudioso que estava viajando pela Província de São Paulo, passa pelo Vale do
Paraíba e destaca o povoado “ Nossa Senhora Aparecida”, onde por causa de uma imagem de
Nossa Senhora aclamada como milagrosa acorre pessoas de outras províncias do Brasil para
cumprir promessas feitas a mesma. A dimensão que esta devoção vai tomando pode ser
observada então desde o século XVIII, caracterizando uma invocação própria do contexto
sertanejo do Vale do Paraíba. Ressaltando o caráter rural da devoção que ia se fortalecendo.
75
2.3. Edificações do culto e reconhecimentos
O Povoado de Aparecida fazia parte da Vila de Guaratinguetá e teve o seu
desmembramento a partir da estrutura de crença que foi sendo formada em torno das
homenagens e relações sociais criadas pelo motivo do aparecimento da imagem no início do
Século XVIII. As fontes oficiais e registros que existem sobre este culto e sua evolução foram
reunidas aos poucos por padres e escritores de áreas diversas48 que tinham a ideia de propagar
e guardar a crença ligada a Nossa Senhora Aparecida.
Rapidamente relatos populares em torno da imagem passaram a ser sendo transmitidos
entre diversos grupos sociais. As proporções destes relatos chamaram a atenção do Vigário de
Guaratinguetá, provocando a necessidade de uma especulação em relação aos chamados
milagres e prodígios que a imagem vinha fazendo.
Apesar de ter atravessado uma formação ligada ao cristianismo durante o
desenvolvimento da chamada região das Minas, o Vale do Paraíba não fugia a regra do
restante do país, o número de clérigos era muito pequeno e nem todas as regiões eram
assistidas com facilidade por uma Paróquia. Fatores que analisamos no capítulo anterior.
A vida social neste contexto estava toda ligada a questão religiosa, pela instituição do
Regime do Padroado no Império Ultramarino Português os padres eram em sua maioria
assalariados públicos tendo domo mecenas de financiamento a organização governamental
vigente. Os clérigos recebiam um salário oriundo do tesouro nacional, fato que imbricava
ainda mais o poder religioso ao poder político.
Os lugares de culto e abrigo da imagem de Nossa Senhora Aparecida na origem desta
devoção se perdem em relatos dispersos e anotações feitas pelo Padre Vilela, na época vigário
de Guaratinguetá no Livro Tombo da Paróquia. Nos costumes cristãos ter em sua casa
imagens de santos e santas católicos é muito comum, principalmente nas regiões das Minas
onde a arte barroca foi difundida49,neste contexto histórico a região de Guaratinguetá era um
caminho de passagem para as Minas devido a sua proximidade com as cidades que tinham
destaque nos movimentos de administração econômica e social.
48 In: MELLO E SOUZA, Laura de, org. Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997. (Col. História da Vida Privada no Brasil, v.1). 49 In: MELLO E SOUZA, Marina de. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo. Belo
Horizonte: Edit. UFMG, 2002.
76
Podemos ressaltar que a Igreja utilizava essas imagens como um instrumento
catequético principalmente para ilustrar e atingir a imaginação das pessoas proporcionado
uma manifestação mística para aqueles que não sabiam ler e escrever, ou que não falavam a
língua nativa como os africanos que aqui foram escravizados. A catequese devocional era
muito mais popularizada em todo o país do que a catequese doutrinária baseada nas perguntas
e respostas.
A imagem de Nossa Senhora Aparecida vai acompanhar a rotina dos pescadores que a
recolheram nas águas do rio Paraíba, sendo passada hereditariamente na família destes
mesmos pescadores até o reconhecimento eclesiástico do vigário de Guaratinguetá que
assumirá a responsabilidade pela mesma tempos depois. Essa trajetória de reconhecimento do
culto pela Igreja pontuaremos no próximo tópico.
Segundo Machado (1975) “ a imagem de Nossa Senhora Aparecida passou por sete
altares”, ou seja, uma referência ao número de mudanças e abrigos arquitetônicos que foi
proporcionado a estátua desde o seu encontro no Porto de Itaguaçu.
Após a descrição do encontro da imagem em 1717 se registra na continuação do relato
no livro do tombo da Paróquia de Guaratinguetá feito pelo vigário Vilela “ Felipe Pedroso
conservou esta imagem seis anos pouco mais ou menos em sua casa, junto a
Lourenço de Sá [...]” (p.44), pontua-se aqui um primeiro período de seis anos, ou seja de 1717
até 1724.
Tudo indica que a imagem permaneceu este período na casa de Felipe Pedroso na
beira do córrego chamado Lourenço de Sá onde hoje está localizada a Estação de trem na
cidade de Aparecida - SP, de acordo com os relatos oficiais apurados pelo Santuário Nacional
o pescador veio a se mudar deste local levando a imagem consigo.
Retomando ainda a continuação do relato [...] “e (Felipe Pedroso) passando para a
Ponte Alta, ali a conservou em sua casa nove anos, pouco mais ou menos [...]. ” (Pg.44), ou
seja, o período citado estaria entre os anos de 1724 até 1733.Dando sequência a trajetória
tomada pela imagem o registro prossegue:
“ Daqui se passou a morar em Itaguassú, onde deu a imagem a seu filho
Felipe Pedroso, o qual lhe fez um oratório tal e qual, e em um altar de páus
colocou a Senhora, onde todos os sábados se ajuntava a vizinhança a cantar
o terço e mais devoções. ” (MACHADO, 1975, p.44)
77
Portanto de 1733 até 1742 a imagem de Nossa Senhora voltou para a localidade onde a
mesma havia sido encontrada, já sendo procurada por pessoas da região que iam até a mesma
prestarem homenagens e cantar a oração do terço, presente na tradição religiosa popular
brasileira. Teria sido em uma destas reuniões supostamente que ocorreu o chamado “ milagre
das velas”, citado anteriormente. Essa exposição da imagem em um oratório pública enfatiza à
proporção que a devoção começa a assumir com o passar do tempo.
No ano de 1742 estando o culto a imagem de Nossa Senhora Aparecida sendo
acompanhado pelo clérigo, José Alves Vilela foi lhe construída uma Capela de Pau- a- pique e
coberta de sapé, oferecendo aos fiéis um culto público a referida imagem que já não mais
comportava apenas o culto doméstico. Uma questão importante: é exatamente o Padre José
Alves Vilela que escreve pela primeira vez em registro oficial o relato de como a imagem foi
encontrada que discutimos anteriormente. Podemos considerar este fato como o primeiro
registro de uma institucionalização dessa devoção, o reconhecimento do clero local.
Ao tratar dessa prática em relação as devoções populares, salienta Jurkevics:
Uma medida importante, nesta estratégia, foi trazer a guarda das imagens
dos santos de devoção popular para os templos paroquiais (matriz ou
capela), em substituição às ermidas e oratórios, onde as imagens eram
guardadas por leigos. Correlatamente a essa medida, ocorreu o controle das
romarias, onde ermitães foram substituídos por sacerdotes, especialmente de
congregações religiosas, pois quem tinha o controle da imagem tinha
também o controle da festa e da devoção. Isto ocorreu nos grandes centros
de romarias que passando para o controle clerical se tornaram fonte de
tensões entre as práticas de romeiros e o catolicismo romano do clero.
(JURKEVICS, 2004 pg.43)
O mesmo vigário vai pedir ao Bispo de maneira oficial, com documento datado do dia
05 de maio de 1743 a construção de uma capela para abrigar a imagem de Nossa Senhora
Aparecida, processo que vai se desenrolar até o ano de 1745, onde a Capela teve a sua
inauguração no dia 26 de julho deste ano. Que hoje é chamada de Basílica50 velha e é
localizada no Morro dos Coqueiros na cidade de Aparecida – SP.
Segundo Hoanaert:
“A transladação da Imagem do santo ou da santa da ermida ou do
santuário doméstico para a matriz simboliza esta tentativa de recuperação
50 A história etimológica da palavra basílica começa na língua grega, com um vocábulo que chegou ao latim sob a
designação de basílica (que alude a um “edifício público”). No nosso idioma, uma basílica é uma igreja que sobressai pela
sua dimensão, a sua história ou outras características especiais. In: https://conceito.de/basilica, acessado em 30 de julho de
2018.
78
por parte do poder dominante. A procissão solene anual, perpetua e renova o
começo desta recuperação. ” (p.400,1983)
O viajante Saint Hilare51 passando pela província de São Paulo no ano de 1822 deixa
registrado em seu diário de viagens uma menção da igreja de Nossa Senhora Aparecida do
morro dos coqueiros, descrevendo também a visão que se pode ter a parir da mesma.
Comparada com a igrejas visitadas por ele nas regiões das minas que possuíam a “douração”
em seus altares e várias peças em ouro o botânico vai considerar o templo uma construção
sem notoriedade.
“A igreja está construída no alto de uma colina, á extremidade de grande praça
quadrada e rodeada de casas. Tem duas torres que fazem de campanário, mas seu
interior nada apresenta de notável. O que realmente vem a ser a vista encantadora
desfrutada do alto da colina. Descortina-se região alegre, coberta de mata pouca
elevada. O Paraíba ali descreve elegantes sinuosidades, e o horizonte é limitado pela
alta cordilheira da Mantiqueira. “
Deste modo podemos destacar na origem do culto uma religiosidade muito ligada a
questões devocionais e populares que tende a se propagar nessas regiões que tinham pouco
investimento em uma catequese tradicional e confirmavam um espaço de privilégio clerical.
Sendo que o reconhecimento de crenças como o culto a Nossa Senhora Aparecida sempre se
deu de maneira paralela a ideias catequéticas propostas pelo clero ou por instituições que o
representavam, aspecto que vai se intensificar apenas no início do século XX. Para Moura:
Ainda no século XIX é construída uma capela e depois uma igreja, de
aspecto barroco na sua feição arquitetônica externa em Guaratinguetá.
Tornase o cenário específico de sua devoção. Proprietários de escravos e
escravos, comerciantes, faiscadores, agregados, tropeiros, sitiantes,
posseiros, todos acodem ao templo desta velha/nova Virgem Maria, que
ganha a altitude dos altares principais em inúmeras igrejas, e surge modesta
pequenina nas capelas rurais passando a fazer parte das algibeiras dos
viandantes. (MOURA,1997, p.125)
Alguns relatos recolhidos no início do Século XX em razão dos estudos feitos pelo
Padre Otto Maria Boehm52, missionário redentorista que de 1915-1920 reuniu e transcreveu
documentos para fazer parte do acervo do arquivo histórico da então Catedral de Aparecida -
SP. Foram recolhidos depoimentos de pessoas diversas das regiões em torno de Aparecida
que através de suas memórias relatavam fatos relacionados a história da imagem e a evolução
do culto a mesma no Vale do Paraíba.
51 In: HILARE, Augusto Saint. Segunda Viagem a província de São Paulo. São Paulo: Martins,1954.
52 De acordo com informações trazidas no livro do Padre Machado, Aparecida na História e na Literatura (1975) o Padre
Otto Maria Boehm, teria nascido na Alemanha em 1880, ordenado sacerdote em 1907 e vindo para o Brasil como
missionário redentorista.
79
O depoimento abaixo arquivado na Cúria e posteriormente publicado pelo jornal “O
Santuário” diz o seguinte:
“Os pescadores que acharam a imagem de Nossa Senhora eram do
Porto das Pedras e vieram descendo o Rio Paraíba, até que chegaram ao
Porto de Nossa Senhora, onde foi o ponto final da pescaria. Foi ali mesmo
que pescaram a cabeça da imagem. Os pescadores deram a santa a Silvana
da Rocha que morava no alto do morro dos coqueiros num casebre de sapé,
encostado numa grande árvore de graúna que servia de esteio. E nessa
árvore, a qual era ôca embaixo, Silvana colocou a dita imagem, justamente
no lugar onde se ergue o altar mor da atual igreja. Depois do estrondo que a
Imagem tinha dado várias vezes, enquanto fica guardada numa caixa,
arrumaram um altarzinho sobre o tronco ou cepo daquela árvore cortada.
Segundo uma antiga tradição está ainda guardado aquele tronco de graúna
debaixo do altar de Nossa Senhora verdade esta que alguns pedreiros que
trabalharam nas obras da Capela, confirmam como testemunhas oculares”.
(Maria Rosa de Jesus 91 anos de idade In: MACHADO,1975, p. 186)
A transferência de uma imagem doméstica para um oratório público caracteriza a
evolução de uma crença particular para uma crença pública, o que marca a sua expansão e
propagação popular tanto no viés religioso quanto nas esferas políticas que ambientam as
construções de intercâmbios culturais, o espaço que a devoção vai alcançar ultrapassa a
dimensão individual de crença “conquistar com suas próprias forças um espaço, a partir da
consciência individual, não obstante sua marginalização na vida pública” (MATOS, 1997,
p.41)
Um longo trajeto foi percorrido para que a devoção a Senhora Aparecida se tornasse
oficializada. As peregrinações e romarias em torno do Porto de Itaguaçu na região de
Guaratinguetá-SP, segundo narrativas espalharam em suas rotas prodígios e milagres. Isso
pode ser constatado no trecho abaixo:
Chegou hoje de madrugada uma numerosa romaria do Rio. No dia 9 é
esperada uma romaria de Caçapava, exclusivamente de militares. Durante
ocorrente mez são esperadas diversas romarias, procedentes de várias
cidades.53
Na época que a imagem foi encontrada por volta de 1717 a via de Guaratinguetá
possuía uma capela em seus arredores que era administrada por religiosos Mercedários54 “
53 In: JORNAL “O PARAHYBA”. Edições: Nº 460, Nº 741, Nº 963, Nº 1316.
Disponível em: http://www.jornalolince.com.br/arquivo-digital/o-parahyba/ Visitado em 03/12/2018. 54 Sobre a Ordem dos mercedários: “A Ordem Real e Militar de Nossa Senhora das Mercês da Redenção dos Cativos surgiu
através dos investimentos de São Pedro Nolasco e São Raimundo da Penaforte, com o rei Jaime I. Segundo relatos tão
antigos quanto o histórico dessa invocação, a Virgem teria aparecido em sonho para os três homens em uma mesma noite,
solicitando a intercessão pelos fiéis que se encontravam em cativeiro. Em vista disso, eles constituiriam a Ordem com votos
de castidade, obediência e pobreza. Como também deveriam proporcionar a libertação dos escravizados, desempenhariam
80
Houve em Guaratinguetá pároco desde antes de 169055... Frei João da Costa e Almeida, frade
mercedário, em 1715... supomos que no aparecimento da imagem ele ainda estava lá, pois no
elenco existente figura entre os auxiliares de 1720” ( Cf. a Igreja na Hist. De SP – Tomo 3º
pg.201).
O viajante Saint Hilare também comenta a existência de uma capela dedicada à Nossa
Senhora do Rosário na região entre a vila de Guaratinguetá e o povoado de Lorena “A cerca
de duas léguas de Nossa Senhora Aparecida, encontra-se a beira do caminho, uma capelazinha
chamada Capela do Rosário. Apenas merece que dela se faça menção. Depois de passada tal
capela veem-se muito menos casas. ”56
Entendemos então que existiam referencias do clero na vida do povo que morava
naquela região, já estava presente, possivelmente Frei João da Costa e Almeida era o pároco
no período que a imagem de Nossa Senhora Aparecida fora encontrada no Rio Paraíba. A
ligação paroquial de Guaratinguetá era com a sede episcopal do Rio de Janeiro, diocese a qual
estava subsidiada territorialmente. O bispo daquela Diocese no período era Dom Francisco de
São Jerônimo57, português da Congregação de São João evangelista.
Conforme Machado:
Mui provavelmente, tiveram conhecimento da pesca
histórica e primeiras notícias, sem lhes dar maiores atenções, os Vigários de
Guaratinguetá, antecessores do Padre Vilela que foram os religiosos
Mercedários (Ordem de Nossa Senhora da redenção dos cativos), entre os
quais figuram desde 1715 a 1720, como Vigários – Frei João da Costa e
Almeida seguido por Frei Felix Sanches Barreto até 1722 e desta data até
novembro de 1725 – Pe. Antônio Bicudo de Siqueira. (MACHADO,1975,
p.186)
Podemos entender que os padres não olharam com respectiva significância para o
fenômeno da pesca da imagem no início das transposições orais sobre o mesmo por não se
interessarem por este tipo de crendice direcionada e vivida por pessoas que não possuíam
instruções eclesiásticas ligadas diretamente a hierarquia da Igreja. No entanto existe a
assim seu fim militar. Os primeiros mercedários que chegaram ao Brasil, mais exatamente em Belém do Pará, vieram do
Peru com Pedro Teixeira em 1639.
In: TEIXEIRA, Vanessa Cerqueira. A celebração entre o sagrado e o profano: os rituais festivos da irmandade de Nossa
Senhora das Mercês de Mariana (Minas Gerais, séculos XVIII-XIX) DOI: 10.18226/22362762.v16. n.32.08
<http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis> 55In: NERY,Frederico Morato. Os primeiros episcopados do Rio de Janeiro: de D. José de Barros Alarcão a D. Frei Antônio
do Desterro Malheiros. Coletânea Rio de Janeiro Ano XIV Fascículo 28 p. 295-312 Jul./Dez. 2015 56 In: HILARE, Augusto Saint. Segunda Viagem a província de São Paulo. São Paulo: Martins,1954. 57 Ibid.
81
hipótese também que estes religiosos não tomaram conhecimento dessa prática devocional
iniciada ao redor da imagem encontrada no rio Paraíba. Apenas com a chegada do Padre José
Alves Vilela (conforme citamos anteriormente) que se deu no termino do ano de 1725
conforme registros da cúria diocesana do Rio de Janeiro.
A presença do clero vai ser sempre reafirmada com a expansão dos primeiros veículos
de comunicação no Vale do Paraíba, no relato abaixo, publicado no jornal “Liberdade”,
podemos encontrar essas referências:
Realisou se com grande solenidade no dia 11 a festa de N. Sra.
Apparecida. As 9 horas houve missa cantada, pregando ao Evangelho o
Revmo. Conego Luiz Gonzaga, cura da Sé de S. Paulo. A’ tarde sahiu
imponente procissão, que devido á chuva ameaçadora não pode fazer todo o
percurso como de costume. Afim de assistir as solenidades aqui estiveram os
Exmos. E Revmos. Srs D. Duarte Leopoldo e Silva, Arcebispo de S. Paulo e
D. José Marcondes H. de Mello, bispo de S. carlos. A concorrência de
romeiros foi bem regular, apezar de diversos factores que contribuíram para
dificultar as viagens, como as chuvas, excessivo aumento no preço das
passagens e os contínuos desastres da central.
O reconhecimento episcopal, ou seja, do bispo local, delimita o espaço que a devoção
a Nossa Senhora Aparecida vai ganhar, mesmo sendo visitada por muitos romeiros é a visita
destes clérigos ou a referência a eles em documentos oficiais e jornais que de alguma maneira
“autoriza” a crença em torno da imagem. É comum encontrarmos nos registros oficiais do
Santuário Nacional nome de clérigos que são citados como propagadores ou defensores desta
devoção. Se desde a sua origem essa devoção ganhou o reconhecimento popular qual seria o
interesse constante de membros da Igreja ligarem os seus nomes a esta devoção?
Como discutimos anteriormente a edificação da primeira capela dedicada a Nossa
Senhora Aparecida no ano de 1742 marca o reconhecimento eclesiástico para essa devoção e
pode significar a primeira forma de oficialização desse culto a partir da organização do
catolicismo brasileiro. O reconhecimento do clero local, no caso representado pela figura do
Padre José Alves Vilela representa uma instituição local de culto, o que vai ser o germe da
expansão da devoção desta crença.
Com a morte de Dom Francisco de São Jerônimo em junho de 1721 a diocese do Rio
de Janeiro permanece sem bispo, o que é chamado no contexto do catolicismo de “Sé
vacante”58, o sucessor foi o bispo Dom Antônio de Guadalupe que tomou posse do bispado no
58 Ibid.
82
dia 02 de Agosto de 1725 e ficou no cargo até o ano de 1740 quando foi transferido para
Portugal ao bispado de Vizeu onde faleceu em 31 de Agosto do mesmo ano. Foi esse bispo
quem designou o Padre José Alves Vilela como vigário da Igreja de Guaratinguetá no ano de
1725.
De maneira similar a capela de Aparecida vai transformando-se em
santuário. Acompanha as fases do ciclo do café, que enriquecia e esgotava o
Vale do paraíba, e impregna-se com marcas imponentes da Matriz do Morro
dos Coqueiros, espalhando a profética prosperidade do lugar. (OLIVEIRA,
2001, p.54)
Em consequência disso, vê-se, a todo instante uma sequência de fatores que levaram à
devoção e o culto a imagem negra de uma simples vila de Guaratinguetá a tornar-se a mais
invocada e conhecida santa de devoção mariana brasileira. Aos poucos a devoção a Senhora
“Aparecida” nome que é utilizado devido a forma como a imagem foi encontrada se
popularizou e cresceu.
Em linhas gerais, de 1745 a 1803, a capela, filial da igreja matriz de
Santo Antônio de Guaratinguetá, teve seus bens, assim como sua festa anual,
administrados pela Irmandade de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. O
atendimento religioso era realizado pelo vigário da Paróquia [...]. Em 18 de
outubro de 1800, uma resolução de D. João VI passou o santuário para
controle secular[...]. Por fim, em setembro de 18005, as esmolas bem como o
patrimônio da capela, foram oficialmente incorporados aos bens públicos,
extinguindo-se a irmandade de Nossa Senhora da Conceição Aparecida.
(NETO,2006 p.162)
Com a Proclamação da República em 1889 e o fim do regime do Padroado a
administração da igreja de Aparecida, passa a ser exclusivamente da Igreja, e não mais da
mesa administradora ligada ao poder imperial.
A Igreja reassume o poder da capela após o regime de padroado que no
Brasil Império deixava a administração do santuário em mãos laicas. Mais
tarde convoca os missionários redentoristas para nela cumprirem os
desígnios da evangelização romanizadora preconizada pelo Concílio
Vaticano I. Para mostrar seu poder de liderança, passa a disciplinar as
romarias, e na festa da coroação de Nossa Senhora como Rainha do Brasil
(50 anos depois da instituição do dogma da Imaculada Conceição em 1854),
comprova que a partir dessa obra o santuário tornara-se hegemônico,
sacralizado, centralizador, indestrutível. Fato já anunciado em 1888, na
reinauguração da Basílica do Morro dos Coqueiros. (OLIVEIRA, 2001,
p.54)
Até os dias atuais a devoção a Nossa Senhora Aparecida é muito propagada e
difundida pela Igreja Católica no Brasil, publicidade está que ainda não justifica a grande
83
quantidade de devotos que esse título mariano conquistou. O interessante é notarmos que após
os inúmeros reconhecimentos recebidos do catolicismo oficial, a devoção a Nossa Senhora
Aparecida possui exercícios de práticas de crença imbricados a devoção popular, tais como:
as promessas, os santinhos, as fitinhas, as bênçãos, as procissões, as trocas de flores. A
mesma devoção passou por vários estágios e até hoje vem sendo considerada um dos títulos
marianos59 que mais possui devotos por todo o mundo.
As festas em comemoração à santa mudaram de data diversas vezes, sendo que a data
que ficou fixada no calendário popular é justamente a realizada no segundo domingo do mês
de maio, mês que a tradição popular celebra a figura da virgem Maria. Um dos convites
publicados no jornal “Liberdade”, convida o povo para a celebração desta forma:
Realisasse amanhã na Basilica a solene festa de Nossa Senhora
Apparecida constando de missa cantada as 9 horas, com sermão, Evangelho
e procissão a tarde. Hoje e amanhã a noite haverá Leilões de prendas
promovidos pela União de Moços Catholicos. Durante os leilões serão
exibidas fitas cinematográficas.60
O convite acima demostra como a festa popular acontece no mesmo espaço que a festa
romanizada: a procissão e o leilão promovido pela União de Moços Católicos enfatizam a
participação dos leigos enquanto organizadores destas celebrações, bem como a exibição de
fitas cinematográficas reforçam a necessidade de uma catequese romanizadora, que evoca
sempre um sentido de instrução normativa. Que tipos de filmes ou mensagens teriam sido
exibidos neste evento? Qual seria de fato a intenção principal da utilização deste tipo de
recurso audiovisual?
De maneira assertiva não podemos considerar que a expansão do culto a Nossa
Senhora Aparecida tenha sido fruto dos reconhecimentos oficiais que lhes foram agraciados
pelos líderes do catolicismo brasileiro, é necessário entendermos que todo esse processo
partiu de fato das narrativas que se propagaram em torno da imagem e assumiram um caráter
devocional facilitado pelo espaço geográfico em que essas narrativas surgira, dado que como
pontuamos anteriormente o Vale do Paraíba era uma importante região de passagem que
ligava a região das minas a eixos em desenvolvimento político-industrial, como São Paulo e
Rio de Janeiro.
59 Cf.: Conforme nota 01. 60
84
No trecho abaixo, vamos encontrar uma publicação de agradecimento a Nossa Senhora
Aparecida feita nas notas do periódico “ Santuário” publicado no dia 06 de junho de 1931
com os seguintes dizeres:
Maria Conceição de Jesus estando passando mal com cólica uterina, seu
pae pediu a Nossa Senhora que encontrasse um remédio que a curasse e foi
prontamente atendido. Por promessa ela fez uma novena de terços a Nossa
Senhora, durante o mês de Maria. Enviou 1$ a Nossa Senhora e 4$ para a
publicação por duas vezes. (“SANTUÁRIO D’APPARECIDA,
Nº.30,06/06/1931, p.03)
Essa nota de agradecimento se assemelha as demais notas publicadas na sequencia na
mesma coluna do jornal, ou seja, podemos compreender que os elementos da devoção popular
são destacados de maneira eficaz dentro do próprio texto: a promessa, a cura e o cumprimento
da promessa de maneira particular e sem ligação com os ritos oficiais do catolicismo, fato que
fica evidente quando a autora destaca a novena e os terços que promoveu durante o mês de
maio como parte do agradecimento. As práticas de terços e novenas, bem como os exercícios
de devoção durante o mês de maio demonstram comoa devoção popular possui uma
característica e independência própria perante a realidade do catolicismo oficial.
Nesta perspectiva, são importantes as contribuições de Oliveira:
Não se pode atribuir a organização da mitogênese de Aparecida apenas
a administração, redentorista, uma vez que o aparelho do Estado, desde a
Velha República, manteve permanentemente interesse na afirmação da
identidade nacional proporcionada pelo culto à santa. As duas forças
conjugadas numa mesma política cultural desenvolveram essa mitogênese,
desde as primeiras romarias organizadas até a peregrinação de 1931 que
levou a própria imagem ao Rio de Janeiro, num grande ritual de consagração
ao padroado de Nossa Senhora Aparecida. (2001, p.63)
A Basílica nova, ou seja, a igreja atual que abriga a imagem de Nossa Senhora
Aparecida teve o início de sua construção com o lançamento da pedra fundamental em 10 de
setembro de 1946. Até os dias atuais a história de Nossa Senhora Aparecida que é proposta
pelos grupos religiosos pode ser resumida nos pontos principais que destacamos neste
capítulo, aliada a uma série de outras histórias de milagres e graças que continuam sendo
contadas pelos devotos que de maneira extraordinária espalham e reforçam está devoção pelo
Brasil.
Um fator importante: como citamos na introdução o Jornal aos poucos vai se tornar o
meio mais efetivo de divulgação dos documentos oficiais da Igreja, se tornando o veículo
85
principal do processo de romanização. Esse fator não impede que a devoção popular ganhe
espaço no periódico, como vemos no excerto abaixo:
Para o romeiro que chega a Aparecida, a narração da imagem
encontrada no Rio Paraíba se sobrepõe á narração elaborada pelos séculos de
mariologia ensinada nos seminários. Mesmo porque as Nossas Senhoras são
muitas, mas esta aqui é diferente. Essa tem uma história particular e uma
trajetória de milagres que só dizem respeito a ela. Essa Senhora é Nossa.
Para o devoto, mais vale os últimos 300 anos do mito do que os 20 séculos
de doutrina mariológica. (ABMANSSUR, 2017, p.115)
Mesmo com as explicações e abordagens teológicas os devotos ainda buscam em torno
da imagem “aparecida”, uma essência mística que caracterizam a fé em Nossa Senhora
Aparecida por uma dimensão muito mais sentimental que teológica, é uma pena que não nos é
possível traduzir este sentimento em um objeto de pesquisa e sim problematizar dados e fatos
que levam a ele.
86
3. APARECIDA: DA DEVOÇÃO POPULAR A FÉ ROMANIZADA
Com a Proclamação da República no ano de 1889 extinguiu-se o regime do
Padroado61, ocasionando aos poucos um distanciamento entre a Igreja e o Estado. Nos
primeiros trinta anos da República brasileira a Igreja precisou assegurar-se frente ao Estado
de uma outra forma, já não possuía mais a oficialização de nascimentos e casamentos que
seriam dadas em outros espaços e não mais nas igrejas paroquiais62.
Respaldada por uma estratégia de “romanização”63 do culto, o que discutimos no
capítulo anterior, como instituição a mesma tentou apropriar-se de elementos culturais da
piedade popular encontrados no meio devocional para institucionalizar outros modos de
crença cristã que não faziam parte da sua tradição catequética.
O Brasil na década de 1930 atravessava um período de mudanças nas instituições
políticas, econômicas e religiosas, é exatamente nessa conjuntura que o processo de
reconhecimento das devoções e crenças consideradas populares pelo Catolicismo se tornou
uma forma de fortalecimento dos grupos católicos e uma oportunidade para abraçar um
número maior de fiéis que por razões geográficas ou espaços sociais diferenciados não eram
assistidos por líderes eclesiásticos e possuíam estratégias para conservarem as suas práticas
de fé independente dessa tutela ou liderança.
Na mentalidade católica tradicional a figura do Papa representa toda a Igreja e no
Brasil aliada a figura do papa encontramos a Nova Padroeira, Nossa Senhora da Conceição
Aparecida. A imagem encontrada entre os caminhos do café e do ouro se torna um ponto de
conciliação da devoção popular com o catolicismo romanizado, portanto a mesma possui a
simbologia que imbrica dois mundos católicos presentes no país. A imagem representa
muito mais que a si mesma. Desta forma a representação seria dada pela exposição de uma
imagem, que se substitui algo outro, ou mesmo pela exibição de objetos ou ainda uma
performance portadora de sentidos que remetem a determinadas ideias (PESAVENTO,2007,
pg. 20).
61 In: HOORNAERT, E. et al. (orgs.). História da Igreja no Brasil – Tomo II/1. Petrópolis: Vozes; Paulinas, 1983. 62 In: LUSTOSA, Oscar. de F. A Igreja Católica no Brasil - República: cem anos de compromisso: 1889-1989. SP: Ed.
Paulinas,1991. 63 In: OLIVEIRA, P.R. Religião e dominação de classe; gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1985.
87
Debates como: o combate ao comunismo, a satanização dos costumes modernos,
as ameaças das teorias ligadas ao esoterismo deixavam na Igreja uma preocupação
exímia, no Estado o medo destas ideias que na maioria das vezes eram consideradas como
subversivas poderia ser amenizado com a aproximação do governo com uma educação
moral acirrada e uma religiosidade catequética forte. Elementos que ficam evidentes nas
notícias e manchetes que são divulgadas no Jornal Santuário, um dos principais periódicos
que utilizamos como fonte para esta pesquisa. Em suas páginas o enfoque as cartas papais
com orientações sobre como ser católico no meio destes “costumes modernos” e
amedrontando os fiéis com pequenas notas sobre a perseguição feita a Igreja da Europa
por grupos comunistas.64
Na imagem abaixo do jornal “Santuário”, edição do semanário de Número 42,
publicado em um sábado dia 08 de Setembro de 1904 fica evidenciado como o periódico
trás na primeira capa a imagem de Nossa Senhora Aparecida destacando abaixo da mesma
o adjetivo “Mãe”, ora, foi exatamente neste dia que a imagem foi solenemente coroada
como “ Rainha do Brasil”, título este que possui um reconhecimento outorgado pelo Papa
de forma diferenciada, ou seja podemos compreender que este é o Primeiro passo de
importância oficial para a romanização desta devoção. Todas as coroações e atos
realizados como forma de homenagem a imagem são oficialmente reconhecidos nesta
celebração que de certo modo é a escalada do movimento em razão da Proclamação de
Nossa Senhora Aparecida como Padroeira do Brasil.
Para Burke (2017) em alguns momentos de fortalecimento dos seus dogmas e de
sua fé a Igreja utiliza imagens que possam reafirmar, cada vez mais as suas doutrinas.
Com este intuito a primeira página do jornal ganha uma reprodução da imagem oficial de
Nossa Senhora Aparecida com uma antífona que possui um peso teológico grande, já não
é mais apenas a “Santinha Apparecida”, encontrada nos registros do Livro do Tombo da
Paróquia de Guaratinguetá e sim a representação iconográfica da “Mãe Santíssima”, base
da catequese católica fundamentada em sua doutrina.
64 Colocar nota dessas publicações no jornal santuário
88
Figura 4 - Fotocopia do Jornal Santuário Num.42 - Fonte CDM/ Aparecida - SP
A partir da análise de algumas edições do Jornal “Santuário” da década de 1930
podemos compreender que realmente o panorama religioso do catolicismo brasileiro
estava sendo incorporado ao projeto romanizado. A utilização da figura de Nossa Senhora
Aparecida permanentemente no cabeçalho do Jornal nos alerta para uma nova abordagem
em torno do catolicismo popular brasileiro e possibilita problematizarmos: de qual
maneira esse catolicismo devocional passou a ser instrumentalizado? Quais veículos serão
utilizados para a propagação dessa prática catequética?
Em uma nota que aparece na Edição de Número 26 publicada no dia 09 de maio
de 1931, que dará início a uma sequência de textos, colunas e notas com o intuito de
divulgar a festa da Proclamação do Padroado que aconteceria no Rio de Janeiro, em
primeira página é destacado que:
O nossa “Santuário” aparece hoje não só com o seu material typografico
renovado, mas também com um novo cabeçalho que corresponde a seu
character de orgam da devoção á Padroeira do Brasil. Acha-se no centro do
cabeçalho a imagem de Nossa Senhora Apparecida. Do lado direito vê-se a
Basilica de Apparecida, onde a Padroeira do Brasil é visitada e venerada por
seus devotos e onde Ella estabeleceu o seu throno de graças. Do lado
esquerdo vê-se, symbolisando o Brasil, a barra do Rio com o Pão de
89
Assucar, não há em todo paiz outro ponto tão conhecido do mundo inteiro
como característico do Brasil, pelo que foi escolhido para representar o paiz
junto da sua padroeira. (1931, p.1, nº 26)
A informação acima marca um novo período para este veículo de imprensa religiosa,
um momento de diálogo muito mais acirrado com os documentos oficiais da Igreja, como as
cartas encíclicas e as catequeses doutrinárias que irão tomar a maior parte dos espaços das
colunas do jornal. A mudança no cabeçalho do mesmo propõe uma leitura totalmente
diferente da que mostramos anteriormente que apenas trazia o nome do periódico: “Santuário
D’Apparecida”. A nota desta edição enfoca o que podemos problematizar na imagem abaixo:
Figura 5 - Jornal "Santuário D'Apparecida".Fonte: CDM/ Aparecida - SP.
Com uma breve análise comparativa podemos ver nesta edição a imagem de Nossa
Senhora Aparecida no centro com a seguinte antífona “ Nossa Senhora Aparecida, padroeira
do Brasil”, ladeada pelo pão de açúcar cartão postal da Capital Federal e pela Basílica, cartão
postal do vale do Paraíba Paulista.
É também nesta edição que o jornal se intitula “órgão da Basílica Nacional”, pois,
anteriormente destacava o título de “órgão da Basílica episcopal”, ao fazer uma análise entre
linhas entendemos que de fato acontece um processo de modificação no culto a Nossa
90
Senhora Aparecida, e o jornal como veículo deste culto possibilita uma problematização desta
modificação, fato que propomos discutir neste capítulo.
De maneira profícua precisamos ir além das aparências para utilizarmos a imprensa
como fonte histórica. Cabe ao historiador uma leitura “entre linhas” da conjuntura histórica
que o jornal nos oferece, destacando no caso do jornal Santuário o seu status de imprensa
religiosa católica. Portanto, é “importante problematizar e superar pela análise a ideologia da
objetividade e da neutralidade da imprensa que, construída historicamente, se nos confronta
como um dado de realidade: a imprensa não se situa acima do mundo ao falar dele”. (CRUZ;
PEIXOTO, 2007, p.258)
A religiosidade do catolicismo brasileiro separada do regime do estado tende a
buscar uma nova identidade, baseando-se nas constituições conciliares e na bula
Quadragesimo anno65 uma carta encíclica do Papa Pio XI, de 15 de maio de 1931, sobre a
restauração e aperfeiçoamento da ordem social, em conformidade com a Lei Evangélica,
no 40º aniversário da encíclica de Leão XIII, Rerum Novarum. Nesta bula novamente a
orientação de Roma era uma crítica as ideias do Comunismo e do Socialismo e uma
exortação as questões da classe trabalhadora. Os debates que aparecem no jornal
Santuário possuem como plano de fundo colunas ligadas a essas temáticas, principalmente
reproduzindo alocuções e encíclicas do Papa, o que nos dá um indicio de que o público
leitor do jornal também vinha se modificando, já que o jornal não estava mais apenas com
o enfoque de relatar o que ocorria em relação ao culto a Nossa Senhora Aparecida que era
o seu projeto embrionário.
De acordo com Cunha (2010) “o papel da instituição religiosa residiria em
legitimar o regime republicano e não participar diretamente das tramas políticas
decorrentes do pacto oligárquico que se estendia da federação aos municípios”. A
legitimação da república foi instrumentalizada com a construção de símbolos de
identidade nacional que viria a ser intensificada após a chegada de Getúlio Vargas ao
poder através de um golpe no ano de 1930.
Em um país com maioria católica66 seria estratégico que o governante tentasse
manter um diálogo amistoso com a Igreja. Ao aceitar o seu papel como força auxiliar
65 CARTA ENCÍCLICA QUADRAGESIMO ANNO. Disponível em:
<https://w2.vatican.va/content/piusxi/pt/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19310515_quadragesimo-anno.html> Acesso
em: 17 de Novembro de 2017. 66 AZEVEDO, Demi. A Igreja Católica e seu papel Político no Brasil. Estudos Avançados 18 (52), 2004.
91
política do governo provisório, as lideranças da Igreja ofereciam orientação que serviram
para aperfeiçoar a ideologia nacional da elite burguesa. Isso fica evidente nas publicações
da imprensa católica problematizadas nesta conjuntura histórica.
Há registros históricos de uma certa união de interesses: os devotos que queriam a
virgem de Aparecida como Padroeira, o clero que desejava uma cristianização mais
romanizada, pois era muito santo e pouca missa (além de demonstrar sua força atuante na
sociedade) e o governante que havia chegado através de um golpe republicano ao governo
exaltava a questão da Nacionalidade que assegurava seu mandato. Palavras que podem ser
encontradas no discurso67 que Cardeal Leme68 dirigiu aos bispos e ao povo reunido logo
após o decreto da Santa Sé oficializar a nova Padroeira.
67 Senhores! O Brasil não tem rei. Mais os chefes da nação são escolhidos pelo povo. Pois bem o nosso povo quer ter a sua
rainha. E essa rainha? Ei-la na expressão singela dessa imagem venerada: Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Não é
verdade que a quereis como vossa Rainha (Ninguém poderá descrever o enthusiasmo, o calor do grito unisono que rompeu
de toda aquella massa humana: Sim! Sim ! Nós a queremos Nossa Senhora da Apparecida, Viva Nossa Rainha! Viva a
Rainha e Padroeira do Brasil!!!) AH! Vós a quereis como Rainha? Então almas nos lábios, juremos todos que nem os
arremessos tentaculares da heresia invasora, nem as investidas fanatizantes da superstição grosseira, nem as tramas das lojas,
nem o barbarismo da meia sciencia, nem a irrisão dos increos, nem a irieza dos indifferentes, nem o laicismo dos
governantes, nem a perseguição aos maus, nem força alguma da terra ou do inferno será capaz de arrancar do coração do
povo brasileiro o nome e o amor de Nossa Senhora. Diante de todos os homens, diante de todas as seitas e de todos os
partidos nós os brasileiros, havemos de mostrar que Maria Santíssima é nossa Rainha, e Rainha que nunca será destronada.
E ela também diante de todas as nações do mundo vai mostrar que é a rainha da nossa pátria é a mãe do povo brasileiro.
(Discurso do Cardeal Leme na consagração de Nossa Senhora Aparecida como Padroeira do Brasil em 31/05/1931 Fonte: CDM-Aparecida-SP) 68 “O cardeal foi a principal figura relacionada ao processo da Romanização do catolicismo no Brasil” sobre está questão
conferir: Hoornaert, O cristianismo moreno do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1931.
92
3.1. O projeto da nova Padroeira
No ano de 1929 os bispos Brasileiros fizeram uma petição ao Papa Pio XI, solicitando
que Nossa Senhora da Conceição Aparecida, imagem que representava a Virgem Maria para
muitos brasileiros fosse reconhecida de maneira oficial pela primazia romana como padroeira
principal do Brasil fato este que retiraria do trono São Pedro de Alcântara, que desde a
Proclamação da Independência em 1822 ocupava o título de Orago Nacional.
Na ocasião das festas Jubilares de setembro de 1929, os prelados reunidos no santuário
de Aparecida oficialmente solicitaram a Roma um pedido oficial em “nome do povo”, para
que a imagem fosse proclamada padroeira do Brasil e pudesse receber as honras litúrgicas
destinadas a tal título.
Figura 6- Fotografia dos prelados presentes no Jubileu de Prata da Coroação da imagem de N.S.A - Fonte: CDM.
Na fotografia acima, publicada no Almanaque de Aparecida de 1931, revista anual do
Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, é destacado o conjunto de 25 dos 27 bispos
que participaram do Congresso Mariano69 em 1929 conforme citamos no parágrafo anterior,
em uma nota especial o Almanaque trouxe uma matéria intitulada “Nossa Senhora Aparecida,
Padroeira do Brasil” contendo a fotografia e os nomes dos bispos70que participaram do
69 Cf.: Nota 01. 70 De acordo com a descrição da notícia publicada na página 54 do Almanaque de Nossa Senhora Aparecida de 1931, estão
presentes na fotografia os seguintes prelados:
Em pé: D. Alderico, Abbade de Pirapora; D. Guilherme Müller. Bispo de Barra do Pirahy; D. Innocencio, Bispo-Coadjutor
de Campanha; D. José Carlos de Aguirre. Bispo de Sorocaba; D. Adalberto Sobral, Bispo da Barra; D. José Mauricio da
Rocha, Bispo de Bragança; D. Ranulpho da Silva Farias, Bispo de Guaxupé; D. Attico Eusebio da Rocha, Bispo de
93
evento. Esse congresso possuía um caráter jubilar e solene, pois, foi a ocasião de
comemoração das bodas de prata da coroação da imagem de Nossa Senhora Aparecida ato
que reconhecia oficialmente a mesma como Rainha do povo brasileiro, realizado no ano de
1904.
Não possuímos informações sobre o fotógrafo, pois, o periódico não registra o crédito
da mesma foto. Objetivamente a imagem conduz a um significado radical do processo de
romanização, uma valorização extrema do clero e uma demonstração de poder por parte da
Igreja que pode ou não legitimar e permitir determinados cultos. A apropriação que vai sendo
feita da devoção popular vai ocasionando um hibridismo que ocasiona uma ressignificação.
No entanto, se como objeto a fotografia permite, sobretudo, a elaboração de um discurso, ela é
também vestígio do real. Ela permite a verificação de elementos momentaneamente ocultados
ou definitivamente desaparecidos. Nesse sentido ela assume o caráter de uma fonte
insubstituível. (ABISSET, 1981, p.15)
A imagem faz parte do acervo do centro de documentação e memória (CDM) e
demonstra uma hierarquização absoluta no processo de reconhecimento de Nossa Senhora
Aparecida como Padroeira do Brasil. Dado que o destaque da presença dos bispos é
referendado dentro do texto do Almanaque de 1931, uma revista anual, conforme pontuamos
na introdução. A publicação discorre da seguinte maneira o evento:
Os votos unanimes do Episcopado e dos fiéis, manifestados tão
eloquentemente nas Festas jubilares de Setembro, que Nossa Senhora
Apparecida seja proclamada e venerada officialmente como Padroeira de
todo o Brasil, foram attendidos e approvados pelo Papa. A 1 de Maio p. p. o
Exmo. e Revmo. Sr. Arcebispo de São Paulo recebeu telegramma de Roma,
annunciando officialmente que o Santo Padre declarou Nossa Senhora sob a
invocação de Apparecida como Padroeira do Brasil. Estava proxima a Festa
propria de Nossa Senhora Apparecida, dia 11 de Maio. Era pois natural que
nesse dia se promulgasse e celebrasse a disposição do Santo Padre.A Festa
foi, pois, celebrada com todo esplendor. Na Missa solenne, á qual assistiu
pontificalmente o Sr. Arcebispo, o Mons. Chantre do Cabido Metropolitano
de São Paulo, prégador da Festa, annunciou ao povo que por ordem do Papa
Nossa Senhora Apparecida deve ser por todo o Brasil honrada e invocada
Cafelandia; D. Manoel Nunes Coelho, Bispo de Aterrado; D. Carlos Duarte Costa, Bispo de Botucatú; D José Maria
Parreira, Bispo de Santos; D. Fernando Taddei, Bispo de Jacarézinho; D. José Pereira Alves, Bispo de Nictheroy; D.
Domingos, O.S. B., Abbade de S. Bento, S. Paulo.
Assentados: D. Octavio Chagas de Miranda, Bispo de Pouso Alegre; D. Francisco de Campos Barreto, Bispo de Campinas;
D. Alberto José Gonçalves, Bispo de Ribeirão Preto; D. Antonio dos Santos Cabral, Arcebispo de Bello Horizonte; D. José
Marcondes Homem de Mello, Arcebispo-Bispo de S. Carlos; D. Duarte Leopoldo e Silva, Arcebispo de S. Paulo; D.
Sebastião Leme, Cardeal-Arcebispo do Rio; D. João Braga, Arcebispo de Curityba; D. João de Almeida Ferrão, Bispo de
Campanha; D. José de Oliveira Lopes, Bispo de Pesqueira; D. Benedicto Alves de Souza, Bispo do Espirito Santo.
94
como Padroeira principal, e depois de ter explicado a alta importancia deste
decreto pontificio, renovou a consagração do Brasil a Nossa Senhora
Apparecida. Depois da Missa solenne reuniu-se o povo na Praça, em redor
do monumento de Nossa Senhora, e celebrou com discursos, hymnos e
aclamações Nossa Mãe, constituida agora officialmente Padroeira e
Protectora do Brasil inteiro. (Almanaque de Nossa Senhora Aparecida, 1931
p.54)
Ao problematizarmos a descrição que é dada anteriormente através da matéria a
fotografia publicada na mesma não concilia de modo algum a perspectiva traduzida pelo
discurso da Igreja de uma padroeira para o “povo”, a palavra povo apenas é mencionada no
final da informação contida dentro do texto.
Considerando de maneira assertiva uma divisão de espaços celebrativos: No primeiro
momento a citação dos Bispos que fazem o pedido ao Papa juntamente com os “fiéis”,
poderíamos tecer aqui uma observação a contrapelo “fiel” é aquele que segue com fidelidade
a normatização dogmática da Igreja, enquanto povo pode ser considerado em um sentido
aberto e amplo, abarcando os que piamente são fiéis e aqueles que não são. Pelo que segue na
descrição e como é costume em pontificais a missa ocorreu dentro da Igreja.
No segundo momento a celebração feita pelo “povo” com hinos e aclamações ocorre
na Praça, em frente ao monumento da Imaculada Conceição, percebemos aí uma outra relação
com o espaço que é fora da igreja, ou seja, fora do local oficial de culto.
Compreender a “cultura popular” significa, então, situar neste espaço de
enfrentamentos as relações que unem dois conjuntos de dispositivos: de um
lado, os mecanismos da dominação simbólica, cujo objetivo é tornar
aceitáveis, pelos próprios dominados, as representações e os modos de
consumo que precisamente, qualificam (ou antes desqualificam) sua cultura
como inferior e ilegítima, e, de outro lado, as lógicas específicas em
funcionamento nos usos e nos modos de apropriação do que é imposto.
(CHARTIER, 1995, p.184)
Antes de chegar a ser reconhecida como padroeira nacional a devoção a Nossa
Senhora Aparecida precisou não só atravessar o Vale do Paraíba -SP como também se
relacionar com as ideologias e confrontos políticos vividos no Brasil desde o fim do período
monárquico, as insatisfações do povo com a Igreja por suas normatizações excessivas, a
insatisfação de várias figuras do clero com o catolicismo brasileiro e a burocracia da Cúria
Romana71.
71 Pontuando a questão religiosa da década de 1870 que lançou uma crítica as ordens Papais dentro da Igreja do Brasil,
considerando que as burocracias impediam o surgimento de uma imagem de “Catolicismo brasileiro”, dado que as
95
Cerceada por rostos de curiosidade ou de descrença, de fé ou de agnosticismo a
“santinha Aparecida” só obteve o reconhecimento oficial de culto pelo Rito Romano como
Padroeira do Brasil dado pelo Papa Pio XI no dia 16 de julho do ano de 1930. Conflitos e
interesses estavam presentes nestes atos, ainda mais pelo período conturbado que a República
brasileira vinha atravessando72.
O decreto Pontifício foi publicado oficialmente na íntegra nas primeiras páginas do
Almanaque de 1931, se encontra na página seguinte a da matéria sobre o Jubileu e o pedido
dos bispos que descrevemos acima. Segue alguns trechos que transcrevemos na íntegra para
uma maior problematização:
Do Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro e dos outros
Arcebispos, Bispos, Prelados e Prefeitos Apostolicos do Brasil recebemos o
pedido de nos dignarmos constituir como Padroeira principal do Brasil a
Bemaventurada Virgem,concebida sem mancha, vulgarmente chamada
«Nossa Senhora da Conceição Apparecida». Nada nos parece mais
opportuno do que acceder aos votos não só destes Antistites, mas ainda de
todos os fieis do Brasil que com constante fervor e piedade veneraram a
Immaculada Virgem Mãe de Deus quasi desde os primeiros annos do
descobrimento da região brasileira até aos nossos tempos [...] Multidões de
fieis vêm de diversos lugares do Brasil em peregrinaçäo a este templo, afim
de implorarem o soccorro e auxilio de Nossa Senhora [...] Considerando
tudo isto attentamente, julgamos que deviamos deferir os pedidos de tantos
Prelados que o Nosso Nuncio Apostolico no Brasil largamente apoia com
sua adhesäo [...] constituimos e declaramos a Beatissima Virgem Maria
concebida sem mancha, sob o titulo de Apparecida, Padroeira principal de
todo o Brasil deante de Deus, accrescentando os privilegios liturgicos e as
outras honras que pelo costume competem aos Padroeiros dos lugares
principaes [...] Não obstante qualquer cousa em contrario. Dado em Roma,
junto de São Pedro, sob o annel do Pescador, no dia 16 do mez de Julho do
anno de 1930, e nono de nosso Pontificado. CARDEAL E. PACELLI
Secretario de Estado. (Almanaque de Aparecida, 1931,p.55)
Nesta carta apostólica o Papa Pio XI declarou Nossa Senhora Aparecida como
padroeira principal do Brasil e do povo brasileiro, instituiu a liturgia própria da sua festa,
reconhecendo a devoção que antes era “popular” como uma devoção dentro dos “cânones da
Igreja”. No decreto, o Papa afirmou que atendia ao pedido do Episcopado e do povo
brasileiro, “o qual com fervor e piedade constantes, desde os anos do Descobrimento das
regiões brasílicas até nossos tempos, tem venerado e venera a Imaculada Virgem Mãe de
Deus” (Pii XI Litt. Apost. 16 Julii 1930 - Acta Ap. Sedis, vol. 23, pag. 7). Essa carta se
nomeações de prelados e bispos aconteciam a partir destas questões burocráticas e não de interesses a Igreja presente nesta
terra. 72 Cf.:CUNHA, Célio. Educação e Autoritarismo no Estado Novo. São Paulo: Cortez 1981.
96
encontra preservada no acervo da Cúria Metropolitana de Aparecida – SP. Quais seriam os
reflexos desta proclamação para os devotos brasileiros?
Tendo como mentor principal a figura do recém eleito Cardeal Leme73 para que se
fizesse cumprir o edito papal, o cardeal que na época era Arcebispo do Rio de Janeiro
(Capital Federal) embasado na carta apostólica de Pio XI, possibilitou aos devotos uma nova
padroeira, uma padroeira “mestiça” que está mais próxima da representação da sua
identidade segundo algumas colocações proferidas e discutidas por setores intelectuais da
Igreja no período.74
Levando-se em conta o que foi observado nas publicações do período foram muitas as
manifestações de fé e devoção do povo ao louvar sua nova Padroeira. A celebração desta
festa fora antecipada por um grande congresso Mariano que aconteceu na Cidade do Rio de
Janeiro de 17 a 30 de maio de 1931, organizado pelo Cardeal Leme.
Em uma entrevista feita com o Cardeal Dom Sebastião Leme e publicada pelo jornal
Santuário no dia 16 de maio de 1931, podemos analisar como essa festa foi grandiosamente
preparada e foi destaque na imprensa religiosa e em outros meios de comunicação do
período. O aspecto romanizador das orientações que aparecem na entrevista pode ser
percebido nos trechos que iremos analisar:
[...] Assim as homenagens nacionais a Padroeira do Brasil valerão ainda
como afirmação de que o nosso povo nasceu Catholico, nos princípios
catholicos foi civilizado e catholico quer continuar a ser haja o que houver e
custe o que custar.mais que uma festa exterior as solemnidades do Rio de
Janeiro a N. S. Apparecida avultarão como um plebiscito nacional em favor
da Santa Egreja de Nosso Senhor Jesus Christo e portanto das forças vivas
da nacionalidade. [...] Não tenho a menor dúvida que [o povo] vai
comparecer conheço o meu povo e posso garantir que só não irá a rua para
73 Podemos entender a ação pastoral de D. Sebastião Leme a partir das considerações a seguir: “Com Dom Leme, o
Episcopado brasileiro encontra sua mais expressiva liderança ao ponto de fazer convergir para si liberais e ultramontanos. É
com Dom Leme que os discursos se transformam em prática. Sua volta ao Rio de Janeiro nos anos de 1920 como arcebispo
auxiliar do cardeal Arcoverde é o marco de uma nova inserção da Igreja no país. Portanto, desde já, a Igreja mergulha na
realidade secular, mas teologizando-a, cristianizando-a, catolicizando-a. O objetivo de Dom Leme era catolicizar todos os
espaços, empreendendo uma forte presença nas massas para ganhar a adesão do Estado, tornando-o cristão. [...] Dom Leme
acaba forjando uma espécie de cronologia católica dentro do mundo que se considerava profano.[...]Em outras palavras, Dom
Leme insistia em condensar não apenas o regime político às orientações católicas, não apenas catolicizar o espaço político,
mas perenizálo como um novo tempo histórico agora sob a égide da soberania do Cristo de Pio XI, uma etapa que antecipa as
agruras do homem moderno e o coloca na linha certa, extinguindo o conflito social, político e econômico em função Da nova
era religiosa na qual entrava a nação. In: BALDIN, Marco Antonio.Dom Leme e a recristianização do Brasil – Ensaio de
interpretação. ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES
Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH Maringá (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859. Disponível em
http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html 74 Cf. VILLAÇA, Antônio. O pensamento católico no Brasil. Rio de janeiro: Zahar, 1975.
97
festejar N. Senhora quem por enfermo ou motivo grave não puder sair de
casa. [...] Agora prevemos que excederá de um milhão o número de almas
que formarão ala a passagem de Nossa Senhora D’Apparecida. [...]
Conto com entusiamos do clero [...] com a a boa vontade da imprensa
da Capital federal, que já abriu colunas a propaganda da ideia e finalmente
temos simpatia do governo provisório. [..] Ora eu só pedi 50 mil pessoas
para cada grupo! [...]
O cardeal começa a entrevista valorizando a formação Católica do povo brasileiro
desde o início do processo colonizador afirmando de maneira esclarecida que “o povo vai
comparecer à festa”, se referindo a solenidade de Proclamação de Nossa Senhora Aparecida
como Padroeira do Brasil a ser realizada na Capital Federal. Além destas preocupações o
entrevistado destaca a colaboração da imprensa e a simpatia do governo provisório para com
o evento.
De fato, a imprensa do Rio de Janeiro ira destacar de diversas maneiras essa
celebração colocando manchetes do tipo “ A maior consagração católica da América do Sul”,
ou seja, o resultado de toda a movimentação que fora solicitada através das declarações desta
entrevista demonstra a força política- religiosa que esse jornal exerce, não apenas como
veículo catequético romanizador da Igreja mas também como referência para a imprensa
religiosa e não confessional sobre as atividades feitas pela Igreja no Brasil.
Em um outro trecho da entrevista o Cardeal Leme reforça a necessidade da grande
procissão na Capital federal:
Perfeitamente, como nunca se viu no Brasil e em parte alguma. Uma
procissão única...nem podia ser de outro modo. Única no mundo, por sua
beleza e expansão religiosa é a cidade do Rio de Janeiro. Única a
circunstância da visita de N. Senhora Apparecida a capital do Paiz.[...] Não é
necessário ser profeta para se prever que depois da aclamação da padroeira
na Capital da República, aumentará de muito o número de fiéis que em
romaria de amor visitarão este santuário. [...] (Jornal “ Santuário Ed.33)
Uma indagação que podemos nos fazer ao confrontarmos os relatos anteriores:
realmente a participação popular que o Cardeal tanto enfatiza acontece por atitudes
espontâneas da população ou acontecem por conta de um condicionamento feito através das
orientações dadas pelo mesmo utilizando este veículo de divulgação? Devemos lembrar que
no trecho anterior da mesma entrevista o prelado declara que pediu que todos os membros das
98
associações católicas levassem outros membros para participar do evento. “Ora eu só pedi 50
mil pessoas para cada grupo! ”, foi a afirmação feita pelo mesmo.
As negociações para a ida da imagem até a cidade do Rio de Janeiro, não parecem ter
sido tão fáceis. Em momentos diversificados a população do distrito de Aparecida é lembrada
como aqueles que emprestam a imagem para o evento: Que conflitos podem ter ocorrido para
que a imagem pudesse ir até a Capital Federal? De que maneira a solução de fazer a imagem
sair acompanhada por uma comissão de moradores de Aparecida pode ser colocada no campo
de negociação e conflito?
Mas permita que eu lhe diga: não é bem uma saída ou separação da
imagem e seu povo de Apparecida. Representando a cidade irá uma
comissão de aparecidenses. Guiados pelos mesmos Padres Redemptoristas
que são os anjos custódios da Padroeira, vão eles levar a Imagem expol-a ao
culto do Rio de Janeiro e do Brasil e sem deixa-la um só momento , na
mesma tarde vão traze-la a seu altar de todos os dias aqui no santuário [...]
em um carro transformado em ando especialíssimo [...] Nós todos somos da
família de Nossa Senhora Apparecida, somos seus filhos e temos direito as
suas bênçãos. Mas só a cidade de Apparecida é que tem a honra de ser a casa
ou o tecto escolhido por nossa Mãe para sua residência permanente. O Brasil
é a família. Esta cidade é a casa materna. (Jornal Santuário)
Para Doro (2006) “ é próprio do documento fotográfico mostrar apenas um fragmento
do real e a câmera não registra objetivamente uma realidade” (p.166). Daí a importância de
problematizarmos o documento fotográfico como um vestígio que precisa ser indagado e
confrontado com outras fontes históricas. Nessa perspectiva lançamos alguns
questionamentos sobre as mesmas.
Nas fotografias abaixo, publicadas pelo Almanaque de Apparecida de 1932 temos as
imagens das comissões de aparecidenses formadas com o intuito de acompanhar a imagem
durante o caminho a ser percorrido pela mesma até a Capital Federal.
A presença constante de um grande número de pessoas ou de uma parcela
representativa dos devotos que participavam ativamente das associações ligadas ao culto a
Nossa Senhora Aparecida aparece constante, uma hipótese que podemos levantar aqui é
justamente a da necessidade de afirmação dessa devoção em relação ao clero e aos demais
fiéis.
99
Figura 7- Fotografia da Comissão de Aparecida - SP que acompanhou a imagem ao Rio de Janeiro, publicada em
Almanaque de Aparecida 1932. Fonte: CDM.
Não conseguimos identificar o nome do fotógrafo ou a data que esta fotografia foi
tirada, pois, a mesma se encontra publicada nesta revista anual, produzida pelo próprio Jornal
Santuário sem nenhuma outra investigação. Também não encontramos registros de reuniões
para escolha desta comissão. Uma outra informação que o Jornal dispõe é que também foi
elaborada uma comissão de devotos do Rio de Janeiro, que tinha como intuito principal
acompanhar a imagem no trajeto referido.
100
3.2. A Proclamação do Padroado
O final da entrevista de Dom Leme que foi transcrito no tópico anterior, evoca um
lugar de memória, em relação a presença da imagem de Nossa Senhora Aparecida na região
do Vale do Paraíba, a entrevista é encerrada recordando como a declaração oficial do Papa
Pio XI chegou ao Brasil, e quais foram as impressões tidas pelo Cardeal em relação a mesma.
O Jornal Santuário foi o primeiro veículo de imprensa religiosa no país, fato que
citamos na introdução desta dissertação, é claro que notícias sobre a Igreja e a religiosidade
estão presentes na imprensa não confessional, ainda mais quando as ações religiosas de algum
modo estão politicamente imbricadas com o governo. A imprensa católica destacada nesta
parte da entrevista demonstra a existência de um conflito pelo lugar de fala. Podemos ver no
trecho abaixo como é feita a referência da imprensa católica na entrevista:
Na festa de 11 de Maio do anno passado foi pelo Exmo Sr. Arcebispo
publicado na Basilica de Apparecida o decreto do santo Padre que declarou
N. Senhora Apparecida Padroeira do Brasil. Todos os assistentes rezaram
então a consagração a N. Senhora e todos os jornaes catholicos ,
transcrevendo o decreto do Papa, levaram ao conhecimento dos fieis a
auspiciosa noticia. A importância deste factoque é a Proclamação de N.
Senhora Apparecida como Padroeira do Brasil inteiro, pedia contudo uma
consagração mais solemne, mais grandiosa de maior publicidade na Capital
Federal. Deste modo ficaria o povo mais compenetrado do Padroado de N.
Senhora Apparecida e do dever da devoção a ella, seriam mais grandiosas as
homenagens do Brasil a Nossa Senhora Apparecida e mais oficial a sua
consagração a ela. ( ornal “Santuário,1931, p.1, nº26)
Indagando a partir do trecho acima caberia perguntar: Qual é realmente a importância
da imprensa católica na propagação do culto a nova padroeira? Ora, conforme discutimos ao
longo da dissertação a difusão do culto a Nossa Senhora Aparecida e o seu fortalecimento
possuem raízes na devoção popular.
O lugar hegemônico e oficial da cultura aparece se fizermos uma leitura a contrapelo
deste desfecho da entrevista, onde fica evidente o lugar de fala do Cardeal a partir dos
documentos da Igreja.
Attendendo a suplica que em representação do povo brasileiro,
formulara o episcopado nacional, sua Santidade o Papa Pio XI declarou N.
S. da Conceição Apparecida Padroeira do Brasil.[...] Essencialmente
catholico amorosíssimo de N. S. da conceição, a quem mesmo sem
fundamento litúrgico (grifo meu), invocará sempre como gloriosa Padroeira ,
o Brasil tem agora aprovação oficial de sua devoção predileta. (grifo meu) É
de justiça, pois que aos pés de N. S. da Conceição, sob o titulo querido e
popular de “Apparecida”, aclamemos em plebiscito de amor, a Rainha e
101
Padroeira do Brasil. Rio de Janeiro, 22 de Abril de 1931 + Sebastião,
Cardeal Arcebispo (Jornal “Santuário”,1931, p.02)
De acordo com Martin-Barbero (1997) nem o conflito nem a repressão paralisam as
trocas e os intercâmbios culturais, muito pelo contrário, por vezes inclusive o estimulam.
Através do intercâmbio entre as “culturas” é necessário considerar que os caminhos dentro do
espaço religioso da devoção possuem aspectos conciliadores que são tutelados por
mecanismos múltiplos de normatização de conduta pela Igreja, e que extrapolam os limites
impostos por esses mesmos mecanismos.
Um indicio que nos conduz a concluirmos isso é justamente as frases grifadas no
último trecho da entrevista, ao tratar da devoção a Nossa Senhora Aparecida o prelado
declara: “a quem mesmo sem fundamento litúrgico”, ou seja, assume que mesmo sem o
reconhecimento oficial da Igreja já existia uma prática religiosa em torno da imagem de
Nossa Senhora Aparecida. Podemos indagar: Se existe uma prática religiosa em torno da
imagem por qual motivo é enfocado anteriormente dentro da entrevista que a imprensa
católica é responsável pela divulgação desta devoção? Caberia aqui entendermos que a
divulgação a qual se faz referência é justamente ao culto a Nossa senhora Aparecida dentro
das normas romanizadas?
A próxima frase grifada é sinalizadora dentro da conjuntura histórica vivida pela Igreja
no período, pois, interpela que de fato a oficialização desta prática de devoção popular feita
pela instituição é respaldada pela política de romanização que discutimos no capítulo anterior.
Para Dom Leme “o Brasil tem agora aprovação oficial de sua devoção predileta”, ou seja,
somente agora normatizada pelos ritos romanizados a devoção popular a Nossa Senhora
Aparecida pode ser considerada “oficial”. Qual é o valor desta oficialização de prática para a
devoção popular?
Na edição do Jornal Santuário de 09 de maio de 1931, foram publicadas as orientações
definidas pelo Cardeal Dom Sebastião Leme e pelo conselho apostólico do Rio de Janeiro
para as festas em preparação a celebração oficial de Proclamação do Padroado que ocorreria
no dia 31 do mesmo mês. O periódico publicou na primeira página e com detalhes bem
normativos para todas as paroquias e dioceses os eventos e cerimônias que deveriam ser
realizados em honra da Nova Padroeira. Em um primeiro momento as orientações foram
dirigidas a todas as paróquias do Brasil (Semana Parochial), e depois para a arquidiocese do
Rio de Janeiro, o Jornal Santuário transcreve na integra 14 pontos de orientações normativas,
dos quais selecionamos alguns:
102
6ª- Em todas as parochias domingo, 24 de maio, missa festiva
consagração do povo a N. S. Apparecida. [...] b) A tarde nas parochias
suburbanas e rurais, em cada uma ou em grupo de mais parochias
solemnissima procissão de N. S. Apparecida.
Para a semana arquidiocese foram publicadas as orientações abaixo:
30 de Maio – 10 ½ - Cathedral- Pontificial de sua Emininencia , com
assistência de todo o clero e alunos do seminário. Consagração do Brasil a
N. S. Apparecida; 20 horas- Sessão solene de encerramento no Externato de
S. Ignacio, rua S. Clemente.
31 de Maio – 15 horas- Procissão triunfal de N. S. Apparecida.
Estarão presentes mais de trinta bispos e representações do clero e povo de
todas as diocese do Brasil. Farão o cortejo de N. Senhora alguns dos
milhares de moças, vestidas de branco, senhoras vestidas de preto ou escuro,
cavalheiros com trajes de rigor e homens, incorporados as Ligas Catholicas.
Ao encerrar a procissão coroação de Nossa Senhora. (Ibid.)
Consequentemente as orientações oficiais assinalam a posição e interesse da Igreja
com a celebração demonstrando uma aproximação com os rituais de devoção popular. A
procissão e a consagração são práticas devocionais que a Igreja utiliza de maneira estratégica
quando normatiza o modelo como essas práticas devem ser organizadas, propagas e
realizadas. Devemos estar atentos a dois pontos que essa publicação nos revela: as sessões
solenes75 que são realizadas com temas de discussão teológica em colégios religiosos
católicos que evidenciam a romanização do culto a Nossa Senhora Aparecida este é o
primeiro ponto. Um segundo ponto que destacamos é a presença de duas práticas de devoção
popular como o momento de ápice da festa: a procissão e a coroação da imagem de Nossa
Senhora, ritos realizados durante o encerramento do mês de maio como exercício de festa e
oração pelos grupos populares, muitas contendo folguedos e cânticos infantis.
Na fotografia abaixo, publicada no Almanaque de Aparecida de 1932 o fotógrafo não
foi identificado como na fotografia anterior, nessa imagem podemos ver o interior da igreja de
Santo Afonso com enfeites no teto e nas colunas e um grande número de fiéis que assistem a
uma das sessões solenes do congresso Mariano, onde foram expostos temas de dogmas
doutrinários marianos76.
75 Teses que foram expostas nas sessões solenes realizadas em colégios e paróquias da cidade do Rio de Janeiro- DF, essas
sessões aconteceram de 24 a 30 de maio de 1931 ás 20h00, destacando elementos teológicos centrais pertencentes ao culto a
virgem Maria. Apenas os temas 13º e 14º tratam especificamente de abordagens sobre Nossa Senhora Aparecida.
1º- Nossa Senhora mãe de Deus [...]. 2º- N. Senhora- Corredentora [...].3º- N. Senhora- Medianeira de todas as graças [...]4º-
N. Senhora- Rainha e defensora da cristandade.5º- N. Senhora e a família.6º- N. Senhora e a mocidade.7º- N. Senhora e o
operariado.8º- N. Senhora e o reinado social de Jesus Cristo no mundo.9º- N. Senhora e o reinado social de Jesus Cristo no
Brasil.10º- Os santuários celebres de Nossa Senhora.11º- Os santuários brasileiros de N. senhora.12º- N. Senhora na literatura
e nas artes brasileiras.13º- O padroado nacional de n. Senhora Apparecida.14º- Nossa senhora salvação do Brasil. 76
103
Figura 8- Foto do Congresso Mariano na Igreja de Sto. Afonso no Rio de Janeiro publicada no Almanaque de
Aparecida do ano de 1932. Fonte: CDM.
Para o período de 17 a 24 de maio foi estabelecido que em todas as dioceses e
paroquias do país deveriam ser realizadas pregações que fortalecessem a “Semana da
Padroeira”77, onde todas as cerimonias religiosas proporcionariam uma catequese para os fiéis
relacionando a figura de Nossa Senhora Aparecida a dogmas católicos e a temas de interesse
da Igreja católica do Brasil.
Um aviso com as normatizações em relação a essa “Semana da Padroeira”, foi
expedido pelo cabido metropolitano da cúria do Rio de Janeiro, sob o número de 210 nas
circulares do respectivo órgão o aviso foi publicado na íntegra contendo 11 pontos que
normatizam a festa a ser realizada na Capital do país. Os trechos abaixo relacionados foram
selecionados com o intuito de levantarmos algumas hipóteses em relação a problemática
proposta:
77 De forma parecida com as sessões solenes foram publicadas orientações para as pregações em cerimonias realizadas
durante a “Semana da Padroeira”, que aconteceu do dia 17 ao dia 24 de maio de 1931. Nas dioceses e paróquias as pregações
deveriam ser baseadas nas temáticas seguintes:
1º- Nossa Senhora como mãe de Deus tem direito ao culto e ao amor de todos os homens: como nossa Padroeira tem direito
as nossas devoções. 2º- [...] Nossa Senhora é mãe especial do povo brasileiro. 3º-Os males da propagação de heresias e erros
da fé catholica. Nossa Senhora, defesa e baluar da nossa Santa religião. 4º- O culto de N. Senhora e a prática das leis de Deus
e sacramentos da Igreja. 5º- Nossa senhora e a conversão dos pecadores. [...] 6º- Nossa Senhora e nossa salvação. [...] 7º- N.
S Apparecida – rainha e padroeira do Brasil, por aclamação do povo e concessão expressa do vigário de Jesus Cristo.
Gratidão e confiança nacionais.
104
1- Em todas as igrejas matrizes, igrejas de religiosos, irmandades e capelas,
por ocasião de todas as missas que nelas se celebrarem domingo próximo,
serão lidos e explicados aos fieis a carta de S. Eminencia e o programa das
solenenidades.[...] 3- A porta de todas as igrejas e outros logares públicos,
onde seja possível faze-lo, afixem o programa geral das festividades e o
particular de cada parochia.[...] 6- [...] Palavra de ordem: cada um dos
membros de todas as associações deverá convidar, persuadir e inscrever,
pelo menos cinco pessoas em cada um dos grandes grupos do préstito que
acompanhará a imagem de N. Senhora Apparecida, na procissão de 31 de
maio. Os quatro grupos são: 1- Moças, filhas de Maria ou não, vestidas de
branco (mangas compridas e sem decote) véu branco ;2- Senhoras quanto
possível vestidas de preto, véu preto ou branco;3 -Moços e homens que
desfilem incorporados ás Ligas Catholicas não haja traje determinado); 4-
Cavalheiros que em traje de rigor ( frak e calça listrada) formarão a guarda
de honra. 7- [...] a) Marcar dia e hora para nova reunião coletiva, em que
cada membro das associações deverá trazer a indicação precisa do número
de pessoas que conseguiu inscrever em cada um dos grupos [...] d) Instruir
bem as associações sobre o traje e outros pontos já assentados ou que vierem
a ser determinados pela Comissão Geral e, principalmente, mons. Gonzaga
do Carmo, encarregado de organizar e dirigir a procissão. 8- [...] Haverá
lugar para os colégios masculinos e femininos, centros de catecismo,
escoteiros, etc. Recomenda-se que se apresentem com estandartes.9- Os srs.
Sacerdotes desta archidiocese, ou aqui de passagem, comparecerão
paramentados de casula, dalmática ou pluvial, de qualquer cor, menos preta
ou roxa.10- No dia 31 de maio depois do meio dia, fica proibida qualquer
função religiosa. Câmara eclesiástica, Rio, 30 de abril de 1931. Mons.
Francisco de Assis Caruso. Secretário do Arcebispado. 09-05-1931 p.02
O objetivo das tentativas de romanização do culto católico que discutimos desde o
segundo capítulo são reproduzidos através destas palavras. As normas litúrgicas e
institucionais tendem a valorizar as igrejas paroquiais e o aumento no número de fiéis através
de convites feitos pelas associações religiosas. Na fala do cardeal Leme na entrevista que
transcrevemos anteriormente o prelado já pontuava que havia pedido aos grupos e associações
50 mil pessoas a mais para incorporar as instituições que iriam participar da procissão solene.
Isso fica evidente dentro do texto pela alocução adjetiva “palavra de ordem” ao referir-se ao
pedido feito as associações católicas do período.
Voltando a essa problemática podemos destacar que a intenção não era apenas
divulgar a celebração, e sim garantir um momento homogêneo de reconhecimento oficial ao
culto a Nossa Senhora Aparecida. O catolicismo popular, constituído por setores diversos e
grupos híbridos culturalmente possuía diferenças e essência própria, mesmo que baseado em
elementos do mundo católico essa prática religiosa não era bem aceita pela Igreja Romana,
algo que já pontuamos anteriormente.
Ao tratar da devoção popular e sua relação com o catolicismo oficial, salienta Davi:
105
Uma das maneiras que a Igreja Católica encontrou para manter a coesão
coletiva ao seu redor, já que estava vivendo uma realidade que punha em
risco sua hegemonia no terreno religioso, foi se defender das outras
manifestações religiosas, tentando recuperar uma outra parcela da população
que, apesar de católicos estariam relegados a um plano inferior por terem
comportamentos divergentes daqueles defendidos pela instituição, como é o
caso do fervor manifestado pelo culto a santos reconhecidos ou não
reconhecidos, pelas romarias, pela privatização da fé. (2001, p.233)
Exatamente nessa perspectiva que a fala de Dom Leme busca abarcar um grande
número de pessoas, reconhecendo oficialmente o culto a santa “Aparecida”, automaticamente
se fortalece o número daqueles que são considerados apenas praticantes de uma religiosidade
popular.
106
3.3. A viagem a Capital federal
A princípio a grande sequência de regras instituídas para a celebração de proclamação
do padroado resultaram em inúmeras publicações no Jornal Santuário, com o intuito de
garantir a realização da festa nos moldes litúrgicos romanizados. No excerto abaixo publicado
na primeira página do periódico no dia 09 de maio de 1931 fica declarado que o lugar da
imagem é em seu santuário. Seria essa colocação uma condição imposta pela mesa diretora de
devotos coordenadores do santuário? Qual relação podemos estabelecer novamente entre a
imagem e a região em que ela foi encontrada?
Declarou ainda o Sr. Arcebispo com o cabido, que a ida da imagem fica
restringida para este caso único, não forma precedente e não sera repetida.
Nestas condições os devotos de Nossa Senhora Apparecida não poderão
deixar de alegrar-se imensamente sobre as honras que serão prestadas a sua
querida Mãe e Padroeira ( Jornal “Santuário”,1931, p.1 nº26)
Uma outra publicação feita na edição do dia 23 de maio do mesmo ano informa aos
leitores a maneira como a imagem será transladada para a Capital Federal:
1º- A venerada imagem de Nossa Senhora da Conceição Apparecida será
transladada para esta capital no dia 31 do corrente, devendo voltar para a
cidade de Apparecida a tarde do mesmo dia, logo após a procissão. 2º- As 14
horas em ponto sairá da Cathedral Metropolitana a solemnissima procissão
que obedecerá ao seguinte itinerário: Primeiro de Março, Visconde de
Inhauma, Avenida Rio Branco, Avenida das Nações e Esplanada do Castelo.
4º- assim foi determinado que , as 13 horas deverão formar: a) o grupo das
senhoras [...] b) as ordens terceiras e irmandades [...] c) os collegios dos
meninos e meninas [...] d) os escoteiros [...] e) as Ligas Catholicas [...] f) as
Filhas de Maria [...] g) os cavalheiros da guarda de honra [...] h) clero
regular e secular e seminário [...] i) as autoridades e representações offiaes
de associações civis e militares [...] j) os Revm. Capitulares e Exms. Srs.
Bispos [...] (Aviso da Camara eclesiástica do Rio publicado no Jornal
Santuário, 1931 nº 28)
Sobre a composição do trem que faria o translado da imagem:
A composição será das de luxo um carro-salão da administração, arrumado
em cappela receberá o altar e o trono da virgem. Parte deste carro será para
acomodar o Exm. Arcebispo de São Paulo, D. Duarte Leopoldo e Silva que
velará o precioso tesouro confiado a sua archidiocese. Em outros dois carros
haverá os lougares precisos para a guarda de honra e a Comissão que desta
Capital irá a Apparecida do Norte receber a milagrosa imagem. (Jornal
Santuário, 1931 nº 28)
O grupo de padres que acompanhou a imagem de algum modo são nomes que são
associados ao processo de romanização do catolicismo brasileiro. Tendo como principal
mentor a figura do Cardeal Leme, apoiado pelo arcebispo de São Paulo, Dom Leopoldo e
Silva.
107
A administração da estrada de Ferro Central do Brasil, recebe um número muito
grande de elogios, por parte do Jornal Santuário. Segundo o próprio jornal foi oferecido um
desconto nas passagens para todos aqueles que fossem ao Rio de Janeiro participar da
celebração.Qual seria o intuito de diminuir em 50% o valor das passagens para a data da
celebração?
A administração da Central, no intuito de facilitar a vinda das pessoas que
desejam assistir ás festas em honra de N. S. Apparecida , Padroeira do
Brasil, resolveu, depois de ouvir o Ministro da Aviação conceder o
abatimento de 50% nas passagens de ida e volta para a estação Pedro II.
(Jornal Santuário,1931, nº 29)
Nenhum outro jornal que analisamos cita esse abatimento no preço das passagens que
aparece no periódico que citado. A intenção de fazer um evento apoteótico com grande
número de pessoas pode ser considerada através da informação acima relatada.
Antes da imagem sair de seu santuário, houve uma celebração de encerramento das
festividades do mês de maio, com a imposição das fitas as chamadas filhas de Maria78,
associação religiosa feminina que tinha como intuito principal propagar a devoção popular
mariana.
O fragmento abaixo publicado no Jornal santuário que parafraseamos na introdução
deste trabalho narra a saída da imagem da Basílica de Aparecida na noite do dia 30 de maio
de 1931. O excerto faz parte da publicação especial de informação a cobertura sobre a festa da
proclamação do padroado:
As 8 ½ horas da noite do dia 30 [...] O vigário interino tirou a imagem do
seu throno, colocou-a no andor e rezou com o povo uma Salve rainha e 3
Ave Marias na intenção de resultar esta viagem em maior gloria de Deus e
de nossa Mãe santíssima e correr tudo bem.[...] O andor foi ladeado pela
Commissão de Apparecida e seguido pela de S. Paulo.[...] Acompanharam a
santa Imagem o PP. José Francisco Vigário interino, Andrade Macedo, Otto
Maria e o irmão Carlos. O R. P. João Baptista redactor do “Santuário” já
tinha seguido uns dias antes para assistir ao congresso mariano na Capital
Federal. [...] (Jornal Santuário, 1931, p.03)
Conforme citado anteriormente não encontramos nenhum relato sobre a condição de
escolha dos clérigos, religiosos e da comissão que foi acompanhando a imagem até a cidade
do Rio de Janeiro. Qual teria sido o critério de escolha utilizado para essa seleção?79 Algumas
78Como no dia 31 de Maio o nicho de Nossa senhora estava vasio e fechado, foi feito o encerramento do mês mariano no dia
30 [...] receberam 15 moças a fita verde de aspirante e 14 a fita azul de filha de Maria. ( Ed.27 p.03) 79No carro cappela revezavam-se as Commissões de Aparecida e São Paulo rezando o terço [...]
108
pistas podem ser esclarecedoras, por exemplo, o Padre Otto Maria80 foi um religioso
redentorista que é considerado um dos pioneiros a recolher notícias, entrevistas e documentos
diversos sobre a expansão do culto a Nossa Senhora Aparecida.
[...] era o sentimento íntimo de piedade e fé, era o amor grande e sincero a
N. Senhora, era o ardente desejo e a intima satisfação de mostrar amor filial
a Nossa Senhora e prestar-lhe as homenagens mais grandiosas possíveis. [..]
O carro salão torna-se verdadeira cappela: os padres de sobrepeliz, os
Cônegos de murça ajoelhados em torno do Sr. Arcebispo rezam o terço a N.
Senhora. [...] (Ibid.)
Na fotografia abaixo tirada do interior do vagão que foi transformado em capela para
levar a imagem de Nossa Senhora Aparecida, podemos ver ao fundo o oratório onde a mesma
imagem foi transportada. A ornamentação em estilo românico e o nicho tradicional revelam
elementos da Liturgia Romanizada, o manto branco utilizado pela imagem apenas algumas
vezes nos remetem a cor festiva da liturgia segundo o catolicismo e também a dignidade da
cor dos papas.
Um elemento chave para entendermos a ligação da devoção popular com o processo
de romanização do culto a Nossa Senhora Aparecida é nos indagarmos: Que elementos da
devoção popular aparecem neste altar? Além do modo como são colocadas as flores, quais
outras pistas a imagem nos oferece sobre a ligação da devoção popular ao culto de Nossa
Senhora Aparecida? Sem dúvida alguma o reconhecimento de uma grande participação
popular, nas fotografias a presença de grande número de pessoas fica sempre evidenciada.
Ao redor do oratório um grande número de membros do clero e representantes de
outras instituições posam para a foto, a fotografia faz parte do álbum fotográfico da festa de
Proclamação de Nossa Senhora Aparecida como Padroeira do Brasil. A fotografia que se
encontra no arquivo do Santuário Nacional não está identificada e não existem dados do
fotógrafo.
80 Conf. Nota nº 53.
109
Figura 9 - Vagão / capela levando a imagem para o Rio de Janeiro, série de fotografias da Proclamação de N. S.
A. como Padroeira do Brasil. Fonte: CDM.
De acordo com Burke:
Os documentos precisam ser contextualizados[...]. Isso nem sempre é fácil
no caso de fotografias, uma vez que a identidade dos fotografados e dos
fotógrafos é muitas vezes desconhecida, as próprias fotografias
originalmente – em muitos casos- são oriundas de uma série e foram
separadas do projeto ou do álbum no qual eram inicialmente mostradas, para
acabarem em arquivos ou museus.(2017, p.37)
Ao tratarmos essa fotografia como parte de um álbum fotográfico podemos entender
que ela carrega diferenças das fotografias que foram publicadas pela imprensa, pois a mesma
retrata pessoas (no caso os que não são religiosos) que não possuem seus nomes citados em
outras fontes analisadas.
Uma outra prática de homenagem popular que é transcrita no jornal é a oferta de flores
durante o percurso que a imagem fez. O Almanaque de 1932 vai detalhar de maneira
específica as pequenas celebrações que ocorreram em cada estação que a imagem passou,
destacando músicas, orações e fogos de artifício. Ao tratar do costume de troca de flores, ou
seja, o devoto oferece uma flor e retira para levar como lembrança ou amuleto uma outra que
esteja junto da imagem podemos ler:
Mas as flores numa estação entram e na outra saem. E como a boa gente sabe pedir
só uma pétala de lembrança. [...] E quantas flores, flores tão belas oferecem aqui á
Virgem [...] (Jornal “Santuário” 1931, N.27,p.02)
110
As flores e as pétalas atiradas à virgem representam bem os sentimentos ternos e
filiais dos que acompanharam a procissão triumphal. [...] constituiu um verdadeiro
plebiscito nacional em favor da religião católica. ( Ibid.p.03)
No primeiro relato encontramos uma afirmação da prática da devoção popular, como
já citamos o costume de conservar as flores dos andores como busca de proteção, na narrativa
a palavra que é usada para denominar essa prática é apenas “lembrança”, ou seja termo que
desconsidera as outras possibilidades de utilização devocional destas flores. Já na segunda
parte o fragmento se refere as flores que eram atiradas a imagem durante a procissão no Rio
de Janeiro novamente mostrando como esse gesto pode ser interpretado em realidades
diferentes.
Citando ainda os movimentos em torno do translado da imagem e relacionando as
pessoas que o assistiam o texto continua dando maior enfoque aos gestos feitos pelas pessoas
durante o translado da imagem
Quantas scenas comoventes podemos presenciar: o povo piedoso ao longo
da Estrada, de mãos erguidas para a virgem. Como são cheios de
enthusiasmo os fluminenses e cariocas: gesticulam mostram uns aos outros o
altarzinho, batem palmas, atiram beijos á imagem no seu throno [...] Jornal
“Santuário”, continuação de publicação Ed. 27 p.02)
Os gestos de comoção popular citados pelo Jornal vão ser intensificados quando o
periódico cita a participação do povo na cidade do Rio de Janeiro81, após a chegada da
imagem. Para Benjamin (1987) “a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o
tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de "agoras"(p.232) ”. O campo da cultura
não pode ser considerado o campo do passado, ele se atualiza através de uma circularidade
que abrange as diversas conjunturas históricas, inclusive as religiosas.
81 O Jornal Santuário em edição posterior publicou o seguinte canto religioso, chamado de “Canto dos cariocas” a propósito
da viagem de Nossa Senhora Aparecida ao Rio de Janeiro:
“ Nossa Rainha altaneira
Que em trono feito alcantil,
Sois a maior brasileira reinando sobre o Brasil.
Vinde a nós, virgem viageira
Que a terra de ardor febril
Ampara, em cada palmeira
Vosso pálio: um só céu de anil.
Vinde a nós que, ao fim da viagem,
Para vos dar hospedagem,
De joelhos, tal merecei;
O Corcovado achareis,
Abrindo os braços na imagem
Do redentor Rei dos Reis...”
Sem identificação do autor. In : MACHADO, Padre. Aparecida: Na História e na Literatura. Campinas: Ed. do autor, 1975.
111
[..] Como se mostrou piedoso neste dia o povo do Rio de Janeiro, quanta
comoção se via em todos os rostos, quantas lágrimas correram, quantos
sacrifícios fizeram para tomar parte das homenagens a N. Senhora. Dos
subúrbios saíram milhares de pessoas pelas dez da manhã e voltaram pelas
oito da noite passando todo esse tempo de pé e sem nada comerem, mas
voltavam alegres e contentes de terem mostrado seu amor, e feito um
sacrifício a N. S. Apparecida [...] (Jornal “Santuário”, continuação de
publicação Ed. 27 p.02)
Consequentemente a dimensão de sacrifico que é enfatizada na devoção popular, leva
um grande número de pessoas as ruas, a dimensão do sacrifício, da peregrinação e da
procissão é fruto dos rituais da devoção popular, que ganham um outro significado a medida
que a presença do clero e da hierarquia católica vai sendo inserida nestas liturgias. O povo
aparece no jornal sempre com adjetivos que estão ligados a emoção e benévolo, ou seja, uma
maneira de legitimar a participação popular na perspectiva da normatização.
Era manhã do dia 31 de maio quando o trem especial adentrou a estação Dom Pedro II
na região central do Rio de Janeiro:
[...] Entrou o trem santuário na estação D. Pedro II que estava toda ella
engalonada com bandeiras e festões [...] uma massa compacta de povo [...]
estavam na estação o Sr. Cardeal, o exmo. Sr. Vigário geral e grande número
de prelados e sacerdotes.
Lia-se em todos os rostos, além de forte enthusiasmo profunda
Commoção e em muitos olhos brilharam lágrimas quando a veneranda
Imagem deixou o trem e muito devagar rompeu a densa multidão em direção
a saída. [...] Jornal “Santuário”, continuação de publicação Ed. 27 p.02)
A imagem abaixo retrata o momento que a imagem de Nossa Senhora Aparecida
recém-chegada ao Rio de Janeiro foi colocada sobre o automóvel82 rumo a Igreja São
Francisco de Paula, onde seria celebrada a missa solene. Essa fotografia foi a que mais
circulou nos principais jornais do Rio de Janeiro editados no final da tarde do dia 31 corrente.
Em uma pequena nota do Jornal Santuário foi avisado que apenas a imprensa cadastrada pela
cúria diocesana poderia fazer imagens e cobrir o evento, fato que possibilitou que essa mesma
imagem circulasse com ângulos diferentes pelos diversos periódicos do Rio de Janeiro.
De acordo com Doro (2006) a constatação das muitas possibilidades de informações
que possam estar contidas em uma única imagem fotográfica e sendo essa imagem um
82 Foi a mesma colocada sobre um automóvel no qual tomaram lugar o sr. Arcebispo de São Paulo. Formou-se uma longa
fileira de automóveis para acompanhar N. Senhora. Mas também o povo todo acompanhou a pé e as calçadas de ambos os
lados estavam cheias de gente que esperavam a imagem e a aclamavam. [...]
112
testemunho visual de uma situação vivida, ela leva o historiador a utilizar essa fonte nas
diversas pesquisas historiográficas.
Ao analisar a fotografia como fonte para o historiador podemos nos deparar com
questões que não podem ser respondidas, salienta Burke (2017) “ Uma série de imagens
oferece testemunho mais confiável do que imagens individuais, seja quando o historiador tem
como foco todas as imagens existentes [...] seja quando observa as mudanças nas imagens [...]
ao longo do tempo”. (p. 282).
Figura 10- Chegada da imagem de N. S. Aparecida no Rio de Janeiro em 31/05/1931, publicação do Almanaque de
Aparecida de 1932. Fonte: CDM.
A legenda publicada embaixo da imagem na edição do Almanaque do ano de 1932,
nos dá algumas pistas sobre a intenção do fotógrafo em fazer esse registro: “ Cena
impressionante no momento do desembarque de Nossa Senhora Aparecida na estação Pedro II
– Rio de Janeiro”. Desta forma o redator do periódico anual transmitiu a sua leitura da
fotografia acima. Novamente sinalizando que as leituras partem exatamente do nosso lugar de
fala em relação ao objeto.
113
3.4. A nova Padroeira do Brasil
A missa oficial da Proclamação do Padroado de Nossa Senhora Aparecida ocorreu na
manhã do dia 31 de maio em frente à igreja de São Francisco de Paula, na região central do
Rio de Janeiro. Dentre os periódicos que analisamos a celebração não aparece em nenhum
momento como o destaque principal da solenidade. Como vimos anteriormente o Cardeal
Leme enfatizou em várias falas a importância da solene procissão, algo que demonstra de
maneira clara a força da prática da devoção popular em relação as práticas dos ritos
romanizados.
Não conseguimos localizar o ritual utilizado para a celebração desta missa, diferente
de outras celebrações como a da Coroação oficial, ocorrida em 1904 e que é encontrada em
integra no arquivo da Basílica Nacional. Recolhendo alguns vestígios no jornal santuário
podemos levantar algumas hipóteses de como teria ocorrido essa primeira parte da celebração
oficial:
A frente da egreja de São Francisco de Paulla estava toda engalanada e
na porta principal fora erguido um rico altar provisório ao alto do qual foi
colocada a imagem milagrosa [...] A vasta praça estava cheia de povo que ali
se comprimia e apertava, as escadarias, sacadas e janelas estavam
igualmente apinhadas de povo.[...] Jornal “Santuário”, continuação de
publicação Ed. 27 p.02)
O termo utilizado para definir a forma como a igreja estava enfeitada “engalanada”
poderia significar um arquétipo do jeito romanizado? O trecho que resume o lugar onde foi
celebrada a missa também faz menção ao povo, aliás, um dos poucos momentos em que essa
categoria aparece na narrativa feita pelo jornal santuário, que concentra em suas publicações
os discursos de alguns clérigos e figuras políticas que estiveram presentes nos festejos. Um
outro ponto importante: o jornal sempre faz menção a sujeitos ligadas a instituições que de
algum modo possuem um lugar social de fala na conjuntura política do país, por exemplo, aos
membros do governo provisório que participaram da celebração, a empresa ferroviária e aos
colégios.
Na fotografia abaixo, que foi publicada na sessão de fotos do Almanaque de 1932,
podemos ver o altar onde foi celebrado a missa, e nele, a imagem de Nossa Senhora
Aparecida, destacada com uma enorme quantidade de flores, o altar em estilo tridentino onde
a centralidade do mistério celebrado culmina com a imagem da nova padroeira ao topo.
114
Figura 11 - Missa realizada em frente a Igreja São Francisco de Paula em 31/05/1931, publicada no Almanaque
de Aparecida 1932. Fonte: CDM.
O costume popular de rezar o terço durante a missa, que foi salientado no primeiro
capítulo a partir da expressão “era um catolicismo de muito terço e pouca missa”, pode ser
encontrado no trecho abaixo
Logo que a missa entrou, estabeleceu-se silencio na praça e foram
entoados cânticos a N. senhora, emtremeado das dezenas de terço, cada uma
por uma das intenções que o Exmo. Sr. Cadeal expoz quando anunciou a
grande festa mariana. Terminada a Missa começaram as aclamações a N.
Senhora Apparecida [...]. Jornal “Santuário”, continuação de publicação Ed.
27 p.02)
Dois pontos aqui são importantes: Primeiro essa é a única parte de todas as
publicações no jornal santuário que encontramos uma menção a missa ocorrida nesta manhã.
Segundo, a oração do terço que é um exercício da devoção popular novamente assume um
espaço paralelo com o da liturgia oficial da Igreja. Podemos questionar: quais seriam as
intenções solicitadas pelo Cardeal Leme nessa oração? Poderiam essas intenções ser de fato
relacionadas ao culto a Nossa Senhora Aparecida ou a constituições dogmáticas teológicas
imbricadas ao culto mariano como nas temáticas das sessões solenes realizadas durante as
festas?
115
Terminada a missa iniciam “aclamações a Nossa Senhora Aparecida”, novamente o
jornal não escreve quais seriam essas aclamações, já que anteriormente em outras edições
quando o periódico destaca esse tipo de manifestação automaticamente ele as associa ao povo
que participava das celebrações, o que é percebido de forma diferenciada na informação
acima.
Continuando a narrativa, destacando a grande multidão que participava da celebração
o periódico relata:
Em seguida a imagem foi de novo colocada no automóvel e seguiu para a
cathedral, em marcha lentíssima, sempre rodeada, seguida e aclamada por
uma multidão compacta de povo. [...] Já era tempo de fechar as portas da
cathedral para fazer os últimos preparativos á grande procissão, e o povo não
queria sair. Só após pedidos repetidos e insistentes foi se esvasiando o
recinto. Jornal “Santuário”, continuação de publicação Ed. 27 p.02)
A primeira procissão realizada da Igreja de São Francisco de Paula a Catedral do Rio
de Janeiro é um preambulo do que viria a ser a solene procissão organizada pela cúria
diocesana do Rio de Janeiro que iria levar a imagem da Catedral até a Esplanada do Castelo.
Exatamente nos momentos em que os exercícios religiosos são característicos da devoção
popular que o povo aparece como categoria nas narrativas publicadas pelo jornal. Qual seria a
intenção da matéria ao afirmar que o povo não queria sair da Catedral? Reafirmar a grande
quantidade de pessoas que participaram desta celebração?
Na fotografia abaixo, publicada em outros veículos da imprensa não confessional,
como o “Jornal última hora” e o jornal “A Noite”83 fica retratada a imagem sendo colocada no
andor em um automóvel preparado para este fim sendo arrumada no mesmo por Dom Duarte
Leopoldo e Silva, arcebispo de São Paulo tendo ao lado a figura do cardeal Leme. A imagem
mostra um grande número de pessoas, homens com os chapéus sendo tirados da cabeça em
sinal de veneração e algumas pessoas segurando flores ao lado dos estandartes e distintivos
dos grupos religiosos e irmandades católicas que enviaram suas comissões representativas
para participar das solenidades, conforme solicitado durante o cronograma da festa que já
discutimos anteriormente,
83 Nas edições consultadas dos jornais destacados, aparecem as seguintes manchetes com a imagem abaixo:
“ A maior Consagração Católica da América do Sul”, jornal “ A NOITE”. Rio de Janeiro. 01/06/1931 Ed.7008, p.01.
Idem. Jornal “última hora”. Rio de Janeiro. 31/05/1931, p.03.
116
Figura 12 - Imagem sendo conduzida para a Catedral após a missa no Largo S. Francisco de Paula em
31/05/1931, publicação do Almanaque de Aparecida 1932. Fonte: CDM.
A imagem permaneceu na Catedral do Rio de Janeiro, da mesma forma o jornal não
traz informações sobre este período e continua narrando a festa com um relato descritivo da
procissão que teve início no começo da tarde do mesmo dia:
As duas horas da tarde saiu da cathedral a Procissão de N. senhora
Apparecida, que conforme estava estabelecido percorreu a rua 1º de Março,
rua Visconde de Inhauma, avenida Rio Branco, avenida das Nações e chegou
á esplanada do castelo depois das cinco e meia.[...]
A imagem de N. S. Apparecida foi colocada no automóvel no qual
tomaram lugar o sr. Nuncio Appostolico, o sr. Arcebispo de São Paulo e o sr.
Conego Rezende [...] estavam cheios de uma massa compacta de povo. As
janelas e sacadas das casas até nas alturas de oito ou dez andares, estavam
igualmente cheias, não de espectadores curiosos, mas de pessoas piedosas
que dali faziam parte no cortejo da mãe dos brasileiros[...].
[...] as multidões cheias de enthusiasmo batiam palmas, davam vivas e
palmas e cahiam chuvas de pétalas.[...] Na avenida as casas pareciam
colmeias e centenas de mãos a agitar-se e espalhar flores e outras maõs
extendendo-se para a virgem numa prece ardente e olhos a derramar
lágrimas de comoção e de fervorosa supplica. (Jornal “Santuário”,
continuação de publicação Ed. 27 p.02)
117
A descrição feita da celebração destaca a participação dos clérigos, em especial o
Núncio Apostólico, ou seja, aquele que representa o papa como diplomático tanto no corpo
eclesial quanto no âmbito social de acordo com uma tradição do catolicismo romano. A
presença do Núncio configura a ligação estreita do reconhecimento deste culto popular pela
Igreja romana.84 Na continuação do texto o povo aparece novamente quebrando a passividade
que lhe foi imputada na descrição do momento da missa.
Uma das práticas que aparece associada a população que acompanha a imagem pela
publicação que foi feita no jornal santuário é a de levar flores nas mãos, isso podemos
encontrar desde o início das primeiras narrativas sobre a saída da imagem do Santuário de
Aparecida, prática essa que caracteriza muito a cultura popular nas homenagens feitas aos
santos de devoção e a Nossa Senhora.
Figura 13 - Início da Procissão solene em frente a Catedral do Rio de Janeiro em 31/05/1931, publicada no
Almanaque de Aparecida de 1932. Fonte: CDM.
A fotografia acima, uma das três que encontramos que captaram o momento da
procissão enfatiza a grande quantidade de padres e clérigos com títulos e funções
84 Um núncio apostólico é um representante diplomático pertencente a Santa Sé exercendo o posto de embaixador.
118
diversificadas que participaram desta celebração. São os clérigos que estão à frente da
procissão, eles conduzem as celebrações e orientam os fiéis durante a mesma.
Ao analisarmos esta imagem podemos levantar diversas hipóteses, uma delas é a
associação direta do culto a Nossa Senhora Aparecida iniciado nos arredores de uma aldeia de
pescadores com o processo de romanização com o qual estamos dialogando, ora, é
exatamente nessa conjuntura que não vemos mais pescadores tomando conta da imagem e sim
o clero regular reforçando a ideia inicial de que essa prática de devoção popular vai ser
utilizada pela Igreja para ampliar o projeto da ação romanizadora.
Ainda na edição do dia 06 de junho, o jornal conclui as considerações e narrativas
feitas sobre a festa destacando o ato final da procissão, uma consagração ocorrida na
Esplanada do Castelo, ato que contou com a participação dos representantes políticos de
governo provisório recém instalado.
Para ser vista por todos, a Imagem foi levada através dos diversos
agrupamentos, rompendo com dificuldades a multidão e recebendo as mais
delirantes aclamações.[...] os alto falatens repetiam os cânticos: Salve o mãe
e Com minha mãe estarei, sendo acompanhado pelas multidões.[...] No fim
da esplanada foi construído um vasto tablado para os prelados e sacerdotes e
no centro do mesmo um artístico altar maravilhosamente ornamentado.[...]
De um tablado especial assistem ao desfile o sr. Presidente da republica com
sua sra, diversos ministros, o chefe de policia, os membros do corpo
diplomático com suas famílias. [...] (1931, p.01 nº 27) ( Continuação Ed. 27
p.02)
Os agrupamentos institucionais católicos que ganham destaque dentro do texto são
sempre citados quando há referência ao povo ou a multidão, quando o jornal define as pessoas
que participaram dos festejos são utilizados esses adjetivos85. Consequentemente junto a esses
agrupamentos aparece uma referência aos representantes do governo provisório e ao
Presidente Getúlio Vargas que como chefe de Estado estava presente na solenidade e aparece
em algumas fotografias que foram publicadas no Almanaque de 1932 e constam no acervo do
Santuário Nacional.
A presença do Presidente Getúlio Vargas como chefe de estado nessa celebração
aparece como destaque em toda a imprensa analisada durante o processo de pesquisa. A
legitimação do ato da Igreja fica evidente na centralidade daquilo que é propagado através das
85Não houve matine nos cinemas, não houve corridas, não houve regatas porque para todos a procissão de N. Senhora
Apparecida era mais importante e atraente. Movimentou-se o Rio de Janeiro todo desde o presidente da República até os
humildes pescadores das praias diante deste acontecimento único [..]
119
imagens e publicações: as roupas litúrgicas dos clérigos que aparecem nas fotografias e nas
normatizações sobre as mesmas em documentos, a imagem de Nossa senhora Aparecida
trazida pelos padres e bispos e a fotografia abaixo dos bispos em visita ao presidente em
exercício, nessa imagem além da postura dos prelados com suas insígnias podemos destacar
no centro a figura de Vargas explicitando a relação do poder religioso com o poder político.
Figura 14 - Bispos Brasileiros visitando o Presidente da República em exercício, Getúlio Vargas durante as festas da nova
Padroeira. Almanak de Aparecida, 1932. Fonte: CDM.
De acordo com Canclini (1998) o popular não é monopólio dos setores populares,
dado que uma mesmo pessoa pode estar inserida em diversos grupos e integrar-se de forma
diversificada nas relações simbólicas estabelecidas entre eles. Desse modo a
representatividade de grupos em torno da imagem nos ajuda a questionarmos novamente a
tentativa de homogeneização de culto feita pela Igreja.
Nas fotografias que apresentamos que mostram as celebrações realizadas em
homenagem a nova Padroeira uma característica comum entre elas no chama a atenção: existe
uma necessidade de legitimação da participação popular que esta imbricada as manchetes de
jornais que afirmam a participação de uma grande multidão no evento. Os jornais nos trazem
alguns números que certificam a participação popular.
120
Segundo as estimativas passaram pela Estação Central do Brasil cerca de 6725486
pessoas, número considerável para o período , será que esse número de pessoas foi
concentrado nos festejos de Nossa Senhora Aparecida no Padroado ou foram apenas
divulgados como totalizantes pelo jornal?
Tendo terminado a sua volta pela Esplanada, o automóvel a imagem de N.
Senhora Apparecida parou ao pé da escada do altar.[...] Chegando ao alto
deu a Imagem a beijar ao sr. Cardeal e depois, satisfazendo um desejo do
Chefe de estado, a aproxima do sr. Dr. Getulio Vargas que a beija nos
pés.[...]
Nunca se viu na historia do Brasil uma demonstração mais colossal, o
espetáculo de um povo que se ergue uníssono para aclamar Aquella que a
Egreja proclamou Padroeira do Brasil. Foi uma verdadeira afirmação da
vontade nacional de ser catholico. [...] (Jornal Santuário, Ed. 27 p.02)
O episódio do beijo que o Presidente teria oferecido a imagem aparece relatado apenas
no “Jornal santuário”, e em alguns pequenos periódicos católicos, como na revista Vozes de
Petrópolis, Revista Mensageiro do Carmelo 87, qual seria o intuito principal destes veículos da
imprensa em publicar esse relato? Como esse episódio pode ser considerado como
aproximação entre política e processo de romanização? Percebemos aí o poder político
institucionalizado alinhado com a perspectiva da fé romanizada.
Dentre as inúmeras hipóteses que podemos levantar consideremos a que o trecho
acima nos propõe: ao fazermos uma leitura a contrapelo entendemos que o tempo todo dentro
do texto é proposital a tentativa de unidade que se dá ao catolicismo como uma única voz
religiosa no país, e a afirmação de que a nova Padroeira se sobressai como ponto de união
nessa relação entre cidades, estados, agrupamentos e irmandades, diferentes cargos clericais
buscando exatamente o que é proposto no projeto de romanização: uma única voz para toda a
Igreja, centralizada na hierarquia institucional da mesma. Essa disputa pode ser percebida na
forma como essa unidade vai sendo reafirmada.
A celebração teria sido encerrada com a consagração presidida pelo cardeal Leme e
pela coroação da imagem, ato simbólico que é sempre realizado no encerramento do mês de
maio como forma de honraria e solenidade que compõem popularmente os festejos e
homenagens a Nossa Senhora. Essas duas práticas que também são exercícios da devoção
popular não aparecem registradas em nenhum lugar, apenas algumas notas de que a 86[...] Passaram pelos torniquetes da Estação Pedro II no dia da festa de N. S. Apparecida 67254 que tomaram os subúrbios.
Para assistirem a despedida de N. Senhora compraram ingressos na Central 2733 pessoas. [...] No mesmo dia vieram ao rio
pelas barcas da Cantareira 46210 pessoas, sendo 41000 de Nictheroy e os outros das ilha. (P.03) 87 Cf. “ O beijo da Pátria seria levado pelo próprio Presidente da República”. In: MACHADO, Padre. Aparecida: Na História
e na Literatura. Campinas: E. do aut., !975, p.402.
121
celebração teria sido encerrada desta maneira com o discurso de exortação de Dom. Sebastião
Leme que orienta de forma incisiva ao povo se afastar de todos os maus costumes
modernos88.
Terminando a celebração e seguindo a recomendação de Dom Duarte Leopoldo e
Silva, Arcebispo de São Paulo de que a imagem deveria retornar imediatamente para o seu
templo no final do dia 31 a mesma foi levada para a Estação Pedro II a fim de ser reconduzida
ao distrito de Aparecida.
[...]. Já se achava muita gente na estação para despedir-se de N. Senhora
Apparecida [...] ficaram em grande número rezando em silencio ou trocando
algumas impressões em voz baixa. Os padres distribuíram entre eles as
medalhas e imagens que levavam, e depois as flores do altar. [...]
Desde a saída da estação d. Pedro II o Especial foi esperado e saudado em
todas as estações dos subúrbios, fazendo paradas mesmo que em pequenas
estações, como Queimados e outras, onde se reuniram os habitantes dos
arredores para honrarem N. Senhora Apparecida com aclamações e cânticos.
E porque não satisfazer um desejo tão justo dessa boa gente. [...]
(Continuação de publicação Ed. 27 p.02)
O retorno da imagem ao Santuário em Aparecida – SP, não possui uma narrativa
criteriosa como a que é feita em razão do translado da mesma para o Rio de Janeiro. O
Almanaque de 1932 publicou detalhes genéricos que são resumidos em manifestações de
entrega de flores e preces, já o Jornal Santuário, criou uma coluna intitulada “Ecos da imagem
no Rio”, onde publicou a integra dos discursos proferidos durante as sessões solenes
teológicas realizadas na semana da Padroeira que antecedeu a festividade.
Consta no anuário do santuário Nacional que ao chegar a imagem em Aparecida
ocorreu uma outra solene procissão, que foi finalizada com o canto de ação de graças “Te
Deum”, hino litúrgico do rito romana que faz um agradecimento ao final de algum evento
religioso ou civil.
A fotografia a seguir, também publicada no Almanaque de 1932, mostra as filhas de
Maria levando a imagem da estação central do distrito de Aparecida a Basílica, pelos trajes de
solenidade e festa podemos entender que além de utilizadas como elementos informativos e
de divulgação as fotografias eram feitas a serviço da instituição para despertar a fé dos
espectadores. Para Peter Burke (2017) “ fotografias podem ser consideradas evidência da
história e história.
88 Cf. Nota 65.
122
Figura 15- Chegada da imagem em Aparecida - SP em 01/06/1931, publicada no Almanaque de Aparecida 1932.
Fonte: CDM
Essa fotografia é diferente das outras que apresentamos aqui não apenas pela captação
imagética produzida pelo fotógrafo e sim por ser a única que mostra a imagem de Nossa
Senhora Aparecida sendo conduzida por outros membros da Igreja e não os padres e clérigos.
No distrito de Aparecida quem devolve a imagem ao seu lugar são os membros das
instituições presentes na Igreja local isso nos remete a narrativa tão pontuada em diversos
discursos: o povo de Aparecida é o guardião da imagem da mesma. Afirmação essa que
contradiz a afirmação de um culto nacional relacionado a essa prática devocional.
Através desta análise é possível entendermos que a dimensão tanto da imprensa como
fonte histórica quanto da fotografia nos auxiliam a problematizar o passado e percebermos
que os embates ocorridos entre a devoção popular e a fé romanizada não são fatos que se
perpetuam ou desaparecem, historicamente esses dois grupos estão presentes no catolicismo
brasileiro e atravessam diversas conjunturas históricas, inclusive a atual.
O que reforça a ideia de que não podemos considerar a cultura como algo no singular,
já que ela circula por diversos espaços e sujeitos sendo muito genérico apenas considerar a
mesma pertencente a determinado grupo. Mesmo com tantas tentativas de homogeneização as
123
trocas sociais possibilitam novos significados e questionam por si só através desses sujeitos
uma ideia de sucesso que ocorre nessas tentativas.
124
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Só podemos pensar a devoção popular no Brasil se nos propormos a entender os
estigmas sociais e fronteiriços característicos da nossa formação. Na América Latina e no
Brasil está representação religiosa com a figura da Virgem Maria foi sendo considerada
múltipla e hibrida principalmente pela catequese ligada a essa figura feminina e materna, raiz
do culto mariano. Isso pode ser uma constante, herança de nossa formação cultural que foi
muito enriquecida com a mistura de povos que formaram o que hoje chamamos de povo
brasileiro.
Tratemos de observar que estes povos possuíam crenças próprias com seus mitos
emblemas e significados que foram sendo incorporados desde sempre pelas crenças cristãs ou
vice e versa, por exemplo as deusas indígenas e orixás femininos africanos. De uma maneira
geral o culto mariano é uma das expressões mais fortes dessa conjuntura histórica.
A imbricação dessas crenças acontece através dos sujeitos que podem ou não atuar
dentro de grupos e instituições, fator que faz emergir uma relação de tensão e conflito que
constrói culturalmente um indicador místico e religioso pautado na transmissão oral e nas
ações cotidianas. A circularidade entre crenças não acontece de maneira pacífica e sim nos
conflitos e tensões que tendem a mostrar uma ideia de conciliação, principalmente quando as
instituições, nesse estudo de caso a Igreja tem como objetivo principal mostrar para a
sociedade que possui uma única voz, um único discurso que sobressai a todos os discursos
que são proferidos e defendidos por seus diversos setores.
A devoção popular a Nossa Senhora Aparecida aparece como um ponto de indagação
dos pescadores e ribeirinhos a instituição religiosa, a “Senhora Aparecida” possui
características, próprias, se encerra em narrativas que subvertem a ordem, basta lembrarmos
que a memória propagada do encontro da imagem é justamente como um ato de “salvação”
frente a norma da Câmara administrativa da região de Guaratinguetá de conseguir grande
número de peixes para o novo governador geral que passava para chegar a região das minas,
o conde de Assumar.
Consequentemente, através desta narrativa podemos problematizar o que a imagem
passa a representar para os sujeitos que transpõem e divulgam essa crônica memorialista.
Mais do que a representação artística e cultural de Nossa Senhora da Conceição, a imagem
encontrada no Rio Paraíba passa a adquirir um outro sentido: é a Nossa Senhora da
125
Conceição, só que a “Aparecida”, ou seja aquela que “aparece” e não a imagem artística que
lembra o dogma teológico publicado pelo Papa (apenas em 1854) e identificada pela
instituição religiosa.
De acordo com Chartier (2011) a noção de representação modificou profundamente a
compreensão do mundo social, obrigando-nos a repensar as relações do ser social ou do
poder político. Deste modo, ao analisarmos a crença a Nossa Senhora Aparecida como
crescente devoção mariana popular do povo brasileiro percebemos que sua representação
também ganhará um cunho político, tanto na administração da própria Igreja como nas
relações seculares entre Igreja e Estado.
Ao analisarmos a vinculação entre religiosidade humana, representação e o imaginário
social, são perceptíveis as diversas práticas utilizadas ao longo da História humana, que
visaram legitimar as hierarquizações sociais através da aplicação do sagrado (BACZKO,
1984, p.300).
Para atingir a problemática levantada neste trabalho, a base de estratégia explicativa é
firmada no referencial de estudos do imaginário social, buscando destacar os conhecimentos
populares em relação a crença a Nossa Senhora Aparecida que se contrapõem a crença
institucionalizada em ritos, expressões e formas de manifestações religiosas diversas, fato que
destacamos anteriormente.
Uma sociedade partilha de conteúdos de pensamentos, interiorizados nos indivíduos,
sem que seja necessário explicitá-los (CHARTIER, 1990, p.41). Dado o exposto, o conceito
de Representação modifica amplamente a percepção do imaginário social e a construção
política que se faz do mesmo, possibilitando uma análise a contrapelo das fontes oficias que
servem como indícios para as contribuições que buscamos fazer em relação a circularidade
dessas práticas encontradas nos indícios analisados.
A afirmação de toda a narrativa presente na memória através do imaginário social está
sendo assumida na representação daquela imagem “Aparecida” que começa a integrar a vida
daquelas comunidades ribeirinhas. Um fato importante: o que transforma a imagem em um
elemento simbólico do sagrado não é a forma como ela é constituída na tradição católica
oficial e sim a narrativa em torno da mesma que a legitima (mesmo quebrada e artisticamente
alterada pelas águas do rio).
126
Para Benjamim (1987) dentre as narrativas nenhum acontecimento grande ou
pequeno pode ser considerado perdido para a história. Temos, portanto, um desafio: indagar
essas narrativas como elementos que ajudem a perceber a problemática da cultura como um
conceito que atravessa a memória e não pode ser apenas ligado a tradições ou ações
folclóricas, de forma que a narrativa religiosa em relação a Nossa Senhora Aparecida é uma
atualização da memória devovional dos sujeitos que a iniciaram.
Ao tratar da propagação dessa memória potencializada pela representação da mesma
na imagem podemos reafirmar a circularidade dentro da esfera da cultura. Circulando por
espaços diversos como o segundo capítulo deste texto nos mostrou é que essas narrativas se
transformam em uma memória coletiva com significados profundos e místicos dentro
daquela conjuntura histórica cultural.
Esses fatores nos alertam que “o lugar da cultura é o lugar do conflito”, ou seja,
através de inúmeras formas se busca justificar as diferenças pelo viés da cultura. Dentro do
espaço religioso do catolicismo brasileiro esse conflito aparece nas aproximações e
reafirmações de aspectos presentes na cultura não oficial da Igreja e conduzem a tentativas
inúmeras de conciliação entre vários setores que apesar de professarem as mesmas crenças
transitam com particularidades diferentes, uma dessas particularidades é justamente a
tentativa de homogeneização dos ritos que é sempre reforçada pela instituição, aspecto este
que viemos indagando desde o início desse texto.
Ao tratar dessa relação entre instituições e grupos, ou subalternos e submissos
destacamos:
[...] que nem toda assimilação do hegemônico pelo subalterno é signo de
submissão, assim como a mera recusa não é de resistência, e que nem tudo
que vem "de cima" são valores da classe dominante, pois há coisas que
vindo de lá respondem a outras lógicas que não são as da dominação.
(MARTIN-BARBERO,1997, p.107)
Consequentemente podemos concluir que a cultura popular vai muito além dos
espaços que tendenciosamente acabamos articulando, como por exemplo o espaço da
resistência a cultura hegemônica. Sem nenhuma dúvida é algo que remete a um passado ou
memória significativa que ganham um significado tradicional, só que não estão presas a uma
centralidade de tradição, pois, os significados mudam, as relações mudam e até mesmo as
tradições são termos cheios de pluralidade e circularidade.
127
No caso da conjuntura religiosa da devoção o que muda é justamente a narrativa
mesmo através de questionamentos mínimos se percebe um novo olhar para a ordem
estabelecida, conforme pontuamos no segundo capítulo a devoção popular é a afirmação de
como as instituições como a Igreja, com suas organizações e formas catequéticas
normatizações que não conseguem atingir os sujeitos como um todo. Fiquemos atentos as
particularidades nesses aspectos.
As orações católicas que eram feitas em latim, as cerimonias tinham suas
particularidades de ritos e expressões que eram conhecidas apenas por aqueles que tinham
acesso à cultura erudita, dada a dificuldade com a língua, com o entendimento dos dogmas
teológicos cabia ao povo buscar práticas que correspondessem as suas necessidades sociais
cotidianas.
Não podemos afirmar que os fiéis ficavam apenas a receber “migalha” daquilo que
caia dos altares romanizados ficando assim a mercê de sua própria interpretação e
conhecimento popular, é justamente nessa conjuntura que o conceito de circularidade cultural
mais faz sentido.
Ao mesmo tempo não é possível ignorar que esse distanciamento dos fiéis com as
estruturas oficiais sem dúvida alguma é um dos fatores que proporcionou a explanação e o
fortalecimento de piedosas orações populares e crenças diversas. Os exercícios de devoções
populares demonstram como a experiência individual da fé adquirem um potencial
emancipador do ser humano em relação a códigos religiosos colocados institucionalmente. A
catequese doutrinária e o processo de romanização que pontuamos é um conflito que imbrica
a religiosidade oficial e a devoção popular.
Conforme já citamos anteriormente o campo da cultura é o campo das lutas e
conflitos. Nessa perspectiva assinala Stuart Hall:
Há uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual, por parte da
cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente
a cultura popular; para cercá-la e confiar suas definições e formas dentro de
uma gama mais abrangente de formas dominantes. Há pontos de resistência
e também momentos de superação. Esta é a dialética da luta cultural. Na
atualidade, essa luta é contínua e ocorre nas linhas complexas da resistência
e da aceitação, da recusa e da capitulação, que transformam o campo da
cultura em uma espécie de campo de batalha permanente, onde não se
obtém vitórias definitivas, mas onde há sempre posições estratégicas a
serem conquistadas e perdidas. (HALL, 2003, p.254).
128
Neste recorte diversificado entre devoção popular e o poder religioso institucional
cabe questionarmos: Qual a maneira que a experiência da crença se faz presente? Que ideias
podem orientar o pensamento crítico que relaciona os fatores religiosos e políticos da
complexidade humana?
Nesta perspectiva compreendemos que a experiência mística se torna um fator
importante na afirmação de uma identidade cultural e essa batalha permanente e paralela
entre culturas ocasiona um enriquecimento das mesmas, pois, é justamente nessas ações que
as narrativas em torno das práticas devocionais são atualizadas e reafirmadas.
A Imagem de Nossa Senhora Aparecida sem dúvida alguma é um ícone das
resistências das práticas de devoção popular do Brasil, está devoção como podemos entender
a partir dos estudos apresentados extrapola sejam ideias políticas do campo religioso ou do
campo governamental institucional. Ambas expressam de forma clara o que é sempre feito
pelos grupos de elite do nosso país: a tentativa de um mito de “unificação nacional”, que é
obvio acontecer apenas no mundo das ideias e do imaginário.
Não há exercício de devoção que possa apagar classes sociais e nem diferenças
históricas gritantes, pois essas diferenças fazem parte do mundo material e que mesmo
resinificadas através de exercícios religiosos contestam a ordem apenas para aqueles que se
propõem a observar essa história de uma ótica a contrapelo, pois, as narrativas místicas
perpassam aquilo que existe de real nas relações sociais das comunidades.
Ao tratar de uma necessidade constante do historiador da cultura em analisar e
problematizar essas relações sociais, salienta Benjamin:
A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de
vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as
refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não
podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se
manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da
astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas
questionarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores
dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso
heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. O
materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais
imperceptível de todas. (BENJAMIN,1987, p. 222-232).
A celebração que ocorreu no ano de 1931 que objetivamos de uma certa maneira
questionar nesta pesquisa refletem as considerações de causa e efeito nos jogos de poder e
reforçam a utilização do imaginário e da crença como instrumentos de dominação social,
129
cultural e política, e ao mesmo tempo enfatizam que existem muitas resistências que se
perpetuam mesmo sendo de maneira velada dentro das instituições religiosas. Assim,
entendemos que é difícil separar mística e cultura apenas como dimensões subjetivas, pois,
essas duas dimensões fazem parte da vida do ser humano. E são espaços de questionamentos
e problematizações pertencentes a conjuntura histórica em que esses sujeitos se encontram
inseridos.
A devoção mariana no Brasil foi intensificada pela devoção ao título da Senhora
“Aparecida” iniciada por aqueles três pescadores no ano de 1717, narrativa essa que reafirma
a memória e sua transmissão como um elemento questionador da ordem e da normatização:
uma “senhora que aparece” das águas para socorrer os mais pobres e os negros injustiçados,
que supostamente toma a cor negra em auxílio destas minorias vai atravessar o final do
governo monárquico e chegar ao governo republicano com uma força que transcende a força
política: o poder de reunir uma diversidade de pessoas em torno da mesma crença. Essa ideia
passou a ser reafirmada até os dias de hoje, por aqueles que se utilizam da mística e da crença
como espaço de questionamento político plural.
De acordo com Fenelon (1993) o campo social da cultura só pode ser pensado em
vista da pluralidade que ele abarca, acarretando que não utilizemos o conceito no singular e
sim no plural “Culturas”. Partindo desse pressuposto, consideremos que problematizar
aspectos da institucionalização dessa devoção nas páginas de um jornal religioso como o
“Santuário D’Apparecida”, reforçam metodologicamente a necessidade de ultrapassar
barreiras possibilitando problemáticas que indagam “agoras” atualizando os espaços
historiográficos que ocupamos e repensem “culturas”, levantando novas hipóteses em relação
aos objetos de pesquisa.
Ao finalizarmos esse texto com o intuito de levantarmos hipóteses em torno das
problemáticas sugeridas não podemos deixar de apontar como a dimensão da cultura popular,
conceitualmente aqui assimilada ao termo devoção popular possui um aspecto questionador e
autônomo em relação as normatizações institucionais, pois, essas memórias estão circulando
nesses espaços diversificados que tendem a reafirmar suas narrativas de questionamentos de
uma ordem que antes já existia.
Conforme pontuamos anteriormente a necessidade que a Igreja demonstra através das
fontes analisadas é justamente de normatização dessa devoção buscando afirmar em suas
publicações como este espaço místico é definido por ela enquanto instituição, seja nos
130
discursos ou nas fotografias quem irá trazer agora a imagem de Nossa Senhora Aparecida
para o centro das celebrações são as figuras do clero: padres, bispos e cardeais. Essa
percepção é a chave de leitura que melhor ilustra a dimensão que essa devoção tomou dentro
da instituição: não é mais o povo (no sentido genérico do termo) que traz a imagem
milagrosa e sim os líderes da instituição que de alguma maneira se esforçar para se apropriar
dessa imagem e das narrativas em torno da mesma, hipótese que indagamos ao tratar do
imaginário social e suas ações.
Na introdução desse trabalho de pesquisa pontuamos a relevância dessas abordagens
para levantarmos hipóteses em relação a dimensão que essa devoção considerada popular
tomou ao ser institucionalizada no país.
Dados divulgados pelo Santuário recentemente mostram que no ano de 2018 mais de
12,6 milhões de pessoas visitaram o Santuário dedicado a Nossa Senhora Aparecida, no
município de Aparecida – SP. Esses números ilustram a potencialidade que a narrativa
registrada a partir dos relatos daqueles ribeirinhos do Vale do Paraíba Paulista ganhou.
Ainda hoje a devoção a Nossa Senhora Aparecida pode ser percebida nas duas
vertentes: devoção popular e devoção institucionalizada. Sem dúvida alguma é nessa
perspectiva que podemos compreender que o espaço da cultura é o espaço da circularidade,
do hibridismo, das tensões e conflitos, conceitos que nos estimulam a problematizar a
pluralidade cultural, rompendo com a perspectiva fria empregada pela palavra cultura no
singular.
Para Benjamin (1987) “o dom de despertar no passado as centelhas da esperança é
privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em
segurança se o inimigo vencer”. A partir dessa colocação, permitamos que as hipóteses aqui
levantadas em relação a problemática proposta possam ser centelhas de esperança na
sobrevivência de nossas narrativas, mesmo quando outros discursos as atravessem durante a
jornada.
131
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1931, p.35. Fonte: CDM.
138
Imagem 2 - Relato da passagem da imagem de N.S.A pelas cidades cortadas pela FCB de Aparecida ao Rio de Janeiro - RJ,
Almanak de Aparecida1932,p.32. Fonte: CDM
139
Imagem 3-- Relato da celebração de consagração de N.S.A realizada na Esplanada do castelo no Rio de Janeiro - RJ,
Almanak de Aparecida 1932,p.50. Fonte: CDM.
142
Imagem 6 - Frente da Igreja S. Francisco de Paula no Largo de mesmo nome localizada na região central da cidade do Rio
de Janeiro - RJ, onde oficialmente foi celebrada a missa de Proclamação de N.S.A. como Padroeira do Brasil 31/05/1931.
Almanak de Aparecida, 1932. Fonte: CDM.
143
Imagem 7- Tribuna da Esplanada do Castelo, onde aconteceu a Consagração do Brasil a nova Padroeira. No centro da
imagem o Presidente Getúlio Vargas e sua esposa. Almanak de 1932. Fonte: CDM.
Imagem 8 - Crianças vestidas de anjos que participaram da consagração realizada na Esplanada do castelo no Rio de
Janeiro - RJ. Almanak de 1932. Fonte: CDM.
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