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OPINIÃO17SEGUNDA-FEIRA, 23 DE DEZEMBRO DE 2013 A GAZETA

Por que, no meio da dor,os negros dançam e riem?

Leonardo BoffÉ teólogo e filósofo

Experiências importantes da vida pessoal, social e sazonal são celebrados com ritos, danças, músicase apresentações de máscaras. Estas representam as energias que podem ser benéficas ou maléficas.É nos rituais que ambas se equilibram e se festeja a primazia do sentido sobre o absurdo

Perspectivas paraa Saúde em 2014

Florisval MeinãoÉ presidente da Associação Paulista de Medicina

As eleições vão acirrar os debates sobre os melhores caminhos para se garantir o acesso à saúde de qualidade

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Milhares de pessoa em toda a Africa do Sulmisturam choro com dança, festa comlamentos pela morte de Nelson Mandela.É a forma como realizam culturalmente orito de passagem da vida deste lado para avida do outro lado, onde estão os anciãos,os sábios e os guardiães do povo, de seusritos e das normas éticas. Lá está agoraMandela de forma invisível, mas ple-namente presente acompanhando o povoque ele tanto ajudou a se libertar.

Momentos como estes nos fazem re-cordar de nossa mais alta ancestra-lidade humana. Todos temos nossasraízes na África, embora a grande maio-ria o desconheça ou não lhe dê im-portância. Mas é decisivo que nos rea-propriemos de nossas origens, pois elas,de um modo ou de outro, na forma deinformação, estão inscritas no nossocódigo genético e espiritual.

Refiro-me aqui tópicos de um texto quehá tempos escrevi sob o título “Somostodos africanos”, atualizado face à si-tuação atual mudada. De saída importadenunciar a tragédia africana: é o con-tinente mais esquecido e vandalizado daspolíticas mundiais. Somente suas terrascontam. São compradas pelos grandesconglomerados mundiais e pela Chinapara organizar imensas plantações de

grãos que devem garantir a alimentação,não da África, mas de seus países ounegociadas no mercado especulativo. Asfamosas “land grabbing” possuem, juntas,a extensão de uma França inteira. Hoje aÁfrica é uma espécie de espelho retrovisorde como nós humanos pudemos no pas-sado e podemos hoje ainda ser desumanose terríveis. A atual neocolonização é maisperversa que a dos séculos passados.

Sem olvidar esta tragédia, concentre-mo-nos na herança africana que se escondeem nós. Hoje é consenso entre os pa-leontólogos e antropólogos que a aventurada hominização se iniciou na África, cercade 7 milhões de anos atrás. Ela se aceleroupassando pelo homo habilis, erectus, nean-derthalense até chegar ao homo sapienscerca de 90 mil anos atrás. Depois de ficar4,4 milhões de anos em solo africano, estese propagou para a Ásia, há 60 mil anos;para a Europa, há 40 mil anos; e para asAméricas, há 30 mil anos. Quer dizer,grande parte da vida humana foi vivida naÁfrica, hoje esquecida e desprezada.

A África, além de ser o lugar geográfico denossas origens, comparece como o ar-quétipo primal: o conjunto das marcas,impressas na alma de todo ser humano. Foina África que este elaborou suas primeirassensações, onde se articularam as cres-

centes conexões neurais (cerebralização),brilharam os primeiros pensamentos, ir-rompeu a criatividade e emergiu a com-plexidade social que permitiu o surgimentoda linguagem e da cultura. O espírito daÁfrica está presente em todos nós.

Identifico três eixos principais do espíritoda África que podem nos inspirar na su-peração da crise sistêmica que nos assola.

O primeiro é o amor à Mãe Terra, aMama África. Espalhando-se pelos vastosespaços africanos, nossos ancestrais en-traram em profunda comunhão com aTerra, sentindo a interconexão que todasas coisas guardam entre si, as águas, asmontanhas, os animais, as florestas e asenergias cósmicas. Sentiam-se parte dessetodo. Precisamos nos reapropriar desteespírito da Terra para salvar Gaia, nossaMãe e única Casa Comum.

O segundo eixo é a matriz relacional. Osafricanos usam a palavra ubuntu quesignifica: “eu sou o que sou porque per-tenço à comunidade” ou “eu sou o que souatravés de você e você é você através demim”. Todos precisamos uns dos outros;somos interdependentes. O que a físicaquântica e a nova cosmologia dizem acer-ca de interconexão de todos com todos éuma evidência para o espírito africano.

A essa comunidade pertencem os mor-tos como Mandela. Eles não vão ao céu,pois o céu não é um lugar geográfico,mas um modo de ser deste nosso mun-do. Os mortos continuam no meio dopovo como conselheiros e guardiães dastradições sagradas.

O terceiro eixo são os rituais e ce-lebrações. Ficamos admirados que se

dedique um dia inteiro de orações porMandela com missas e ritos. Eles sen-tem Deus na pele, nós ocidentais, nacabeça. Por isso dançam e mexem todoo corpo enquanto nós ficamos frios eduros como um cabo de vassoura.

Experiências importantes da vida pes-soal, social e sazonal são celebradoscom ritos, danças, músicas e apresen-tações de máscaras. Estas representamas energias que podem ser benéficas oumaléficas. É nos rituais que ambas seequilibram e se festeja a primazia dosentido sobre o absurdo.

Notoriamente é pelas festas e ritos que asociedade refaz suas relações e reforça acoesão social. Ademais nem tudo é trabalhoe luta. Há a celebração da vida, o resgatedas memórias coletivas e a recordação dasvitórias sobre ameaças vividas.

Apraz-me trazer o testemunho pessoal deum dos nossos mais brilhantes jornalistas,Washington Novaes: “Há alguns anos, naÁfrica do Sul, impressionei-me ao ver quebastava se reunirem três ou quatro negrospara começarem a cantar e a dançar, comum largo sorriso. Um dia, perguntei a umjovem motorista de táxi: ‘Seu povo sofreu eainda sofre muito. Mas basta se juntaremumas poucas pessoas e vocês estão dan-çando, cantando, rindo. De onde vem tantaforça?’ E ele: ‘Com o sofrimento, nós apren-demos que a nossa alegria não pode de-pender de nada fora de nós. Ela tem de sersó nossa, estar dentro de nós’”,

Nossa população afrodescendente nosdá a mesma amostra de alegria quenenhum capitalismo e consumismo po-de oferecer.

O ano de 2013 foi marcado por intensodebate sobre a saúde pública, encerrandocom a aprovação de uma lei que interferiufortemente no setor. Foi modificado oprocesso de formação de médicos e doprocesso de especialização profissional,permitindo o ingresso de formados noexterior sem passar por um processo derevalidação de seus diplomas. Tambémdesrespeitou-se a legislação trabalhista, ao

contratá-los sem a garantia de seus direitos.Para agravar ainda mais a situação, amesma lei permite a abertura de umgrande número de escolas médicas, apesarda falta de corpo docente e de hospitaisapropriados para ensino de medicina.

Estas modificações foram feitas semuma discussão mais profunda com osdiversos setores envolvidos e certamen-te coloca em risco a qualidade do aten-

dimento prestado à população por meiodo SUS. O debate sobre o financiamentoda saúde foi deliberadamente esque-cido, em especial o projeto de lei deiniciativa popular que visa a garantirmais recursos para o SUS, anexado aoutros projetos em tramitação com for-te sinalização de que não será aprovadoem sua proposta original. Ou seja, maisuma vez é dado um passo atrás con-solidando o subfinanciamento do setorpor parte do governo federal.

Na área da saúde suplementar tam-bém o cenário demonstrou problemas.Pesquisa feita pela Associação Paulistade Medicina através do Instituto DataFolha revelou enormes dificuldades en-frentadas pelos usuários de planos de

saúde, notadamente quanto à marcaçãode consultas com especialistas, falta deleitos hospitalares e sérios problemasno atendimento de emergências.

O ano de 2014 deverá ser decisivo paranosso sistema de saúde. As eleições vãoacirrar os debates sobre quais os melhorescaminhos para se garantir o acesso aserviços de saúde de qualidade a toda apopulação. Os médicos, por sua posiçãoestratégica no sistema de saúde, têm apossibilidade de contribuir de maneirasignificativa para tanto e a APM, jun-tamente com as demais entidades mé-dicas, tem o dever de se envolver de-cisivamente neste debate, colocando comclareza suas críticas e principalmente suaspropostas para se atingir tal objetivo.

Documento:AG23CAON017;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:22 de Dec de 2013 20:54:00