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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
AMANDA YARA GENEROZO
PRODUÇÃO DE SENTIDOS NA INFÂNCIA:
MEDIAÇÕES NA RECEPÇÃO DA SÉRIE DE
ANIMAÇÃO DOUG FUNNIE
São Bernardo do Campo, 2015
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
AMANDA YARA GENEROZO
PRODUÇÃO DE SENTIDOS NA INFÂNCIA:
MEDIAÇÕES NA RECEPÇÃO DA SÉRIE DE
ANIMAÇÃO DOUG FUNNIE
Dissertação apresentada em cumprimento
parcial às exigências do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação Social,
da Universidade Metodista de São Paulo
(UMESP), para obtenção do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Laan Mendes de Barros.
São Bernardo do Campo, 2015
FICHA CATALOGRÁFICA
G286p Generozo, Amanda Yara
Produção de sentidos na infância: mediações na recepção da série de
animação Doug Funnie / Amanda Yara Generozo. 2015.
135 p.
Dissertação (mestrado em Comunicação Social) --Faculdade de
Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do
Campo, 2015.
Orientação: Laan Mendes de Barros
1. Narrativa seriada 2. Recepção - Televisão 3. Mediação 4. Doug
Funnie (Seriado) 5. Telespectador infantil I. Título.
CDD 302.2
FOLHA DE APROVAÇÃO
A dissertação de mestrado sob o título “Produção de sentidos na infância: mediações na
recepção da série de animação Doug Funnie”, elaborada por Amanda Yara Generozo, foi
defendida e aprovada em 10 de março de 2015, perante a banca examinadora composta por
Profa. Dra. Elizabeth Moraes Gonçalves (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Laan Mendes de
Barros (Titular/UNESP) e Profa. Dra. Maria Isabel Rodrigues Orofino (Titular/ESPM).
Declaro que o (a) autor(a) incorporou as modificações sugeridas pela banca examinadora, sob
a minha anuência enquanto orientador(a), nos termos do Art. 34 do Regulamento dos Cursos
de Pós-Graduação.
Assinatura do orientador:
Nome do orientador: Prof. Dr. Laan Mendes de Barros
Data: São Bernardo do Campo, 08 de maio de 2015.
Visto do coordenador do Programa de Pós-Graduação:
Área de concentração: Processos Comunicacionais
Linha de pesquisa: Comunicação Midiática nas Interações Sociais
Projeto temático: Mediações nos Processos de Recepção Televisiva
À minha sobrinha, Rafaela Generozo
Balthazar, que motivou e inspirou esta
pesquisa.
Em sua interação com as demais crianças na
escola ou no bairro, se dão uma ou várias re-
apropriações e se re-produz o sentido do que
foi visto na TV. Dessa maneira, o processo de
recepção “sai do lugar” em que está a
televisão e “circula” em outros cenários, em
que seguem atuando os telespectadores. Em
todos esses cenários, o processo de recepção
vai sendo mediado tanto pelas novas
situações, como pelos agentes e instituições
envolvidos (OROZCO, 2005, p. 34).
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, prof. Dr. Laan Mendes de Barros, por compartilhar seu conhecimento e
pela paciência e dedicação durante esta jornada;
À minha amiga profa. Ms. Aparecida Ribeiro dos Santos, por quem tenho profunda admiração
e respeito, pelo incentivo e apoio incondicional;
À Universidade Metodista de São Paulo;
Ao corpo docente do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Comunicação Social, em
especial, às professoras Dra. Elizabeth Gonçalves e Dra. Magali do Nascimento Cunha pelas
ricas contribuições;
À professora Dra. Maria Isabel Rodrigues Orofino pelas indicações de autores e textos que
colaboraram para a construção do referencial teórico desta pesquisa;
À Estadual José Mamede de Aquino e ao Colégio Engler Abelhinha Feliz pelo espaço de
pesquisa;
À Capes.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Esquemas narrativos 50
Tabela 2 – Tipificação das relações em Doug Funnie 69
Tabela 3 – Primeira temporada de Doug Funnie (1991): estética da repetição 72
Tabela 4 – Grupo 1: Caracterização dos estudantes por idade e gênero 95
Tabela 5 – Grupo 2: Caracterização dos estudantes por idade e gênero 96
Tabela 6 – Grupo 3: Caracterização dos estudantes por idade e gênero 96
Tabela 7 – Grupo 4: Caracterização dos estudantes por idade e gênero 97
Tabela 8 – Programas televisivos preferidos (Grupos 1 e 2) 99
Tabela 9 – Programas televisivos preferidos (Grupos 3 e 4) 102
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Evolução dos brinquedos óticos 24
Figura 2 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 59” e 1’43”) 58
Figura 3 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 2’07” e 3’07”) 59
Figura 4 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 3’54” e 5’11”) 59
Figura 5 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 5’37” e 7’37”) 60
Figura 6 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 8’24” e 9’15”) 60
Figura 7 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 9’23” e 10’17”) 61
Figura 8 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 10’25” e 11’11”) 61
Figura 9 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 05” e 51”) 62
Figura 10 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 2’04” e 3’03”) 62
Figura 11 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 3’41” e 4’08”) 63
Figura 12 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 4’23” e 5’33”) 63
Figura 13 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 6’02” e 7’41”) 64
Figura 14 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 8’25” e 9’17”) 64
Figura 15 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 9’22” e 10’58”) 65
Figura 16 – Sequência em que Doug escreve em seu diário 74
Figura 17 – Animação limitada: técnica de produção versus estilo de ilustração 74
Figura 18 – Estilo animação limitada 75
Figura 19 – Representação de O tênis de Doug criada por alunos da 3a série 119
Figura 20 – Representação de O tênis de Doug criada por alunos da 3a série 120
Figura 21 – Representação de O tênis de Doug criada por alunos da 3a série 120
Figura 22 – Representação de O tênis de Doug criada por alunos da 3a série 121
Figura 23 – Representação de O tênis de Doug criada por alunos da 3a série 121
LISTA DE ESQUEMAS
Esquema 1 – Método de análise dos episódios 66
Esquema 2 – Modelo triádico em O tênis de Doug 70
Esquema 3 – Modelo triádico em Doug cai no rock 70
Esquema 4 – Mapa das mediações 85
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 16
Estrutura da dissertação 20
CAPÍTULO I – ANIMAÇÃO, CRIANÇA E TV 23
1. Do nickelodeon às séries televisivas: breve trajetória do desenho animado 23
2. Infâncias na pós-modernidade 28
CAPÍTULO II – ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA 39
1. Hierarquia dos níveis: ações, personagens e discurso 39
2. Estética da repetição nas narrativas seriadas 45
3. Construção dos personagens de ficção 52
CAPÍTULO III – DOUG FUNNIE 57
1. Narrativas do cotidiano infantil 57
1.1. Sinopse do episódio O tênis de Doug 58
1.2. Sinopse do episódio Doug cai no rock 62
2. Desconstrução do universo ficcional 65
3. Estética da repetição e técnicas de produção 72
CAPÍTULO IV – RECEPÇÃO E MEDIAÇÕES 77
1. A gênese dos estudos de recepção: Stuart Hall e a Escola de Birmingham 77
2. Mediações comunicativas da cultura: perspectivas de Jesús Martín-Barbero 82
3. Enfoque integral da audiência: contribuições de Guillermo Orozco Gómez 88
CAPÍTULO V – PESQUISA DE RECEPÇÃO 94
1. Procedimentos metodológicos 94
2. Seleção das instituições de ensino 97
3. Corpus da pesquisa 98
3.1. Escola Estadual José Mamede de Aquino 98
3.2. Colégio Engler Abelhinha Feliz 101
4. Dinâmicas na exibição dos episódios 103
4.1. Escola Estadual José Mamede de Aquino 103
4.2. Colégio Engler Abelhinha Feliz 110
5. Articulações entre o referencial teórico e a pesquisa de recepção 115
CONCLUSÃO 125
REFERÊNCIAS 129
GENEROZO, Amanda Yara. Produção de sentidos na infância: mediações na recepção da
série de animação Doug Funnie. 2015. 135f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social)
– Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo.
RESUMO
Esta pesquisa propõe uma reflexão a respeito dos processos de recepção de produtos culturais
por parte do telespectador infantil. A problematização está em investigar, valendo-se dos
referenciais teóricos das mediações comunicativas da cultura e do enfoque integral da
audiência, como as crianças com idade entre 7 e 12 anos interagem com as narrativas
audiovisuais, especialmente com a série de animação televisiva, para desta perspectiva
compreender como se dão a apropriação e a produção de sentidos no cotidiano, tomando-se
por base a interpretação do desenho animado Doug Funnie. O estudo emprega como
metodologia a revisão de literatura combinada ao grupo de discussão norteado pelo modelo
teórico-metodológico da mediação múltipla formulado por Guillermo Orozco Gómez, com
base no paradigma das mediações de Jesús Martín-Barbero. A pesquisa de recepção, realizada
em ambiente escolar, constatou que a comunicação midiática é de natureza dialógica e
implica em reconhecimento e projeção do interlocutor no universo da ficção, assim, a
produção de sentidos em relação ao desenho animado não está contida no audiovisual, mas no
contexto sociocultural no qual interlocutores relacionam-se entre si e com os meios. E desta
interação emergem a compreensão e a recriação dos produtos culturais, sinalizando que as
interpretações do telespectador infantil revelam a sua maneira de ver o mundo.
Palavras-chave: Narrativa seriada. Recepção televisiva. Mediações. Telespectador infantil.
GENEROZO, Amanda Yara. Production of meanings in childhood: mediations in reception
of the animated series Doug Funnie. 2015. 135pp. Dissertation (Master’s Degree in Social
Communication) – Metodista University of de São Paulo, São Bernardo do Campo.
ABSTRACT
The present research is intended for bringing a reflection about the reception processes of
cultural products by child viewers. The questioning lies in investigating it, making use of the
theoretical framework of communicative mediations of culture and full focus on audience,
that is, the manner how children aged between 7 and 12 interact with audiovisual stories,
especially animated television series, in order to understand, from this perspective, the
acquisition and the production of meaning in daily life, taking the interpretation of the cartoon
Doug Funnie as basis. As methodology, the study applies literature review combined with a
discussion group guided by the theoretical and methodological model of multiple mediation
formulated by Guillermo Orozco Gómez, based on the mediation paradigm of Jesús Martín-
Barbero. The reception research, carried out in the school environment, verified that media
communication has a dialogic nature and implies recognition and projection of the viewer
with the fiction universe. Therefore, the production of meaning in what concerns television
cartoon is not contained in the audiovisual scenario, but in the social and cultural context in
which interlocutors relate with each other and with the media. From this interaction,
understanding and development of cultural products emerge, then signaling that the
interpretation of the child viewers reveals their particular manner of seeing the world.
Keywords: Series narratives. Television approach. Mediations. Child viewer.
GENEROZO, Amanda Yara. Producción del significados en la infancia: mediación en la
recepción de la serie animada Doug Funnie. 2015. 135pp. Disertación (Maestría en
Comunicación Social) – Universidad Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo.
RESUMEN
La presente investigación tiene la intención de propiciar reflexión sobre los procesos de
recepción de productos culturales por parte de niños espectadores. La indagación yace en
llevar a cabo la investigación haciendo uso del marco teórico de mediación comunicativa de
la cultura y enfoque total en la audiencia, es decir, la forma en la cual los niños entre 7 y 12
años interactúan con historias audiovisuales, especialmente series de televisión animadas,
para entender, desde esta perspectiva, la adquisición y producción del significado en la vida
diaria tomando la interpretación de la caricatura Doug Funnie como base. Como metodología,
el estudio aplica una revisión de literatura combinada con una discusión grupal guiada por el
modelo teórico y metodológico de mediación múltiple formulado por Guillermo Orozco
Gómez, basado en el paradigma de mediación de Jesús Martín-Barbero. La investigación de
recepción, llevada a cabo en un ambiente escolar, verificó que la comunicación mediática
tiene una naturaleza dialógica e implica el reconocimiento y proyección del espectador con el
universo ficticio. Por lo tanto, la producción del significado en cuanto a caricaturas televisivas
no se encuentra contenido en el escenario audiovisual sino en el contexto social y cultural en
el cual los interlocutores se relacionan unos con otros y con los medios. Desde esta
interacción emerge el entendimiento y desarrollo de productos culturales y después se señala
que la interpretación de niños espectadores revela su manera particular de ver el mundo.
Palabras clave: Series narrativas. Enfoque televisivo. Mediaciones. Niño espectador.
16
INTRODUÇÃO
A televisão, com suas narrativas e personagens, está presente em 97,2%1 dos lares do
Brasil. O país é um dos maiores consumidores de TV do mundo e as crianças brasileiras2,
entre 4 a 11 anos, permanecem diariamente com a televisão ligada durante 5 horas e 22
minutos. Na TV aberta é clara a predominância de conteúdos voltados ao público adulto. Em
entrevista concedida, em 2012, ao Público na TV, da TV Brasil, Vania Lúcia Quintão
Carneiro, doutora em Educação e docente da Universidade de Brasília (UnB), alertou para a
redução significativa das atrações direcionadas aos telespectadores infantis nas principais
emissoras comerciais do país. O programa Ver TV3, exibido em 2014, também na TV Brasil,
mostrou o movimento das emissoras brasileiras para migrar a programação infantil para os
canais por assinatura, de acordo com a reportagem, entre os motivos destas mudanças na
grade televisiva estão a fraca audiência e a baixa receita advinda da publicidade. Alinhados a
esta tendência, os canais infantis da TV paga exibem cada vez mais novos desenhos animados
e diversidade de conteúdos audiovisuais. Uma pesquisa realizada pela Sophia Mind4, em
2011, revela que os canais de TV preferidos pelas crianças são aqueles em que as séries de
animação comandam a grade de programação – Discovery Kids, Cartoon, Disney Channel,
Nickelodeon e TV Rá Tim Bum. Cabe ressaltar que os canais infantis da TV por assinatura
devem, como regulamenta a Lei 12.485, disponibilizar no mínimo três horas e meia semanais
para a exibição das produções audiovisuais nacionais.
As horas dispensadas ao consumo de produtos audiovisuais indicam que as crianças
passam mais tempo em frente à TV – muitas vezes assistindo à atrações destinadas para
outras faixas etárias – do que presentes na sala de aula. Mesmo com o advento das
tecnologias, que possibilitou às infâncias novas formas de socialização, interação e
aprendizagem, em razão da desigualdade social existente no país – não apenas do ponto de
vista da aquisição de dispositivos tecnológicos, mas especialmente das competências de usos
criativos e produtivos das TICs – a televisão continua a ter importância como meio de
comunicação de massa e como instituição na formação das culturas da infância.
1 Resultados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD), realizada anualmente pelo IBGE,
relativas à TIC (Telefones Fixos e Celulares, Microcomputadores, Internet, Rádio e Televisão). 2 Dados do Painel Nacional de Televisão Ibope/Media Workstation (2012). 3 O programa Ver TV é exibido pela TV Brasil (EBC – Empresa Brasil de Comunicação) e apresenta debates
críticos a respeito do papel da televisão na sociedade brasileira. 4 Sophia Mind – empresa de pesquisa e inteligência de Mercado do grupo Bolsa de Mulher.
17
Diante deste cenário, a reflexão acerca dos processos de recepção televisiva e o
telespectador infantil se torna relevante. Neste sentido, a problematização desta pesquisa está
em investigar como as crianças interagem com as narrativas audiovisuais, especificamente
com as séries de animação, para desta forma compreender como se dá a apropriação e a
produção de sentidos por parte do telespectador infantil.
No Brasil, diferente de outros países da América Latina, como o México e a Colômbia,
parte significativa das pesquisas a respeito da criança e produtos culturais (revistas, desenhos
animados, séries televisivas entre outros) toma como objeto de estudo a influência direta –
negativa ou positiva – do conteúdo midiático sobre a audiência infantil. Nesta visão teórico-
metodológica, o processo comunicacional é investigado a partir do polo do emissor e do
conteúdo de suas mensagens, em uma relação de causa e efeito com o receptor.
Esta investigação trabalha com a chave da compreensão que implica em múltiplos
trajetos de leitura. Ao assistir o desenho animado, a criança inter-relaciona a ficção ao seus
contextos de vida. E nesta perspectiva, a recepção transforma-se em uma relação dialógica,
mediada pela cultura, em que não há subordinação entre emissores e receptores, ambos são
interlocutores com competências para dialogar entre si e dialogar com os conteúdos
midiáticos, interpretá-los e produzir novos sentidos.
Embora os estudos de recepção tenham conquistado um espaço expressivo na última
década, particularmente na Compós - Associação Nacional dos Programas de Pós-
Graduação em Comunicação e na Alaic – Associação Latino Americana de Investigadores de
Comunicação, a apresentação de artigos com a temática criança e desenho animado em
processos comunicacionais de natureza dialógica não tem sido frequente. De acordo com
Nilda Jacks (2009), dentre as pesquisas empíricas de recepção realizadas na América Latina,
as mulheres e as crianças são menos estudadas. Na Compós, dos 49 textos arquivados na
biblioteca do GT Recepção: processos de interpretação, uso e consumo midiáticos, entre
2010 e 2014, apenas um traz uma abordagem a respeito de recepção e criança, contudo, a
discussão se dá na dimensão do consumo midiático. Na Alaic, dos 76 trabalhos apresentados
no GT Estudios de recepción, nos Congressos de 2010 e 2012, apenas quatro fazem referência
à recepção infantil; a interação entre criança e série de animação não foi discutida em nenhum
dos artigos.
O objetivo geral do estudo Produção de sentidos na infância: mediações na recepção
da série de animação Doug Funnie é investigar como a criança interage com a série de
animação. Especificamente, a pesquisa se propõe a:
18
1. Compreender como se dá a apropriação e a produção de sentidos do telespectador
infantil tomando-se por base a interpretação do desenho animado Doug Funnie e as
mediações múltiplas que contornam a recepção;
2. Examinar como as apropriações e as representações se deslocam para as interações
sociais no ambiente da escola;
3. Identificar semelhanças e diferenças nas apropriações e representações da criança em
razão do contexto sociocultural no qual ela está inserida.
A pesquisa utilizou como metodologia a revisão de literatura combinada ao grupo de
discussão norteado pelo modelo teórico-metodológico da mediação múltipla formulado por
Guillermo Orozco Gómez com base no paradigma das mediações culturais da comunicação,
de Jesús Martín-Barbero. Para a investigação teórico-prática foram aplicados os seguintes
procedimentos metodológicos para a sistematização dos conhecimentos:
a) estudo bibliográfico e estruturação do referencial teórico;
b) observação e seleção dos episódios da série Doug Funnie;
c) análise da estrutura narrativa de Doug Funnie;
d) realização dos grupos de discussão;
e) articulações entre o referencial teórico e a pesquisa empírica.
A escolha da série Doug Funnie para estudo de recepção provocada se deu com base em
uma premissa básica: a animação cumpre as funções de entreter e educar tendo em vista a
contextualização – de personagens, temática, espacial e temporal – da narrativa. Desta forma,
pensou-se na hipótese de que este desenho animado poderia oferecer inúmeras possibilidades
de discussão – e por que não de aprendizagem – junto às crianças pesquisadas. Para os grupos
de discussão foram selecionados dois episódios: O tênis de Doug e Doug cai no rock. O
primeiro episódio debate o consumo como mediador das relações sociais na infância e o
segundo aborda a preferência cultural em termos musicais e a construção do ídolo entre as
crianças.
Para a investigação empírica foram selecionadas duas escolas que ofertam o ensino
fundamental. A Escola Estadual José Mamede de Aquino, localizada em um bairro periférico
de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, e o Colégio Engler Abelhinha Feliz,
localizado no Novo Jardim Pagani, bairro tradicional da cidade de Bauru, interior de São
Paulo.
19
Em cada uma destas escolas formou-se dois grupos de crianças com idade entre 8 e 12
anos, ou seja, estudantes que cursam entre a 3a e a 5 séries do ensino fundamental. A faixa
etária dos estudantes pesquisados foi definida com base nas perspectivas social e de produção
e consumo de bens culturais. Para Piaget e Inhelder (2012), entre 7-8 e 11-12 a criança está na
fase das operações concretas na qual a socialização e a conquista da personalidade individual
tornam-se relevantes para o campo das relações interpessoais, principal temática da série de
animação Doug Funnie. Alinhada a esta concepção de Piaget e Inhelder (2012), foram
observados os critérios de segmentação praticados pela indústria do entretenimento que, de
acordo com Nesteriuk (2011), classificam-se em toddlers (até três anos de idade),
preschoolers (de três a seis anos), kids (seis a oito anos), tweens (8 a 12 anos) e teens (12 a 15
anos). Assim, as crianças envolvidas nesta pesquisa vivenciam a fase das operações concretas
e integram o segmento tweens.
Nas escolas pesquisadas, as dinâmicas5 de investigação se deram do seguinte modo:
a) diálogo inicial com as crianças participantes dos grupos de discussão;
b) exibição dos episódios de Doug Funnie (aproximadamente 12 minutos);
c) observação dos processos de recepção pelo mediador-pesquisador;
d) provocação inicial por intermédio do pesquisador;
e) dinamização da discussão com base no modelo teórico-metodológico da mediação
múltipla.
Para interpretação e análise do material de pesquisa apurado junto aos grupos de
discussão foram aplicados os procedimentos metodológicos descritos abaixo:
a) observação e descrição das dinâmicas de recepção capturadas em vídeo;
b) seleção e transcrição de trechos das discussões pertinentes ao tema da pesquisa;
c) análise e interpretação das falas transcritas;
d) articulação entre o referencial teórico e os processos de interpretação, apropriação e
produção de sentidos das crianças pesquisadas.
No nível da interpretação, esta pesquisa se propôs a relatar, com o maior nível de
precisão possível, os significados atribuídos às narrativas de Doug Funnie pelos estudantes,
sem perder de vista as experiências subjetivas das crianças e seus contextos de vida. Orozco
(2005, p. 38) esclarece que “[...] o importante com a investigação do telespectador na sua
5 A pesquisa empírica de recepção realizada com os grupos de discussão está registra em vídeo.
20
interação com a TV, é descobrir os processos de recepção e as ‘práticas’ de mediação dos
quais são objeto. Para isso, basta ter ‘comparações suficientes’ e passar por cima dos casos
individuais”. No nível das articulações, as interpretações e percepções estão concatenadas ao
referencial teórico dos estudos de recepção.
Estrutura da dissertação
A dissertação está estruturada em cinco capítulos. Os capítulos I e IV revisitam os
referenciais teóricos da sociologia da infância e dos estudos de recepção para articulá-los, no
capítulo V, à pesquisa empírica com os telespectadores infantis. Os capítulos II e III são
dedicados à estrutura da narrativa na dimensão teórica e aplicada à análise da série Doug
Funnie.
CAPÍTULO I – ANIMAÇÃO, CRIANÇA E TV
Apresenta uma breve trajetória da animação, desde a invenção e a evolução dos
brinquedos óticos até os mecanismos de massificação que contribuíram para popularizar os
desenhos animados exibidos no cinema e na televisão; este capítulo traz ainda técnicas de
produção e estilos de ilustração criados no século XX que são referências universais para a
atual indústria do entretenimento. Tal trajetória é relatada com base nos textos de Alberto
Lucena Jr. e Sérgio Nesteriuk.
Em um segundo momento, o capítulo debate a contextualização das infâncias na
contemporaneidade, visualizando os modos de significação e de atuação da criança sobre o
mundo por intermédio dos processos de reprodução interpretativa que levam às novas
dinâmicas de socialização, de aprendizagem, de consumo e de interação midiática e
tecnológica, em outras palavras, às culturas das infâncias. Estas reflexões à respeito da criança
pós-moderna são fundamentadas nas teorias de Manuel Jacinto Sarmento e William Corsaro.
CAPÍTULO II – ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA
Neste capítulo, a visão estruturalista dialoga com as concepções da indústria do
entretenimento a respeito da construção das narrativas. Tais articulações são embasadas na
teoria dos níveis que analisa a organização e as relações estabelecidas entre os elementos
fundamentais da estrutura narrativa – ações, personagens e discurso. O estudo faz uma
abordagem mais específica a cerca dos personagens para compreender os recursos de
21
tipicidade e verossimilhança que trabalham o reconhecimento e a projeção dos receptores no
universo ficcional. Por fim, o texto discute a estética da repetição recorrente nos produtos
culturais contemporâneos, relacionando os modos de produção aos aspectos de recepção
midiática, especialmente das narrativas seriadas. A abordagem busca subsídios teóricos nos
ensaios de Tzvetan Todorov, Roland Barthes, Umberto Eco, Omar Calabrese e Sérgio
Nesteriuk.
CAPÍTULO III – DOUG FUNNIE
Tomando-se por base o referencial teórico exposto no capítulo anterior, este capítulo
traz a análise estrutural das narrativas da série de animação Doug Funnie. A proposta é
desconstruir o universo ficcional do desenho animado para identificar as relações
estabelecidas entre os personagens, a lógica das ações nos episódios e os recursos discursivos
utilizados para narrar a história aos receptores.
CAPÍTULO IV – RECEPÇÃO E MEDIAÇÕES
Discute as mediações comunicativas da cultura e o enfoque integral da audiência como
os novos paradigmas dos estudos de recepção. Para estas perspectivas teóricas, nos processos
de comunicação, a interpretação se converte em apropriações que extrapolam os sentidos
contidos nas mensagens midiáticas para circular na sociedade, desdobrando-se em produção
de novos sentidos que são legitimados e reincorporados às práticas sociais. Neste sentido, o
receptor supera a figura do simples decodificador em busca do significado original codificado
pelo emissor para assumir o papel de interlocutor, um sujeito social em plena interação no
campo da recepção. Os autores referências para este capítulo são Jesús Martín-Barbero e
Guillermo Orozco Gómez.
CAPÍTULO V – PESQUISA DE RECEPÇÃO
Descreve, analisa e interpreta os dados coletados na pesquisa de recepção junto às
crianças com idade entre 8 e 12 anos que frequentam o ensino fundamental. A descrição relata
as dinâmicas de exibição dos episódios de Doug Funnie e o diálogo com os estudantes,
apresentando transcrições das falas captadas no ambiente escolar. A análise e a interpretação
articulam esta investigação empírica ao paradigma das mediações comunicativas da cultura,
de Jesús Martín-Barbero, e ao modelo teórico-metodológico da mediação múltipla, de
Guillermo Orozco Gómez.
22
Os tempos contemporâneos incluem, nas
diferentes mudanças sociais que os
caracterizam, a reinstitucionalização da
infância. As ideias e representações sociais
sobre as crianças, bem como as suas
condições de existência, estão a sofrer
transformações significativas, em homologia
com as mudanças que ocorreram na
estruturação do espaço-tempo das vidas
quotidianas, na estrutura familiar, na escola,
nos mass-media, e no espaço público
(SARMENTO, 2004).
23
CAPÍTULO I – ANIMAÇÃO, CRIANÇA E TV
1. Do nickelodeon às séries televisivas: breve trajetória do desenho animado
Em Dramaturgia de série de animação, Sérgio Nesteriuk (2011) argumenta que a
estrutura central da animação tem origem em duas manifestações artístico-culturais: primeiro,
nos registros feitos pelo homem primitivo nas cavernas, nos quais a narrativa era sustentada
pela imagem fixa; e, mais tarde, no teatro de bonecos, inventor do movimento que trouxe vida
à narrativa.
Na concepção de Alberto Lucena Junior (2011) a produção visual do desenho animado
se define na relação vital entre técnica e estética. “Técnica e estética convivem em simbiose,
nutrem-se intimamente uma da outra, permitindo desta forma uma evolução constante dos
procedimentos para a elaboração plástica” (LUCENA JR., 2011, p. 28).
A evolução das técnicas de animação se confunde com a invenção e o aperfeiçoamento
dos brinquedos óticos. Em 1645, Athanasius Kircher criou a lanterna mágica, um dispositivo
composto por uma caixa e espelhos curvos que permitia a projeção de slides pintados em
lâminas de vidro. O invento despertou o interesse de cientistas da época que perceberam no
equipamento um uso potencial para o entretenimento. De fato, no século XVIII, este
brinquedo tecnológico havia alcançado a popularidade e foi reutilizado, com poucas
adaptações, por Etienne Gaspard Robert para criar e exibir o espetáculo do gênero macabro
Fantasmagorie (LUCENA JR., 2011).
No mesmo período, o cientista Peter Mark Roget publicou uma pesquisa que contribui
para aprimorar os brinquedos óticos de ilusão do movimento. De acordo com Lucena Jr.
(2011, p. 33-34) o estudo revelou que “[...] o olho humano combina imagens vistas em
sequência num único movimento se forem exibidas rapidamente, com regularidade e
iluminação adequadas”.
A partir da experiência da lanterna mágica, responsável pelo sucesso do show
Fantasmagorie, aliada à pesquisa de Peter Mark Roget, diversos dispositivos foram
inventados, todos com a pretensão de aperfeiçoar a técnica da animação em busca de
movimentos mais convincentes aos olhos do espectador. Novas tecnologias foram aparecendo
rapidamente.
24
Figura 1 – Evolução dos brinquedos óticos
Imagem elaborada pela autora da pesquisa com base no texto de Lucena Jr. (2011).
Em 1825, surgiu o taumatroscópio, mas para o campo da animação não houve nenhuma
contribuição efetiva, uma vez que o dispositivo movimentava apenas duas imagens
desenhadas nas duas faces de um círculo. Entre 1828 e 1832, Joseph Plateu e Simon von
Stampfer criaram o fenaquistoscópio e o estroboscópio que traziam a ilusão da animação por
meio de movimentos cíclicos de discos giratórios. William Horner inventou, em 1834, o
zootroscópio, utilizando os mesmos princípios tecnológicos dos brinquedos construídos pelos
cientistas Plateu e Stampfer. A partir de 1968, o flipbook começou a ser utilizado como
técnica de animação, este recurso simples, prático e de baixo investimento financeiro – um
livro com imagens sequenciais no qual os desenhos ganhavam vida por intermédio da
movimentação rápida das páginas – se tornou a principal referência para os animadores
daquela época (LUCENA JR., 2011).
Curioso notar que nesta primeira fase do cinema de animação, os principais inventores
envolvidos com as técnicas de ilusão do movimento atuavam no campo das ciências e não da
arte. Logo, durante aquele período, a animação não obteve avanços significativos em relação
à estética.
De acordo com Nesteriuk (2011) o primeiro registro de exibição de um curta-metragem
de animação data de 1892, quando o pintor Chrales-Émile Reynaud utilizou o praxinoscópio6
para apresentar as Pantomimes lumineuses no Musée Grévin, na França. As animações, com
até quinze minutos de duração, já eram elaboradas dentro de alguns princípios
cinematográficos: apresentavam cores, personagens, enredos, cenários e trilha sonora
sincronizada aos movimentos. O Teatro Óptico de Reynaud fez sucesso e cativou o público
mesmo após a invenção do cinema pelos irmãos Lumière, em 1895.
6 Brinquedo ótico estruturado por tambor, espelhos e fita de tecido transparente na qual eram feitas as ilustrações
que permitia a projeção das imagens em movimento em um cenário.
25
Lucena Jr. (2011, p. 37) discorda e argumenta que as apresentações de Reynaud se
aproximavam dos shows de lanterna mágica e em razão de não ter desenvolvido uma
formulação artística acabada, o pintor não contribui para a linguagem da arte-animação. Para
Lucena Jr. (2011, p. 41), cabe ao artista plástico, James Stuart Blackton, o mérito pela
produção do primeiro desenho animado, intitulado Humorous phases of funny faces, em 1906.
Blackton fez uso, pela primeira vez, da técnica frame a frame e acrescentou à animação
efeitos especiais inspirados nas produções de Georges Méliès. Contudo, o enredo era
inexistente e a animação se resumia a uma sequência de imagens sem coerência.
Embora não haja consenso entre os dois autores, em termos de linguagem da animação,
Pantomimes lumineuses, de Reynaud, está mais próxima dos desenhos animados produzidos
atualmente por unir ilustração, movimento, trilha sonora e uma narrativa coerente com
personagens, cenários e enredo (ver animações na mídia anexa).
A partir de 1910 as animações de curta-metragem passaram a ser exibidas em pequenas
salas de projeção denominadas nickelodeons – nome que inspirou o canal de TV por
assinatura direcionado ao telespectador infantil e produtora de séries de animação
Nickelodeon. As sessões no nickelodeon tinham preços populares e eram acompanhadas por
trilha sonora ao vivo. Com o sucesso das animações de curta-metragem construídas por
narrativas únicas com até trinta minutos, os animadores perceberam uma oportunidade para
produzir e exibir séries de animação. “Ao invés de se assistir a um curta unitário, a ideia era
que universos e personagens que tivessem boa aceitação pudessem cativar o público e fazê-lo
retornar e assistir a um novo episódio” (NESTERIUK, 2011, p. 27).
Omar Calabrese (1987) e Nesteriuk (2011) concordam que a serialidade transformou
definitivamente os modos de produção e de recepção do audiovisual. Histórias fragmentadas,
descontínuas e com repetição frequente de elementos centrais – que tinha como objetivo
agilizar a produção e economizar recursos financeiros – exigiram novas competências do
telespectador para interpretar e compreender a animação.
Gradativamente, os nickelodeons foram desaparecendo para dar espaço às salas de
cinemas maiores e mais confortáveis, especialmente por conta do início da exibição dos
filmes de longa-metragem. As séries animadas atraíram espectadores para as salas de cinema
entre 1910 e 1960 (NESTERIUK, 2011).
Com a técnica mais aprimorada – a partir do uso do fotograma – a animação encontrou
em Emile Cohl e Winsor McCay os caminhos para a consolidação do status de arte autônoma.
Cohl deixou como herança para as gerações futuras de desenhistas seu estilo de linhas simples
e expressivas e estética incoerente, inspiradas no Dadaísmo e no Surrealismo.
26
[...] Cohl conseguiu extraordinárias animações em movimentos de incrível fluidez,
com figuras que não se limitavam às duas dimensões do suporte, mas permitiam
explorar a profundidade virtual do espaço tridimensional através do tratamento
ilusório do escorço e do jogo perspectivo. Os elementos do universo artístico, com
suas infinitas possibilidades de sintaxe plástica, adentravam verdadeiramente no
emergente do cinema de animação, dando origem a uma nova arte (LUCENA JR.,
2011 p. 51).
McCay, por outro lado, imprimiu à animação o estilo gráfico sofisticado, referenciado
em suas histórias em quadrinhos, que se tornou uma linguagem própria do artista. A inovação,
além da estética próxima ao realismo, estava na deformação e atribuição de características de
personalidade aos personagens, utilizadas até hoje nos desenhos animados (LUCENA JR.,
2011). Nesteriuk (2011, p. 50) explica que o estilo do desenho animado compreende “[...] um
conjunto de elementos e estratégias de representação do som e da imagem capazes de
estabelecer um gosto formal comum”. Emile Cohl e Winsor McCay consolidaram dois estilos
de ilustrações – a simplicidade e o realismo – que mesmo após numerosas releituras de
animadores contemporâneos e adaptações às novas tecnologias, são identificados nas
produções audiovisuais da atualidade.
Cohl e McCay utilizaram a mesma técnica: tinta nanquim e papel arroz para produzir
cada um dos fotogramas necessários para criar um desenho animado. É possível imaginar o
quanto estes processos de criação e de produção eram dispendiosos em termos de tempo e de
recursos financeiros. Após dominada a arte e a técnica da animação – pelo menos para a
época – chegou-se a um novo empasse: a popularização do cinema fez com que a audiência
nas salas de exibição aumentasse e para suprir a demanda de prazo e de orçamento da recente
indústria do entretenimento era preciso agilizar e baratear a produção de desenhos animados,
sem perder a qualidade estética e técnica alcançada até aquele momento. Surgiram então os
estúdios de animação que implementaram a produção em escala com processos de trabalho
fragmentados que favoreciam a reutilização de elementos criados anteriormente para outras
sequências ou episódios da série animada (LUCENA JR., 2011; NESTERIUK, 2011).
Na década de 1950, teve início a produção de séries de animação para a TV. Neste
mesmo período, a United Production of America (UPA) 7 criou a técnica de animação
limitada (ou animação econômica), desenvolvida por meio do uso do acetato, permitindo que
“desenhos animados pudessem ser produzidos de maneira relativamente mais rápida e barata
também para a televisão” (NESTERIUK, 2011, p. 29). A animação limitada se destacou pela
simplicidade compositiva da ilustração. Lucena Jr. (2011, p. 129) menciona que “As
7 United Production of America (UPA) – Estúdio de animação americano fundado por Zack Schwartz, David
Hilberman e Stephen Bosustow, em 1943.
27
configurações da UPA se apoiavam nas mais recentes conquistas estéticas da arte moderna
surgidas a partir do cubismo, com ênfase na geometria e nas linhas simples encontradas nas
telas de Picasso, Matisse, Modigliani, Klee, entre outros”.
A pintura, por sua vez, apresenta uma estrutura mais “chapada”, com reduzidas
variações em sua paleta de cores e em seu degradê. A retificação de formas
orgânicas e o uso de pinturas “chapadas” não chegaram a provocar grandes
incômodos ao público, visto que este novo estilo de animação está mais próximo
de uma estética contemporânea, presente nas artes e no design (NESTERIUK,
2011, p. 51).
Em oposição à animação limitada, o estilo realista – ou animação total – retrata
minuciosamente as representações do mundo real, assim, compõe a animação com traços
sofisticados e movimentos perfeitos. Para alguns animadores este estilo corresponde a “um
fator limitador de exploração de suas potencialidades criativas, estéticas e de linguagem”
(NESTERIUK, 2011, p. 50). Lucena Jr. (2011, p. 120) defende que “[...] a arte também
necessita de um mínimo de estrutura lógica a partir da qual se permita o devaneio criativo
ilimitado”. A animação total tem como principal representante os estúdios Disney.
Em 1970, as séries de animação deixaram de ser exibidas no cinema “[...] muitas destas
séries inicialmente produzidas para o cinema foram e, em alguns casos, ainda são
reaproveitadas e reprisadas em inúmeros canais de televisão por todo o mundo”
(NESTERIUK, 2011, p. 27). A massificação da TV foi a principal responsável pela mudança
na trajetória da animação: primeiro, a transição das telas do cinema para as telas da TV e,
depois, o redirecionamento das produções animadas para o público infantil. De acordo com
Lucena Jr. (2011, p. 136) “Os estúdios tradicionais passaram a desenvolver experiências com
vistas à produções que oferecessem qualidade satisfatória a baixo custo – uma tarefa
dificílima numa época em que não havia processos para automatização da animação de
personagens”. Estes deslocamentos impactaram o setor do entretenimento, visto que recriar os
personagens que faziam sucesso no cinema, produzidos em animação total, para competir
com as animações limitadas pensadas para o telespectador infantil, pouco exigente, havia se
tornado financeiramente inviável.
Nos anos 1980, o avanço da computação gráfica oportunizou novas perspectivas à
animação. A tecnologia digital foi gradativamente incorporada pelos estúdios, possibilitando
qualidade estética superior e atendimento às exigências de prazos e de orçamento da televisão.
Superados os desafios de produção, o desenho animado se firmou como um importante
produto cultural da promissora indústria do entretenimento, conquistando prestígio e espaço
nas grades da programação televisiva.
28
Recentemente, com a redução da programação direcionada para as crianças nas
principais emissoras comerciais do país, a animação ganhou outras telas para exibição. Os
canais da TV por assinatura, especializados no telespectador infantil, exibem novas produções
a cada dia, exigindo dos estúdios de animação capacidade inventiva para criação e renovação
dos desenhos animados, a fim de cativar os telespectadores e manter as séries animadas como
a atração televisiva preferida entre as crianças de diferentes idades.
2. Infâncias na pós-modernidade
O contexto pós-moderno despertou o interesse pelos temas da infância. O atual debate a
respeito do “ser criança” no século XXI envolve a comunidade acadêmica e a sociedade de
maneira geral, abrangendo as esferas pública e privada, esta última no que tange aos modos
de produção e padrão de consumo idealizados para o público infantil. A questão central desta
discussão está em compreender qual a representação da infância na contemporaneidade que
leva a outras reflexões: como delimitar a fase da infância e com base em quais parâmetros se
estabelece este limite? Qual lugar a criança ocupa no mundo pós-moderno? E, por fim, qual o
papel da infância na sociedade midiatizada?
Fernanda Martineli e Alessandra Moína (2009, p. 62) relatam que a infância é um
conceito construído socialmente, por isso seu significado é contextualizado e distintas são as
representações da infância em diferentes períodos históricos e culturas diversas. Antes mesmo
de debater os temas da infância, é preciso revisitar os contextos histórico-sociais nos quais a
infância se consolidou.
Anterior à modernidade, como descreve Manuel Jacinto Sarmento (2004), a criança foi
categorizada puramente como um ser biológico, seguindo nestas condições de vida até a
entrada precoce no mundo adulto. Durante um longo período, a infância carregou o sentido
literal da palavra – infante “o que não fala” –, em outros termos, a criança era percebida pela
sociedade como um sujeito sem voz, privado de seu status social e desprovido de autonomia
existencial.
A institucionalização da infância tem suas raízes na modernidade em razão das
transformações ocorridas no âmbito social. Primeiro, a democratização da escola pública e a
obrigatoriedade do ensino gratuito – instituído como direito da criança à educação – resultou
na formação escolar das classes populares e implicou em redução da força de trabalho
29
infantil. Outro fator relevante foi o resgate da família como instituição social; o núcleo
familiar retomou o seu papel de fomentador do desenvolvimento cognitivo e social da criança,
assim como foi atribuído às famílias o dever de apoio e controle da infância (SARMENTO,
2004). A terceira dimensão destas mudanças condicionou-se ao campo semântico das práticas
sociais para sistematizar rituais de significação da infância que Sarmento (2004) conceituou
como administração simbólica da infância. Este conjunto de expectativas em relação à
infância criou diretrizes para o convívio social da criança, legitimando padrões de
comportamento socialmente aceitos (o que vestir, como alimentar-se, quais lugares são
apropriados para frequentar, a obrigatoriedade da atividade escolar) e, ao mesmo tempo, a
isolou do mundo adulto, excluindo sua participação nas esferas econômica e cultural.
Nesta nova conjuntura, a escola se transformou no principal espaço para a socialização
da criança, uma vez que a aprendizagem se definiu como atividade central da infância.
William Corsaro (2002, p. 114) argumenta que a escola é uma instituição socializadora
porque promove um ambiente favorável para as interações entre pares “[…] as crianças
produzem a primeira de uma série de culturas de pares nas quais o conhecimento infantil e as
práticas são transformadas gradualmente em conhecimento e competências necessárias para
participar no mundo adulto”.
Ainda neste período, surgiram as tentativas de globalização da infância por meio de
instrumentos e normas para a defesa dos direitos da criança elaborados pelas agências
internacionais. Tal tentativa de homogeneizar a infância não se mostrou factível do ponto de
vista das práticas sociais.
Não obstante, importa sublinhar que este esforço normalizador e homogeneizador,
se tem efectivas consequências na criação de uma infância global, não anula –
antes potencia – desigualdades inerentes à condição social, ao gênero, à etnia, ao
local de nascimento e residência e ao subgrupo etário a que cada criança pertence.
Há várias infâncias dentro da infância global, e a desigualdade é o outro lado da
condição social da infância contemporânea (SARMENTO, 2004).
Esta noção de várias infâncias sinalizada por Sarmento (2004) é fortalecida no contexto
pós-moderno – sobretudo pela perspectiva econômica – no qual as crianças ganham status de
consumidoras e se tornam um segmento significativo8 para o mercado de bens e serviços e
para a indústria do entretenimento.
Para David Morley (1998), a pós-modernidade traduz-se em uma experiência cultural
particular, resultante das transformações nas estruturas sociais e econômicas, e implica em
8 De acordo com o censo do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010), 24,08% da população
brasileira está na faixa-etária de 0 a 14 anos, são aproximadamente 45,6 milhões de crianças em todo o País.
30
novas maneiras de compreender e atuar sobre o mundo. A compreensão e a atuação dos
sujeitos contemporâneos estão, ao mesmo tempo, alinhadas aos aspectos históricos e às
mutações na sociedade. Como bem observa o sociólogo, a visão implícita da perfeição
gradual da sociedade conquistada por meio do planejamento racional e da reforma social –
ideia central da modernização e do progresso – não se confirmou na contemporaneidade e as
promessas de emancipação da humanidade diante da pobreza e da ignorância converteram-se
em evidências da desigualdade e desarranjos sociais.
Especialmente para a reinstitucionalização da infância, alguns aspectos desta nova
estrutura socioeconômica e cultural são relevantes para compreender os mundos de vida das
crianças e as culturas infantis no contexto pós-moderno, são eles: a formação de núcleos
familiares não tradicionais, as tecnologias da comunicação como mediadoras do convívio
social, as mudanças nos modos de produção e no padrão de consumo e os desafios da escola
para fomentar o processo de aprendizagem colaborativa com base na multiculturalidade.
No âmbito da família, as rupturas na configuração do núcleo familiar –
monoparentalidade, lares chefiados por mulheres, mudanças dos papéis entre homens e
mulheres – aliadas às situações como a pobreza e a violência doméstica colocaram em xeque
a concepção desta instituição como espaço seguro e protegido para a socialização e o
desenvolvimento intelectual na infância. “Deste modo, a transformação familiar convida a
que a família seja pensada como instituição social, sendo como tal construída e estruturada, e
não como entidade natural, imune ao pathos da vida social” (SARMENTO, 2004).
Na esfera econômica, as crianças foram definitivamente incorporadas às práticas de
consumo de bens e serviços e, embora sem poder aquisitivo, adquiriram status de
consumidoras em razão da autonomia relativa para escolher roupas e brinquedos e da
influência que exercem na compra de itens para toda a família – da alimentação ao
entretenimento, como qual restaurante frequentar ou qual filme assistir, do eletroeletrônico ao
modelo do automóvel9. De acordo com Martineli e Moína (2009, p. 61) é razoável admitir a
ideia da infância inserida nas dinâmicas de consumo “na medida em que se pode pensar em
crianças contemporâneas aprendendo a se relacionar com as marcas desde pequenas e
experimentando sensações que lhes são oferecidas pelos estímulos do marketing, da
9 O estudo O poder da influência da criança nas decisões de compra da família, realizada em 2011 pela Viacom
International Media Networks, em 11 países, incluindo o Brasil, revelou que 51% dos pais levam em
consideração a opinião das crianças antes de optar por um bem de consumo e que 97% conversam com os filhos
antes de sair às compras. Das crianças entrevistadas, 60% admitiu ter influência na escolha da família. A
pesquisa entrevistou por meio de questionário online 15.600 pessoas, entre crianças de nove a catorze anos e pais
e mães com filhos de seis a catorze anos.
31
publicidade e mesmo nas interações com outros indivíduos”. Contudo, vale ressaltar que a
aquisição de bens, serviços e produtos culturais está subordinada à condição social e por isso
os padrões de consumo são diferentes nas várias infâncias. Se por um lado a
contemporaneidade concedeu à infância o status de consumidora, há ainda, do lado oposto,
crianças que participam da economia pela produção, sendo submetidas ao trabalho infantil10.
São os infortúnios dos tempos pós-modernos.
Outro aspecto da globalização da infância é a universalização da produção cultural. Os
conteúdos midiáticos circulam pelos cinco continentes por meio da televisão, do cinema, das
histórias em quadrinhos e da internet. Dublados em vários idiomas, permitem que crianças de
diferentes origens – social e geográfica – partilhem um gosto comum. Algumas destas
produções se tornam ícones das culturas da infância – como exemplos podem ser citados o
anime japonês e as princesas da Disney, além de personagens atemporais como Pica-pau e
Tom e Jerry – e se desdobram em produtos licenciados que contribuem para o aquecimento
do consumo no segmento infantil. “Há a considerar, todavia, a reinterpretação activa pelas
crianças desses produtos culturais e o facto dessas reinterpretações se fixarem em uma base
local, cruzando culturas societais globalizadas, com culturas comunitárias e culturas de pares”
(SARMENTO, 2004). Neste contexto de recepção, é preciso superar a ideia de que as
crianças são receptoras passivas e reprodutoras das mídias, o que ocorre na fruição são
interpretações criativas e críticas dos produtos midiáticos.
Ainda a respeito da universalização cultural, há outra questão importante a ser avaliada:
a inclusão digital está longe de ser uma realidade para muitas das crianças brasileiras11 e a
frequência ao cinema, assim como o serviço de TV por assinatura, estão subordinados à
condição social da família; deste modo, a televisão continua a ter relevância como meio de
comunicação de massa e como instituição na formação das culturas da infância. Neste cenário
midiático e tecnológico, ao mesmo tempo global e desigual, algumas reflexões se fazem
necessárias.
A primeira diz respeito à programação da televisão brasileira e ao acesso da criança aos
conteúdos mediatizados. De acordo com David Buckingham (2007), a Carta da Televisão
para Crianças12 (1995) defende a qualidade e a diversidade de gêneros e conteúdos nos
programas infantis e orienta para que a exibição destas atrações ocorra em horários acessíveis
10 De acordo com dados da Pnad – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2013), há no Brasil 486 mil
crianças, com idade entre 5 e 13 anos, em situação de trabalho infantil. 11 Segundo dados da pesquisa Nielsen IBOPE, referente ao primeiro trimestre de 2014, apenas 15% das crianças
entre 2 e 15 anos possuem acesso à internet por meio de computadores em domicílio. 12 Elaborada na Conferência de Cúpula sobre Criança e Televisão em 1995, na Austrália, defender os princípios
de qualidade, diversidade e acesso universal no serviço público.
32
às crianças. O documento menciona ainda a circulação destes conteúdos midiáticos por meio
de outras tecnologias da comunicação amplamente acessíveis ao receptor infantil.
Assim, a Carta da Televisão para Crianças defende que os programas devam
‘afirmar o senso de comunidade e lugar das crianças’ e ao mesmo tempo promover
‘a conscientização e a valorização em relação a outras culturas, paralelamente ao
contexto cultural das próprias crianças’ (BUCKINGHAM, 2007, p. 13).
Examinando esta proposta contextualizada no cenário brasileiro, há conflitos a serem
sinalizados. O atual panorama da TV brasileira se choca com a premissa de “afirmar o senso
de comunidade e lugar das crianças” por intermédio das mídias. Em entrevista concedida ao
Público na TV, em 2012, Vania Lúcia Quintão Carneiro alertou para a significativa redução
das atrações televisivas direcionadas ao telespectador infantil nas principais emissoras do
país. O programa Ver TV13, exibido em abril de 2014, também na TV Brasil, mostrou o
movimento das emissoras brasileiras para migrar a programação infantil para os canais por
assinatura, de acordo com a reportagem, entre os motivos destas mudanças na grade televisiva
estão a fraca audiência e a baixa receita advinda da publicidade. Na TV aberta é clara a
predominância de conteúdos midiáticos voltados ao público adulto. Os programas educativos
infantis são reservados às emissoras estatais e as atrações de entretenimento aos canais da TV
por assinatura. Às emissoras comerciais, meio pelo qual a maior parte das famílias tem acesso
à comunicação, restam os programas de conteúdo notadamente adulto como novelas, séries,
filmes e programas de auditório com os quais as crianças interagem diariamente, ainda que
com algum controle familiar.
Do mesmo modo, é conflitante pensar “a conscientização e a valorização em relação a
outras culturas, paralelamente ao contexto cultural das próprias crianças” quando o consumo
midiático por parte do receptor infantil tende a ser globalizado em virtude da ampla exibição
de produtos culturais estrangeiros, especialmente americanos e japoneses, tanto nas emissoras
brasileiras como nos canais da TV por assinatura. E falar em circulação de conteúdos em
diferentes meios e tecnologias quando “o acesso não tem a ver apenas com a tecnologia, ele
diz respeito também ao capital cultural e educacional necessário para usar a tecnologia de
modo criativo e efetivo” (BUCKINGHAM, 2007, p. 39). O acesso diz respeito ao quanto, de
fato, a tecnologia está incorporada às culturas da infância; não apenas do ponto de vista de
aquisição de dispositivos, mas especialmente o quanto a tecnologia é para esta criança um
elemento estruturante da comunicação (MARTÍN-BARBERO, 2009).
13 O programa Ver TV é exibido pela TV Brasil (EBC – Empresa Brasil de Comunicação) e apresenta debates
críticos a respeito do papel da televisão na sociedade brasileira.
33
Por outro lado, já não se pode ignorar que a criança tem competência inata para os
meios. Para compreender as culturas da infância, por meio das mídias e seus conteúdos, é
preciso um olhar sobre a produção da cultura e a respectiva fruição pelo receptor infantil. Não
se trata de controle e julgamento – adequado versus inadequado, próprio versus impróprio –
ou de exclusão geracional, trata-se de entender as competências de recepção da criança. “Em
relação às mídias, temos de reconhecer a habilidade que as crianças têm de avaliar as
representações daquele mundo disponíveis para elas e identificar o que elas ainda precisam
aprender para fazê-lo de forma mais plena e produtiva (BUKINGHAM, 2007, p. 126).
A segunda reflexão refere-se à exclusão geracional por parte dos mass media. David
Buckingham (2007) relaciona o acesso às “mídias adultas” à entrada da criança no mundo
adulto que se dá prioritariamente, mas não unicamente, pelas mídias.
Essas transformações gerais – tanto nas ideias sobre a infância como na vida real
das crianças – têm feito eco às mudanças no ambiente midiático das crianças, e até
certo ponto as têm reforçado. Também aí as distinções tradicionais sofrem erosão,
e novas lacunas se abrem. As crianças estão ganhando maior acesso às mídias
"adultas" e maior status como consumidores; contudo, a comercialização e a
privatização da mídias (e das ofertas de lazer em geral) contribuem para o aumento
da desigualdade (BUCKINGHAM, 2007, p. 126).
Analisando historicamente a infância, a entrada da criança no mundo adulto sempre
existiu, independente da mídia ou do status de consumidora. Anterior à modernidade, a
criança pertencia ao universo feminino no qual permanecia até adquirir, precocemente,
habilidade para o trabalho, para guerra ou para reproduzir (SARMENTO, 2004). Hoje, como
sujeito social, a criança é gradativamente introduzida ao mundo adulto – quando, por
exemplo, domina as tecnologias, tem autonomia relativa para o consumo e competências para
interagir com as mídias – contudo, a identidade da infância é preservada. As crianças
transitam bem por estes dois mundos recorrendo a reprodução interpretativa que Corsaro
(2005) conceitua como a capacidade da criança de apropriação e releituras do mundo adulto:
O termo interpretativa captura os aspectos inovadores da participação das crianças
na sociedade, indicando o fato de que as crianças criam e participam de suas
culturas de pares singulares por meio da apropriação de informações do mundo
adulto de forma a atender aos seus interesses próprios enquanto crianças. O termo
reprodução significa que as crianças não apenas internalizam a cultura, mas
contribuem ativamente para a produção e a mudança cultural. Significa também
que as crianças são circunscritas pela reprodução cultural. Isto é, crianças e suas
infâncias são afetadas pelas sociedades e culturas das quais são membros
(CORSARO, 2005).
Desenhado o cenário contemporâneo, no qual a criança circula pelos mundos adulto e
infantil ao mesmo tempo em que preserva sua identidade, é possível resgatar as indagações
34
iniciais. Como delimitar a infância e em quais parâmetros estes limites se baseiam? A
condição comum da infância está na diferença geracional, ou seja, embora com status social e
autonomia existencial, a infância é a fase em que os sujeitos não têm capacidade de
sobrevivência e crescimento, sendo subordinados à responsabilidade e ao controle da geração
adulta. De acordo com Sarmento (2005), o elemento distintivo desta fase são as culturas da
infância “[...] a capacidade das crianças em construírem de forma sistematizada modos de
significação do mundo e de ação intencional, que são distintos dos modos adultos de
significação e ação”.
Estes modos de significação e de atuação da criança, que implicam ainda em modos de
produção e fruição de produtos comunicacionais, são construídos coletivamente no contexto
histórico-social e materializados nas formas e conteúdos das culturas infantis (nas
brincadeiras, nos jogos de faz-de-conta e, sobretudo, no consumo de produtos culturais,
celulares e jogos eletrônicos, entre outros itens). Desta forma, a percepção, a representação e
os significados do mundo são heterogêneos porque não se dão em um espaço social vazio,
isento de múltiplas mediações culturais.
A respeito do lugar da infância na pós-modernidade, Sarmento (2004) define que
é um entre-lugar (Bhabha, 1998), o espaço intersticial entre dois modos – o que é
consignado pelos adultos e o que é reinventado nos mundos de vida das crianças –
entre dois tempos – o passado e o futuro. É um lugar, um entre-lugar, socialmente
construído, mas existencialmente renovado pela acção coletiva das crianças.
As crianças apreendem criativamente as informações do mundo adulto. Como sugere
Corsaro (2005), a reprodução interpretativa implica nestas releituras criativas do mundo
adulto e posterior apropriação destes significados nas culturas de pares. Sarmento (2004)
acredita que “A identidade das crianças é também a identidade cultural, isto é a capacidade
das crianças de constituírem culturas não redutíveis totalmente às culturas dos adultos”.
As culturas da infância retratam os modos autônomos de significação e atuação das
crianças no mundo. E os traços distintivos destas culturas se exprimem por meio de quatro
dimensões – semântica, sintaxe, morfológica e pragmática – que Sarmento (2004, 2005)
denomina gramáticas das culturas infantis.
Segundo Corsaro (2002, p. 114) “[...] as crianças começam a vida como seres sociais
inseridos numa rede social já definida e, através do desenvolvimento da comunicação e
linguagem em interação com outros, constroem os seus mundos sociais – extrapolando Piaget
a cerca da noção de estágios”.
Para Piaget (2012) a faixa-etária entre 7-8 e 11-12, que particularmente interessa a este
35
estudo, corresponde à fase das operações concretas na qual a socialização e a conquista da
personalidade individual se tornam relevantes para as crianças em suas relações sociais.
[...] as construções e a descentração cognitivas, necessárias à elaboração das
operações, são inseparáveis de construções e da descentração afetivas e sociais.
Mas o termo social não deve ser entendido em seu sentido único [...] das
transmissões educativas, culturais ou morais: trata-se mais ainda de um processo
interindividual de socialização, cognitivo, afetivo e moral ao mesmo tempo, cujas
linhas mestras se podem seguir esquematizando muito, mas sem esquecer que as
condições ótimas continuam ideais e que, de fato, tal evolução está sujeita à
flutuações múltiplas, que interessam, aliás, tantos os seus aspectos cognitivos
quanto os afetivos (PIAJET; INHELDER, 2012, p. 88-89).
Sarmento (2004, 2005) defende que aprendizagem na infância se dá essencialmente por
meio das interações em espaços – social, cultural, familiar e escolar – comuns de partilha, nos
quais as crianças incorporam valores que colaboram para a formação das identidades
individual e coletiva da infância. No campo da semântica, a criança elabora significados
autônomos para compreender e atuar sobre o mundo, ainda que Sarmento (2004, 2005)
enfatize não ser factível pensar as culturas da infância totalmente desconexa do universo
adulto. Na recriação dos mundos infantis, o referencial é transmutado pelo imaginário e os
significados explícitos nas brincadeiras e nos jogos de faz-de-conta. “Era uma vez” expressa a
possibilidade de concatenar situações cotidianas ao imaginário, de aproximar passado e
futuro. Este mesmo recurso de temporalidade utilizado pela criança na construção das
brincadeiras é utilizado como recurso discursivo nas narrativas, especialmente, nas infantis.
A fantasia do real não é uma prática inerente apenas às culturas da infância, embora seja
potencializada pelo imaginário infantil, está presente também no mundo adulto e é revelada,
por exemplo, na interação midiática. Para as crianças a fantasia do real é elemento
constituinte das brincadeiras que por sua vez é elemento fundacional das culturas da infância.
Como explica Sarmento (2004) “O brincar é a condição da aprendizagem e, desde logo, da
aprendizagem da sociabilidade. Não espanta, por isso, que o brinquedo acompanhe as
crianças nas diversas fases da vida”. A construção do imaginário e os modos de ação das
crianças no ato de brincar revelam as recriações e as representações de mundos que podem
espelhar os contextos de vida ou manifestar a negação da realidade. Como explica Corsaro
(2002, p. 115) “as crianças produzem colaborativamente actividades de ‘faz-de-conta’ que
estão relacionadas com experiências das suas vidas reais (por exemplo, rotinas familiares e
ocupacionais), por oposição aos jogos de fantasia baseado em narrativas de ficção”.
A sintaxe destas representações – articulação dos elementos simbólicos à contradição do
princípio da identidade – não tem relação com a lógica, mas com releituras e interpretações
36
das vivências do cotidiano que permitem à criança se descolar da realidade (pobreza,
exclusão) nas brincadeiras e criar possibilidades para ser muitas coisas ao mesmo tempo (a
princesa, o vilão, o super herói). Esta representação está, em grande parte, associada à
globalização da produção cultural, os conteúdos midiáticos servem de referência para estas
recriações (SARMENTO, 2004, 2005).
A morfologia são as formas e os conteúdos que materializam as culturas da infância –
rituais, jogos, brincadeiras e brinquedos. Implicitamente, os brinquedos carregam duas
significações das culturas infantis: primeiro, a ludicidade; depois, o brinquedo como objeto de
distinção social e, neste caso, retoma-se a ideia da criança consumidora de ícones da infância,
acessíveis apenas para uma parcela da sociedade (SARMENTO, 2004, 2005). Na
contemporaneidade, os jogos eletrônicos; o uso do computador, celular e tablets pelas
crianças; os rituais de participação e colaboração na internet, sobretudo, nas redes sociais se
constituem também em morfologias das culturas da infância.
As redes sociais se tornaram um dentre muitos “playgrounds on-line”, disponíveis
na Internet para as crianças de hoje. As redes sociais não apenas fornecem uma
convergência inédita de atividades (e-mail, copiar músicas e/ou vídeos, escrever
diários, álbuns de fotos), mas criam oportunidades de auto-expressão, sociabilidade
e criatividade para muitos. [...] essa possibilidade de criação de conteúdos por
todos os usuários facilita o aparecimento de uma peer culture inovadora entre os
jovens, em nível local e global (BELLONI, 2012, p. 78, grifos do autor).
E na experiência digital, a criança não é apenas interlocutora, mas produtora cultural.
[...] o acesso crescente a tecnologias de produção digitais oferece possibilidades
significativas, bem como coloca novos desafios. Em um nível, há, claramente, uma
promessa de democratização. A probabilidade de as primeiras experiências infantis
com a elaboração de vídeos acontecerem na escola, por exemplo, não é mais tão
grande; e os alunos cada vez mais chegarão à sala de aula com experiência de
edição de vídeo, manipulação de imagens e tecnologia musical digital. O lar não é
mais um lugar simplesmente de consumo de mídia: também se tornou um local-
chave de produção. Contudo, o acesso a esta tecnologia não é igualmente
distribuído; e pode haver uma polarização crescente, neste aspecto, entre os “ricos
em mídia” e os “pobres em mídia” [...] (BUCKINGHAM, 1999, p. 258).
Para finalizar as gramáticas das culturas infantis (SARMENTO, 2004, 2005), a
pragmática está contida nas dimensões semântica, sintaxe e morfológica uma vez que
consiste nas relações de comunicação na infância que se convertem em formas de cooperação
e estratificação presentes no imaginário e nos modos de ação da criança nos jogos e nas
brincadeiras.
Em relação à midiatização, o tema-chave está em compreender a interação criativa e
crítica que a criança realiza com os produtos culturais por meio das mídias e das tecnologias
37
da comunicação. Os conteúdos midiáticos universalizados e institucionalizados pela televisão
se convertem em elementos formadores das culturas infantis e têm papel relevante na
construção simbólica das crianças. Porém, há de se considerar que as leituras destes produtos
midiáticos não são simples reproduções, mas interpretações experienciadas nos mundos de
vida das várias infâncias. Os dispositivos tecnológicos são, ao mesmo tempo, objetos de
distinção social e espaços de socialização. A criança contemporânea, nativa digital, tem
competência inata para lidar e se comunicar por meio das tecnologias, construindo relações
interativas, colaborativas e de aprendizagem nas quais se propagam as culturas de pares.
Este capítulo trouxe reflexões relevantes a respeito do papel da infância no século XXI
e na sociedade midiatizada. Apresentou os aspectos histórico-culturais que conduziram a
criança ao status de sujeito social, com autonomia existencial, para circular entre os mundos
infantil e adulto sem perder a identidade cultural da infância que permite às crianças
(re)significarem, por meio do imaginário, seus contextos de vida e reproduzi-los – ou negá-los
– nas brincadeiras e no jogos de faz-de-conta dos quais participam. Neste sentido, os mass
media e os conteúdos audiovisuais cumprem importante função, num processo de
retroalimentação, os produtos culturais são referência para a construção das fantasias infantis
e fazem uso do imaginário das crianças para compor a ficção.
38
A história é uma abstração, pois ela é sempre
percebida e narrada por alguém, não existe
“em si” (TODOROV, 2011, p. 222).
39
CAPÍTULO II – ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA
1. Hierarquia dos níveis: ações, personagens e discurso
Em Análise Estrutural da Narrativa, Gérard Genette (2011, p. 265) define a narrativa
como “a representação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos, reais ou
fictícios, por meio da linguagem [...]”. Na mesma obra, Roland Barthes (2011, p. 19) escreve
que “a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem
fixa ou em movimento, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias [...]”.
Em uma primeira abordagem, se o ato de narrar confunde-se com o ato de contar histórias por
meio da fala ou de suportes midiáticos, então a narrativa esteve presente em todas as
sociedades, marcando diferentes culturas e períodos históricos, desde a arte rupestre ao
cinema digital.
Ao atravessar a história, a narrativa consolidou princípios estruturais e regras que, ao
mesmo tempo, dão a ela uma natureza própria e peculiaridades que a diferencia e permitem o
seu reconhecimento a culturas e épocas distintas, denominados por Omar Calabrese (1987)
horizonte comum de gosto. Nesta mesma linha de raciocínio, Barthes (2011, p. 20-21)
acrescenta que as narrativas possuem uma estrutura comum acessível à análise “[...] ninguém
pode combinar (produzir) uma narrativa, sem se referir a um sistema implícito de unidades e
de regras”.
Para identificar este sistema de unidades e regras, Barthes (2011) propõe a teoria dos
níveis. Segundo o autor, a narrativa é estruturada por um conjunto de unidades que são
distribuídas em níveis hierárquicos. As unidades que encontram-se no mesmo nível
estabelecem entre si relações distribucionais que limitam-se ao plano da descrição.
Entretanto, a significação da narrativa se dá por meio das relações integrativas que agrupam
unidades de hierarquias diferentes. Nesta concepção, a hierarquia dos níveis é o princípio
organizador da estrutura da narrativa.
Compreender uma narrativa não é somente seguir o esvaziamento da história, é
também reconhecer nela “estágios”, projetar os encadeamentos, horizontais do
“fio” narrativo sobre um eixo implicitamente vertical; ler (escutar) uma narrativa
não é somente passar de uma palavra a outra, é também passar de um nível ao
outro (BARTHES, 2011, p. 27).
40
Tzvetan Todorov (2011, p. 219) compartilha da visão de que a significação concretiza-
se na integração das unidades narrativas, porém, entende que o significado está em duas
noções primárias que são o sentido e a interpretação. O sentido, como também defende
Barthes (2011), é a correlação entre os elementos internos à narrativa e a interpretação uma
leitura pautada na personalidade e na ideologia de quem a percebe. Neste contexto, o conceito
de ideologia que melhor explica a interpretação é o proposto por Althusser, no qual as
experiências vivenciadas pelos homens não refletem a realidade, mas uma relação imaginária,
neste caso específico, entre o universo narrativo e seus interlocutores.
Ideologia é na verdade um sistema de representações mas, na maioria das vezes,
essas representações não tem nada a ver com a consciência ... é como estruturas
que elas se impõem à ampla maioria dos homens ... é dentro desse inconsciente
ideológico que os homens conseguem alterar as experiências vividas entre eles e o
mundo e adquirem uma nova forma específica de inconsciente, que se chama
consciência (ALTHUSSER apud HALL, 2003, p. 148, grifos do autor).
Seguindo as premissas dos formalistas russos, Todorov (2011, p. 220-221) propõe
dividir a narrativa em dois níveis hierárquicos: história e discurso. A narrativa é história “[...]
no sentido que evoca uma certa realidade, acontecimentos que teriam ocorrido, personagens
que, deste ponto de vista, se confundem com os da vida real”. E a narrativa é também discurso
porque “[...] existe um narrador que relata a história; há diante dele um leitor que a percebe.
Neste nível, não são os acontecimentos relatados que contam, mas a maneira pela qual o
narrador nos fez conhecê-los”. O nível da história subdivide-se em lógica das ações e sintaxe
dos personagens; e o nível do discurso em tempo, aspectos e modos da narrativa. Similar a
esta proposta teórica, Barthes (2011), em sua visão integrativa, analisa a estrutura da narrativa
a partir de três níveis principais: nível das funções e nível das ações – que na perspectiva de
Todorov estão no nível da história – e nível da narração – que para Todorov é o discurso.
[...] estes três níveis estão ligados entre si segundo um modo de integração
progressiva: uma função não tem sentido se não tiver lugar na ação geral de um
actante; e a própria ação recebe sua significação última pelo fato de ser narrada,
confiada a um discurso que tem seu próprio código (BARTHES, 2011, p. 27).
Barthes (2011) explica que para visualizar o nível das funções é necessário definir as
unidades mínimas da narrativa. Por unidade entende-se os segmentos da narrativa que se
apresentam como correlação de outros segmentos no mesmo nível hierárquico ou em um
nível superior. Toda unidade é funcional à medida que significa algo, mesmo que no primeiro
momento não seja percebida como útil à história ou ao discurso, no desenrolar da trama, em
integração com um nível hierárquico superior, a unidade terá sua significação revelada. Em
41
outras palavras “[...] a arte não conhece o ruído [...] é um sistema puro, não há, não há jamais
unidade perdida, por mais longo, por mais descuidado, por mais tênue que seja o fio que a liga
a um dos níveis da história” (BARTHES, 2011, p. 29). O autor agrupa as unidades mínimas
da narrativa em duas classes formais: funções e índices.
A classe das funções tem natureza distribucional, ou seja, apresentam correlações
horizontais com outras unidades do mesmo nível hierárquico; nesta classe, as unidades são
complementares a outros segmentos da narrativa ou consequência destes. As funções são
agrupadas em duas subclasses: as cardinais que são unidades de articulações da narrativa e
respondem pela lógica da história e pelo tempo cronológico do discurso; e as catálises que
são unidades contemplativas e têm como função preencher os espaços narrativos. As
cardinais constituem o elemento surpresa da estrutura narrativa, um momento de tensão em
que a história pode assumir um novo percurso. As catálises são as zonas de segurança da
narrativa, embora com baixa influência na história, são úteis ao nível do discurso, sua função
é ditar o ritmo discursivo.
Os índices estabelecem relações verticais, portanto, são de natureza integrativa. Nesta
classe estão as unidades semânticas que atribuem aos níveis da história – mais
particularmente aos personagens – e do discurso um significado implícito que é contínuo na
narrativa. Esta classe de unidades é subdividida em índices e informantes. Os índices têm a
função de significar os personagens, a atmosfera e o universo narrativo, são de caráter
indexado e trabalham junto ao interlocutor o reconhecimento da narrativa, orientando-o a
interpretá-la. Os informantes são unidades de identificação que situam a narrativa no tempo e
no espaço, são unidades, assim como as catálises, úteis ao discurso e buscam trazer realidade
à ficção. Em síntese, “[...] as Funções implicam relata metonímicos, os índices relata
metafóricos; uns correspondem a uma funcionalidade do fazer, as outras a uma
funcionalidade do ser” (BARTHES, 2011, p. 33, grifos do autor).
Para retomar os níveis propostos por Todorov (2011, p. 222), vale lembrar que a história
é uma convenção, uma maneira de organizar a lógica dos acontecimentos da narrativa e torna-
los compreensíveis ao interlocutor, mesmo quando a apresentação destes fatos não
corresponde a uma ordem cronológica ideal. Barthes e Todorov (2011) concordam que há
uma tendência nas narrativas contemporâneas de sobreposição da lógica ao tempo
cronológico, uma espécie de ilusão cronológica, no nível do discurso, que conduz a lógica das
ações dos personagens, estas ocorrem no nível da história.
Todorov (2006, 2011) descreve a lógica das ações por meio de dois métodos: a) triádico
e b) homológico. O modelo triádico sugere que todas as narrativas são construídas pelo
42
encadeamento ou encaixamento de micronarrativas norteadas por três tipos de ação – tentativa
(frustrada ou realizada de concretizar um projeto), pretensão e perigo; assim, as narrativas que
utilizam este método têm em comum as unidades estáveis correspondentes à ação e se
diferenciam pelas possíveis combinações das micronarrativas. O modelo homológico estuda a
interdependência entre as unidades narrativas e acompanha esta rede de relações na sucessão
dos acontecimentos, em outras palavras, busca descobrir o fio da intriga por meio destas
relações que se desdobram em ações dos personagens.
Importante ressaltar que nas proposições teóricas de Barthes (2011) e Todorov (2006,
2011), personagem e ação são indissociáveis em termos de análise da estrutura da narrativa.
Todorov (2006, 2011) embora reconheça, em teoria, a lógica das ações e a sintaxe dos
personagens como duas unidades diferentes que integram o nível da história, ao fazer a
análise da narrativa, define os personagens em função de suas relações com outros
personagens, utilizando uma variação do conceito de predicados de base de A. J. Greimas;
logo, toda relação entre dois personagens exige primeiro, para que seja concretizada, uma
ação. Barthes (2011) presume que os personagens são definidos por sua participação em uma
esfera de ações e os integra, na teoria e na prática da análise, ao nível das ações. A discussão a
respeito dos personagens será aprofundada mais adiante.
No nível do discurso, a narrativa ganha outra dimensão: a do compartilhar. “O nível
narracional é pois ocupado pelos signos da narratividade, o conjunto de operadores que
reintegram funções e ações na comunicação narrativa, articulada sobre seu doador e seu
destinatário” (BARTHES, 2011, p. 53). Portanto, a narrativa não existe sem um narrador e
sem um interlocutor e é no discurso que se dá a partilha entre ambos, a alteridade que
fundamenta os fenômenos comunicacionais.
Neste sentido, vale revisitar o conceito Bakhtiniano de dialogismo: “A relação dialógica
é uma relação (de sentido) que se estabelece entre enunciados na comunicação verbal. Dois
enunciados quaisquer, se justapostos no plano do sentido (não como objeto ou exemplo
linguístico), entabularão uma relação dialógica” (BAKHTIN, 1997, p. 345-346). Para Mikhail
Bakhtin, o princípio dialógico é a interatividade entre interlocutores e entre discursos.
A compreensão estreita do dialogismo concebido como discussão, polêmica,
paródia. Estas são formas externas, visíveis, embora rudimentares, do dialogismo.
O crédito concedido à palavra do outro, a acolhida fervorosa dada à palavra sacra
(de autoridade), a iniciação, a busca do sentido profundo, a concordância, com suas
infinitas graduações e matizes (sem restrições de ordem lógica ou reticências de
ordem puramente factual), a estratificação de um sentido que se sobrepõe a outro
sentido, de uma voz que se sobrepõe a outra voz, o fortalecimento pela fusão (mas
não a identificação), a compreensão que completa, que ultrapassa os limites da
coisa compreendida, etc. Estas relações específicas não podem ser resumidas a uma
43
relação puramente lógica, ou a uma relação puramente factual. É aqui que se
encontram, em toda a sua integridade, posições, pessoas (a pessoa prescinde de
revelação extensiva: pode manifestar-se por um único som, revelar-se por uma
única palavra), justamente vozes (BAKHTIN, 1997, p. 350).
Se “O ato de compreensão já é dialógico” (BAKHTIN, 1997, p. 350), então, é no
discurso, nível em que se dá a última significação da narrativa, que narrador e interlocutores
constroem a interpretação da narrativa. Mais que entendimento e recuperação do sentido
original idealizado pelo narrador, a relação dialógica implica em compreensão dos sentidos
implícitos à narrativa. Na interatividade entre interlocutores e discursos, o processo
interpretativo é mediado por múltiplas vozes que se contextualizam em um espaço histórico,
cultural e social; e é a partir desta inter-relação que o ato de compreender – ao outro e a si
mesmo – desdobra-se em apropriações e produção de novos sentidos.
Todorov (2011, p. 242-243) argumenta que no discurso a temporalidade é uma
construção estética. Na história o tempo é pluridimensional, os acontecimentos são
simultâneos, cabe ao autor transportá-los para o tempo linear do discurso em que são narrados
sequencialmente e não obedecem, rigorosamente, a uma sucessão natural. O papel desta
deformação temporal empregada pelos autores é manter a história inteligível ao interlocutor.
As narrativas mais complexas, que contam duas ou mais histórias, utilizam também recursos
estéticos de temporalidade – encadeamento, alternância e encaixamento – para alinhavar o
tempo cronológico da história ao tempo lógico do discurso. No encadeamento, as histórias são
narradas do início ao fim, sem interrupção, após a conclusão da primeira, inicia-se a segunda
e assim sucessivamente; a identidade das histórias é mantida pela correlação entre as unidades
narrativas de natureza integrativa – índices e informantes. As narrativas que utilizam a
alternância contam as histórias de maneira intercalada, sem impor um limite nítido na
transição de uma para a outra, neste caso, o desfeche de uma serve para o desenvolvimento da
história seguinte. E o encaixamento refere-se às narrativas em que uma história principal
internaliza outras histórias secundárias, frequentemente, estas histórias de apoio são úteis para
caracterizar os personagens e situá-los no tempo e no espaço.
Ainda no nível do discurso, a narrativa sinaliza o tipo de percepção que tem o narrador a
respeito de seus personagens. Barthes (2011, p. 50) preocupa-se em desfazer a recorrente
confusão entre autor e narrador “[...] narrador e personagens são essencialmente ‘seres de
papel’; o autor (material) de uma narrativa não se pode confundir em nada com o narrador
desta narrativa [...]”. Deste modo, o autor é quem detém os códigos da linguagem narrativa e
os faz inteligíveis aos interlocutores, estabelecendo com estes um protocolo de consumo; o
44
narrador, por sua vez, compartilha estes códigos por meio do discurso. Para entender este
contrato de leitura que convida a uma relação dialógica entre interlocutores que interagem
entre si e com a narrativa é oportuno apreender os conceitos de gramática de produção e
gramática de reconhecimento propostos por Eliseo Verón. Para o autor, o ato de narrar reúne
saberes que interferem e se combinam nos processos de produção e de
interpretação de um discurso e estão relacionados com as formas de organizar os
códigos comunicativos e culturais presentes tanto no universo do emissor quanto
do receptor, balizados pelo contexto sócio-histórico em que ambos estão inseridos
(VERÓN apud PALLEIRO, 2008, p. 155, tradução nossa).
Esta relação entre narrador e personagens, que Todorov (2011, p. 246-247) descreve
como aspectos da narrativa, influencia a percepção dos interlocutores a respeito da história,
ou melhor, a percepção do interlocutor não é diretamente espelhada pela história, mas
mediada pela visão de quem narra os acontecimentos. Para explicar os aspectos da narrativa,
Todorov (2011), serve-se da tipologia de Jean Pouillon que em seu livro O tempo no
romance, de 1970, reconhece três principais modos de narrar: 1) a visão “por detrás”
(Narrador > personagem) – o narrador não está na história, sua posição é a de um espectador
privilegiado que observa dos bastidores, por isso conhece antecipadamente os personagens e
suas ações, permitindo aos interlocutores acessar o mundo interno da narrativa, neste caso, o
narrador impõe, por meio do discurso, o seu modo de ver os acontecimentos; 2) a visão “com”
(Narrador = personagem) – narrador e personagens participam da história com a mesma
intensidade, os acontecimentos são contados do ponto de vista dos personagens e podem levar
a uma visão estereoscópica, quando todos os personagens têm o mesmo olhar sobre os
acontecimentos, ou a uma visão plural em que os personagens percebem as mesmas situações
de maneira particular; 3) a visão “de fora” (Narrador < personagem) – o narrador tem uma
visão externa ao universo da trama, nada sabe a respeito dos personagens e narra os
acontecimentos no momento em que os observa.
Os modos da narrativa revelam de quem é a fala. Na narração (narrador >
personagem), a fala é do narrador, o “ser de papel” que conta a história, descreve seus
personagens e detalha cada uma de suas ações, envolvendo seus interlocutores na atmosfera
da narrativa e compartilhando com eles os códigos da significação, este modo de narrar é
denominado estilo panorâmico. Na representação (narrador = personagem), a narrativa se
desenrola por meio do diálogo e atos dos personagens, assim, no estilo cênico prevalece a fala
dos personagens (TODOROV, 2011, p. 254).
No estilo panorâmico ou no cênico, é a fala do narrador que torna público, por meio do
discurso, os acontecimentos da narrativa. Em algumas narrativas, a história somente pode ser
45
compreendida em sua plenitude se considerada sua estrutura interna de sentido, uma espécie
de princípios morais internos à trama, partilhados por narrador e interlocutores, que ganham
significado apenas no universo narrativo e que no mundo exterior não fazem sentido algum.
Em outros casos, as histórias tomam emprestadas as convenções sociais do mundo externo e
as interiorizam na estrutura de sentido da narrativa, desta forma, narrador e interlocutores
compartilham códigos morais que são significados tanto na ficção como no mundo real.
Todorov (2011, p. 255) define esta relação ficção versus realidade como nível apreciativo. O
nível apreciativo é de natureza dialógica, o narrador revela seus traços psicológicos e valores
morais que são o fio condutor de suas ações, esta imagem do narrador espelha também a
imagem do interlocutor a partir do momento em que este se deixa envolver pela narrativa e
passa a aceitar e a vivenciar as ordens psicológica e moral sugeridas pela história. “Esta
dependência confirma a lei semiológica geral segundo a qual ‘eu’ e ‘tu’, o emissor e o
receptor de um enunciado, aparecem sempre juntos” (TODOROV, 2011, p. 257).
Para Todorov (2011), a narrativa é sempre o confronto entre a ficção e o contexto
sociocultural de uma determinada época. Logo, as narrativas não obedecem absolutamente a
uma única ordem moral durante toda a trama; algumas histórias se iniciam e se desenvolvem
com base em uma moralidade interna à narrativa e a infração desta ordem se dá no desfecho,
quando as regras internas são legitimadas por padrões de comportamento e conduta do mundo
exterior, enquanto outras seguem uma consciência coletiva externa à trama para em seu
desfecho criar normas morais próprias que são autenticadas pela lógica interna da narrativa.
Diante do exposto, é plausível admitir que a legitimação da narrativa está condicionada
ao contexto histórico e sociocultural no qual circulam os produtos culturais. Assim, a
narrativa é legitimada no momento da fruição, quando os interlocutores apropriam-se da
história – em um exercício de interpretação que pode ocorrer mediante a lógica interna da
trama ou pelas referências do mundo exterior – e recriam seus significados que serão
novamente reincorporados a outras narrativa e à sociedade, infinitas vezes.
2. Estética da repetição nas narrativas seriadas
Deslocando-se da desconstrução das narrativas para as práticas de produção e de
consumo dos produtos culturais contemporâneos, particularmente dos documentos
audiovisuais animados, é possível perceber como o pensamento que conduziu a análise
46
estrutural da narrativa no século XX ainda nos dias de hoje influencia os modos de produção
da indústria do entretenimento, especialmente no que tange à organização dos elementos que
compõem os produtos audiovisuais.
Em Dramaturgia de série de animação, Nesteriuk (2011) explica detalhadamente como
produzir séries animadas. O autor, que também é consultor de roteiro, dramaturgia e projetos
audiovisuais e de animação, orienta iniciar a construção das séries de animação a partir de três
elementos essências que são Universo–Personagem–Ação. Ao observar a tríade apresentada
pelo autor, é possível identificar semelhanças aos níveis hierárquicos de Todorov (2006,
2011) que contempla, no nível da história, a lógica das ações e sintaxe dos personagens. Na
visão de Nesteriuk (2011), os personagens são entidades que praticam e vivem as ações na
história, assim como na análise estrutural, a existência do personagem está condicionada a
uma esfera de ação e reflete o fazer. Entretanto, como se trata de um produto audiovisual, que
une som e imagem, são acrescentadas ao personagem – não apenas na descrição, mas como
recurso estilístico de produção – características físicas e movimentos que passam a compor o
universo narrativo. Além das características físicas, os personagens são constituídos de uma
consciência psicológica que define seu comportamento e conduta moral. Barthes (2011) trata
destes atributos inerentes aos personagens no nível das funções, quando argumenta que as
unidades integrativas – índices e informantes – desempenham precisamente este papel de
particularizar os personagens e criar a atmosfera narrativa.
Retornando à tríade de Nesteriuk (2011), o universo é constituído pelo espaço e pelo
ambiente. O espaço corresponde ao lugar físico da ação, traduzido na produção animada em
cenários; o ambiente é o espaço social, psicológico e moral em que vivem os personagens –
para lembrar Todorov (2011) o ambiente está associado ao nível apreciativo – e pode ser
delineado pela ficção, em que a estrutura de sentido é interna à história, ou buscar
autenticidade no mundo real. Nesteriuk (2011) escreve que tão importante quanto compor os
elementos da tríade é pensar na rede de relações que será estabelecida entre eles, percebe-se
então que nas produções contemporâneas também está presente a hierarquia dos níveis que
segundo Barthes (2011) é o princípio organizador da narrativa.
Quando as narrativas passam a empregar a comunicação audiovisual que articula o som,
a imagem em movimento e a linguagem verbal por meio do diálogo entre personagens,
diferente da literatura em que prevalece a escrita, surgem novas possibilidades de criação.
Como já mencionado, a mudança mais significativa, introduzida pelo cinema e herdada pela
TV, nas formas de contar histórias é a produção cultural seriada. Nesteriuk (2011, p. 46)
explica que “A serialidade narrativa proporciona [...] a construção de um texto fragmentado e
47
descontínuo, na qual a repetição de seus elementos constituintes e a imposição de um
determinado ritmo de exibição da obra determinam características próprias e específicas”. De
acordo com Calabrese (1987), a serialidade transformou tanto os processos de produção do
audiovisual, no qual a estética da repetição tornou-se a principal tendência, quanto a recepção
que demandou novas competências para compreender e interpretar as narrativas
fragmentadas, cuja totalidade somente é alcançada mediante a soma dos episódios exibidos
separadamente. Nesteriuk (2011) acredita que a recepção de documentos audiovisuais
seriados é um processo de interação no qual o interlocutor tem a possibilidade de reorganizar
os elementos da série, realizando novas leituras.
À experiência de mediação do público, a partir de seu próprio repertório, soma-se a
uma nova experiência que a mensagem seriada é capaz de produzir, descontínua e
fragmentariamente, baseada na intertextualidade. A esse receptor atribui-se o papel
de interator capaz de reorganizar elementos (objetivos e subjetivos) preexistentes e
proporcionar novas (re)leituras desse mesmo sintagma. Tais leituras só conseguem
ser apreendidas em sua totalidade por aqueles que compartilharem a estrutura dos
códigos do sistema de serialidade que se apresenta. Neste caso, as séries passam a
funcionar com uma espécie de arquitexto, de uma enciclopédia na qual, por meio
de um processo de aprendizagem, o próprio espectador estabelece o seu conceito
de serialidade a partir de processos de compreensão, interpretação e de diferentes
estratégias de leitura (NESTERIUK, 2011, p. 45).
Calabrese (1987) conceitua a estética da repetição como o aperfeiçoamento involuntário
que nasce a partir de uma repetição mecânica para intensificar a produção cultural, em outras
palavras, embora as narrativas seriadas tenham tendência a repetitividade em sua continuidade
ou em comparação com outras narrativas de gênero e época congêneres, a cada recriação – ou
reprodução – nasce uma nova estética, a estética da repetição. Para o autor, a estética da
repetição recorrente nos produtos culturais cumpre três funções que compreendem tanto os
aspectos de produção como as expectativas do receptor:
1) a repetitividade como modo de produção de uma série a partir de uma matriz
única, segundo a filosofia da industrialização; 2) a repetitividade como mecanismo
estrutural de generalizações de textos; 3) a repetitividade como condição de
consumo por parte do público dos produtos comunicativos (CALABRESE, 1987,
p. 43).
Ao mencionar os modos de produção, o autor refere-se à estandardização da produção
cultural que se caracteriza especialmente pela produção seriada cujo objetivo primário é a
economia de tempo e recursos financeiros. A serialidade é entendida por Calabrese (1987, p.
43) como “a individualização dos componentes de um todo que sejam produzidos
separadamente e em seguida aglomerados segundo um programa de trabalho”, esta
individualização pode ser assimilada como a produção de bens culturais que têm origem em
48
um protótipo e posteriormente são multiplicados em situações diversas, são exemplos os
episódios de uma determinada série, e neste caso o autor utiliza o termo variação de um
idêntico, ou ainda, analisando mais profundamente a produção audiovisual, a reutilização de
elementos como cenários e personagens que uma vez criados e produzidos para o protótipo
serão úteis para outros episódios da narrativa seriada.
As generalizações de textos remetem à universalidade, o uso frequente de elementos
invariáveis para compor a estrutura narrativa que extrapola um produto cultural em si para
impregnar-se em um gênero ou uma época. Os padrões de generalização que Calabrese (1987,
p. 46) designa como identidade dos mais diferentes – produtos culturais que são criados como
originais, porém apresentam uma identidade comum com outras narrativas – são desenhados
com base em três modelos: 1) modo icônico estrito que reproduz as conotações culturais
estereotipadas; 2) modo temático que é a recorrência de temas idênticos em diferentes
narrativas; e 3) modo narrativo14 que são as encenações-tipo. Nestes três modos concebidos
pelo autor, a repetição pode assumir a forma de decalque quando duas ou mais narrativas
apresentam repetição total – modos icônico, temático e narrativo – ou como reprodução em
que um dos modos é omitido. Como explica Calabrese (1987, p. 44)
Nem sequer se poderia falar em repetições, de resto, senão despedaçando a rede de
modelos com a qual analisamos os fenômenos, que é precisamente através daquela
rede que se tornam não já indivíduos localizados, mas sim estados de coisas
abstratas, utilizados como padrões.
Na recepção, a estética da repetição presente nas séries contemporâneas está relacionada
ao consumo cultural e às projeções do universo semântico do receptor no processo de
interpretação. Nesta interação entre produtos comunicativos e interlocutores os padrões de
generalização buscam atender a certas expectativas do receptor. As generalizações de textos
esboçam um trajeto de leitura facilitada pelos elementos invariáveis da narrativa que são
imediatamente reconhecidos pelos receptores, no entanto, Calabrese (1987) pondera que estas
generalizações não são impostas pela produção cultural, mas construídas pelo confronto de
valores – entre produtores e interlocutores – do qual emerge o horizonte comum de gosto.
Por outras palavras, poderemos achar a ‘fábrica televisiva’, que já não se oculta
como tal, um texto que exalta a lógica da serialidade e um consumo que se faz
‘escolha da vida’, estão estritamente ligados pela existência de códigos superiores
do gosto, não só propostos como modelos, mas também estabilizados como
comportamentos no saber coletivo” (CALABRESE, 1987, p. 49).
14 Diferente da visão de Todorov (2011), em que os modos de narrar são parte do discurso, para Calabrese (1987)
os modos de narrar são representados pelas encenações-tipo, portanto, transitam entre o discurso e a história.
49
Similar à teoria de Calabrese (1987), Lorenzo Vilches (1984) acredita que a produção
cultural seriada é influenciada por três fatores: 1) pela estrutura produtiva que diz respeito aos
aparatos tecnológicos e à autonomia técnica e criativa do autor e produtor da série; 2) pela
estrutura narrativa que são os modos de apresentação da série ao público; e 3) pela
expectativa dos interlocutores que está associada às competências de recepção e
compreendem aspectos sociológicos, midiáticos e relações intertextuais. Para Nesteriuk
(2011, p. 45), a intertextualidade é uma atividade semântica que permite aos interlocutores
memorizar os elementos de uma narrativa seriada e articulá-los com diferentes situações,
episódios e com a série como um todo, neste sentido, a recepção é, como já apontado, um
processo de aprendizagem e de reconhecimento dos códigos do sistema da serialidade.
Segundo Nesteriuk (2011, p. 43) “Os elementos invariáveis funcionam não apenas
estabelecendo uma continuidade com as expectativas e conhecimentos do público, mas,
principalmente, como reiteração das partes estruturais dos códigos do sistema de uma série”.
Estas articulações de continuidade podem ocorrer na elaboração dos códigos que dão
significado à narrativa – portanto são de responsabilidade do autor, no momento da criação da
série, e do discurso, na representação – e na organização das unidades narrativas presentes na
história – nível das ações e dos personagens. Barthes (2011) define os índices e informantes
como unidades de continuidade; os índices carregam significados implícitos, sentimentos que
circundam personagens, ações e universo, compondo a atmosfera da narrativa e os
informantes servem “para dar autenticidade à realidade do referente, para enraizar a ficção no
real [...]” (BARTHES, 2011, p. 36), ambos trabalham o reconhecimento da narrativa junto ao
interlocutor.
Porém, não somente de repetição é construída a narrativa. Existem os elementos
variáveis que assumem o papel de elemento surpresa, acrescentando à estrutura já
reconhecida pelo interlocutor, novas situações com as quais ele não está habituado a interagir
ou não as identifica como pertencentes ao universo narrativo. Da mesma forma que os
invariáveis, os elementos variáveis podem ser inseridos em todos os níveis hierárquicos da
narrativa, sendo mais frequente a introdução de elementos surpresa no nível da história –
como a apresentação de novos personagens, a variação temática, a oscilação do perfil
psicológico de um personagem, um cenário diferenciado ou a modificação de um ambiente.
Nesteriuk (2011, p. 43) compara a combinação de elementos variáveis e invariáveis na
produção audiovisual à dinâmica da vida “Podemos, portanto, comparar este modo de
produção à própria dinâmica da vida cotidiana, que ao se renovar, também se mantém atada
às estruturas cumulativas prévias”. Vilches (apud NESTERIUK, 2011, p. 52-53), com base
50
nas articulações entre elementos variáveis e invariáveis da estrutura narrativa, propõe cinco
esquemas possíveis de repetição nos produtos culturais seriados.
Tabela 1 – Esquemas narrativos
ESQUEMA
NARRATIVO
RELAÇÕES ENTRE ELEMENTOS NARRATIVOS
INVARIÁVEIS VARIÁVEIS
Fixo Reprodução de um protótipo de estrutura simplificada, sem
acréscimo de elementos variáveis.
Fixo com variação
de personagens
Tema central dos episódios e
perfil psicológico dos
personagens principais.
Novos personagens de
hierarquia secundária.
Fixo com variação
de perfil psicológico
Tema central dos episódios. Perfil psicológico dos
personagens. O desenvolvimento
narrativo é sustentado pela
profundidade psicológica dos
personagens, evidenciando a
solução de seus conflitos
internos.
Fixo com variação
de temas
Perfil psicológico dos
personagens.
Tema central dos episódios.
Personagens fixos Personagens. Tema central dos episódios.
Tabela elaborada pela autora da pesquisa, segundo as proposições de Lorenzo Vilches (1984).
Vilches (1984, p. 9) defende que a criação dos produtos audiovisuais obedece às regras
e estratégias que servem como diretrizes para organizar a recepção, deste modo, os elementos
formais e temáticos, articulados entre si, são transmitidos em formato de textos culturais que
envolvem o telespectador em um mundo real ou possível. O autor, que também atua como
consultor nos campos do cinema e da TV, propõe classificar as séries televisivas tomando-se
por base a estruturação dos elementos da narrativa e a rede de relações articulada entre eles,
ou seja, por meio dos modos de apresentação da série. Mais uma vez, a ideia-chave da análise
estrutural da narrativa – estruturação e organização hierárquica dos elementos e as relações
estabelecidas entre estas unidades – é aplicada para atender a uma demanda da indústria do
entretenimento no que diz respeito à categorização dos produtos culturais. Vilches (1984)
classifica as narrativas seriadas em três tipos: 1) topológico no qual o universo é o elemento
51
central da trama e toda a rede de relações da narrativa se dá a partir do espaço físico e do
ambiente, isto é, o universo narrativo é a principal forma de reconhecimento por parte dos
interlocutores; 2) enciclopédico que estabelece relações de intertextualidade, assim, a
interpretação da série exige determinadas competências de recepção; e 3) rendado em que a
série é composta por episódios autônomos, com histórias completas e independentes, e a cada
episódio existe uma nova missão a ser cumprida. Nesteriuk (2011, p. 49) defende que
Os modos de produção, distribuição, recepção e interpretação das narrativas
seriadas na televisão possuem características próprias para que as classifiquemos
como um gênero próprio e específico dentro da televisão e do próprio audiovisual.
Todavia, sabemos que é possível aplicar outros critérios para novas classificações
dentro deste gênero, isto é, existem diferentes tipos e gêneros de séries de
televisão.
Arlindo Machado (2000, p. 83) exemplifica três tipos de narrativas seriadas televisivas:
1) as de construção teleológica que são as narrativas únicas ou o encadeamento de narrativas
nas quais a história se desenvolve de maneira linear – a apresentação dos acontecimentos em
ordem cronológica dá continuidade à trama – ao longo dos capítulos ou episódios, o princípio
essencial da narrativa teleológica é reaver o equilíbrio perdido nos capítulos iniciais, tal
desequilíbrio é causado por um conflito que será solucionado somente nos capítulos finais; 2)
as narrativas em que um protótipo é multiplicado em variantes diversas, neste caso, cada
episódio é autônomo e conta uma história completa, mantendo os personagens e a situação
narrativa como elementos invariáveis, assim, a exibição dos episódios não exige uma ordem
cronológica – ou lógica – e os interlocutores não necessitam de conhecimento prévio para
interpretar a história; e 3) as narrativas nas quais predominam os elementos variáveis, neste
modelo permanecem como índices de continuidade da série o ambiente e o tema.
Se para os estudiosos da narrativa e profissionais da indústria do entretenimento os
documentos audiovisuais – e outros produtos comunicativos – fixam limites bem claros entre
a ficção e a realidade, o mesmo não acontece na dimensão do consumo cultural. No campo da
produção, as narrativas são o resultado da organização hierárquica de inúmeros elementos
invariáveis e variáveis que articulam-se entre si, cada qual com uma função específica dentro
da trama; os personagens ganham vida por meio de suas ações que são contextualizadas no
universo narrativo – espaço e ambiente; quando história e discurso se conectam, os sentidos
da narrativa são revelados, possibilitando diferentes interpretações pautadas na personalidade
e na ideologia de cada interlocutor. Como lembra Todorov (2006, p. 79) “[...] A obra será
sempre considerada como a manifestação de uma estrutura abstrata, da qual ela é apenas uma
das realizações possíveis [...]”.
52
Já no campo da recepção, a fronteira entre o mundo ficcional e o mundo real não é tão
nítida; aos olhos do receptor, as histórias contadas nas telas do cinema ou da televisão ou
narradas em um livro se parecem com fragmentos da vida cotidiana. Esta sensação de
realidade despertada nos interlocutores é causada pela verossimilhança. Adilson Citelli (1995,
p. 14) explica que “Verossímil é, pois, aquilo que se constitui em verdade a partir de sua
própria lógica”, para o autor a arte não tem compromisso com a realidade, mas com a criação
de um mundo intermediário entre a ficção e o real que a partir da abstração do interlocutor e
de seu envolvimento com a narrativa, seria possível.
3. Construção dos personagens de ficção
Os estudos a respeito de personagens ainda são bastante incipientes. Em A personagem,
Beth Brait (1985, p. 12) escreve que "[...] a personagem é um habitante da realidade ficcional,
de que a matéria de que é feita e o espaço que habita são diferentes da matéria e do espaço dos
seres humanos [...]”, contudo, a autora pondera que estas duas dinâmicas mantêm uma relação
bastante próxima. Para Nesteriuk (2011, p. 181)
A noção de personagem pode ser entendida como a representação de uma entidade
que pratica e, principalmente, vive as ações apresentadas em uma história. Seja por
meio da dinâmica visual (sua movimentação, ações e características físicas) ou
psicológica (a forma de pensar, sentir, agir, as palavras que usa e os
comportamentos mais frequentes), a construção de uma personagem forte depende
tanto da capacidade de observação do roteirista quanto de sua inventividade.
Todorov (2006, 2011) e Barthes (2011) referem-se aos personagens como seres de
papel. A análise estrutural da narrativa rejeita a ideia da construção de personagens-pessoas
como reprodução da realidade externa.
[...] os personagens (por qualquer nome que lhes chame: dramatis personae ou
actantes) formam um plano de descrição necessário, fora do qual as pequenas
ações narradas deixam de ser inteligíveis, de sorte que se pode bem dizer que não
existe uma só narrativa no mundo sem “personagens” ou ao menos sem “agentes”;
mas, por outro lado, estes “agentes” bastantes numerosos não podem ser descritos
nem classificados em termos de “pessoas” [...] (BARTHES, 2011, p. 45, grifos do
autor).
Contudo, nas narrativas contemporâneas, das mais simples as mais complexas, os
personagens se mostram plenamente constituídos de características físicas, psicológicas e
moral. Se os personagens da ficção não fazem referência alguma aos seres humanos, como
53
explicar a identificação entre estes seres ficcionais e seus interlocutores? Umberto Eco (2011)
responde a este questionamento discutindo a tipicidade dos personagens
[...] a tipicidade não é um dado objetivo que a personagem deva adequar para
tornar-se esteticamente (ou ideologicamente) válida, mas resulta da relação de
fruição entre personagem e leitor, e um reconhecimento (ou uma projeção) que o
leitor realiza diante da personagem (ECO, 2011, p. 216).
Eco (2011, p. 212) afirma que “falar em ‘personagem típica’ significa pensar na
representação, através da imagem, de uma abstração conceptual”. O autor explica a tipicidade
como um recurso ao tópico15 que busca rememorizar, na narrativa, experiências estéticas – de
fruição – para qualificar experiências intelectuais e morais individuais, não de forma
contemplativa, mas aplicada (à realidade). O recurso ao tópico torna-se pleno e operante no
momento em que ocorre o reconhecimento – ou projeção – do interlocutor; tal
reconhecimento nasce na invenção de um personagem com consistência artística e bem
realizado16 como objeto narrativo (poética), entretanto, a tipicidade dos seres ficcionais é
autenticada na fruição (estética) quando um grupo de interlocutores percebe na personalidade
e no comportamento do personagem a sua própria maneira de ver o mundo e o sente como um
“ser verdadeiro”. Eco (2011, p. 218) define este comportamento criado para a ficção como
mimese do comportamento humano que está fundamentada “na capacidade produtiva de dar
vida ao fatos, que, pela sua coerência de desenvolvimento, surjam como verossímeis; onde,
portanto, a lei da verossimilhança é lei estrutural, de sensatez lógica, de plausibilidade
psicológica [...]”.
O autor compartilha da premissa de que o personagem é resultado de uma ação narrada
ou representada e, como já citado, quando bem realizado como objeto estético permanece
vivo na memória dos interlocutores. A tipicidade deste produto artístico que é o personagem
se concretiza à medida que ele se apropria de uma fisionomia completa, não apenas exterior,
mas também intelectual e moral, ou nos termos de Nesteriuk (2011), a materialização do
personagem se dá por meio das dinâmicas visual e psicológica. A fisionomia intelectual é
criada e contextualizada na narrativa e expressa o modo pelo qual, por meio de gestos e ações,
o personagem define sua personalidade e revela a sua concepção de mundo, permitindo aos
interlocutores compreendê-lo plenamente. Assim, o personagem típico é legitimado
15 Umberto Eco define como tópico o “conjunto de interpretações previstas na estratégia discursiva de produção
de um texto que prevê uma modalidade particular de recepção”. 16 O autor entende como “bem realizado” o personagem criado em sua plenitude, com uma fisionomia completa
que contempla características físicas, intelectuais e morais, contextualizadas no enredo da narrativa, capazes de
estimular uma relação fruitiva, de reconhecimento ou de projeção, com seus interlocutores.
54
[...] quando o autor consegue revelar os múltiplos nexos que coligam os traços
individuais dos seus heróis aos problemas gerais da época; quando a personagem
vive, diante de nós, os problemas gerais de seu tempo, mesmo os mais abstratos
[...]’ (LUKÁCS, 1953 apud ECO, 2011, p. 220).
Com base nas proposições de Eco (2011), é factível admitir que a identificação entre
seres da ficção e seres humanos irrompe de uma relação fruitiva, desencadeada pelas
narrativas em que o narrador – ou autor – é capaz de articular nexos entre a realidade e as
experiências estéticas, criando um mundo autossuficiente e plenamente possível e
compreensível dentro de sua lógica própria. Não se trata, portanto, de mera decodificação do
que foi codificado pelo autor. Mas de fruição, dada por dinâmicas de interpretação e produção
de sentidos. As narrativas são, assim como a tipicidade dos personagens, concretizadas na
fruição de pessoas reais que carregam na memória aqueles seres ficcionais nos quais se
reconhecem ou se projetam; esta relação entre personagens e interlocutores frui porque a
realização do personagem como objeto narrativo somada à mimese do comportamento
humano possibilitam encontrar no enredo da narrativa situações convincentes que são
facilmente associadas ao cotidiano.
Retomando a perspectiva da análise estrutural da narrativa, Todorov (2011, p. 230)
enfatiza que “todo personagem se define inteiramente por suas relações com outros
personagens”. Para tipificar estas relações, o autor propõe uma variação do modelo
predicados de base, formulado por A. J. Greimas, que estabelece três formas de
relacionamento entre personagens da ficção: desejo, comunicação e participação. As relações
de desejo expressam afetividade; as de comunicação correspondem às confidências e, por fim,
as de participação que equivalem à ajuda. De acordo com esta matriz, as demais relações
articuladas entre os personagens em uma narrativa são derivações destes predicados de base e
para cada um deles, existem predicados opostos que sustentam as relações inversas, como
amor versus ódio, ajuda versus impedimento, confidencialidade versus exposição.
Na dimensão da produção e do consumo de documentos audiovisuais, os personagens
são classificados tendo em vista sua importância na história, sua função narrativa e seu nível
de desenvolvimento psicológico (NESTERIUK, 2011, p. 180). Em relação à importância na
trama, os personagens são tipificados com base em uma hierarquia que os classifica como
principais, secundários ou figurantes, esta classificação ocorre em virtude de sua relevância
para a história e não é considerado, necessariamente, o tempo de exposição do personagem ao
longo dos episódios. Quanto à função narrativa, a categorização se dá por meio de dois tipos
opostos – protagonistas e antagonistas; para exemplificar esta relação é útil retomar a regra de
55
oposição dos predicados de base: na relação ajuda versus impedimento, o papel de ajuda
corresponde ao protagonista, enquanto o impedimento ao antagonista. O nível de
desenvolvimento psicológico classifica os personagens em planos ou redondos. Os seres
ficcionais planos são superficiais, associados a uma única ideia ou qualidade, são estáticos e
não evoluem no decorrer da narrativa. Esta categoria de personagens é subdividida em tipo e
caricatura:
São classificadas como tipo aquelas personagens que alcançam o auge da
peculiaridade sem atingir a deformação. […] Quando a qualidade ou ideia única é
levada ao extremo, provocando uma distorção propositada, geralmente a serviço da
sátira, a personagem passa a ser uma caricatura (BRAIT, 1985, p. 42).
Os personagens qualificados como redondos são complexos, dinâmicos, multifacetados
e impregnados de características físicas, psicológicas, sociais, ideológicas e morais, chegando
algumas vezes a transcenderem aos conflitos da trama; para lembrar Eco (2011), são
personagens bem realizados como objeto estético que adquiriram uma fisionomia completa
contextualizada na narrativa.
Este capítulo apresentou as ideias-chave da análise estrutural da narrativa articuladas à
produção e ao consumo de produtos culturais. Na perspectiva estruturalista, os elementos
narrativos – personagens e ações – se relacionam em diferentes níveis hierárquicos para
contar uma história que terá sua última significação no discurso, na interação entre narrador e
interlocutores. Estes mesmos princípios organizativos estão presentes nos produtos culturais
contemporâneos, especialmente, nos documentos audiovisuais seriados. A serialidade
transformou os modos de produção, nos quais a estética da repetição tornou-se a principal
tendência, e também os processos de recepção televisiva que passaram a exigir dos
telespectadores novas competências para interpretar um conteúdo fragmentado e descontínuo,
aberto à múltiplas leituras. Esta explanação teórica será útil ao próximo capítulo que tem
como proposta desconstruir os episódios O tênis de Doug e Doug cai no rock da série de
animação Doug Funnie.
56
A animação é uma importante forma de
comunicação e expressão contemporânea,
com forte presença nas artes e na cultura do
século XX e início do XXI. Neste sentido, a
animação é um produto cultural que pode ser
influenciado, como também pode influenciar
as sociedades nas quais se encontra inserida
(NESTERIUK, 2011, p. 12).
57
CAPÍTULO III – DOUG FUNNIE
1. Narrativas do cotidiano infantil
A série de animação Doug Funnie 17 reúne narrativas do cotidiano de Doug, um
estudante de onze anos e meio que vive com a família na fictícia cidade de Bluffington. Nos
episódios, o personagem protagonista registra em seu diário acontecimentos recentes nas
quais experiências reais e imaginárias se misturam para compor o enredo da trama. Por conta
da variação temática, são diversos os cenários de ação dos personagens, no entanto, há uma
tendência de repetição da escola como espaço principal para o desenvolvimento da história.
Outros cenários frequentes são o Honker Burger – ponto de encontro dos estudantes da escola
de Bluffington – e o espaço doméstico no qual acontecem as interações familiares. O ambiente
da série está contextualizado no universo infantil e é delineado por idiossincrasias como
construção da identidade, aceitação social, consumo infantil, relacionamento familiar,
pertencimento ao grupo e mediação de conflitos que estruturam as ações vivenciadas pelos
personagens da série – Doug Funnie, Costelinha, Skeeter Valentine, Patti Maionese, Roger
Klotz e Fedido.
A escolha da série Doug Funnie para estudo se deu com base em uma premissa básica:
o desenho animado cumpre as funções de entreter e educar tendo em vista a contextualização
– de personagens, temática, espacial e temporal – das narrativas. Desta forma, pensou-se nas
seguintes hipóteses: 1) tal contextualização, especialmente dos personagens e suas ações,
possibilitaria o reconhecimento e a projeção do telespectador infantil no universo narrativo da
animação; 2) e, consequentemente, Doug Funnie poderia oferecer inúmeras possibilidades de
discussão – e por que não de aprendizagem – junto às crianças pesquisadas. Especificamente
para a investigação empírica foram selecionados dois episódios que fazem parte da primeira
temporada da série, produzida no ano de 1991 pela Nickelodeon: O tênis de Doug e Doug cai
no rock. O primeiro episódio debate o consumo como mediador das relações sociais na
17 Doug Funnie, criado por Jim Jinkins, foi ao ar pela primeira vez em 1991, em uma iniciativa do canal
Nickelodeon de produzir séries originais. A série foi produzida e exibida em duas fases distintas: inicialmente,
entre os anos de 1991 e 1994, foram produzidos pelo canal Nickelodeon 52 episódios; e, entre 1995 e 1999, a
Disney produziu 65 novos episódios e um longa-metragem intitulado Doug – 1st Movie – na tradução para o
português, Doug – O filme. No Brasil, o desenho animado – em suas duas versões – foi exibido em diferentes
emissoras, entre as quais TV Cultura, SBT e Bandeirantes. Atualmente, os episódios produzidos pelo canal
Nickelodeon são exibidos na TV Cultura, de segunda à sexta-feira, às 14 horas.
58
infância e o segundo aborda a preferência cultural em termos musicais e a construção do ídolo
entre as crianças. A seguir, a sinopse dos episódios.
1.1. Sinopse do episódio O tênis de Doug
Em O Tênis de Doug, a temática é o valor simbólico do consumo para as crianças
contemporâneas. O episódio inicia-se com Doug em um jogo de basquete, tentando acertar
um arremesso livre para reverter o placar para o seu time que está perdendo por um ponto.
Costelinha torce. Patti incentiva “Você consegue Doug”, enquanto Roger tenta intimidar
Funnie “Não consegue não Patti, ele é um perdedor com T18 maiúsculo, da cabeça ao tênis
velho”. Skeeter defende o amigo dizendo que a qualidade do tênis não influencia a vitória ou
derrota no esporte. Patti aconselha Doug a ignorá-los porque estão tentando fazer com que ele
erre o arremesso. Doug erra o lance livre. Envergonhado por não ter acertado a cesta, Doug
começa a pensar a respeito da real importância de ter um tênis da moda.
Figura 2 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 59” e 1’43”)
Imagens reproduzidas do audiovisual de O tênis de Doug, Nickelodeon, 1991.
Na escola, Doug observa que “tênis” é o assunto do momento e se pergunta “Desde
quando tênis era algo tão importante assim?” Perto do armário, uma estudante aborda Skeeter
para elogiar o seu tênis e ele mostra a ela que seu calçado é um modelo reversível que pode
ser usado dos dois lados, a menina faz outro elogio “eu acho tão legal quando um cara sabe
que tênis usar”. Enquanto Skeeter conversa com a garota, Funnie se esconde no armário com
vergonha do seu velho par de tênis vermelhos. Patti chega e pergunta por Doug, ele cai de
dentro do armário e ela o convida para jogar basquete. Doug não se interessa pelo jogo.
18 A letra T mencionada no diálogo “ele é um perdedor com T maiúsculo” do personagem Roger faz alusão ao
tênis velho de Doug Funnie.
59
Figura 3 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 2’07” e 3’07”)
Imagens reproduzidas do audiovisual de O tênis de Doug, Nickelodeon, 1991.
Na volta para casa, Doug conversa consigo mesmo sobre o quanto seu calçado é de fato
ruim “talvez eu precise mesmo de um tênis novo”. Na chegada, ao parar próximo à lixeira
para reencontrar Costelinha, é atingido por um par de tênis arremessado pelo sr. Dink que
tinha a intenção de jogá-los no lixo. O sr. Dink se desculpa com Funnie e lhe mostra o seu
recém adquirido super tênis de ginástica.
Mais tarde, Doug assiste, na TV, às propagandas divulgando diferentes estilos e
modelos de tênis. A propaganda do tênis Air Jets, em que Sky Davis aparece jogando
basquete, atrai a atenção de Doug e o estimula a comprar o produto “Se ao menos eu tivesse
um par de Air Jets do Sky Davis”.
Figura 4 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 3’54” e 5’11”)
Imagens reproduzidas do audiovisual de O tênis de Doug, Nickelodeon, 1991.
Em sua imaginação, o Air Jets promoveria uma performance muito superior no jogo de
basquete e impressionaria Patti “Oh Doug, você é a coisa mais legal sobre dois pés, agora que
usa Air Jets”. Na propaganda, Sky Davis faz um apelo “Compre um par de Air Jets a venda na
loja de Tênis & Tênis & Tênis. Air Jets, compre já”. A locução em off informa que o astro do
esporte estará no shopping Trevo de Quatro Folhas autografando o produto anunciado e a
propaganda é finalizada com o slogan “Quem bobear, vai dançar”. Doug conversa com
Costelinha e decide ir ao shopping “Dentro de poucos minutos serei dono do tênis mais legal
em Bluffington. Vamos Costelinha, hora de comprar o tênis”. No shopping, Doug tenta, sem
sucesso, se aproximar de Sky Davis.
60
Na loja Tênis & Tênis uma vendedora o atende. Doug pede um Air Jets. A vendedora
tira os sapatos de Doug de seus pés e os esconde em uma caixa. Doug percebe que sentirá
saudades de seu velho tênis em razão das aventuras que viveram juntos “Eu odeio dizer adeus.
Não que eu ache que não seja bom, mas acontece que eu não posso mais ser visto com ele”.
Costelinha observa. Na imaginação do personagem, os velhos tênis ganham vida e expressam
sentimentos de tristeza por terem sido trocados por um tênis da moda “Você acredita nisso?
Ele nos trocou por um tênis da moda esquerdinha. Eu nunca pensei que viveria para ver isso
Doug”. Funnie se desculpa com os sapatos antigos, dizendo que precisa de calçados mais
sofisticados.
Figura 5 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 5’37” e 7’37”)
Imagens reproduzidas do audiovisual de O tênis de Doug, Nickelodeon, 1991.
A vendedora chega com o último par de Air Jets número 35 e os calça em Doug. Ele
sente que ficaram grandes, a vendedora sugere colocar algumas dúzias de meias e insiste na
compra. Doug não se sente confortável com o calçado, mas ainda assim decide comprá-los.
Orgulhoso, pergunta a vendedora se já pode usá-los “um homem novo, com um par novo de
Air Jets”. Doug descobre que o dinheiro que tem em mãos não é suficiente para adquirir o
produto e desiste da compra, a vendedora irrita-se e grita para que ele tire o Air Jets. Doug
volta para pegar seu antigo tênis e encontra Roger experimentando o Air Jets “Você perdeu de
novo Funnie”.
Figura 6 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 8’24” e 9’15”)
Imagens reproduzidas do audiovisual de O tênis de Doug, Nickelodeon, 1991.
61
Doug e Costelinha sentam-se em um banco de uma praça. Doug está aborrecido por não
ter conseguido comprar o Air Jets “lá estava eu, o mesmo cara, com o velho tênis vermelho”.
No mesmo banco senta-se Sky Davis “Ei garoto, que tênis legal”, fala o astro do basquete.
Doug e Costelinha se surpreendem “Puxa, você não é o Sky Davis”, o jogador diz “Pode me
chamar de Chuck”. Doug pergunta ao atleta por que ele não está usando o Air Jets. Sky Davis
responde “Oh, eu gosto dos meus Air Jets, mas tenho estes tênis há muito tempo, são meus
companheiros fora de quadra, eu acho que nunca vou me livrar deles”. Doug pede a Chuck
que autografe seus tênis e ele concorda “Agora você tem um verdadeiro tênis Sky Davis”. O
jogador também pede a Doug Funnie que autografe o seu velho par de tênis “afinal, nós
somos irmãos de sola”, fala Sky Davis.
Figura 7 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 9’23” e 10’17”)
Imagens reproduzidas do audiovisual de O tênis de Doug, Nickelodeon, 1991.
Na escola, Roger aparece para o jogo de basquete usando o Air Jets. Costelinha
expressa raiva. Os tênis também parecem enormes nos pés de Roger. Ao pegar a bola, Roger
se atrapalha com o tênis e cai antes de chegar ao garrafão, seus amigos riem. Com o apoio de
Patti e Skeeter “Vai fundo cara, você sabe que consegue”, Doug faz a cesta e vence o jogo.
Escrevendo no diário, Doug confessa ter percebido que seu tênis é ótimo. O episódio
termina com Doug e Costelinha fazendo cestas com bolinhas de papel.
Figura 8 – Fragmentos do episódio O Tênis de Doug (cenas entre 10’25” e 11’11”)
Imagens reproduzidas do audiovisual de O tênis de Doug, Nickelodeon, 1991.
62
1.2. Sinopse do episódio Doug cai no rock
Neste episódio, Doug Funnie se dá conta de que é o único garoto de Bluffington que não
tem um ídolo musical. Skeeter, melhor amigo de Doug, é um grande fã da banda The Beets19.
Doug, que não conhece a banda, questiona “Desculpe Skeeter, mas quem são os Beets?”.
Skeeter surpreende-se com a pergunta de Funnie e decide ajudá-lo a se tornar um fanático,
como ele, pelos Beets. Costelinha, que demonstra suas habilidades tocando uma guitarra
imaginária, parece conhecer bem as canções. Com a ajuda de Skeeter, Doug se transforma em
um beatnik, conhecedor das músicas e da história da banda.
Figura 9 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 05” e 51”)
Imagens reproduzidas do audiovisual de Doug cai no rock, Nickelodeon, 1991.
Por meio de Roger, Doug e Skeeter ficam sabendo que The Beets fará um show em
Bluffington. Mas, após dar a boa notícia, o vilão interrompe a alegria dos garotos e de
Costelinha para avisá-los que os ingressos para o concerto estão esgotados e que ele havia
comprado o último par de ingressos.
Figura 10 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 2’04” e 3’03”)
Imagens reproduzidas do audiovisual de Doug cai no rock, Nickelodeon, 1991.
Doug e Skeeter ouvem na rádio K-Bluf que haverá um sorteio de dois ingressos para o
show The Beets. Para concorrer, os ouvintes devem responder corretamente três perguntas a
19 Criado exclusivamente para a série animada – contando até mesmo com a produção de músicas inéditas como
Killer tofu, em português, Mingau matador –, The Beets, formado por Monroe Yoder (vocais), Wendy Nespott
(guitarra), Chap Lippman (bateria) e Flounde (baixo), fazem referência ao quarteto de Liverpool, The Beatles.
63
respeito da banda, quem acertar as respostas, ganha os ingressos. Skeeter sugere a Doug
participarem do concurso “Nós podemos ganhar esses ingressos Doug, nós dois sabemos
tudo”.
Figura 11 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 3’41” e 4’08”)
Imagens reproduzidas do audiovisual de Doug cai no rock, Nickelodeon, 1991.
Os estudantes voltam para a casa de Skeeter para ligar para a rádio. Roger torce contra.
Skeeter consegue a ligação para a K-Bluf e acerta duas das três perguntas. Doug, sem querer,
responde corretamente a terceira ao dizer “sem ideia”. Doug, Skeeter e Costelinha
comemoram o prêmio.
Figura 12 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 4’23” e 5’33”)
Imagens reproduzidas do audiovisual de Doug cai no rock, Nickelodeon, 1991.
Quando tudo parece resolvido, Skeeter fica de castigo por não se comportar bem à mesa
durante o jantar e seu pai, sr. Joe, o proíbe de ir ao show. O personagem lamenta “Oh cara, eu
não acredito que estraguei tudo”.
Doug não se sente à vontade para ir ao concerto sem o melhor amigo. Roger provoca
“Ora Funnie, não me diga que vai ficar em casa com seu amigo fracassado e perder o
concerto. Vamos, é hora de ver os Beets”. Doug questiona “Ir ao concerto? Sem o Skeeter?”
Skeeter aconselha Doug a ir com Roger “Ele [Roger] tem razão. Vai em frente, ao menos
poderá me contar tudo depois”. Doug retruca “Ah eu não sei não Skeeter, sabe esse seria o
meu primeiro concerto e provavelmente o melhor, mas eu não tenho certeza se quero ir sem
você”. Skeeter incentiva o amigo “Não se preocupe comigo, eu estarei bem”. Doug pensa
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melhor e decide não ir ao show para ficar com Skeeter “Ei, se não fosse você eu nem saberia
quem são os Beets. Eu não vou te abandonar agora”.
Figura 13 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 6’02” e 7’41”)
Imagens reproduzidas do audiovisual de Doug cai no rock, Nickelodeon, 1991.
Doug sugere ao amigo imaginarem que fazem parte da banda The Beets. Skeeter aceita
a brincadeira, os dois colocam a música Mingau matador e começam a dançar e cantar. Sr.
Joe se irrita com o barulho vindo do quarto de Skeeter e tira o filho do castigo para se livrar
do som alto. Com o fim do castigo, Doug e Skeeter vão ao Honker Burger que está vazio por
conta do show. Doug fantasiando ser Chap Lippman dedica uma música aos melhores amigos
Monroe Yoder e Costelinha, os três começam a cantar e dançar novamente.
Neste momento, o ônibus da banda The Beets estaciona no Honker Burger. Os
integrantes descem, olham Doug e Skeeter cantando e vão até eles para conversarem. Os
personagens ficam surpresos com a presença dos ídolos. Chap Lippman pergunta a eles se
conhecem a banda, para provar que sim, Doug e Skeeter cantam Mingau matador. Os Beets
entram na brincadeira até o garçon do Honker Burger, que parece não reconhecer os astros do
rock, entregar-lhes o milk-shake.
Figura 14 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 8’25” e 9’17”)
Imagens reproduzidas do audiovisual de Doug cai no rock, Nickelodeon, 1991.
Os integrantes da banda se despedem e entram no ônibus, antes de partir jogam jaquetas
personalizadas para Doug, Skeeter e Costelinha. Doug diz a Skeeter “ninguém vai acreditar
na gente” e Skeeter responde “quem se importa cara”. Roger chega do show provocando os
65
colegas, os chamando de perdedores por não terem ido ao melhor concerto do mundo. Doug
pergunta a Roger se ele conseguiu chegar bem perto da banda e ele confessa que assistiu ao
concerto com binóculos, sentado na última fileira. Doug e Skeeter não contam para Roger que
conheceram a banda e ganharam as jaquetas.
O episódio termina com Doug escrevendo em seu diário que, embora seja difícil de
acreditar, tudo deu certo e que o melhor, como diz a música da banda The Beets, é estar perto
do “seu amigão”.
Figura 15 – Fragmentos do episódio Doug cai no rock (cenas entre 9’22” e 10’58”)
Imagens reproduzidas do audiovisual de Doug cai no rock, Nickelodeon, 1991.
2. Desconstrução do universo ficcional
Doug Funnie é um conjunto de narrativas com episódios seriados que utilizam como
modo de produção técnicas de animação, combinando linguagem oral e imagem em
movimento. Além desses elementos discursivos verbais e imagéticos, as produções trazem
outros recursos sonoros de ambientação e trilhas musicais. A produção e a recepção de Doug
Funnie demostram características intrínsecas aos produtos culturais seriados que são
fragmentação, descontinuidade e repetição.
Com o propósito de dar suporte à pesquisa empírica de recepção, no que diz respeito à
interpretação das crianças em relação aos episódios O tênis de Doug e Doug cai no rock, será
apresentada nas próximas páginas a análise estrutural das narrativas de Doug Funnie,
especialmente dos episódios acima mencionados.
O diálogo entre a visão estruturalista e as práticas de produção e recepção de produtos
culturais se faz necessário posto que a animação Doug Funnie e seus interlocutores estão
contextualizados em uma sociedade midiática. Portanto, a articulação entre os princípios
organizadores da análise estrutural da narrativa e a categorização utilizada pela indústria do
entretenimento e pelos meios de comunicação de massa torna-se pertinente.
66
Valendo-se da teoria dos níveis – compartilhada por Barthes (2011) e Todorov (2006,
2011) – e das perspectivas de produção e consumo de bens culturais na indústria do
entretenimento, a análise dos episódios está estrutura de acordo com o esquema abaixo:
Esquema 1 – Método de análise dos episódios
Esquema elaborado pela autora da pesquisa com base em Barthes (2011), Todorov (2006, 2011) e Eco (2011).
Iniciando a análise pelo nível das Funções, proposto pela visão integrativa de Barthes
(2011), os índices são as unidades narrativas predominantes na animação, pelas próprias
características da serialidade – fragmentação e descontinuidade – que exigem a repetição
contínua de recursos imagéticos e verbais capazes de trabalhar junto aos interlocutores o
reconhecimento da narrativa. Doug Funnie é uma série com tipologia rendada, ou seja, com
episódios autônomos cuja exibição não exige uma ordem lógica ou cronológica, assim os
índices têm papel fundamental na construção do universo narrativo para vincular cada um dos
episódios ao conjunto que origina a série.
Os índices são facilmente identificados na fisionomia dos personagens. Como explica
Eco (2011), um personagem quando bem realizado como objeto estético possui não apenas
características físicas, mas também aspectos intelectuais e morais. Ao analisar os seres
fictícios da série – que para Todorov (2006, 2011) estão no nível da história – é possível
descrever esta fisionomia20:
20 É preciso considerar que a análise da fisionomia dos personagens da série está contextualizada em uma
produção animada direcionada ao telespectador infantil, desta forma, as características intelectuais e morais são
adequadas à compreensão destes interlocutores, não abrangendo a profundidade apresentada em narrativas mais
complexas.
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Doug Funnie, personagem protagonista, tem características visuais singulares como os
traços do rosto que indicam um nariz grande, o modo de vestir-se nada contemporâneo e
incomum em sua faixa etária – camiseta e colete – e os poucos fios de cabelo. No entanto, são
as características comportamentais, repetidas a cada episódio da série – como a timidez, a
dificuldade de se socializar, seus conflitos internos e, sobretudo, sua maneira de enredar a
imaginação aos acontecimentos reais – que compõem a essência do personagem.
Em O tênis de Doug, o personagem acredita que ao comprar um novo par de calçados,
mais sofisticados, será visto pelos amigos de maneira diferente, como um bom atleta. Logo, a
aquisição de um tênis da moda está associada ao bom desempenho no basquete e,
consequentemente, ao reconhecimento do grupo. Em um dos fragmentos do episódio, Doug
conversa com Costelinha sobre o tênis velho “Eu odeio dizer adeus. Não que eu ache que não
seja bom, mas acontece que eu não posso mais ser visto com ele”, este diálogo mostra como o
personagem se importa com a percepção dos amigos a seu respeito, sinalizando a necessidade
de aceitação social.
Outra particularidade de Doug Funnie é sua capacidade inventiva para entrelaçar, nos
fatos narrados, realidade21 e imaginação. No episódio Doug cai no rock, ao fingir tocar uma
guitarra, o protagonista imagina-se em um show como vocalista da banda The Beets, cantando
Mingau matador, na plateia estão os colegas que costumam zombar dele na escola e Patti
Maionese – por quem Doug mantem uma paixão secreta – todos o admiram e estão
entusiasmados com sua música, os fãs imaginários carregam uma faixa com a frase “Nós
amamos Doug”. Em O tênis de Doug, o personagem imagina seu velho tênis ganhando vida e
sofrendo com a separação, na cena da animação os sapatos choram e conversam com Doug
“Não fomos bons para você? [...] Você acredita nisso, ele nos trocou por um tênis da moda
esquerdinha”. O mundo imaginário criado pelo protagonista expressa suas angústias e seus
desejos. No primeiro episódio, Doug por meio de seu imaginário realiza o desejo de ser
popular, um tema recorrente na série, uma vez que a popularidade está associada ao
reconhecimento do grupo e à aceitação social. Na segunda situação, Doug usa a fantasia para
resolver um conflito, idealizando um diálogo com o velho par de tênis para explicar o real
motivo da compra de um calçado mais sofisticado.
Esta dinâmica psicológica do protagonista – considerada pela perspectiva da produção e
do consumo de documentos audiovisuais como redonda por apresentar atributos físicos,
psicológicos, sociais, ideológicos e morais – contribui também para a atmosfera da narrativa
21 Por realidade entende-se as ações que de fato se concretizaram na ficção.
68
visto que a temática da série se desenvolve a partir das relações que Doug estabelece com os
demais personagens. A fisionomia de Doug Funnie e a atmosfera da narrativa – unidades
indiciais de natureza integrativa – permitem ao telespectador infantil estabelecer uma
continuidade entre os episódios autônomos.
Costelinha, cachorro de estimação de Doug Funnie, é também um personagem
principal se considerada sua relevância para o desenho animado. A representação visual deste
personagem é bastante comum, o que o diferencia são suas habilidades e seus traços de
personalidade inspirados na mimese do comportamento humano. Costelinha está plenamente
inserido na esfera de ação da narrativa, é capaz de compreender os conflitos de Doug e
participar ativamente de todos os acontecimentos da história, expressando por meio da
dinâmica visual diferentes sentimentos – alegria, tristeza, raiva, surpresa, indignação.
Contudo, o personagem não pode ser considerado como redondo, a ausência da fala
impossibilita o interlocutor de compreendê-lo plenamente.
Roger Klotz é o antagonista da série. A dinâmica psicológica deste personagem é típica
dos vilões: amoral, age somente em benefício próprio, elabora planos de conspiração, cria
intrigas, seu atributo principal é a maldade. No aspecto visual, Roger se destaca pela cor verde
da pele, cabelo laranja e trajes que reforçam a tipificação do vilão. Roger aproxima-se do
personagem-caricatura, por isso é considerado plano. Seu animal de estimação é o gato
Fedido, de pelos pink, personagem secundário e plano, cuja ações são espelhadas em Roger.
Skeeter Valentine é o melhor amigo de Doug Funnie. Em alguns episódios tem papel
principal, como em Doug cai no rock, em outros, sua participação é menos relevante para a
narrativa, podendo ser classificado como secundário, como acontece em O tênis de Doug. A
fisionomia do personagem é menos inteligível, em algumas de suas ações é possível
identificar uma certa moralidade como quando, por exemplo, Skeeter defende Doug diante do
grupo, no entanto, o personagem não atinge a mesma profundidade psicológica de Doug.
Visualmente, Skeeter se distingue pela pele esverdeada, nariz avantajado e trajes modernos.
Patti Maionese é a garota mais popular da escola de Bluffington. Entre seus atributos
estão a beleza e a inteligência. Patti é a paixão secreta de Doug. Pela importância que tem
para a narrativa, a personagem é classificada como secundária.
Tomando-se por base o esquema narrativo de Vilches (1984), a série Doug Funnie é
classificada como fixa com variação de temas; nesta concepção, os índices podem também se
constituírem em elementos invariáveis do desenho animado, embora com temas diferenciados
a cada episódio, é perceptível a repetição na construção da atmosfera narrativa e na
fisionomia dos personagens, esta estrutura comum aos episódios – que Barthes (2011) chama
69
de “sistema implícito de unidades e regras” – é resultado das unidades indiciais presentes na
narrativa.
Nos episódios de estudo, além da variação temática, outros elementos variáveis foram
inseridos no nível da história. Em O tênis de Doug, o personagens Sky Davis e a vendedora
da loja Tênis & Tênis, assim como o cenário do shopping Trevo de Quatro Folhas, são
novidades na série. No episódio Doug cai no rock, os personagens da banda fictícia The Beets
e o locutor da rádio K-Bluf, além do cenário da rádio, são elementos surpresa.
A temática de Doug Funnie se desenvolve a partir da rede de relações estabelecida entre
o personagem protagonista e os demais personagens da série. Neste sentido, é apropriado
tipificar estas relações com base no modelo predicados de base, adaptado por Todorov
(2011). Considerando as três formas de relacionamento definidas nesta matriz – desejo,
comunicação e participação – e seus respectivos predicados opostos e variações, é possível
indicar que:
Tabela 2 – Tipificação das relações em Doug Funnie
PREDICADOS
DE BASE
SIGNIFICAÇÃO VARIAÇÕES
Doug Funnie
Costelinha Comunicação Confidencialidade Compreensão
Participação Ajuda Apoio
Roger Participação Impedimento Amoralidade
Skeeter Comunicação Confidencialidade Amizade
Companheirismo
Participação Ajuda Apoio
Patti
Maionese
Desejo Amor Amor platônico
Amizade
Tabela elaborada pela autora da pesquisa, segundo a matriz Predicados de base, adaptada por Todorov (2011).
Ainda no nível da história, no que tange às ações, a série Doug Funnie encaixa-se no
modelo triádico. Os episódios autônomos, narrados do início o fim, sem intervenção de outras
histórias, são fragmentos – ou encadeamentos – da série. Cada episódio é norteado por três
tipos de ações – 1) tentativa, 2) pretensão e 3) perigo – centralizadas inicialmente no
personagem protagonista. A partir de tentativas e pretensões de Doug Funnie, os demais
personagens são envolvidos no universo narrativo e a trama se desenvolve, como
demonstrado nos esquemas a seguir.
70
Esquema 2 – Modelo triádico em O tênis de Doug
Esquema elaborado pela autora da pesquisa com base no modelo triádico (TODOROV, 2012, p. 225-227)
Esquema 3 – Modelo triádico em Doug cai no rock
Esquema elaborado pela autora da pesquisa com base no modelo triádico (TODOROV, 2012, p. 225-227)
71
O discurso é o espaço para o diálogo entre Doug Funnie e o telespectador infantil. Se a
relação dialógica, segundo Bakhtin (1997), é o ato de compreensão no qual narrador e
interlocutores são produtores de sentidos, então é no nível do discurso que se dá os processos
de interpretação e apropriação do universo narrativo. A interpretação do interlocutor é
construída não somente pela visão que ele tem da história, mas também mediada pela visão de
quem narra os acontecimentos, em Doug Funnie particularmente, pelos personagens da série
animada. Narrador e interlocutores caminham juntos na compreensão dos signos da
narratividade, situados em um espaço histórico, social e culturalmente contextualizado.
Esta relação entre narrador e interlocutor é reflexo do confronto entre o universo
narrativo e o contexto social – em outras palavras, o confronto entre ficção e realidade –
denominado por Todorov (2011) como nível apreciativo. Se observada a contextualização da
série Doug Funnie, é plausível apontar que a narrativa busca referências no mundo exterior
para legitimar a moral interna da trama. A temática do desenho animado apresenta
verossimilhança com situações do cotidiano da criança, da mesma maneira que os padrões de
comportamento e conduta dos personagens – mimese do comportamento humano – são
baseados em uma lógica externa ao universo narrativo – certo versus errado, bem versus mal,
moral versus amoral. Tal contextualização fez de Doug Funnie um produto midiático
atemporal, o desenho animado é exibido pelas emissoras de televisão desde 1991, ano de sua
criação, atraindo novos telespectadores e mantendo cativa a geração adulta que assistia aos
episódios da série na infância.
Deslocando-se da relação entre narrador e interlocutor para a relação entre narrador e
personagem, Doug Funnie, além de protagonista é o narrador da série. Se considerada a
proposta teórica de Jean Pouillon (1970), Doug é classificado como narrador-personagem,
visto que participa dos eventos ao mesmo tempo em que narra a história. O registro de Doug
em seu diário e o tempo verbal utilizado no início de cada episódio (O tênis de Doug: “Lá
estava eu, pronto para o lance livre. Estávamos perdendo por um ponto. Costelinha tava
torcendo”. Doug cai no rock: “Querido diário, sou eu, Doug. Eu era o único cara em que não
tinha uma banda favorita”) sinalizam que a história aconteceu no tempo passado e os eventos
estão sendo contados aos interlocutores do ponto de vista do narrador e demais personagens
da animação por meio do estilo cênico. Após indicar que está narrando eventos já ocorridos, o
narrador-personagem retoma a representação no tempo presente. Este recurso estilístico de
temporalidade utilizado na série é útil para tornar os acontecimentos inteligíveis aos
interlocutores e conectar o tempo pluridimensional da história – passado – ao tempo linear do
discurso – presente.
72
3. Estética da repetição e técnicas de produção
A estética da repetição é uma tendência nos processos de produção audiovisual –
sobretudo, na produção de séries criadas para exibição na TV – e uma característica intrínseca
aos produtos culturais seriados. Desta forma, na série de animação Doug Funnie é possível
reconhecer alguns aspectos deste modo de produção. A individualização dos elementos
narrativos – criados e produzidos para o protótipo – e a posterior combinação destes
elementos em situações múltiplas, ou seja, a presença de elementos invariáveis no decorrer
dos episódios, já configuram uma estética da repetição cuja finalidade é agilizar a produção
cultural e economizar recursos financeiros. Calabrese (1987) denomina este modo de
produção de variação de um idêntico.
A ideia de repetição não assume aqui o sentido utilizado na Teoria da Informação, como
contraponto dos ruídos. Naquela corrente teórica, que se volta à transmissão da maior taxa de
informação possível em uma dada operação de comunicação, a superação dos ruídos
(interferências e perdas) pode ser obtida como recurso da repetição. Aqui o termo aparece por
conta do uso desse recurso estético (ou poético) nas narrativas dos seriados televisivos.
Observada a série em seu conjunto, a sintaxe dos personagens constitui-se em elemento
invariável, reutilizado na produção de novos episódios. Ou seja, uma vez ilustrados, os
personagens são inseridos em diferentes temáticas sem que haja mudança significativa na
dinâmica visual. O conjunto de cenários proposto é também um elemento invariável. Na série,
a escola de Bluffington, o Honker Burger e os espaços domésticos são os cenários
predominantes, em alguns episódios estes cenários são combinados a novos espaços como
forma de apresentar ao interlocutor um elemento surpresa. Dos vinte e cinco episódios que
compõem a primeira temporada da série, a escola de Bluffington aparece como cenário em
catorze, o Honker Burger em oito e os espaços domésticos em dezenove. Nesta temporada,
apenas três episódios têm cenários inéditos: Sempre alerta, Prefeito por um dia e O pescador.
Tabela 3 – Primeira temporada de Doug Funnie (1991): estética da repetição
EPISÓDIO CENÁRIOS
Doug pega um sapossauro Casa de Doug. Honker Burger.
Doug não sabe dançar Casa de Doug.
Culpado ou inocente Escola de Bluffington. Honker Burger. Casa de Doug.
A namora de Costelinha Casa de Doug.
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O narigão de Doug Escola de Bluffington. Casa de Doug.
Sempre Alerta Floresta.
Doug cai no rock Casa de Skeerter. Honker Burger.
A desgraça de Doug Casa de Doug. Escola de Bluffington. Honker Burger.
A culpa não foi de Doug Escola de Bluffington.
Prefeito por um dia Prefeitura de Bluffington.
Doug o talentoso Escola de Bluffington. Casa de Doug.
O tênis de Doug Escola de Bluffington. Casa de Doug.
Super Doug Escola de Bluffington. Casa de Doug.
Doug muda o visual Casa de Doug.
Doug e sua vó muito louca Casa de Doug.
O pescador Casa do sr. Dink. Lago.
Doug tá duro Casa de Doug. Honker Burger. Casa do sr. Dink.
Doug perde o diário Casa de Doug. Honker Burger. Escola de Bluffington.
A caricatura de Doug Escola de Bluffington.
O cozinheiro Escola de Bluffington. Casa de Doug. Casa do sr. Dink.
Doug banca a babá Casa de Doug. Honker Burger. Casa de Skeeter.
Doug é o homem codorna Escola de Bluffington.
Doug entra em campo Escola de Bluffington. Campo de baseball.
O primeiro programa de Doug Escola de Bluffington. Casa de Doug. Feira regional.
Amigos inseparáveis Casa de Doug. Honker Burger. Casa de Skeeter.
Tabela elaborada com base no DVD da primeira temporada da série Doug Funnie (1991).
Ainda no nível da história – considerando a lógica das ações – a dinâmica psicológica
dos personagens integra os elementos invariáveis da série. Os padrões de comportamento e
conduta dos seres ficcionais são previsíveis, permitindo ao telespectador infantil estabelecer
uma continuidade entre os episódios. São expectativas do telespectador em relação à narrativa
as maldades de Roger, a timidez e a necessidade de aceitação social de Doug, o
companheirismo entre Funnie e Skeeter, o apoio de Costelinha ao protagonista; neste sentido,
a repetitividade se torna um contrato de leitura – no qual entram em operação as gramáticas
de produção e de reconhecimento – entre o desenho animado e seus interlocutores que de
acordo com Calabrese (1987) é uma das funções da estética da repetição.
Outro elemento invariável da série é o fragmento em que Doug Funnie registra em seu
74
diário as histórias vivenciadas. Além da repetição do cenário, é possível notar que a
colorização e a iluminação da cena são especificidades que a diferencia das demais
sequências do episódio.
Figura 16 – Sequência em que Doug escreve em seu diário
Imagens reproduzidas do audiovisual, Nickelodeon, 1991.
A série Doug Funnie foi criada com ilustrações no estilo animação limitada e produzida
por meio da computação gráfica. Na década de 1940, quando foi inventada pela UPA (United
Production of America), animação limitada designava uma técnica, desenvolvida por
intermédio do uso do acetato, para agilizar e baratear a produção de séries de animação,
especialmente para a exibição na TV. Pela originalidade e ousadia, o termo animação
limitada foi reconhecido não apenas como modo de produção de desenhos animados, mas
particularmente como um estilo de ilustração que permanece como referência até os dias
atuais. Na figura abaixo estão, à esquerda, Gerald McBoing-Boing, produzido pela UPA
(United Productions of American), em 1951, utilizando a técnica de animação limitada; e à
direita Doug Funnie produzido pela Nickelodeon, em 1991, com o mesmo estilo de animação.
Figura 17 – Animação limitada: técnica de produção versus estilo de ilustração
Imagens reproduzidas do audiovisual. Gerald McBoing-Boing (1951) e Doug Funnie (1991).
75
O estilo animação limitada – inspirado no movimento Cubista – caracteriza-se pela
ênfase na geometria, simplicidade dos traços e colorização chapada das ilustrações e pela
bidimensionalidade do desenho animado. Em razão do plano bidimensional no qual são
criadas as ilustrações, o movimento da animação é rudimentar e não tem a pretensão de imitar
o mundo real.
Figura 18 – Estilo animação limitada
Fonte: TV Cultura
Se por um lado, a temática e a ambientação de Doug Funnie buscam verossimilhança
com o mundo exterior para legitimar a narrativa, a concepção visual da série tem natureza
própria. De acordo com Nesteriuk (2011, p. 170-171), estes recursos visuais são úteis para
“[...] romper as barreiras do realismo e propor de maneira fluida teorias, ideias e pensamentos
diversos, que talvez não pudessem ser assimilados do mesmo modo de outra forma”. No
desenho animado são permitidos personagens de pele colorida e animais de estimação com
personalidade inspirada na mimese do comportamento humano que serão novamente recriados
e (re)significados na fruição do telespectador infantil. Estas (re)significações do universo
narrativo, elaboradas com base nos contextos de vida da criança, serão descritas, interpretadas
e analisadas no capítulo V.
76
Como pudemos passar tanto tempo tentando
compreender o sentido das mudanças na
comunicação, inclusive as que passam pelas
mídias, sem referi-las às transformações do
tecido coletivo, à reorganização das formas do
habitar, do trabalhar e do brincar? E como
poderemos transformar o “sistema de
comunicação” sem assumir sua espessura
cultural e sem que as políticas procurem
ativar a competência comunicativa e a
experiência criativa das pessoas, isto é, seu
reconhecimento como sujeitos sociais?
(MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 228).
77
CAPÍTULO IV – RECEPÇÃO E MEDIAÇÕES
1. A gênese dos estudos de recepção: Stuart Hall e a Escola de Birmingham
O atual debate a respeito de como se estabelece a relação entre as audiências e os meios
de comunicação de massa foi despertado pelos estudos culturais. Para anteceder a discussão
acerca da proposta teórico-metodológica de Stuart Hall, vale um recorte dos estudos
realizados pelo Center for Contemporary Cultural Studies britânico, vinculados à
investigação da comunicação massiva. O intuito deste texto não é reconstruir o trajeto
histórico dos estudos culturais, tão pouco revisitar o rico repertório de temas discutidos pelos
pesquisadores com diferentes enfoques em períodos distintos; mas abordar pontos de vista,
modelos teóricos e metodologias de investigação que contribuíram para formar o panorama
dos estudos de recepção hoje.
Como movimento teórico-político, a Escola de Birmingham – fundada por Richard
Hoggart, Raymond Williams e Edward. P. Thompson – construiu um campo de estudos com
duas abordagens inéditas para aquele período: primeiro, a investigação social inserida e
praticada no contexto cultural; segundo, a interdisciplinaridade que sinalizou para a
convergência de diferentes visões e métodos “[...] a utilidade dessa convergência é que ela
nos propicia entender fenômenos e relações que não são acessíveis através das disciplinas
existentes [...]” (TURNER, 1990 apud ESCOSTEGUY, 1998, p. 88). Como movimento
intelectual, o Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS) firmou compromisso com as
mudanças sociais que extrapolou os muros da academia e o território britânico para ancorar-se
em diferentes países, englobando os da América Latina.
A Escola de Birmingham centrou esforços para compreender a relação dialógica entre
comunicação massiva e cultura. A ruptura deste movimento intelectual e político está na
perspectiva teórica alinhada às práticas sociais com foco nos produtos da cultura popular e
nos mass media como forma de expressão da cultura contemporânea em oposição à cultura
elitista e a investigação das relações entre meios e audiências como fenômeno mecânico e
unidirecional (ESCOSTEGUY, 1998).
No campo acadêmico, este novo panorama teórico – interdisciplinar e contextualizado
social e culturalmente – exigiu repensar as práticas de investigação; assim, nos estudos
culturais a pesquisa passou a empregar metodologia qualitativa, com ênfase na etnografia,
78
para analisar com profundidade os modos de vida dos atores sociais ou para citar Ana
Carolina Escosteguy (1998, p. 90), para compreender os sentidos da cultura na cotidianidade
Com a extensão do significado de cultura de textos e representações para práticas
vividas, considera-se em foco toda produção de sentido. O ponto de partida é a
atenção sobre as estruturas sociais (poder) e o contexto histórico enquanto fatores
essenciais para a compreensão da ação dos meios massivos, assim como, o
desprendimento do sentido de cultura da sua tradição elitista para as práticas
cotidianas.
Compartilhando deste pensamento teórico-metodológico, Stuart Hall foi quem mais se
dedicou aos estudos de recepção dos meios de comunicação massivos, em particular a
televisão, e às práticas de resistência das subculturas. Deste ponto de vista, Hall questionou,
por meio da crítica social, a manipulação dos mass media, a hegemonia cultural na televisão e
o papel passivo da audiência.
Nesta perspectiva são estudadas as estruturas e os processos através dos quais os
MCM sustentam e reproduzem a estabilidade social e cultural. Entretanto, isto não
se produz de forma mecânica, senão “adaptando-se” continuamente às pressões e
às contradições que emergem da sociedade, e “englobando-as” e “integrando-as”
no próprio sistema cultural (ESCOSTEGUY, 1998, p. 91).
Alinhado com a intensificação do consumo das mídias no final dos anos 1960, Stuart
Hall publicou, em 1973, Encoding and decoding in television discourse. O texto se tornou
uma das principais contribuições dos estudos culturais para a investigação da comunicação
social e, em particular, para os estudos de recepção.
Hall (2003) explica que Encoding and decoding in television discourse faz uma crítica
ao modelo positivista que pensa a comunicação como fluxo unidirecional – um circuito entre
emissor, mensagem e receptor isolados do contexto – no qual a mensagem que parte do
emissor e chega ao receptor é transparente.
A mensagem é uma estrutura complexa de significados que não é tão simples como
se pensa. A recepção não é algo aberto e perfeitamente transparente, que acontece
na outra ponta da cadeia de comunicação. E a cadeia comunicativa não opera de
forma unilinear (HALL, 2003, p. 354).
A noção de transparência da mensagem alerta para o fato de que o significado não está
unicamente vinculado ao entendimento – ou não – do receptor em relação ao conteúdo
midiático. Ao pensar desta forma unilinear, o positivismo despreza o repertório do
interlocutor e o contexto em que se dá a comunicação. Nos processos de apropriação dos
discursos midiáticos, a interpretação extrapola o sentido contido no produto cultural e deve
ser pensada na chave da compreensão e não apenas na perspectiva da decodificação e da
explicação.
79
A transparência entre o momento da codificação e a decodificação é o que eu
chamaria de momento da hegemonia. Ser perfeitamente hegemônico é fazer com
que cada significado que você quer comunicar seja compreendido pela audiência
somente daquela maneira pretendida. Trata-se de um tipo de sonho de poder –
nenhum chuvisco na tela, apenas a audiência totalmente passiva (HALL, 2003, p.
366).
Além do modelo teórico-metodológico anunciado em Encoding and decoding in
television discourse, que segundo o próprio autor é frágil do ponto de vista do rigor científico,
o texto traz uma reflexão política na qual contesta a imposição ideológica da cultura
dominante pelos meios de comunicação. “É a noção de que o significado não é fixo, de que
não existe uma lógica determinante global que nos permita decifrar o significado ou o sentido
ideológico da mensagem contra alguma grade” (HALL, 2003, p. 354).
Hall (2003, p. 173), com base em Althusser, argumenta que “As ideologias constituem
estruturas de pensamento e avaliação do mundo – as ‘ideias’ que as pessoas utilizam para
compreender como o mundo social funciona, qual o seu lugar nele e o que devem fazer”.
David Morley (1996) argumenta que a posição ideológica dos meios de comunicação não
pode ser reconhecida tomando-se por base as dinâmicas de produção ou o texto, para
reconhecê-la é indispensável o estudo dos trajetos de leitura e do consumo midiático.
Partilhando da visão de que a ideologia concretiza-se na sociabilidade e na ritualidade, Hall
(2003, p. 173) completa
Igualmente importante é o lugar dos rituais e práticas de ação ou o comportamento
social, nos quais as ideologias se imprimem ou se inscrevem. A linguagem e o
comportamento são os meios pelos quais se dá o registro material da ideologia, a
modalidade de seu funcionamento. Esses rituais e práticas sempre ocorrem em
locais sociais, associados a aparelhos sociais. E por isso que devemos analisar ou
desconstruir a linguagem e o comportamento para decifrar os padrões de
pensamento ideológico ali inscritos.
Desta forma, o sentido da mensagem é sempre multireferencial. “Logo, sempre existirão
discursos na sociedade que são os meios pelos quais as pessoas tornam significativo o mundo,
dão sentido ao mundo” (HALL, 2003, p. 262). Morley (1996) reitera este pensamento,
sugerindo que os receptores imprimem um sentido particular ao sentido do mundo criado
pelos meios de comunicação. Roland Barthes (2011, p. 54) também compartilha desta visão,
especialmente, na significação das narrativas de ficção
A narração não pode com efeito receber sua significação do mundo que a usa,
acima do nível narracional, começa o mundo, isto é, outros sistemas (sociais,
econômicos, ideológicos), cujos termos não são mais apenas as narrativas, mas
elementos de uma outra substância (fatos históricos, determinações,
comportamentos, etc).
80
Neste sentido, Encoding and decoding in television discourse traz uma nova perspectiva
para os estudos de recepção em virtude do mapeamento territorial, ou seja, dos processos
comunicativos contextualizados culturalmente nos quais os receptores negociam os sentidos
da comunicação, valendo-se da sua visão de mundo. Predominantemente, os conteúdos
midiáticos carregam consigo a intencionalidade de uma ideologia dominante que poderá – ou
não – ser legitimada pelo receptor.
A intencionalidade institucional contida na estrutura da mensagem, elaborada no campo
da codificação, é o que Hall (2003, p. 366) denominou leitura preferencial, “um exercício de
poder na tentativa de hegemonizar a audiência”. Para o autor, “O elemento da leitura
preferencial se situa no ponto onde o poder atravessa o discurso, está dentro e fora da
mensagem”. Morley (1996) amplia esta visão articulando a leitura preferencial ao interesse
dos mass media em obter eficácia na comunicação e explica que, em razão desta busca pela
efetividade, os meios de comunicação introduzem na estrutura das mensagens “direções” na
tentativa de estabelecer uma leitura dominante. Morley (1996) e Hall (2003) concordam que,
mesmo controlando os aparatos de produção, a pretensão de hegemonizar a audiência por
parte dos meios massivos nem sempre se mostra eficaz porque a codificação poderá não
comportar todas as apropriações e os significados descobertos pelo receptor na decodificação
da mensagem.
Por outro lado, um texto – midiático ou não – nunca é totalmente aberto, desprovido de
intenções. “Se não houvesse limites, as audiências poderiam simplesmente ler qualquer coisa
que quisessem dentro das mensagens” (HALL, 2003, p. 399). Para Morley (1996) o processo
de recepção é delineado pela interação entre duas estruturas que definem os parâmetros para a
interpretação – os mecanismos internos ao texto que convidam a certas leituras e restringem
outras – e a origem cultural do receptor.
Para contrapor a leitura preferencial, Hall (2003) descreve a leitura de oposição. Nesta
posição, a decodificação da mensagem tem significado oposto ao preferencial; o receptor
pode compreendê-la de maneira inversa ou pode, ainda, compreender a intencionalidade
institucional e formar sua opinião contrária à leitura preferencial, rejeitando-a. Entre a posição
preferencial e de oposição, está a leitura negociada que emana das subculturas nas quais se
realiza a cadeia comunicativa. Para Hall (2003), a negociação organiza a maior parte dos
processos comunicativos; quando as audiências operam na posição negociada, reconhecem a
legitimidade da comunicação – a tentativa de hegemonizar – no entanto, criam regras próprias
de significação, de acordo com a lógica situacional. Hall (2003, p. 371) esclarece que estas
leituras – preferencial, negociada e de oposição – não são estanques, “As audiências movem-
81
se claramente entre as três posições; logo, elas são lugares em que se toma posição, não são
entidades sociológicas. Cabe ao trabalho empírico dizer, em relação a um texto particular e a
uma parcela específica da audiência, quais leituras estão operando”.
Considerando as três posições de leitura, a proposta teórico-metodológica formulada em
Encoding and decoding in television discourse sugere um processo comunicacional
sustentado pela articulação de momentos distintos e interligados que se desdobram em
produção, circulação, consumo e reprodução das mensagens.
O processo, desta maneira, requer, do lado da produção, seus instrumentos
materiais – seus "meios" – bem como seus próprios conjuntos de relações sociais
(de produção) – a organização e combinação de práticas dentro dos aparatos de
comunicação. Mas é sob a forma discursiva que a circulação do produto se realiza,
bem como sua distribuição para diferentes audiências. Uma vez concluído, o
discurso deve então ser traduzido – transformado de novo – em práticas sociais,
para que o circuito ao mesmo tempo se complete e produza efeitos. Se nenhum
"sentido" é apreendido, não pode haver "consumo". Se o sentido não é articulado
em prática, ele não tem efeito (HALL, 2003, p. 388).
Nesta perspectiva, uma vez que os discursos midiáticos utilizam como fonte de
informação outros discursos originados nas estruturas socioculturais, a produção cultural não
está limitada às estruturas institucionais dos meios de comunicação. Em momentos
autônomos, porém articulados, a recepção se torna também um processo de produção na
medida em que novos significados e sentidos são atribuídos às mensagens e legitimados
socialmente para, futuramente, serem reincorporados às práticas sociais (HALL, 2003;
ESCOSTEGUY, 2007). No contexto da estética ocorre uma nova poética. Valendo-se desta
abordagem, é factível admitir a comunicação como um processo de partilha, de comunhão.
Já que a nossa maneira de ver as coisas é literalmente a nossa maneira de viver, o
processo de comunicação, de fato, é o processo de comunhão: o compartilhamento
de significados comuns e, daí, os propósitos e atividades comuns; a oferta,
recepção e comparação de novos significados, que levam a tensões, ao crescimento
e à mudança (WILLIAMS apud HALL, 2003, p. 135).
Em discussão mais recente, José Luiz Braga (2006) propôs o “sistema de resposta
social” que se aproxima do processo comunicacional sustentado pelas articulações entre
produção, circulação, consumo e reprodução formulado por Hall, em 1973. Para Braga (2006,
p. 28), o enfrentamento entre mídia e sociedade se dá na circulação dos sentidos, ou seja, na
“movimentação social dos sentidos e dos estímulos produzidos inicialmente pela mídia”.
O sistema de interação social sobre a mídia (seus processos e produtos) é um
sistema de circulação diferida e difusa. Os sentidos midiaticamente produzidos
chegam à sociedade e passam a circular nesta, entre pessoas, grupos e instituições,
impregnando e parcialmente direcionando a cultura. Se não circulassem, não
estariam “na cultura” (BRAGA, 2006, p. 27).
82
Esta circulação diferida e difusa defendida por Braga (2006) refere-se justamente à
interação dos interlocutores capaz de provocar a ruptura temporal dos processos
comunicativos, em outras palavras, por meio desta circulação, os produtos midiáticos
produzidos em um determinado contexto histórico-social podem se propagar na sociedade
durante um longo período e, mais tarde, serem novamente consumidos em uma nova época,
possibilitando novas leituras.
Indiscutivelmente, o repertório teórico-metodológico formulado pelos estudos culturais
promoveu o avanço da pesquisa social no campo da comunicação ao sinalizar que o ato
comunicativo não se traduzia em um processo mecanicista focado no emissor e no suposto
poder dos mass media e seus aparatos de produção. Houve na Escola de Birmingham um
primeiro olhar para o papel relativamente autônomo do receptor na comunicação, ainda que
operando em posições de leituras pré-determinadas (preferencial, negociada ou de oposição).
Contudo, mesmo admitindo a recepção como processos de interpretação e significação
pautados no contexto cultural, Encoding and decoding in television discourse manteve o foco
de estudo na figura do receptor, ou seja, na audiência e não nos processos de recepção. Os
termos codificação e decodificação indicam um esforço por parte do receptor para recuperar o
sentido original – a intencionalidade institucional – do conteúdo midiático, especialmente, na
leitura preferencial. Mais que decodificação, é preciso falar em interpretação e produção de
sentidos.
2. Mediações comunicativas da cultura: perspectivas de Jesús Martín-
Barbero
No final do século XX, Jesús Martín-Barbero expandiu o repertório teórico-
metodológico no campo da comunicação, particularmente na América Latina, ao pensar as
experiências culturais e os fatores sociais como mediadores dos processos comunicativos. “A
comunicação, segundo Martín-Barbero, assume o sentido de práticas sociais onde o receptor é
considerado produtor de sentidos e o cotidiano, espaço primordial da pesquisa”
(ESCOSTEGUY; JACKS, 2007).
Pensar a indústria cultural, a cultura de massa, a partir da hegemonia, implica uma
dupla ruptura: com o positivismo tecnologicista, que reduz a comunicação a um
problema de meios, e com o etnocentrismo culturalista, que assimila a cultura de
massa ao problema da degradação da cultura. Esta dupla ruptura ressitua os
problemas no espaço das relações entre práticas culturais e movimentos sociais,
83
isto é, no espaço histórico dos deslocamentos da legitimidade social que conduzem
da imposição da submissão à busca do consenso. E assim já não resulta tão
desconcertante descobrir que a constituição histórica do massivo, mais que
degradação da cultura pelos meios, acha-se ligada ao longo e lento processo de
gestação do mercado, do Estado e da cultura nacionais, e aos dispositivos que nesse
processo fizeram a memória popular tornar-se cúmplice com o imaginário da
massa (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 131-132, grifos do autor).
A dimensão cultural da comunicação experienciada nas práticas do cotidiano, pensada
pela Escola de Birmingham para compreender a movimentação dos sentidos da cultura na
sociedade contemporânea, também está presente no paradigma de Martín-Barbero quando o
autor faz o deslocamento dos “meios às mediações”
Assim, a comunicação se tornou para nós questão de mediações mais que de meios,
questão de cultura e, portanto não só de conhecimento, mas de reconhecimento.
Um reconhecimento que foi, de início, operação de deslocamento metodológico
para rever o processo inteiro da comunicação a partir de seu outro lado, o da
recepção, o das resistências que aí têm seu lugar, o da apropriação a partir de seus
usos (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 28, grifos do autor).
Na perspectiva do Uso social dos meios, o autor desloca a investigação dos processos
comunicacionais dos meios para os espaços de produção de sentidos para compreender como
os receptores se inter-relacionam com os conteúdos midiáticos nas práticas sociais. Nilda
Jacks (1996, p. 47) afirma que “Os ‘usos’, portanto, são inalienáveis da situação sociocultural
dos receptores, que reelaboram, ressignificam, ressemantizam os conteúdos massivos
conforme sua experiência cultural, suporte das apropriações”.
Do ponto de vista teórico, há duas outras aproximações entre os estudos culturais e o
paradigma das mediações: primeiro, tanto os pensadores da Escola de Birmingham quanto
Martín-Barbero veem nas resistências das subculturas formas de relativizar o suposto poder
dos mass media; segundo, a recepção compreendida como espaço para a produção de sentidos
que são articulados e reincorporados às práticas sociais. Do ponto de vista metodológico, a
similaridade entre estas correntes teóricas está na investigação inserida na cotidianidade. A
pesquisa empírica desenvolvida neste empreendimento investigativo, junto aos grupos de
receptores infantis, se assenta bem nessa perspectiva que articula comunicação, cultura e
cotidianidade.
Articular comunicação e cultura, nos estudos de recepção, pressupõe compreender o ato
comunicativo de maneira dialógica, mediado pela cultura, em que não há subordinação entre
emissores e receptores, ambos são interlocutores com competências para dialogar entre si e
dialogar com os conteúdos midiáticos, interpretá-los e produzir novos sentidos.
84
A recepção passa a ser vista não mais como algo individual, mecânico e efêmero,
mas como processo que se prolonga no tempo e se difunde no contexto
sociocultural. A produção de sentidos se dá nas apropriações vivenciadas pelos
receptores em seu lugar social, em interação com seus pares, marcada por
experiências de interpretação, balizada por mediações socioculturais (BARROS,
2012, p. 80).
A crítica central de Uso social dos meios está justamente em superar a dicotomia entre
as lógicas de produção e a lógica dos usos, ou para citar Stuart Hall (2003), a dualidade entre
as lógicas de produção e de consumo dos produtos culturais. As mediações são, para Martín-
Barbero (2009), espaços que possibilitam compreender as interações entre interlocutores e as
articulações entre produção e reprodução dos significados sociais. “As mediações estruturam,
organizam e reorganizam a percepção da realidade em que está inserido o receptor, tendo
poder também para valorizar implícita ou explicitamente esta realidade” (ESCOSTEGUY;
JACKS, 2007).
Ao entenderem os produtos da cultura popular e os mass media como formas de
expressão cultural pós-modernas, os estudos de recepção superaram a dimensão cultural da
comunicação para propor a comunicação e o aparato midiático como elementos estruturantes
da cultura contemporânea (BARROS, 2012). Neste sentido, como lembram Hall (2003) e
Braga (2006), os meios de comunicação massivos movimentam os sentidos da cultura,
transversalmente, entre mídia e sociedade “[...] desde as primeiras interações midiatizadas, a
sociedade age e produz não só com os meios de comunicação, ao desenvolvê-los e atribuir-
lhes objetivos e processos, mas sobre os seus produtos, redirecionando-os e atribuindo-lhes
sentido social” (BRAGA, 2006, p. 22, grifos do autor). Assim, a comunicação e a mídia como
elementos estruturantes da cultura são inerentes à midiatização da sociedade na qual o sistema
de interação social é um sistema de circulação diferida e difusa.
[...] a sociedade contemporânea está estruturada em uma lógica midiática que dá
sustentação à consciência e à construção de identidades do indivíduo e do grupo. A
midiatização, portanto, vai além da mídia, em sua dimensão técnica. Ela se espalha
e se entranha na estrutura social, na constituição de uma cultura midiatizada
(BARROS, 2012, p. 85-86).
Neste contexto pós-moderno, Martín-Barbero (2004, 2009) revisou as mediações
culturais da comunicação e propôs as mediações comunicativas da cultura. Tal reformulação
teórica construiu um novo mapa no qual a comunicação é reinserida no centro das relações
sociais, culturais e políticas contemporâneas e as mídias caracterizadas como “espaço-chave
de condensação e interseção da produção e do consumo cultural [...]” (MARTÍN-BARBERO,
2004, p. 229).
85
Enquanto ‘midiatização’ vem sendo pensada como uma nova forma de
sociabilidade, decorrente de uma lógica midiática, ‘mediação’ traz já de algum
tempo o sentido das interações sociais, que nos dias de hoje se dão essencialmente
– mas não exclusivamente – por intermédio da mídia (BARROS, 2012, p. 88).
No mapa reformulado, Martín-Barbero (2004, 2009) propõe discutir as mediações que
se estabelecem em torno da comunicação, cultura e política para compreender os novos usos
sociais da mídia. A dinâmica do mapa se dá em dois eixos.
Esquema 4 – Mapa das mediações
Fonte: MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 16.
No eixo diacrônico estão as matrizes culturais e os formatos industriais que captam as
mudanças históricas na articulação entre movimentos sociais e discursos públicos. Trata-se da
hibridação de culturas que leva à construção de novos formatos e gêneros midiáticos,
contemplando discursos hegemônicos e subalternos que implicam em linguagens plurais,
intertextualidade e intermedialidade. No eixo sincrônico estão as lógicas de produção e as
competências de recepção que envolvem processos de produção industrializada e consumo de
produtos culturais. As relações neste eixo apontam para a complexa rede de ideologias
profissionais e institucionais, articulando a competência comunicativa – do ponto de vista
empresarial – à competência cultural – na recepção (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 16-18).
As matrizes culturais e as competências de recepção são mediadas pela sociabilidade
que se refere à construção do sujeito – e suas identidades – imerso em práticas sociais nas
86
quais se faz e se recria os sentidos da comunicação de forma coletiva. As competências de
recepção e os formatos industriais são mediados pela ritualidade que opera nas lógicas de
produção e de recepção. Constrói o nexo simbólico da comunicação que se vincula tanto à
memória histórica quanto à possibilidade de novas percepções de mundo, a partir dos usos ou
modos de relação com as mídias, por isso está em permanente construção, utilizando ora a
repetição, ora a inovação. Desta forma, é na ritualidade que se dão os múltiplos trajetos de
leitura, delineados pelas competências de recepção – classe, gênero, níveis de educação,
memória étnica, hábitos familiares e experiências cotidianas (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.
231-233).
Os formatos industriais e as lógicas de produção são mediados pela tecnicidade. Na
contemporaneidade, as tecnologias não são somente suportes para a comunicação, mas
também criadoras e facilitadoras de novas formas de sociabilidade que possibilitam o uso de
diferentes linguagens que se alinham às práticas sociais e renovam as percepções e
sensibilidades; tais transformações espelham formas inéditas de produzir, consumir e circular
informações. Em síntese, a tecnicidade evolui de instrumental para estrutural (MARTÍN-
BARBERO, 2004, p. 228-229).
As lógicas de produção e as matrizes culturais encontram-se mediadas pela
institucionalidade que permeia os processos comunicacionais nos âmbitos da produção e da
recepção, antagonizando valores de instituições sociais distintas. De um lado, estão as
ideologias profissionais inerentes à estrutura empresarial dos mass media, de outro, as
ideologias resultantes de diferentes matrizes culturais. Para Martín-Barbero (2009, p. 17-18),
a institucionalidade é
[...] uma mediação densa de interesses e poderes contrapostos, que tem afetado, e
continua afetando, especialmente a regulação dos discursos que, da parte do
Estado, buscam dar estabilidade à ordem constituída e, de parte dos cidadãos –
maiorias e minorias –, buscam defender seus direitos e fazer-se reconhecer, isto é,
reconstituir permanentemente o social.
Na articulação entre mediações e midiatização o que fica em evidência é a relação de
interdependência entre mídia e sociedade na qual a dicotomia produção-recepção é superada.
Para estas perspectivas teóricas, nos processos da comunicação contemporânea, a
interpretação se converte em apropriação, extrapolando as referências contidas nas mensagens
midiáticas, para circular na sociedade de maneira diferida e difusa, desdobrando-se, mais
tarde, em produção de novos sentidos que serão legitimados e reincorporados às práticas
sociais.
87
Neste sentido, a relação dialógica entre interlocutores, abordada por Martín-Barbero
(2004) e Braga (2006), se aproxima da perspectiva da estética da recepção, formulada por
Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, na Escola de Konstanz. Para a estética da recepção, cujos
estudos estão inseridos no campo da literatura, o sentido da obra não pertence unicamente ao
autor, na interpretação do leitor encontra-se uma multiplicidade de sentidos que excedem a
produção da obra.
Quando o leitor contemporâneo ou as gerações posteriores receberem o texto,
revelar-se-á o hiato quanto à poiesis, pois o autor não pode subordinar a recepção
ao propósito com que compusera a obra: a obra realizada desdobra, na aisthesis e
na interpretação sucessivas [sic], uma multiplicidade de significados que, de muito,
ultrapassa o horizonte de sua origem (JAUSS in: LIMA, 2002, p. 102, grifos do
autor).
A poiesis é inerente à estética produtiva, quando “o individuo, pela criação artística,
pode satisfazer a sua necessidade geral de ‘sentir-se em casa, no mundo’, ao ‘retirar do mundo
exterior a dura estranheza’ e convertê-la em sua própria obra” (JAUSS in: LIMA, 2002, p.
100-101, grifos do autor). A aisthesis expressa o prazer estético da percepção diante da obra,
portanto, está na recepção, na relação fruitiva entre obra e leitor. Assim, para compreender a
produção dos sentidos, Maria Tereza Cruz (1986, p. 57) sugeri “a passagem de uma ‘poiesis’
para uma ‘aisthesis’, isto é, a passagem de uma problemática da produção [...] para a
problemática da recepção e do confronto com a obra [...]”.
A recepção seria, portanto, também, de uma certa forma, uma produção, cujas
determinantes se trata de novo de descobrir, já não pelo lado do autor, mas pelo
lado do leitor. Um discurso, pois, que poderíamos tanto apelidar de “estética da
recepção” como de “poética da recepção”. Se num caso temos um pleonasmo, no
outro teremos algo de aparentemente paradoxal, em função do antigo dualismo,
tratando-se aqui, na realidade, da tentativa de sua dissolução: uma recepção que, no
limite, se confunde com uma produção. Uma obra cujo sentido é tanto produto de
quem o codifica como de quem o descodifica; um sentido, portanto, que já não é
dado; uma obra que já não existe independentemente do sujeito que com ela se
confronta (CRUZ, 1986, p. 57-58).
Ao articular a teoria das mediações aos estudos da Escola de Konstanz, Barros (2012)
propõe o deslocamento das poéticas da mídia às estéticas da recepção, “Se entendermos que
no campo da recepção se opera um novo processo criativo, podemos, então, afirmar que a
experiência estética se desdobra em experiência poética”. Esta perspectiva dos processos de
recepção implica reconhecer que a interpretação e a produção de sentidos concretizadas na
fruição não estão limitadas ao universo do texto e serão reinterpretadas e (re)significadas
infinitas vezes. Assim, a experiência estética espelha a interação entre a obra e o espectador
“o interno ao literário, implicado pela obra, e o mundivivencial, trazido pelo leitor de uma
88
determinada sociedade” (JAUSS in: LIMA, 2002, p. 73). Wolfgang Iser compartilha deste
pensamento
[...] o texto é composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é
esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, interpretá-lo. [...] não
importa que novas formas o leitor traz à vida: todas elas transgridem [...] o mundo
referencial contido no texto (ISER in: LIMA, 2002, p. 107).
Para compreender a experiência da interação fruitiva entre obra e espectador, Jauss
(2002) propõe o confronto entre o horizonte de expectativa interna ao texto e o horizonte de
expectativa social, assim, “a obra pauta o processo sígnico, propondo um campo temático
para o processo interpretativo. Já o leitor, o ‘fruidor’, projeta na obra as suas expectativas e
interesses, em uma relação especular, no sentido de espelhamento” (BARROS, 2012). O
conceito de horizonte de expectativa se aproxima de duas formulações relevantes presentes
nos estudos de recepção. Primeiro, no que tange à significação, o campo temático implícito na
obra para estimular determinadas leituras assemelha-se à ideia de leitura preferencial
trabalhada por Hall (2003) e Morley (1996) na recepção televisiva; depois, a noção de
mundivivencial pode ser pensada como uma mediação cultural, já que ambas estão
contextualizadas na cotidianidade.
Quando Martín-Barbero (2004, 2009) sugere repensar as mediações como espaços
para a interação entre interlocutores e para as articulações entre produção e recriação dos
significados sociais, o autor se distancia da comunicação unidirecional e instrumental em que
os sentidos estão restritos à mensagem e devem ser decodificados pelo receptor. Na cultura
mediatizada há o deslocamento das poéticas da mídia às estéticas da recepção uma vez que os
processos de recepção são também processos de produção à medida que os interlocutores
interagem com os produtos midiáticos, redirecionando-os e atribuindo-lhes novos sentidos.
3. Enfoque integral da audiência: contribuições de Guillermo Orozco
Gómez
Valendo-se do modelo teórico-metodológico de Stuart Hall, discutido em Encoding and
decoding in television discourse, e do paradigma das mediações de Martín-Barbero, elaborado
em Dos meios às mediações e revisado em Ofício de cartógrafo, Guillermo Orozco Gómez
propõe estudar os processos de recepção por meio do enfoque integral da audiência. De
acordo com Orozco (2005) esta perspectiva teórica é conduzida pela pergunta “Como se
89
realiza a interação entre TV e telespectador?” em um espaço social com múltiplas
mediações. Nesta visão, os estudos de recepção, em particular a recepção televisiva, são
orientados por três premissas básicas: primeiro, a recepção é sempre interação; segundo, esta
interação está mediada de múltiplas maneiras; e por último, esta interação não está
circunscrita ao momento de ver TV.
O enfoque integral da audiência assume o receptor como um sujeito em situação,
condicionado individual e coletivamente, por isso Orozco (2005, p. 28) argumenta que “o
público não nasce, mas se faz” por meio da interação com a TV e das múltiplas mediações
que contornam o complexo processo de recepção.
Orozco (2005, p. 29-30) reconhece que a televisão em seu duplo papel – meio
tecnológico e instituição social – tem influência legítima na construção do telespectador,
“Essa dualidade da TV confere à mesma um caráter especial e a distingue de outras
instituições sociais, ao mesmo tempo em que lhe dá certos recursos para aumentar seu poder
legitimador em relação ao telespectador”; contudo, o autor não acredita na influência
totalizadora da TV em razão da natureza polissêmica dos conteúdos midiáticos e da
criatividade empregada na produção televisiva que podem levar o receptor à múltiplas
interpretações.
Pela ótica da produção e do consumo de bens culturais, a TV em razão de seus recursos
tecnológicos é capaz de reproduzir a realidade de forma verossímil e esta representação do
“acontecer social”, resultado de uma linguagem denotativa universalizada, desperta
percepções racionais e emocionais nos receptores. Orozco (2005) associa a mediação
videotecnológica aos aparatos de produção da TV, apontadas por Stuart Hall (2003), e à
institucionalidade, defendida por Martín-Barbero (2004, 2009), expondo que a linguagem
televisiva compreende códigos orientadores dos processos de recepção que demandam
recursos técnicos, manejo profissional e elementos ideológicos. Aproximando-se da
concepção de leitura preferencial de Stuart Hall (2003), Orozco (2005) admite a
intencionalidade de um significado dominante nos conteúdos midiáticos, porém, alerta para o
fato de que não há garantias de que a mensagem será interpretada pelo receptor da mesma
maneira como foi idealizada pelos meios.
Justamente o paradoxo da TV consiste em que quanto mais polissêmica (ou menos
monossêmica), mais popular entre os diferentes segmentos da audiência, mas ao
mesmo tempo, menos contundente para impor seu significado dominante. Este
existe, mas não há garantia de que seja o significado (re)produzido pelo
telespectador (OROZCO, 2005, p. 30).
Do ponto de vista da institucionalidade, a televisão coexiste com outras instituições
90
sociais como a família e a escola, particularmente no caso da criança, com as quais a TV
compete na socialização dos telespectadores. Orozco (2005) e Morley (1996) concordam que,
ao sentar em frente à tela, o receptor não despreza seu repertório histórico-cultural e não está
isolado do contexto sociocultural ao qual pertence. Se o receptor é um sujeito social
condicionado individual e coletivamente, os processos de recepção ocorrem em ritmos
diferentes para cada um e as interpretações das mensagens midiáticas estão associada aos
elementos externos, situados no espaço social, e elementos interiorizados ao longo do tempo.
Mentalmente, os telespectadores frente à televisão se vêm partícipes de uma
sequência interativa que implica diversos graus de envolvimento e processamento
do conteúdo televisivo. Essa sequência começa com a atenção, passa pela
compreensão, seleção, valoração do que foi percebido, seu armazenamento e
integração com informações anteriores, e finalmente se realiza uma apropriação e
produção de sentido (OROZCO, 2005, p. 31).
Este conhecimento interiorizado pelo receptor, resultante de fatores genéticos e
culturais, se transforma na mediação cognitiva. Nos estudos de recepção, a cognição é
definida por Orozco (2005, p. 31-32) como script. Os scripts enfatizam a atuação do sujeito
face aos diferentes cenários sociais e “[...] prescrevem para o atuante formas ‘adequadas’,
culturalmente aceitas para a interação dele com os outros”, desta forma, constituem-se em
orientadores das interações sociais. A relevância dos scripts para os processos de recepção
está na esfera da significação, em que o sentido é elaborado por intermédio das interações
sociais que elegem um consenso cultural e/ou institucional.
A mediação situacional compreende duas esferas da recepção, primeiro, em uma lógica
mais simples, a situação na qual se dão os processos de recepção – o lugar de assistir à
televisão, o nível de atenção dispensado ao conteúdo exibido e a solidão do telespectador são
condições que impactam nas formas de interação do receptor com a TV. Por outro lado,
existem as situações criadas pelo próprio conteúdo midiático – reais na tela da TV mas que
não existem concretamente no tempo e no espaço do receptor – que atuam nos processos de
compreensão, apropriação e produção de sentidos uma vez que estão contextualizadas social e
culturalmente (OROZCO, 2005, p. 33).
Entre os espaços de recepção, a família constitui-se em uma mediação institucional. É
no ambiente doméstico que se dão as primeiras negociações – conceito utilizado por Hall
(2003) – entre o telespectador, a TV e os membros da família; neste sentido, a família é uma
“comunidade de apropriação”. Especialmente para o telespectador infantil, a escola é também
uma “comunidade de apropriação” ao possibilitar o intercâmbio entre alunos no qual os
conteúdos televisivos são recriados. Desta modo, a família e a escola possuem esferas de
91
significação que são responsáveis por legitimar – ou não – os significados institucionalizados
pela televisão; e esta legitimidade está associada aos valores e atitudes que mantêm o receptor
coeso às instituições sociais (OROZCO, 2005, p. 33). Para Martín-Barbero (2009, p. 295-297)
a família é a unidade básica de audiência porque se trata de “um dos espaços fundamentais de
leitura e codificação da televisão”. A cotidianidade familiar extrapola o campo da recepção
para se espelhar no discurso televisivo como técnica de aproximação entre interlocutores,
ficção e realidade, por meio da transparência, simplicidade e economia narrativa.
Por fim, os telespectadores estão inscritos em parâmetros que embora mais objetivos,
interferem nos modos de interpretar a TV. A mediação de referência envolve das questões
primárias mais simples – como as de gênero, idade, etnia e localização geográfica – até as
segmentações de classe e os referentes culturais que se mostram mais complexos porque
englobam tanto fatores objetivos, como o acesso aos produtos culturais, quanto subjetivos
como valores, tradição familiar, a orientação educacional e preferências em relação à TV.
A produção de sentido que o telespectador realiza depende, então, da combinação
particular de mediações em seu processo de recepção; combinação que, por sua
vez, depende dos componentes e recursos de legitimação, por meio dos quais se
realizam cada uma das mediações (OROZCO, 2005, p. 36).
Para sustentar a proposição de que a recepção não está circunscrita ao momento de ver
TV, Orozco (2005) argumenta que, apesar de o ato de ver TV ser uma ação individualizada, a
significação no processo de recepção é social, coletiva. Assim, é na relação dialógica com
outros sujeitos que os significados são apropriados e se desdobram em produção de sentidos.
Em uma sociedade midiatizada, de acordo com Braga (2006, p. 28, grifos do autor) “o que
mais importa é a circulação posterior à recepção [...]”. Para Orozco (2005, p. 34), é na
circulação, diferida e difusa, que
[...] o processo de recepção “sai do lugar” em que está a televisão e “circula” em
outros cenários, em que seguem atuando os telespectadores. Em todos esses
cenários, o processo de recepção vai sendo mediado tanto pelas novas situações,
como pelos agentes e instituições envolvidos.
Ainda que a mediação cultural não esteja inserida na metodologia da mediação múltipla,
o modelo está fundamentado no paradigma das mediações de Martín-Barbero, no qual a
mediação cultural é o espaço “onde as demais mediações tomam seu lugar e onde se
configuram, pois aí todas as informações se originam, o consumo se efetiva, o sentido é
produzido e a identidade se constrói” (ESCOSTEGUY; JACKS, 2007). Do ponto de vista da
investigação social, o enfoque integral da audiência se consolidou como metodologia de
investigação da teoria das mediações.
92
Este capítulo buscou compreender, de uma perspectiva teórica, como se dão os
processos de recepção na sociedade midiatizada, alinhando pensamentos de diferentes autores
que convergem sempre para o papel ativo do receptor na interação com os mass media e
produtos culturais. Hall (2003), Morley (1996) Martín-Barbero (2004, 2009), Braga (2006) e
Orozco (2005), mesmo com visões teórico-metodológicas distintas, concordam que os
sentidos da comunicação não estão contidos nos conteúdos midiáticos, mas na cotidianidade,
para serem compartilhados em espaços sociais. Especialmente, os discursos da narrativa de
ficção quando apropriados pela cultura, circulam na sociedade, são reinterpretados,
impregnados de novos sentidos e novamente reincorporados às práticas sociais. Neste sentido,
a experiência estética é também uma experiência poética, se considerado que na recepção
ocorre uma nova criação por parte do interlocutor. No capítulo V este referencial teórico será
aplicado à investigação empírica para compreender, na prática, como se realiza a interação
entre o telespectador infantil e o desenho animado.
93
A recepção passa a ser vista não mais como
algo individual, mecânico e efêmero, mas
como processo que se prolonga no tempo e se
difunde no contexto sociocultural. A produção
de sentidos se dá nas apropriações
vivenciadas pelos receptores em seu lugar
social, em interação com seus pares, marcada
por experiências de interpretação, balizada
por mediações socioculturais (BARROS, 2012,
p. 80).
94
CAPÍTULO V – PESQUISA DE RECEPÇÃO
1. Procedimentos metodológicos
Para a realização desta pesquisa empírica, que tem como objeto os processos de
recepção de produtos culturais e a produção de sentidos por parte do telespectador infantil, foi
utilizada como técnica de investigação o grupo de discussão, cujo diálogo com os
participantes foi norteado pelo modelo teórico-metodológico da mediação múltipla formulado
por Guillermo Orozco (2005).
Para Carlos Colina Salazar (1994, p. 211, tradução nossa) “O grupo de discussão é uma
técnica analítica que incorpora aportes da linguística, da psicanálise e da sociologia e dedica-
se aos estudos das opiniões sociais”. Portanto, uma técnica de pesquisa qualitativa que
favorece a reprodução da realidade social representada pelos sujeitos de um grupo. Salazar
(1994) explica que os fenômenos ideológicos e de representação social originam-se nos
processos comunicativos e por isso manifestam-se concretamente nos discursos sociais. Desta
forma, conclui-se que o grupo de discussão é a técnica científica mais adequada para captar e
compreender as representações ideológicas, os valores e o imaginário incorporados aos
processos de recepção de determinados grupos sociais, no caso específico deste estudo, os
processos de recepção televisiva realizados por crianças em idade escolar. Em razão da faixa-
etária dos estudantes pesquisados, foram acrescentados às técnicas utilizadas no grupo de
discussão outros métodos de investigação, como a ilustração e perguntas direcionadas aos
temas de estudo.
Para a execução desta investigação foram selecionadas duas escolas que ofertam o
ensino fundamental. Uma instituição de ensino da rede pública – Escola Estadual José
Mamede de Aquino – e outra da rede privada – Colégio Engler Abelhinha Feliz.
Em cada uma destas escolas formou-se dois grupos de crianças com idade entre 8 e 12
anos, ou seja, estudantes que cursam entre a 3a e a 5 séries do ensino fundamental. A faixa
etária dos estudantes pesquisados foi definida com base nas perspectivas social e de produção
e consumo de bens culturais. Para Piaget e Inhelder (2012), entre 7-8 e 11-12 a criança está na
fase das operações concretas na qual a socialização e a conquista da personalidade individual
tornam-se relevantes para o campo das relações interpessoais, principal temática da série de
animação Doug Funnie. Alinhada a esta concepção de Piaget e Inhelder (2012), foram
95
observados os critérios de segmentação praticados pela indústria do entretenimento que, de
acordo com Nesteriuk (2011), classificam-se em toddlers (até três anos de idade),
preschoolers (de três a seis anos), kids (seis a oito anos), tweens (8 a 12 anos) e teens (12 a 15
anos). Assim, as crianças envolvidas na pesquisa vivenciam a fase das operações concretas e
integram o segmento tweens.
No total, trinta e nove crianças participaram dos grupos de discussão, sendo vinte da
escola pública e dezenove da instituição particular. Os estudantes foram selecionados de
maneira aleatória e divididos em quatro grupos, como descrito abaixo.
Grupo 1 (G1): Estudantes da 3a série da Escola Estadual José Mamede de Aquino;
Grupo 2 (G2): Estudantes da 4a série da Escola Estadual José Mamede de Aquino;
Grupo 3 (G3): Estudantes da 4a série do Colégio Engler Abelhinha Feliz;
Grupo 4 (G4): Estudantes da 5a série do Colégio Engler Abelhinha Feliz.
Para preservar a identidade das crianças, nos relatos desta pesquisa os estudantes foram
nomeados por uma sigla composta pelo grupo de discussão do qual participaram somado a um
número, como demonstram as tabelas a seguir:
Tabela 4 – Grupo 1: Caracterização dos estudantes por idade e gênero
G1 – ESCOLA ESTADUAL JOSÉ MAMEDE DE AQUINO
ESTUDANTE CARACTERIZAÇÃO POR IDADE E GÊNERO
IDADE GÊNERO
G1-E1 8 anos Feminino
G1-E2 10 anos Feminino
G1-E3 9 anos Feminino
G1-E4 8 anos Masculino
G1-E5 8 anos Masculino
G1-E6 8 anos Masculino
G1-E7 8 anos Feminino
G1-E8 8 anos Masculino
G1-E9 8 anos Feminino
G1-E10 12 anos Feminino
Fonte: Tabela elaborada pela autora da pesquisa com base nas respostas do questionário aplicado (apêndice A).
96
Tabela 5 – Grupo 2: Caracterização dos estudantes por idade e gênero
G2 – ESCOLA ESTADUAL JOSÉ MAMEDE DE AQUINO
ESTUDANTE CARACTERIZAÇÃO POR IDADE E GÊNERO
IDADE GÊNERO
G2-E11 9 anos Feminino
G2-E12 11 anos Masculino
G2-E13 9 anos Masculino
G2-E14 9 anos Masculino
G2-E15 11 anos Masculino
G2-E16 9 anos Feminino
G2-E17 8 anos Feminino
G2-E18 10 anos Masculino
G2-E19 12 anos Masculino
G2-E20 9 anos Feminino
Fonte: Tabela elaborada pela autora da pesquisa com base nas respostas do questionário aplicado (apêndice A).
Tabela 6 – Grupo 3: Caracterização dos estudantes por idade e gênero
G3 – COLÉGIO ENGLER ABELHINHA FELIZ
ESTUDANTE CARACTERIZAÇÃO POR IDADE E GÊNERO
IDADE GÊNERO
G3-E21 10 anos Feminino
G3-E22 10 anos Masculino
G3-E23 9 anos Feminino
G3-E24 10 anos Feminino
G3-E25 9 anos Feminino
G3-E26 10 anos Feminino
G3-E27 9 anos Feminino
G3-E28 9 anos Feminino
G3-E29 10 anos Feminino
Fonte: Tabela elaborada pela autora da pesquisa com base nas respostas do questionário aplicado (apêndice A).
97
Tabela 7 – Grupo 4: Caracterização dos estudantes por idade e gênero
G4 – COLÉGIO ENGLER ABELHINHA FELIZ
ESTUDANTE CARACTERIZAÇÃO POR IDADE E GÊNERO
IDADE GÊNERO
G4-E30 10 anos Feminino
G4-E31 11 anos Feminino
G4-E32 10 anos Masculino
G3-E33 10 anos Masculino
G4-E34 10 anos Feminino
G4-E35 10 anos Feminino
G4-E36 10 anos Masculino
G4-E37 11 anos Feminino
G4-E38 11 anos Masculino
G4-E39 10 anos Masculino
Fonte: Tabela elaborada pela autora da pesquisa com base nas respostas do questionário aplicado (apêndice A).
Todos os participantes dos grupos de discussão responderam a um questionário no
primeiro contato com a pesquisadora. Os grupos (G1, G2, G3 e G4) assistiram aos episódios
O tênis de Doug e Doug cai no rock. Após a exibição do desenho animado, foi proposta uma
discussão entre as crianças cuja descrição, análise e interpretação serão apresentadas no
decorrer das próximas páginas.
2. Seleção das instituições de ensino
A Escola Estadual José Mamede de Aquino está localizada em um bairro periférico de
Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, chamado Jardim Aeroporto, que fica a
aproximadamente 13 quilômetros do Centro da cidade. A escola da rede pública estadual
oferece, além do ensino fundamental – nos períodos matutino (5a a 9a séries) e vespertino (1a
a 5a séries) –, o ensino médio e a educação de jovens e adultos (EJA) no período noturno. Ao
total, cerca de 930 estudantes são atendidos pela instituição. De acordo com o depoimento da
professora Diana Pilatti Onofre, diretora da escola, a região ainda é bastante carente de
98
infraestrutura e a população residente é de baixa renda22; parte das crianças que frequentam a
escola são de famílias beneficiadas pelo programa Bolsa Família e vivem em um núcleo
familiar não tradicional.
A segunda escola selecionada foi o Colégio Engler Abelhinha Feliz localizado no Novo
Jardim Pagani, bairro tradicional da cidade de Bauru, interior de São Paulo. O colégio da rede
particular de ensino atende cerca de 200 crianças na educação infantil – nos períodos
matutino, vespertino e integral – e no ensino fundamental – 1a e 2a séries nos períodos
matutino e vespertino e 3a, 4a e 5a séries no período matutino. Há ainda a opção de período
integral para todas as séries. A escola possui gestão familiar e a principal característica do
modelo pedagógico é respeitar o ritmo de aprendizagem individual dos estudantes; é
reconhecida pelo vínculo de afetividade com os alunos e seus respectivos familiares. A
mensalidade para o ensino fundamental é de R$ 600,0023.
Referente aos aspectos econômicos, a renda per capta do município de Bauru é de R$
905,6524, bastante superior à renda per capta da região do Jardim Aeroporto (MS) que é de
R$ 420,79.
3. Corpus da pesquisa
3.1. Escola Estadual José Mamede de Aquino
Na Escola Estadual José Mamede de Aquino a investigação foi realizada com alunos de
3a e 4a séries do ensino fundamental. Após definição da faixa-etária pela pesquisadora, foi
solicitado à diretora Diana Pilatti Onofre que selecionasse os estudantes de forma aleatória. O
primeiro grupo (G1) de dez integrantes foi composto por alunos da 3a série, sendo seis
crianças do sexo feminino e quatro do sexo masculino; dos dez participantes, sete com 8 anos
de idade e os demais entre 9 e 12 anos. O segundo grupo (G2) foi formado por dez estudantes
22 De acordo com o censo demográfico do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010),
divulgado pelo PLANURB – Instituto Municipal de Planejamento Urbano da Prefeitura Municipal de Campo
Grande, 38,01% da população local tem rendimento nominal mensal domiciliar entre ½ e 1 salário mínimo e
23,40% entre 1 e 2 salários mínimos, 22,25% dos domicílios têm renda inferior a ½ salario mínimo e a renda per
capita da região é de R$ 420,79. 23 Mensalidade vigente no segundo semestre de 2014. 24 Dados do censo demográfico do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010).
99
da 4a série, quatro meninas e seis meninos, com idade entre 8 e 11 anos, sendo cinco
participantes com 9 anos.
O primeiro contato com os estudantes da Escola Estadual José Mamede de Aquino
ocorreu no dia 13 de novembro de 2014. Na abordagem inicial com cada um dos grupos de
discussão, junto a uma conversa informal, foi aplicado um questionário simplificado (ver
apêndice A) às crianças com o objetivo de conhecer os hábitos de consumo midiático dos
pesquisados, além das vivências de lazer no ambiente familiar. Estas informações são
pertinentes para a investigação para compreender em qual contexto sociocultural se dá o
processo de recepção televisiva.
Por meio do referido questionário foi constatada a informação de que parte dos
estudantes da escola vive em um núcleo familiar não tradicional. Dos vinte alunos que
participaram da pesquisa, onze não se enquadram no modelo tradicional de família, afirmando
morar apenas com a mãe ou com parentes próximos como tios e avós.
Em relação aos hábitos de consumo midiático, assistir à TV todos os dias é uma prática
comum entre os estudantes. Chamou atenção a resposta de uma aluna da 3a série que
respondeu não ter tempo para a televisão porque ajuda nas tarefas domésticas. Os alunos
afirmaram que geralmente assistem aos programas acompanhados dos irmãos e primos. Na
maioria dos domicílios, a sala é o espaço principal para ver TV o que indica que as crianças
não possuem TV no quarto e uma única televisão é compartilhada por toda a família. Quando
questionados em relação aos canais e programas preferidos, as opiniões se dividem. Os alunos
da 3a série elegeram o SBT e as atrações favoritas são Bom Dia e Cia, Chiquititas e Rebeldes
– neste caso é possível identificar que a família não possui TV por assinatura – enquanto os
alunos da 4a série disseram preferir as séries como iCarly, exibida pela Band, Chiquititas e os
canais infantis da TV paga nos quais os desenhos animados são a atração principal. As
crianças não souberam explicar quais motivos as levam a gostar destes programas televisivos.
Tabela 8 – Programas televisivos preferidos pelas crianças (Grupos 1 e 2)
ESTUDANTE PROGRAMA
G1-E1 Bom Dia e Cia, Chiquititas, Rebeldes, Domingo Legal
G1-E2 Chiquititas, Rebeldes, Sábado Animado
G1-E3 Chiquititas, Rebeldes
G1-E4 Bob Esponja
G1-E6 Chiquititas
100
Fonte: Tabela elaborada pela autora da pesquisa com base nas respostas do questionário aplicado (apêndice A).
Ao observar as preferências pela programação televisiva, é perceptível o gosto comum
entre os estudantes de uma mesma turma. Chiquititas foi citada como a atração favorita por
nove crianças. Com menos frequência foram lembrados como programas preferidos o Pica-
Pau, Bob Esponja, Padrinhos Mágicos, Drake & Josh, Hora de Aventura, além de programas
não específicos para o público infantil como as novelas e o futebol. No que diz respeito ao
monitoramento da programação televisiva por parte dos pais ou responsáveis, as crianças
disseram não ter permissão para assistirem aos programas com conteúdo adulto.
Ainda referente ao consumo cultural, foi indagado sobre o cinema e a pesquisa revelou
dados curiosos. Algumas crianças afirmaram nunca ter ido ao cinema, outras tantas somente
vivenciaram esta experiência porque a escola promove excursões periódicas e apenas quarto
estudantes disseram frequentar o cinema com a família. Quanto ao hábito de leitura, embora
as crianças tenham afirmado gostar de ler, poucas souberam dizer qual tipo de literatura
preferem, as respostas foram evasivas. Apenas três alunas da 4a série mencionaram o livro
Diário de um Banana e uma aluna da 4a séria comentou gostar de ler e escrever poemas.
Quanto às tecnologias digitais, a pesquisa indicou que muitas crianças não têm internet
disponível em casa. As principais formas de acesso são os computadores da escola e o celular
da mãe e as atividades online mais frequentes são jogar, conversar com os amigos e navegar
no Facebook. Duas alunas da 3a série e uma da 4a série declararam não acessar a internet.
A respeito das atividades de lazer no ambiente familiar, foi perguntado para as crianças
quais são as brincadeiras favoritas, com quem elas costumam brincar e o que fazem nos finais
de semana. Nenhuma das crianças citou brinquedos eletrônicos como passatempo preferido,
foram lembradas brincadeiras como pega-pega, esconde-esconde, futebol, boneca, casinha e
G1-E7 Bom Dia e Cia
G1-E9 Bom Dia e Cia, Chiquititas, Rebeldes
G1-E10 Chiquititas, Rebeldes
G2-E11 Chiquititas, ICarly
G2-E12 Pica-Pau
G2-E15 Hora de Aventura, O Incrível Mundo de Gumball
G2-E16 ICarly, Drake & Josh, A Família Hathaways
G2-E17 Chiquititas, Padrinhos Mágicos
G2-E20 Chiquititas, Violetta
101
carrinho com primos e amigos. Pelas respostas dadas pelas crianças foi possível perceber que
aos finais de semana não acontecem atividades de lazer com a participação dos pais.
3.2. Colégio Engler Abelhinha Feliz
No Colégio Engler Abelhinha Feliz a investigação foi conduzida com estudantes de 4a e
5a séries do ensino fundamental. Nesta escola, as crianças também foram selecionadas de
maneira aleatória pela diretora Margareth Negrão Nicoletti. A direção da instituição de ensino
autorizou um único encontro entre pesquisadora e estudantes. O terceiro grupo (G3) de
pesquisa foi formado por nove estudantes da 4a série, sendo oito crianças do sexo feminino e
uma do sexo masculino; dos nove participantes, quatro com 9 anos de idade e cinco com 10
anos. O quarto grupo (G4) foi composto por dez estudantes da 5a série, cinco meninas e cinco
meninos, sete participantes com 10 anos e três com 11 anos de idade.
A investigação com os estudantes do Colégio Engler Abelhinha Feliz foi realizada no
dia 05 de dezembro de 2014. Na abordagem introdutória, o mesmo questionário (ver apêndice
A) foi aplicado aos alunos com o objetivo de conhecer os hábitos de consumo midiático do
grupo e as vivências de lazer no ambiente familiar. Após a conversa inicial, cada grupo
assistiu a um episódio de Doug Funnie.
Dos dezenove estudantes pesquisados, catorze vivem em um núcleo familiar tradicional.
De acordo com os questionários, são comuns as atividades de lazer envolvendo pais e filhos,
as crianças citaram como diversão aos finais de semana: ir ao shopping com os pais, ir às
compras, ir ao clube, passear com a família, jogar futebol, jogar videogame com o pai,
almoçar fora com os pais e andar de bicicleta com os irmãos. Apenas uma estudante (G4-E37)
respondeu que aos finais de semana auxilia a mãe com as tarefas domésticas.
Em relação às brincadeiras preferidas, curioso notar que os brinquedos eletrônicos
também não foram lembrados pelos estudantes como favoritos, as brincadeiras tradicionais
como esconde-esconde, pega-pega, bicicleta, boneca e esportes como o futebol são
predominantes no grupo, sempre envolvendo irmãos e amigos. Chamou a atenção, a resposta
do estudante G4-E39 que elegeu como brincadeira preferida desenhar histórias em quadrinho
com o melhor amigo. É perceptível que a amizade entre as crianças destes grupos extrapola o
espaço escolar, em conversa informal, as crianças revelaram que costumam se encontrar fora
da escola para atividades de entretenimento e lazer.
Em relação aos hábitos de consumo midiático, a TV está presente no cotidiano destas
crianças. Seis estudantes afirmaram não assistir à TV todos os dias. Dezesseis crianças
102
disseram que assistem aos programas televisivos acompanhadas da família, enquanto três
afirmaram ver televisão sozinhas. Quanto ao espaço para ver TV, a sala foi indicada como
local principal, porém, seis estudantes também mencionaram o quarto – o que indica que estas
crianças possuem um aparelho de TV exclusivo – e uma estudante citou a cozinha.
Quando questionadas em relação aos canais de televisão favoritos, diversas emissoras
foram lembradas: Globo foi citada sete vezes; SBT, nove vezes; Cartoon Network, seis;
Nickelodeon foi mencionada cinco vezes; Disney Channel, oito vezes; Gloob, três vezes; e os
canais Boomerang, History Channel, ESPN Brasil, TNT e Fox foram lembrados uma vez.
Importante observar que, diferente do ocorrido na Escola Estadual José Mamede de Aquino,
não houve divisão nítida entre as preferências dos dois grupos, as opiniões convergem e
divergem, independente da idade e série que frequentam.
Em relação aos programas televisivos favoritos, as opiniões também são diversificadas.
Sete crianças mencionaram os gêneros preferidos, são eles: desenho animado com três
citações; seriado, mencionado duas vezes; e novela, citada uma vez. Um estudante (G4-E38)
não soube responder. E as demais crianças foram específicas, dizendo o programa televisivo
preferido e porque gostam de assisti-lo, conforme exposto na tabela abaixo:
Tabela 9 – Programas televisivos preferidos pelas crianças (Grupos 3 e 4)
ESTUDANTE PROGRAMA MOTIVO
G3-E21 Malhação Porque aparecem vários jovens
G3-E26 Chiquititas Porque é super legal
G3-E27 Chiquititas É engraçado
G3-E29 Boogie Oogie Porque é uma novela super legal
Liv e Maddie Porque são irmãs gêmeas muito legais
G4-E30 No ritmo Porque é legal e ele ensina a dançar
G4-E31 Austin e Ally Porque tem a ver com música e eu gosto de
música
G4-E32 Simpson Porque é legal assistir
G4-E34 Gaby Estrella Porque é legal e ela canta
G4-E35 No ritmo Porque passa dança e eu gosto
G4-E37 Tem criança na cozinha Porque eles ensinam a cozinhar
G4-E39 Chaves Porque ele nunca perde a graça
Fonte: Tabela elaborada pela autora da pesquisa com base nas respostas do questionário aplicado (apêndice A).
Textos transcritos conforme respostas dos estudantes.
103
Parte das crianças afirmou não ter permissão para assistir programas violentos, filmes
de terror e programas com conteúdo adulto. Três estudantes disseram não haver qualquer tipo
de proibição em relação à TV. E uma estudante (G4-E37) disse não poder assistir Violleta,
Gaby Estrella – programas voltados para o público infanto-juvenil – e Império (novela
exibida pela rede Globo).
A respeito do consumo de produtos culturais, foi perguntado às crianças se costumam
frequentar o cinema. Dezesseis estudantes responderam que sim e que vão acompanhados das
famílias. Ao serem questionados sobre o último filme que assistiram, citaram produções
exibidas recentemente como: Malévola, O que será de nozes? e Como treinar o seu dragão 2.
Quanto ao hábito de leitura, um estudante (G3-E22) afirmou não gostar de ler. Quatro
crianças disseram gostar um pouco, leem gibis e os livros da escola. Nove estudantes
afirmaram gostar de ler e o gibi é a principal leitura. Enquanto quatro estudantes foram
bastante específicos, citando os livros que já leram e/ou estão lendo, são eles: Como caçar
monstros, O pequeno príncipe, Diário de um banana, A menina que roubava livros, A
invenção de Hugo Cabret.
Quanto ao uso das tecnologias da comunicação, foi identificado que as crianças
possuem fácil acesso à internet. Cinco estudantes citaram como principal forma de acesso o
computador doméstico; quatro disseram acessar à rede pelo celular; um citou o tablet. E sete
crianças possuem mais de uma forma de acesso à internet, combinando computadores,
celulares e tablets. Entre as atividades realizadas online, estão jogar e assistir vídeos e, com
menos frequência, conversar pelo WhatsApp, navegar no Facebook e ouvir música.
4. Dinâmicas na exibição dos episódios
4.1. Escola Estadual José Mamede de Aquino
Após o diálogo inicial, no dia 13 de novembro de 2014, os estudantes do G1 receberam
as orientações e foi exibido no primeiro dia de pesquisa o episódio O tênis de Doug. Os
alunos da 3a série tiveram dificuldade para se concentrar no desenho animado, alguns se
distraíram durante a exibição e ocorreram conversas paralelas. Dos dez estudantes, apenas três
conheciam a série, para os demais Doug Funnie era novidade. Os meninos demonstraram
mais interesse pelo episódio.
104
Depois da exibição, iniciou-se a discussão. No entanto, o debate não fluiu de maneira
espontânea. Foram necessárias provocações e intervenções por parte da pesquisadora para
desenvolver o diálogo. Durante a discussão os alunos estavam inquietos e falavam sobre
assuntos diversos, sempre em tom de voz alto. É perceptível a prática de brincadeiras
agressivas e ofensas verbais entre as crianças. Assim, para promover o debate, algumas
perguntas referentes ao episódio foram feitas aos alunos do G1, os comentários estão
registrados a seguir. Todos os diálogos das crianças pesquisadas foram transcritos como
verbalizados, sem correções gramaticais, para não haver o risco de distorção das falas que
pudesse modificar a interpretação realizada pelos estudantes.
A respeito do episódio:
As crianças disseram ter gostado do desenho animado, no entanto, a maioria não soube
explicar o porquê, relatando apenas que o desenho animado era legal. Dois alunos fizeram
uma pequena explanação sem relação próxima com o conteúdo assistido.
G1-E2
Ensina a obedecer.
G1-E6
Por causa que eles brincam, ele ensina nós fazer as coisas.
Importante registrar que quando questionados sobre o que mais gostaram na animação,
muitas crianças responderam a casa do Doug e a quadra de tênis (na realidade uma quadra de
basquete). Alguns comentários como o “os parentes dele” e “o Natal” também surgiram,
nestes casos, personagens e situações que não estavam presentes no universo narrativo.
Sobre a interpretação de O Tênis de Doug:
Os alunos narraram partes pontuais do enredo como o jogo de basquete e a compra do
novo calçado. Não conseguiram sintetizar a mensagem central do episódio. Não houve uma
interpretação mais aprofundada que revelasse algum tipo de apropriação do conteúdo.
Também não associaram fragmentos da narrativa às situações do cotidiano.
G1-E2
Ele viu que ele tinha um sapato feio e os outros tinham um sapato bem bonito, aí
ele queria um sapato mais bonito e foi na loja pra comprar mas não deu o dinheiro
dele.
Em relação aos personagens:
Houve dificuldade para identificar os personagens pelo nome. Algumas crianças não se
lembravam do nome Doug minutos depois de terem assistido ao episódio. Para se referir aos
105
personagens, usaram adjetivos como “o cara mau” quando falavam do Roger ou aspectos da
composição visual como “a menina de cabelo amarelo” para se referir à Patti Maionese. O
personagem Costelinha foi o preferido pelas crianças, no entanto, elas não explicaram com
clareza o motivo desta preferência.
G1-E6
Daquele cara mau. Por causa que ele era muito mau. Por causa que ele dava azar
pro outro.
G1-E2
Do cachorro porque ele é legal.
Em seguida, foi apresentado o mesmo episódio de Doug Funnie ao G2. As crianças da
4a série, embora inseridas no mesmo ambiente escolar e contexto sociocultural, se
comportaram de modo diferente ao do G1 durante a exibição do desenho animado e na
discussão dos temas propostos. As crianças eram mais disciplinadas e amigáveis, não houve
agressões verbais ou brincadeiras violentas, embora nas conversas tenham surgido
comentários de brigas na turma. Um aluno (G2-E15) revelou que depois das brigas, eles
pedem desculpas uns aos outros. Dois estudantes (G2-E14 e G2-E18) se mostraram bastante
desambientados em relação ao grupo, afastados de todos, se sentaram ao fundo da sala de TV
e não interagiram com os colegas, nem mesmo no decorrer da discussão. Durante a exibição,
as crianças ficaram focadas na animação e as conversas que ocorreram eram referentes ao
episódio.
A respeito do episódio:
No G2, dos dez participantes, quatro conheciam Doug Funnie e sabiam o canal e
horário de exibição do desenho animado – atualmente exibido pela TV Cultura –, alguns já
haviam assistido ao episódio O tênis de Doug. Nove dos dez participantes afirmaram gostar
da série, embora tenham admitido assistir à animação com o irmão mais novo. Os principais
motivos são por considerar a animação legal e divertida, ter comédia e os personagens,
especialmente o Skeeter, serem engraçados. Quando questionados a respeito do que mais
gostaram no episódio exibido, o tênis de Doug foi o mais mencionado.
G2-E17
Da parte que ele foi trocar o tênis. Porque o tênis ficou grande.
G2-E11
Eu gostei do tênis que ficou grande.
G2-E15
Eu gostei na hora que o tênis falou.
G2-E12
Eu gostei da parte quando ele encontrou aquele cara, como é?
106
Um aluno de 12 anos comentou não ter gostado do desenho animado. Quando
perguntado o motivo, ele disse não saber. Os colegas explicaram que ele se considerava
“grandinho” para os temas abordados na série e o estudante acabou revelando que achava o
desenho “sem graça”.
G2-E19
Eu não gostei do desenho.
Eu assistia quando era menor. Não tem mais graça parece.
Sobre a interpretação de O tênis de Doug:
Neste grupo, as crianças encontraram verossimilhança entre a história narrada e as
situações experienciadas por elas no ambiente escolar, criando nexos entre ficção e realidade.
Nos discursos, os temas bullying e rejeição foram recorrentes.
G2-E13
É bullying. G2-E17
Nunca troque seu tênis por outro.
G2-E14
Eu não gostei porque todo mundo rejeitava ele por causa do tênis.
G2-E17
O tênis tava chorando porque não queria que abandonasse ele.
G2-E20
Eu entendi que mesmo se você, se alguém não goste do seu tênis não precisa
abandonar porque a pessoa não gosta, só se você gostar você pode ficar com ele.
Não é porque as pessoas não gosta que você tem que não gostar do tênis.
G2-E13
Cada um tem seu gosto.
G2-E19
Não se deve julgar pelas aparências.
G2-E15
Ele não precisou comprar o tênis para ganhar o autógrafo.
Curioso observar que o consumo infantil, tema principal deste episódio, não foi
mencionado de maneira espontânea pelas crianças. Após provocação da pesquisadora a
respeito de necessidades de consumo da turma, apenas um aluno (G2-E15) mencionou querer
um Xbox, para os demais, especialmente para os meninos, o objeto mais desejado são as
cartinhas, uma espécie de cartas decoradas colecionáveis que são disputadas em um jogo com
as mãos25. As meninas não manifestaram nenhum desejo de consumo. De maneira geral, o
tema consumo não animou a turma para o debate. Porém, as crianças ficaram frustradas por
25 Conhecido como jogo do bafo, as cartas colecionáveis ficam depositadas em um monte e cada participante do
jogo deve movê-las apenas com o vento provocado pela batida das mãos na base sólida onde estão as cartas
empilhadas. Cada competidor ganha as cartas que são viradas pela ação de suas mãos. O objetivo principal do
jogo é aumentar a coleção destas cartas.
107
Doug não ter conseguido – na ficção – comprar um par de tênis novos. Mas, fato é que para
estas crianças o consumo não é significativo.
Em relação aos personagens:
Quanto aos personagens, os comentários foram muito similares aos do G1. Houve
dificuldade para memorizar os nomes, o Roger foi lembrado por suas maldades e Costelinha
também foi o preferido entre as crianças deste grupo.
G2-E15
O Doug não conseguiu comprar o tênis, mas aí o cara conseguiu.
G2-E13
Porque ele é mau pra caramba.
Como esta turma se mostrou mais receptiva e participativa em relação à pesquisa, foi
feita uma nova provocação, desta vez a respeito da construção dos personagens. Foi
perguntado qual era a percepção dos estudantes sobre os personagens de pele colorida. As
crianças enxergaram com naturalidade esta composição diferenciada das animações limitadas
o que leva a crer que o limite entre realidade e ficção é bastante claro para esta faixa-etária.
G2-E20
São ETs.
G2-E13
Em desenho acontece tudo.
No segundo dia de pesquisa, 14 de novembro de 2014, o episódio Doug cai no rock foi
exibido para cada uma das turmas da Escola Estadual José Mamede de Aquino.
Neste dia, por medida disciplinar, as crianças da 3a série não tiveram permissão para o
recreio. Quando chegaram à sala de TV estavam muito agitadas. Depois de alguns minutos de
conversa, se acalmaram para a exibição de Doug cai no rock. Ao assistir às imagens gravadas
para a pesquisa, é possível perceber uma das crianças (G1-E3) provocando os colegas com
conversas e brincadeiras agressivas. Aos 7 minutos de exibição, tornou-se impossível
controlar os estudantes. Brigas, brincadeiras de luta e gritos tomaram conta da turma.
Após a apresentação do episódio, inúmeras foram as tentativas de iniciar uma discussão.
Foi perguntado ao grupo o que entenderam da narrativa e as crianças criaram diferentes
histórias sem nenhuma relação com Doug cai no rock.
G1-E5
Ele estava assistindo TV.
G1-E7
Eu vi, ele tava com um sapatão.
108
Neste clima de desordem, a discussão se tornou impraticável e a pesquisa com o G1 foi
encerrada. Preliminarmente, presume-se que alguns fatores tenham conduzido o grupo a agir
de forma não receptiva à pesquisa, especialmente nos aspectos que se referem ao debate: 1)
não houve identificação com a série Doug Funnie; 2) é característico das crianças desta turma
a falta de concentração e a dificuldade de elaboração discursiva; e 3) a medida disciplinar
aplicada ao grupo no segundo dia de pesquisa prejudicou o desempenho dos alunos.
A segunda turma a assistir ao episódio Doug cai no rock foi a 4a série. As crianças
repetiram o comportamento do dia anterior, de maneira disciplinada e com pouca dispersão,
observaram atentamente ao desenho animado. Importante registrar que no segundo contato
com este grupo, um dos estudantes (G2-E14) que havia permanecido afastado dos colegas na
primeira discussão se juntou ao grupo, interagindo por diversas vezes durante o debate. O
outro aluno (G2-E18) continuou isolado, sentado ao fundo da sala, e em nenhum momento
conversou com outras crianças ou contribui para a discussão.
A respeito do episódio:
O episódio Doug cai no rock agradou às crianças. O fragmento da narrativa mais citado
como preferido foi o encontro de Doug e Skeeter com a banda The Beats.
G2-E15
Eu gostei da última parte quando eles viram mais de perto e ainda ganharam o
brinde.
G2-E15
Eu gostei na hora que eles viram o cantor e ganharam a camiseta.
G2-E14
Eu gostei da hora que eles dançaram porque eu achei legal.
A música despertou o interesse do grupo, além de sinalizar que houve mais
identificação com o tema se comparado ao O tênis de Doug que aborda o consumo no
universo infantil. Um dos estudantes (G2-E12) cantou a canção Mingau matador durante a
discussão, fazendo gestos como se estivesse tocando uma guitarra imaginária – assim como
Skeeter e Doug fazem no início episódio.
Para complementar o debate foi feita uma provocação, estimulando o grupo a falar a
respeito de seus ídolos musicais. Os comentários foram surpreendentes. Em um cenário em
que o sertanejo é o ritmo predominante, as crianças apresentaram um repertório diversificado
em termos musicais. O estudante G2-E15 mencionou como ídolos Snoop Dogg e James
Brown. A estudante G2-E17 disse ser fã de Luan Santana – ícone das jovens adolescentes – e
dos Beatles que aprendeu a ouvir com a tia, esta aluna associou com facilidade The Beets –
109
banda fictícia criada para a série Doug Funnie – aos The Beatles. O estudante G2-E13
comentou gostar de Charlie Brown Jr. Importante destacar que estes artistas mencionados não
possuem canções específicas para o público infantil. Das dez crianças, três afirmaram não ter
um ídolo. As demais crianças mencionaram como preferência musical a Roberta, integrante
da série Rebeldes e da banda RBD.
Sobre a interpretação de Doug cai no rock:
Parte das crianças sintetizou a narrativa em uma única mensagem e diferentes leituras
surgiram.
G2-E17
Eu entendi que ele sempre se dá bem por causa que ele acreditou que ia conseguir
ver os Beatles e ele conseguiu.
G2-E13
Ele não deixou o amigo dele para trás.
No discurso da estudante G2-E17 fica evidente a associação entre The Beatles e The
Beets. Na interpretação da aluna Doug é sempre favorecido, mesmo em situações adversas,
porque acredita naquilo que deseja. Para o grupo, a noção de “se dar bem versus se dar mal”
está relacionada à atitude e ao comportamento pessoal. Roger foi citado como exemplo de “se
dar mal” porque tem características de vilão; por outro lado, Doug, protagonista da série, é
exemplo de “se dar bem” porque tem boa conduta, como ser solidário e companheiro ao não
abandonar o amigo que está de castigo, como comentou o estudante G2-E13.
Outro ponto discutido foi justamente o castigo. As crianças pareceram não levar a sério
tal ação punitiva. O estudante G2-E15 associou a postura do pai de Skeeter a de sua mãe.
G2-E13
Eu gostei na hora que o pai dele brigou com ele... porque ele tirou ele do castigo.
G2-E15
Minha mãe também faz isso. Ela me deixa de castigo, daí eu faço bagunça, ela
manda eu vazar.
Estas interpretações evidenciam como o telespectador infantil busca, no momento da
fruição, referências em seus contextos de vida para legitimar o universo ficcional.
Especificamente para a série Doug Funnie, esta interdependência entre ficção e realidade –
que Todorov (2011) descreve como nível apreciativo – é coerente porque a estrutura de
sentido do desenho animado interioriza as convenções sociais do mundo exterior para
significar os códigos da narrativa.
A fala da estudante G2-E16 revela uma interpretação denotativa da narrativa. Em um
fragmento do episódio, no concurso da rádio K-Bluf, Doug pega o telefone e fala “sem ideia”
110
porque desconhece a resposta correta, no entanto, por sorte, acaba acertando a última pergunta
e ganha o prêmio. Tal sutileza não foi percebida pelo grupo.
G2-E16
A parte que eu mais gostei foi aquela parte que ele liga pra rádio pra conseguir os
ingressos. Por causa que a última pergunta ele não sabia, aí o outro foi lá, pegou o
telefone e acertou.
O estudante G2-E19 disse não ter entendido a história.
G2-E19
Eu só entendi a música. Eu prestei a atenção no desenho, mas não entendi.
Em relação aos personagens:
O grupo teve a mesma percepção a respeito dos personagens. Roger foi considerado o
mais “chato” da série. Esta rejeição está associada a fisionomia de vilão, expressa pelas
dinâmicas visual e psicológica do personagem, especialmente, por suas ações que são amorais
e em benefício próprio.
G2-E14
O outro queria se achar.
G2-E15
Mas aquela hora ele foi mais gentil com a mãe do outro lá... do que com os
meninos.
G2-E17
Só pra se achar.
G2-E13
Porque ele tava com fome né.
Costelinha é o mais querido. Esta afetividade com o personagem não foi esclarecida
pelo grupo. De maneira geral, a tipologia de Costelinha tende a ter boa aceitação por parte dos
interlocutores.
G2-E12
Porque ele é um bicho né, ele pode considerar como de estimação.
Após 55 minutos de debate no segundo dia de investigação, a pesquisa empírica foi
encerrada na Escola Estadual José Mamede de Aquino.
4.2. Colégio Engler Abelhinha Feliz
No Colégio Engler Abelhinha Feliz a pesquisa de recepção foi realizada em 05 de
dezembro de 2014. O G3 foi composto por alunos da 4a série. Dos nove participantes deste
grupo de discussão, oito conheciam a série. As crianças eram comunicativas e receptivas.
111
Durante a exibição de Doug cai no rock, ficaram atentas ao desenho animado e não houve
distração. Após assistirem ao episódio, iniciou-se a discussão e os estudantes participaram
ativamente. Os diálogos a seguir foram transcritos como verbalizados, sem correções, para
descrever de maneira fidedigna as interpretações realizadas pelas crianças.
A respeito do episódio:
As crianças disseram gostar do desenho animado. A principal razão é porque a série é
divertida. O fato de Doug ter descoberto uma banda favorita foi citado como a melhor parte
do episódio.
G3-E29
Porque ele descobriu a banda que ele gostava.
Em um primeiro momento, os estudantes não se projetaram no universo da ficção,
afirmando não haver verossimilhança entre Doug Funnie e o mundo real. Depois de alguns
minutos, algumas associações foram feitas e a sequência entre Skeeter e o pai foi citada como
verossímil. As crianças comentaram que as medidas disciplinares com a quais estão
habituadas são ficar sem o celular e não ter permissão para passear. No entanto, reforçaram
que raramente acontece. O fato de animais de estimação não poderem frequentar a escola
também foi mencionado. Outros exemplos de situações verossímeis surgiram.
G3-E28
Aqui tem uma coisa igual ao amigo do Doug, aquele que maltrata ele. Uma coisa
que aqui na escola tem um pouco né, em algumas salas, é a ser metido.
As crianças compararam o universo narrativo de Doug Funnie aos ambientes escolar e
familiar nos quais vivem, apontando aspectos da série que são possíveis somente na ficção.
Múltiplas leituras foram realizadas.
G3-E25
E uma coisa que não é parecida é que o cachorro não sabe dançar, não usa peruca.
G3-E22
Porque eles estão em outro país.
G3-E22
Diferente dos Estados Unidos que é onde se passa. Nos Estados Unidos o jeito de
viver é diferente do Brasil, o castigo, o quarto.
G3-E27
O gato roxo.
G3-E26
O menino, ele é verde.
G3-E25
O outro amigo dele também é verde.
G3-E25
E o cabelo deles é um fiozinho de cada lado.
112
Apesar de observar a natureza própria do estilo de animação da série, as crianças
disseram achar normal a concepção visual destes personagens.
G3-E25
É para deixar o desenho engraçado.
Sobre a interpretação de Doug cai no rock:
Os estudantes interpretaram como mensagem principal do episódio a relação de ajuda
entre Doug e Skeeter e a importância de incentivar um amigo em circunstâncias adversas.
G3-E28
Porque o Doug, ele não era roqueiro, aí o amigo dele incentivou ele a conhecer os
Beets e ele ficou roqueiro.
G3-E24
Que o amigo dele incentivou ele.
G3-E25
Ajudou ele a saber que banda ele gostava, que tipo de música.
Explorando a temática do desenho animado, foi perguntado aos estudantes a respeito
dos ídolos musicais. As crianças apresentaram gosto musical diversificado e as bandas
internacionais foram as mais lembradas: Underreaction, Big Tiger Rush, RDB, Demi Lovato
e Selena Gomez. Luan Santana – do gênero sertanejo universitário – e Bruna Karla – cantora
gospel – também foram citados.
Em relação aos personagens:
Doug e Costelinha foram apontados como os personagens favoritos pela maioria das
crianças. Um aspecto diferente desta turma é a lembrança dos nomes dos personagens após
assistir ao episódio. Skeeter também foi indicado como preferido.
G3-E25
Eu gostei do Skeeter porque que ele incentivou o Doug a gostar de uma banda.
Fedido e Roger foram os personagens que tiveram rejeição.
G3-E25
O gatinho porque ele é feio. G3-E29
Do Roger porque ele é muito chato.
Após a discussão, a pesquisa foi encerrada com o G3. As crianças permaneceram na
sala de TV por mais alguns minutos e conversaram sobre os programas televisivos, histórias
em quadrinhos e personagens preferidos. Um gosto comum aos estudantes é o gibi da Turma
da Mônica Jovem, segundo eles, a temática voltada aos adolescentes, cujas experiências eles
esperam vivenciar, é principal razão da leitura.
113
O G4 foi composto por dez alunos da 5a série. As crianças, muito disciplinadas e
educadas, estavam receptivas à pesquisa. Após as orientações iniciais, foi exibido o episódio
O tênis de Doug. Durante a exibição, os estudantes permaneceram atentos à animação e não
houve dispersão. No debate, foram participativos e demonstraram boa capacidade de
interpretação e de elaboração discursiva.
A respeito do episódio:
As crianças afirmaram gostar da série de animação Doug Funnie. Dos dez estudantes,
três conheciam o episódio O tênis de Doug.
G4-E37
Eu gostei deste episódio porque ele não muda por causa da gracinha dos outros.
G4-E33
Eu gostei da parceria que ele fez com aquele jogador de basquete.
G4-E33
As vezes ele é educativo.
No entanto, os alunos comentaram que as experiências de Doug na ficção não
apresentam verossimilhança com realidade vivenciada por eles no cotidiano escolar.
G4-E33
Eu não tenho um colega chato igual aquele.
G4-E39
Ele tem tipo um negócio de detetive quase.
A capacidade inventiva de Doug para enredar fatos reais à fantasia foi considerada pelos
alunos como algo verossímil que está presente no dia-a-dia das crianças. De fato, o imaginário
infantil, segundo Sarmento (2002), revela as formas de interação e ação da criança com o
mundo para expressar seus contextos de vida ou negar esta realidade.
G4-E39
Uma única coisa, imaginação.
Sobre a interpretação de O Tênis de Doug:
Os estudantes apresentaram competências de recepção para compreender a história e
interpretá-la. Após assistirem ao episódio, sintetizaram a narrativa em um único pensamento,
elaborando discursos com base nas apropriações e recriações do desenho animado.
G4-E31
Não é nossas roupas que faz a gente ser legal. Nós temos que ter nossas opiniões. E
não é por causa da opinião de uma pessoa que você tem que mudar.
G4-E33
A opinião dos outros não vale por nada de mudar uma pessoa.
114
Interessante pontuar que neste grupo um aluno (G4-E39) identificou a relação de
complementaridade entre os fatos narrados como reais na série e o imaginário de Doug
Funnie. A cena do tênis dialogando com o protagonista e a sequência em preto e branco em
que os personagens se afastam de Funnie foram interpretadas como imaginação de Doug.
Mesmo compreendendo que a cena faz parte do imaginário de protagonista, as crianças
disseram sentir pena do tênis quando estes expressam tristeza por conta da separação.
G4-E39
Eu acho engraçado, em todo episódio eu acho que mostra a imaginação dele,
parece algo absurdo.
G4-E33
No final do episódio ele sempre escreve o que acontece no diário.
Aproveitando a fala sobre o diário de Doug, foi perguntado às crianças se elas têm o
hábito de escrever em um diário. Apenas uma estudante (G4-E37) respondeu que sim. Foi
perguntado também se elas registram o dia-a-dia no Facebook, todas as crianças responderam
que não fazem este tipo de postagem, de acordo com os depoimentos, a rede social é utilizada
para jogar e conversar com os amigos. Um aspecto curioso foram as críticas feitas pelos
estudantes a respeitos de postagens no Facebook que relatam tarefas rotineiras do cotidiano.
Elas disseram não gostar deste tipo de postagem e satirizaram, dizendo que algumas pessoas
escrevem “acabei de acordar”, “escovei meus dentes”, “acabei de respirar”.
O tema consumo despertou o interesse do grupo. Em um primeiro momento, as crianças
não assumiram ser consumistas e afirmaram não sofrer influências dos amigos para se vestir
ou comprar brinquedos. No decorrer do diálogo, foram surgindo marcas favoritas e formas de
negociação com os pais para adquirir os bens desejados. A marca Melissa é unanimidade
entre as meninas, embora tenham negado qualquer influência na hora de escolher um produto,
todas elas usavam uma Melissa no dia em que a pesquisa foi realizada. Já os meninos citaram
como marcas preferidas Adidas e Puma. E segundo as crianças, o tênis Vans é a marca da
moda. Os estudantes se mostraram conscientes em relação aos preços e disseram que em
algumas ocasiões esperam pela promoção para comprar um produto. Outra forma de
negociação com os pais é o auxílio nas tarefas domésticas em troca do bem desejado.
Em relação aos personagens:
Os personagens preferidos são Doug e Costelinha – identificado pelos estudantes como
“o cachorrinho”. Quando perguntado o motivo da preferência por estes personagens, as
crianças disseram que são engraçados. O grupo também teve dificuldade para identificar os
personagens pelos nomes e atribuíram adjetivos para distingui-los.
115
Um estudante (G4-E39) associou a fisionomia de Costelinha a de Snoop (Peanuts). E o
que mais atraiu a atenção das crianças em Costelinha é a mimese do comportamento humano.
G4-E39
Ele é tipo o Snoop.
G4-E35
Ele parece meio humano. Dança.
G4-E37
Ele dança. Ele escreve.
A respeito do protagonista, os comentários foram curiosos. As crianças, mesmo
negando a verossimilhança da ficção em relação à realidade, compararam o personagem
principal a si próprias, afirmando que a independência de Doug não é permitida nesta idade.
O principal ponto destacado pelos estudantes é que Funnie tem permissão para “sair sozinho”.
G4-E39
Apesar dele parecer quase um adolescente, ele não parece ser da nossa idade, né?
G4-E32
Ele sai muito, vai pro shopping.
G4-E34
Ele sai sozinho.
Sobre a concepção visual dos personagens, as opiniões se dividem:
G4-E37
Eu acho estranho, é meio doido.
G4-E33
Eu nem percebo. A gente acostuma.
G4-E37
Mas eu queria entender por que o gato é rosa.
Ao final da discussão, surgiram comentários a respeito de outros episódios da série. Os
estudantes falaram sobre a relação entre Doug e Patti Maionese; a timidez e a dificuldade de
Funnie para se declarar e o modo desastrado como ele age diante de Patti foram lembrados.
As crianças se reconhecem e se projetam nestas situações narrativas, identificando
verossimilhança com a realidade. Após esta conversa sobre outros episódios de Doug Funnie,
a pesquisa foi encerrada no Colégio Engler Abelhinha Feliz.
5. Articulações entre o referencial teórico e a pesquisa de recepção
O propósito da análise a seguir consiste em articular a pesquisa empírica de recepção –
realizada com crianças inseridas em diferentes contextos socioculturais – ao paradigma das
mediações, de Jesús Martín-Barbero (2009), e ao modelo teórico-metodológico da mediação
116
múltipla, de Guillermo Orozco Gómez (2005). Norteada por estas perspectivas teóricas, a
investigação trabalhou a recepção televisiva contextualizada nas práticas sociais, assumindo o
telespectador infantil não como um mero decodificador da mensagem audiovisual, mas como
um interlocutor em interação no processo comunicacional, capaz de múltiplas interpretações
que levam à apropriação e produção de novos sentidos.
A pesquisa empírica foi realizada no ambiente escolar. A escola é para Orozco (2005)
uma “comunidade de apropriação”, especialmente para o telespectador infantil. De fato, nos
diálogos com as crianças, constatou-se a fala frequente sobre programas televisivos e
personagens preferidos. Na Escola Estadual José Mamede de Aquino, estudantes que
frequentam a mesma série revelaram um gosto comum em relação às atrações da TV, este
horizonte comum de gosto evidencia o intercâmbio de conteúdos audiovisuais entre as
crianças e a circulação dos sentidos produzidos pelos meios no espaço social da escola onde
são apropriados e recriados coletivamente nos discursos e nas brincadeiras infantis. De acordo
com Sarmento (2002), o imaginário infantil presente no ato de brincar – explorado na
animação Doug Funnie – retrata a relação da criança com o mundo e é delineado pelas
mediações socioculturais e cognitivas.
Em ambas as instituições, o espaço utilizado para interação com os grupos de
investigação foi a sala de audiovisual. Na Escola Estadual José Mamede de Aquino, a sala de
TV estava com cadeiras escolares; para propiciar a interação entre os estudantes, assim como
um ambiente mais confortável, as cadeiras foram substituídas por um tapete em EVA.
Durante a exibição dos episódios, foi permitido aos estudantes se acomodarem da maneira
que julgassem a mais apropriada, nenhuma regra foi estabelecida. Um hábito comum às
crianças, que se repetiu nas duas escolas, é tirar os sapatos para assistir à TV.
Embora situados em espaços físicos similares – a sala de audiovisual da escola – o nível
de atenção dos estudantes mostrou-se particular, tanto na comparação entre as duas escolas,
como se observado os dois grupos – G1 e G2 – da instituição de ensino da rede pública.
Na Escola Estadual José Mamede de Aquino, o comportamento dos grupos – G1 e G2 –
foi completamente distinto. No primeiro dia de pesquisa, os alunos do G1 apresentaram
dificuldade para manter a concentração, houve alto nível de dispersão. Na exibição do
episódio e durante a discussão, algumas crianças menos receptivas provocaram os colegas
com brincadeiras agressivas. As meninas não demonstraram interesse pelo desenho animado.
O debate não fluiu e intervenções foram necessárias. Para incentivar a participação do grupo
no debate, foi preciso uma moeda de troca: cada criança ganhou um chocolate. No segundo
encontro com esta turma, a situação se agravou, a indisciplina dos estudantes – incluindo
117
brigas, lutas e ofensas verbais – inviabilizou a conversa após a exibição do episódio e a
investigação com o grupo foi encerrada. Se a construção do imaginário se dá com base nos
contextos de vida como explica Sarmento (2002), possivelmente, estas crianças estão imersas
em um ambiente social e familiar agressivo, no qual brincadeiras violentas26 são assimiladas
como formas de relacionamentos culturalmente aceitas.
As crianças do G2 eram mais disciplinadas, estavam atentas ao desenho animado e uma
pequena dispersão ocorreu somente na conversa a respeito dos episódios. Este comportamento
se repetiu nos dois encontros com a turma.
No Colégio Engler Abelhinha Feliz, os dois grupos – G3 e G4 – se comportaram de
modo semelhante. As crianças foram receptivas e se concentraram na exibição dos episódios,
não houve brincadeiras ou diálogos fora do tema da pesquisa. Os estudantes da 3a série
possuíam uma dinâmica própria para o debate – levantar a mão e aguardar ser chamado para
expressar suas opiniões – provavelmente utilizada em sala de aula.
Nas duas escolas foi visível a fragmentação das turmas – 3ª, 4ª e 5ª séries – em
pequenos grupos, possivelmente, esta divisão se dá pelas relações de amizade estabelecidas
no ambiente escolar. Houve também, como relatado, estudantes que não interagiram e
permaneceram isolados do grupo. Tanto na Escola Estadual José Mamede como no Colégio
Engler Abelhinha Feliz foi possível identificar diferentes níveis de aprendizagem em uma
mesma série.
Este comportamento díspar entre os grupos – e entre estudantes de uma mesma série –
ratifica que os processos de recepção se dão em ritmos diferentes para cada telespectador.
Segundo Orozco (2005), assistir à TV implica em uma sequência interativa que inicia-se com
a atenção, caminha para a interpretação do conteúdo audiovisual para depois converter-se em
apropriação e reelaboração dos sentidos. Observando os estudantes da 3a série do G1 durante
a exibição dos episódios de Doug Funnie, a ausência da atenção prejudicou o processamento
das demais etapas da recepção; e esta é uma das razões que impossibilitou a compreensão das
narrativas.
A pesquisa indicou que a idade é também um fator de mediação na interpretação do
conteúdo midiático. Crianças da 3ª série, turma em que a idade predominante é 8 anos, não
apresentaram competências para interpretar e discutir o desenho animado Doug Funnie. Neste
grupo, não houve compreensão dos episódios, as crianças apenas descreveram sequências
26 Em entrevista, Diana Pilatti Onofre confirmou a existência de brincadeiras violentas no ambiente escolar.
Segundo a diretora, esta forma de interação agressiva é consensual entre as crianças. Uma reportagem publicada
no portal Campo Grande News (ver anexo 1), em setembro de 2012, relata uma agressão a um estudante de sete
anos.
118
específicas da animação. Um aspecto relevante é que, de acordo com a diretora Diana Pilatti
Onofre, os estudantes desta série estão em fase de alfabetização.
Os estudantes da 4ª série, com idade entre 9 e 12 anos, de ambas as escolas,
conseguiram interpretar os episódios e elaborar discursos baseados na temática de Doug
Funnie. No entanto, os alunos do Colégio Engler Abelhinha Feliz não reproduziram
fragmentos da narrativa para explicar o que haviam compreendido da história, os discursos
foram elaborados a partir do repertório individual ou de experiências coletivas.
Alunos da 5ª série, na faixa etária de 10 a 11 anos, além da competência interpretativa e
discursiva, se mostraram críticos em relação aos conteúdos midiáticos.
Na Escola Estadual José Mamede de Aquino, as crianças do gênero masculino
demonstraram mais interesse pelos episódios de Doug Funnie. Entre os meninos dos grupos 1
e 2, a dispersão durante a exibição da animação foi menor e quando incomodados pelos
colegas, pediram silêncio e atenção. Não houve pistas que evidenciassem os motivos desta
preferência, uma explicação plausível é a representação dos personagens principais associada
ao gênero masculino. No Colégio Engler Abelhinha Feliz não houve preferências associadas
ao gênero.
Os estudantes da rede particular de ensino que, como relatado no corpus da pesquisa,
costumam frequentar o cinema, estão habituados à leitura e possuem fácil acesso à internet e à
TV por assinatura apresentaram amplo repertório midiático. Este repertório, proveniente da
interação com diferentes produtos culturais, favoreceu a apropriação e a recriação dos
sentidos realizadas acerca dos episódios da série Doug Funnie; isso porque, nos processos de
recepção, o telespectador recupera experiências acumuladas a cada nova interação com a TV.
Nas palavras de Orozco (2005, p. 31, grifos do autor), “A razão principal é que a sequência de
atividades mentais conduz a uma série de associações de conteúdo – neste caso, entre a
informação transmitida na tela, e portanto, externa ao sujeito – e a informação previamente
assimilada na mente do telespectador”.
Uma questão visível, em todos os grupo, foi a não identificação entre as crianças
participantes da pesquisa e os seres ficcionais do desenho animado. De acordo com Eco
(2011), a tipicidade de um personagem nasce na construção de sua fisionomia e é autenticada
na fruição do telespectador. Como analisado no capítulo III, os criadores de Doug Funnie se
preocuparam em construir tal fisionomia para cada um dos personagens da série. Porém, aos
olhos do telespectador infantil, Doug, Costelinha, Roger, Skeeter e Patti não criaram nexos
entre realidade e ficção para que fossem sentidos como verdadeiros. Assim, o reconhecimento
e a projeção do interlocutor diante destes personagens não se concretizaram. Em alguns
119
momentos os estudantes dos grupos 2, 3 e 4 encontraram verossimilhança entre a narrativa e
as experiências cotidianas, especialmente, no ambiente familiar e na escola, como por
exemplo o castigo de Skeeter e a relação de amizade entre os personagens no episódio Doug
cai no rock e o bullynig em O tênis de Doug.
Outro aspecto relevante é a própria linguagem da animação. A TV, como meio de
comunicação de massa, tem como características intrínsecas a linguagem universalizada e as
técnicas de produção capazes de representar o acontecer social com alto grau de veracidade
(OROZCO, 2005, p. 29). Quando a linguagem em tela é da animação, a ludicidade das
narrativas infantis e, particularmente, o estilo animação limitada de Doug Funnie, podem
tornar o desenho animado menos verossímil para o telespectador. Para as crianças, no mundo
ficcional das narrativas animadas tudo é permitido porque, segundo elas, o desenho animado
não é real “Em desenho acontece tudo” (G2-E13).
No G1, como registrado anteriormente, não houve compreensão, apenas entendimento e
descrição das ações realizadas pelos personagens em determinados fragmentos da narrativa.
Portanto, os processos de recepção não se converteram em apropriação e produção de novos
sentidos. Devido à dificuldade de elaboração discursiva, especificamente para as crianças
deste grupo, foi solicitado que fizessem um desenho para representar o que mais gostaram na
história de O tênis de Doug. Abaixo, estão algumas das ilustrações elaboradas pelos
estudantes da 3a série.
Figura 19 – Representação do episódio O tênis de Doug criada por alunos da 3a série
120
Figura 20 – Representação do episódio O tênis de Doug criada por alunos da 3a série
Figura 21 – Representação do episódio O tênis de Doug criada por alunos da 3a série
121
Figura 22 – Representação do episódio O tênis de Doug criada por alunos da 3a série
Figura 23 – Representação do episódio O tênis de Doug criada por alunos da 3a série
122
Dos dez estudantes, oito participaram espontaneamente da atividade proposta. Os
alunos demonstraram preocupação em relação ao exercício e ao entregarem as ilustrações,
questionaram se estavam corretas (“Eu fui bem professora?” “A senhora gostou do meu
desenho?”). Os desenhos criados pelas crianças do G1 para representar o episódio O tênis de
Doug retrataram exatamente o discurso realizado antes, reforçando que os processos de
interpretação e apropriação não se concretizaram na fruição do desenho animado. A quadra de
basquete e o personagem Doug foram as principais associações, Costelinha aparece em
apenas uma das ilustrações (Figura 19). Interessante notar que, ao comparar os desenhos
elaborados pelos estudantes, é perceptível que o grupo utilizou os mesmos elementos para a
composição da imagem: a casa, a quadra, a bola – estes presentes na animação. Alguns
elementos comuns às ilustrações, como o sol e as árvores, não faziam parte do episódio, ou
seja, estes símbolos integram o imaginário das crianças e estão enraizados na cultural infantil
quando se trata de representar – por meio do lápis e do papel – a realidade ou a ficção. Outra
questão curiosa a ser observada são os traços que compõem o desenho e as formas de
representação dos objetos e das pessoas semelhantes em todas as ilustrações.
Com os grupos G2, G3 e G4 a investigação confirmou os pressupostos teóricos de que
os sentidos da comunicação se concretizam – e se propagam – na cotidianidade; um espaço
pleno de mediações no qual os seres sociais interagem entre si e com os meios. Martín-
Barbero (2009, p. 230-231) denomina esta dinâmica cultural de sociabilidade, ou seja, “a
multiplicidade de modos e sentidos nos quais a coletividade se faz e se recria, a polissemia
das interações sociais”.
No G2, em O tênis de Doug, várias leituras foram realizadas pelas crianças. O consumo
simbólico, temática principal do episódio, não foi percebido pelos estudantes. Uma das
interpretações da turma foi o bullynig sofrido por Doug no ambiente escolar. Outra leitura foi
a rejeição 27 em função da aparência. Nestas interpretações, são visíveis as mediações
cognitivas e de referência.
No G4, no mesmo episódio, houve também diferentes percepções. As crianças falaram
sobre a construção da identidade, reforçando a importância da personalidade, abordaram o
imaginário de Doug na animação e questionaram a independência do personagem que é
incomum nesta faixa etária. Neste grupo, um estudante (G4-E39) associou o personagem
Costelinha ao Snoop (Penauts) por ambos possuírem fisionomias criadas com base na mimese
do comportamento humano.
27 O rejeição foi interpretada pelo estudante G2-E14 que se manteve isolado do grupo no primeiro dia de
pesquisa.
123
Um único episódio, dois grupos, vinte crianças e diferentes percepções. Estas múltiplas
interpretações, a partir do mesmo conteúdo audiovisual, são organizadas pelas ritualidades
que marcam os processos comunicacionais, nos quais a significação e os sentidos são
resultado do confronto entre a memória individual e coletiva e a possibilidade de novas
descobertas.
[...] as ritualidades remetem aos múltiplos trajetos de leitura ligados às condições
sociais do gosto, marcados pelos níveis e qualidade de educação, pelos haveres e
saberes constituídos em memória étnica, de classe ou de gênero, e pelos hábitos
opm, familiares de convivência com a cultura letrada, a oral ou audiovisual, que
carregam a experiência do ver sobre o ler, ou vice-versa (MARTÍN-BARBERO,
2009, p. 233).
Em Doug cai no rock, os múltiplas trajetos de leitura se repetiram no G2. Valores como
superação – acreditar para conseguir – e amizade – não deixar o amigo para trás – foram as
interpretações da narrativa.
No mesmo episódio, a interpretação comum às crianças do G3 foi a relação de ajuda
entre Doug e Skeeter. As crianças rememorizam diferentes situações em que tiveram o
incentivo de um amigo para realizar uma tarefa ou mudar um hábito.
G3-E25
A Júlia come fruta, come todas as frutas que existe quase. Aí eu não comia fruta.
Como ela comia, eu comecei a comer.
Este foi o único grupo no qual a interpretação se deu de forma homogênea, preservando
parte do significado original da mensagem. Se resgatado a análise estrutural da narrativa de
Doug cai no rock, capítulo III, com base no modelo predicados de base a relação estabelecida
entre Doug e Skeeter é de participação que expressa exatamente esta relação de ajuda
interpretada pelas crianças.
A categorização dos personagens como bons ou maus, por parte dos estudantes, indicam
um conceito socialmente legitimado. Esta fisionomia atribuída aos personagens no campo da
produção foi compreendida como idealizada pelo autor nos processos de recepção.
Possivelmente, porque as narrativas de Doug Funnie buscam referências no mundo exterior
para autenticar a lógica interna da trama.
O papel da televisão como instituição social na formação do telespectador infantil
também se confirmou na investigação. As crianças dos grupos G2 e G3, situadas em um
espaço geográfico em que o ritmo sertanejo é predominante, possuem um amplo repertório
musical e preferência por bandas internacionais. Segundo os estudantes, a TV é o principal
meio para conhecer e se informar sobre música e artistas.
124
Por fim, esta investigação comprovou as propostas teóricas de Martín-Barbero (2004,
2009) e Orozco (2005). A cada interação com os conteúdos midiáticos estão em jogo
múltiplas mediações que circundam e conduzem a recepção. É factível admitir que os
produtos culturais – particularmente os da indústria do entretenimento – carregam
implicitamente códigos de significação que orientam a interpretação, entretanto, como
defendem Hall (2003) e Orozco (2005), a mensagem midiática não é transparente, a natureza
polissêmica da comunicação e os contextos histórico, social e cultural nos quais se dão os
processos de recepção possibilitam recria-la e (re)significa-la, portanto, já não é possível
pensar em dinâmicas de codificação e recodificação, nas quais estas mensagens serão
compreendidas da mesma forma que foram idealizadas pelos mass media. O receptor, em
especial o infantil, não está isolado frente à tela da TV, na relação fruitiva com os produtos
culturais as crianças revelam a sua maneira de ver o mundo.
125
CONCLUSÃO
Este estudo se propôs a investigar como as crianças com idade entre 7 e 12 anos
interagem com as narrativas audiovisuais, especialmente com o desenho animado, para desta
forma compreender como se dão os processos de apropriação e de produção de sentidos no
campo da recepção, tomando-se por base a interpretação da série de animação Doug Funnie.
A pesquisa concluiu que, como defendem Martín-Barbero (2004, 2009) e Orozco
(2005), os sentidos da comunicação não estão contidos no conteúdo das mensagens
midiáticas, mas são construídos coletivamente por meio das práticas sociais difundidas e
incorporadas na cotidianidade. Esta asserção se comprovou nas dinâmicas junto aos grupos de
discussão quando estudantes inseridos em diferentes contextos de vida realizaram leituras
distintas acerca do mesmo episódio da série Doug Funnie.
É evidente que em cada narrativa audiovisual – e especialmente nos produtos culturais
da indústria do entretenimento – está implícita uma intencionalidade. Como aponta Jauss
(2002) existe em cada obra a proposta de um campo temático para o processo interpretativo,
no entanto, a pesquisa verificou que estes códigos orientadores dos processos de recepção são
(re)significados pelo telespectador infantil em função dos repertórios individual e coletivo e
do contexto sociocultural no qual ele está inserido. O estudo sinalizou também que a
institucionalidade dos produtos culturais – que segundo Martín-Barbero (2004, 2009)
confronta as ideologias dos mass media e as ideologias de diferentes matrizes culturais – não
se sobrepõe às outras instituições como a escola e a família que são para as crianças
“comunidades de apropriação”. Assim comprovou-se, como bem observa Orozco (2005), que
a influência da TV não é totalizadora visto que as interpretações se deram em diferentes
direções em cada grupo pesquisado.
Na Escola Estadual José Mamede de Aquino, a experiência com os alunos foi relevante
porque pôde identificar culturas e competências de recepção díspar entre os dois grupos de
pesquisa.
No G1, embora a investigação tenha sido complexa e de difícil controle, os resultados
foram ricos para compreender como as múltiplas mediações permeiam os processos de
recepção do desenho animado. As crianças da 3a série não demonstraram competências para
interpretar os episódios O tênis de Doug e Doug cai no rock exibidos para estudo. Por
intermédio dos diálogos e das ilustrações (Figuras 19, 20, 21, 22 e 23) criadas pelos alunos,
126
constatou-se que as crianças memorizaram e reproduziram fragmentos da narrativa
audiovisual. Vários fatores contribuíram para a não compreensão dos episódios. Segundo
Orozco (2005), a atenção é o primeiro passo para determinar o grau de envolvimento e
processamento do audiovisual, assim, o baixo nível de atenção durante a exibição do desenho
animado impediu que as demais etapas da recepção fossem concretizadas – compreensão,
apropriação e produção de sentidos. Outro fator relevante é a idade. E aqui há duas situações:
primeiro as crianças deste grupo estão em fase de alfabetização o que sinaliza que as
competências de leitura e interpretação ainda estão em desenvolvimento; depois, a idade
também está associada à mediação cognitiva se considerado que a cognição corresponde às
informações internalizadas pelas crianças ao longo da vida que são reintegradas a cada nova
interação midiática para favorecer os processos de compreensão.
No episódio O tênis de Doug, a leitura realizada pelas crianças do G2 foi o bullying
sofrido por Doug na escola em razão de sua aparência. Isso porque, frente à tela, o
telespectador não despreza suas experiências e não está isolado do contexto sociocultural ao
qual pertence (OROZCO, 2005; MORLEY, 1996). Deste modo, a pesquisa indicou que as
crianças buscam referências no mundo exterior à ficção para legitimar o conteúdo
audiovisual. Há pistas de que o bullying é uma realidade vivenciada pelos estudantes da
Escola Estadual José Mamede de Aquino (ver anexo I). Diferente do G1, neste episódio, os
estudantes do G2 foram capazes de compreender o desenho animado e recriar os sentidos da
narrativa.
Vale lembrar que as crianças do G1 e G2 vivem em uma região periférica de Campo
Grande, onde o acesso à cultura e às tecnologias da comunicação é restrito, e são de famílias
de baixa renda e socialmente desfavorecidas. Este contexto também influenciou as percepções
dos estudantes a respeito da série Doug Funnie o que mais uma vez confirma que as
mediações de referência pautam a interpretação e a (re)significação dos produtos midiáticos
com os quais as crianças interagem.
Ao assistir ao mesmo episódio, as crianças do G4, alunos do Colégio Engler Abelhinha
Feliz, realizaram leituras completamente distintas comparadas às do G2. Baseadas em seus
mundos de vida, as crianças perceberam na narrativa animada a importância da identidade
individual o que sinaliza quais valores morais são compartilhados pelo grupo. Verificou-se
ainda que estas crianças estão inseridas na cultura do consumo visto que demonstraram ser
conhecedoras das marcas da moda e conscientes em relação aos preços, além de possuírem
amplo acesso aos dispositivos tecnológicos como celulares e tablets.
127
Em relação à tecnicidade, como sugere Martín-Barbero (2004,2009) as tecnologias
digitais são de fato elementos estruturantes da comunicação no universo infantil uma vez que
são espaços para socialização. Importante ressaltar que, independente do contexto
sociocultural, o uso da internet é semelhantes entre as crianças, de acordo com o questionário
respondido pelos estudantes, as atividades online mais frequente são bate-papo e jogos. O
mesmo ocorre com as brincadeiras e jogos de faz-de-conta, o significado de brincar é igual
para as diferentes infâncias, assim, a boneca, a casinha e o carrinho são as brincadeiras
preferidas entre as crianças, além de constituírem-se em modos de expressar, por meio da
ludicidade, as formas pelas quais elas percebem o mundo, ora reproduzindo as experiências
da vida real, ora representando as fantasias da ficção.
A categorização dos personagens como bons ou maus, percepção compartilhada por
pelos estudantes de ambas as escolas, reforçou a noção de que as crianças tomam emprestadas
as convenções sociais do mundo real e as interiorizam na estrutura de sentido da narrativa.
Este consenso que estabelece formas culturalmente aceitas de interação com o outro, ganha
significação na mediação cognitiva, em outras palavras, a compreensão atribuída ao desenho
animado se dá por meio das interações sociais e são elaboradas coletivamente.
A discussão a respeito do episódio Doug cai no rock confirmou, novamente, que o
caráter polissêmico dos conteúdos audiovisuais e a criatividade empregada na produção do
desenho animado levam o telespectador às múltiplas interpretações.
Neste episódio, os estudantes do G2 não chegaram a recriar os sentidos da narrativa. Em
vários momentos da discussão, reproduziram sequências da animação, sinalizando que o
repertório e as mediações cognitivas não forneceram elementos para a compreensão do
desenho animado. No G3, as interpretações da animação se deram em torno da relação de
ajuda ente Doug e Skeeter. É oportuno notar como as crianças se deslocaram do tema
principal do episódio – a banda The Beets – para captar significados implícitos da história. Há
coerência nestas percepções distintas a respeito do episódio se observado o cotidiano de cada
uma destas escolas.
Outro aspecto a ser destacado são as competências das crianças desta faixa etária para
distinguir realidade e ficção. Certamente o fato de se tratar de uma animação com natureza
própria na concepção visual contribui para esta distinção. Na visão das crianças, o desenho
animado permite situações absurdas porque não é real. Uma pesquisa futura poderia
investigar se esta distinção se repete em produtos audiovisuais que utilizam uma linguagem
universalizada para reproduzir a realidade de forma autêntica, como por exemplo, as
telenovelas.
128
A título de conclusão, esta investigação ratifica que a figura do telespectador infantil
passivo frente à tela da TV está superada. A criança pós-moderna encontrou o seu lugar nos
contextos midiático e tecnológico, desenvolvendo competências para interagir com os
produtos audiovisuais, rejeitá-los e criticá-los. Sua atuação nos processos comunicacionais
está longe de ser reprodutiva, as infâncias são hoje produtoras da cultura. Por outro lado, falta
à geração adulta, e especialmente à escola, a compreensão desta realidade que já não implica
em proteção ou exclusão geracional, mas em preparar a criança para uma relação mais
produtiva e crítica em relação aos meios.
129
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APÊNDICE A
A) IDENTIFICAÇÃO
Instituição de ensino:__________________________________________________________
Grupos: ( ) G1 ( ) G2 ( ) G3 ( ) G4
Idade:
( ) 8 anos ( ) 9 anos ( ) 10 anos ( ) 11 anos ( ) 12 anos
Sexo
( ) masculino ( ) feminino
Com quem você mora? B) CONSUMO MIDIÁTICO
Você assiste à TV todos os dias?
( ) sim( ) não
Em qual horário costuma ver TV?
Em quais lugares da casa você assiste à TV?
Geralmente, quem assiste à TV com você?
Quais são os seus canais de televisão preferidos?
E quais programas televisivos você mais gosta de assistir? Por que?
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Existe algum programa de TV que você seja proibido de assistir? Quem o proíbe?
Você gosta de ir ao cinema? Com que vai? E qual foi o último filme que assistiu no cinema?
Você gosta de ler? O que costuma ler?
Você conhece a internet? ( ) sim( ) não. Onde acessa à internet?
O que você costuma fazer na internet?
Se você pudesse ser um personagem da TV qual gostaria de ser? Por que?
C) COTIDIANO
Quais são suas brincadeiras preferidas? E com quem costuma brincar?
Quais atividades costuma fazer aos finais de semana? Quem participa destas atividades?
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ANEXO 1
Reportagem publicada, em 05 de setembro de 2012, no portal Campo Grande News.
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