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REALISMO: QUANDO UMA PALAVRA VALE MAIS QUE MIL IMAGENS
SÁ, Daniel Barreto de.
Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4
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REALISMO: QUANDO UMA PALAVRA VALE MAIS QUE MIL
IMAGENS
SÁ, Daniel Barreto de.
Professor do Centro Universitário Fluminense
Mestre em Cognição e Linguagem pela Universidade Estadual Norte Fluminense danielbarreto@globo.com
RESUMO Este ensaio aborda a relação entre texto e imagem, almejando evidenciar as estratégias de representação
realista na literatura e no cinema. Neste viés, observa-se a construção da imagem a partir da obra “O
Matador”, de Patrícia Melo – a realidade social na expressão literária e em sua versão cinematográfica. Dos estudos de Schollhammer, Jaguaribe, Barthes e Metz é possível extrair múltiplas abordagens do
Realismo Contemporâneo e suas variações estilísticas, capazes de produzir impactos afetivos e assim
acentuar a diegese do leitor e do expectador.
Palavras-chave: Literatura, Cinema, Realismos, Texto, Imagem
ABSTRACT
This essay talks about the relationship between text and image, desiring highlight the realistic
representation strategies in literature and cinema. In this bias, the construction of the image is observed from the book “The Killer” by Patrícia Melo - social reality in literary expression and in its film version.
From the studies of Schollhammer, Jaguaribe, Barthes and Metz is possible to extract several
approaches of Contemporary Realism and its stylistic variations, able to produce affective impact and
thus accent the fictional life of the reader and of the viewer.
Key-words: Literature, Cinema, Realism, Text, Image
INTRODUÇÃO
Nascemos, crescemos e morreremos. Nosso viver, nosso cotidiano, nosso ritmo
frenético. Passamos a vida buscando sentido para as coisas. Tudo precisa ter nome e conceito.
Desconstruir o que aprendemos é uma dolorosa quebra de paradigma. Enquanto bebês,
passamos meses consumindo imagens até termos condições de construir signos linguísticos. A
partir de então, essas imagens passam a ter significado e significante. Pronto! Começamos a
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verbalizar o que sentimos e novas palavras vão surgindo. Num exercício natural, passamos a
buscar signos para as imagens assim como criamos imagens para cada novo signo.
Esta reflexão inicial não pretende suscitar estudos de linguística e teorias da
aprendizagem sem negar a relevância dos trabalhos de Saussure e Vygotsky, o que importa
nesta temática é a relação paradoxal entre imagem e palavra e o quanto ambas são
indispensáveis para a construção e representação da realidade.
Com as devidas balizas, é possível encontrar uma linha para justificar esta digressão
introdutória. Incialmente, sem requerer profundidade, visto que o senso comum está na
superfície, relembro o óbvio: a imagem quando escrita é uma palavra e a palavra é escrita na
forma de imagem. Cada letra é uma imagem e cada imagem é nomeada pela palavra.
Saindo do raso, esta questão merece ser aplicada a nossa realidade, ou melhor, a nossa
capacidade de representação da realidade. Conjugando imagem e texto, o debate pode abraçar
algumas formas de arte; dentre elas, elejo literatura e cinema.
Entre as múltiplas abordagens da literatura comparada destaca-se hoje com
força surpreendente o estudo da relação entre texto e imagem, ou seja, entre a
representação visual e a literária. O confronto entre imagem e texto oferece
atualmente uma abordagem fértil para a compreensão da literatura numa sociedade cada vez mais dominada pela dinâmica da “cultura da imagem” e,
simultaneamente, oferece uma compreensão do funcionamento das imagens
enquanto mediações significativas de realidade. A pesquisa interdisciplinar deste campo que em inglês ganhou o nome de “visual culture” – ou seja, a
“cultura visual” – nos apresenta uma abordagem dos estudos da cultura a
partir da relação entre discurso e visibilidade (SCHOLLHAMMER, 2003, p.
87).
Tomando por base a linha de pesquisa de Karl Erik Schollhammer, amparada pelos
estudos de Beatriz Jaguaribe, Roland Barthes e Christian Metz, este ensaio aborda a relação
entre texto e imagem, almejando evidenciar as estratégias de representação realista na literatura
e no cinema, com vistas a extrair múltiplas abordagens do Realismo Contemporâneo e suas
variações estilísticas, capazes de produzir impactos afetivos e assim acentuar a diegese do leitor
e do expectador. Doravante, quantas imagens podem ser geradas nas distintas estratégias de
representação da realidade na literatura e no cinema? Quais efeitos estas variações estilísticas
podem provocar no leitor ou expectador?
Nos moldes tradicionais de comparação entre imagem e texto, os estudos
contemporâneos trabalham com o lado imagético do texto e o lado textual da imagem para
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destacar as diferenças inconciliáveis e não comunicáveis que revelam seus limites dinâmicos
como chave para entender o que, num determinado momento histórico, pode ser visto e dito.
Dessa maneira, diz Schollhammer (2002), a comparação entre literatura e cinema se
dilui como procedimento necessário para o estudo das relações entre texto e imagem, ao mesmo
tempo em que parece impossível conciliar o signo linguístico com o signo visual numa tradução
entre um e outro. Nenhum signo artístico se apresenta como puramente verbal, nem como
puramente visual.
Para tornar esta análise possível e entender com mais precisão a relação entre o visível e
o enunciável, ou seja, entre aquilo que pode ser dito e o que pode ser visto em expressões
fílmicas e literárias, o Realismo é o recorte de gênero e suas estratégias de representação da
realidade urbana brasileira contemporânea são a base teórica, da qual analiso a construção da
realidade social na expressão literária (“O Matador”, de Patrícia Melo) e em sua versão
cinematográfica (“O homem do ano, de José Henrique Fonseca, com adaptação de Rubem
Fonseca), conforme a citação de Kall Erick indicava:
O neorrealismo surgido na literatura brasileira na década de 1960 dá continuidade a essa tendência, agora não nas falas de um Fabiano ou de um
Riobaldo, mas na contundência expressiva do cobrador de Rubem Fonseca,
do Zé Pequeno de Paulo Lins ou do Máiquel de Patrícia Melo. A semelhança
coloquial já não é apenas o privilégio dos personagens; os narradores assimilam a mesma voz e juntos, escritor, narrador e personagem, forçam a
expressão oral a sua extrema realização na denominação daquilo que não tem
nome, do inarrável, do execrável e do insuportável em que a semelhança vai desaparecendo na confusão entre a forma representativa e seu conteúdo
extremo (SCHOLLHAMMER, 2012, p. 3).
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Agora com maior profundidade, a questão iniciada na imagem e na palavra submerge no
“efeito do real”. Não se trata de “real concreto”, mas da realidade representada. Contudo, é
justamente com base nessas representações que construímos nossa concepção do “real
concreto”, por ser amplamente crível. Assim, “o ‘efeito do real’ é fundamento desta
verossimilhança inconfessa que forma a estética de todas as obras correntes da modernidade”
(BARTHES, 1972, p. 190). Metz (1977) lembra que a impressão de realidade é provocada pela
diegese, a partir do universo ficcional; Jaguaribe (2007) reforça que “o ‘efeito do real’ é a
retórica da verossimilhança que garante ao leitor-espectador uma imersão no mundo da
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representação. Portanto, o real e a realidade nos importam porque pautam nossa possibilidade
de significação do mundo”.
Com efeito, esta realidade nua, travestida e adereçada de muitos artifícios autorais que
buscam nos provocar, é capaz de romper com valores morais, encantar e afetar os sentidos do
leitor-espectador a cada página, a cada cena. Ao que se estima, hipoteticamente, no desatar de
cada nó, são incontáveis as abordagens do Realismo por meio de suas estratégias de
representação, capazes de produzir impactos afetivos e assim acentuar a diegese do leitor ou
expectador.
Assim como a imagem e o texto, literatura e cinema são irmãs siamesas. Ao longo do
tempo, essas duas linguagens artísticas se entrecruzaram. O cinema tem incorporado técnicas
próprias da narrativa literária, assim como os modelos narrativos do cinema têm influenciado a
literatura.
Apesar de corriqueira, ainda há grande resistência do público e da crítica quando o
assunto é adaptação de obras literárias para o cinema. Muitos são os impasses a esse processo,
no entanto, o principal é a falta de fidelidade aos livros. “Nesse sentido, compreendemos que o
texto literário, às vezes, pode elucidar essa relação com mais sensibilidade do que a própria
imagem, pois revela em primeiro lugar a condição da imagem mental na visualidade de uma
determinada realidade representada” (SCHOLLHAMMER, 2002).
Uma adaptação fílmica normalmente fracassa quando fica muito distante do conteúdo
apresentado no livro. Contudo, esta visão de superioridade da expressão literária apenas se
aplica aos best sellers, haja vista que o número de espectadores do cinema é exponencialmente
maior que o de leitores.
2.1. Objeto de Estudo
No romance “O Matador” vemos o rompimento por parte do narrador-personagem com
a forma narrativa tradicional e os efeitos produzidos pelas interrupções bruscas e interferências
no texto de elementos midiáticos, tais como propagandas, cartazes, jornais, notícias televisivas
e bilhetes. Essas mudanças visam a estabelecer uma nova relação entre narrador e leitor. No
filme “O homem do ano” notamos uma linearidade narrativa, vista como opção do roteirista e
do diretor na manutenção da forma clássica de narração para o cinema.
Imagem 1 – Literatura (O Matador) e Cinema (O Homem do Ano)
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Fonte: Loja on line Americanas.com
Herdeiro do neorrealismo brutalista de Rubem Fonseca, o romance “O Matador”
(1995), de Patrícia Melo, teve roteiro adaptado para o cinema – O homem do ano (2002) – pelo
próprio Rubem Fonseca e direção de José Henrique Fonseca, seu filho.
O protagonista Máiquel, morador do subúrbio, vendedor de carros usados e sem
perspectivas na vida, após perder uma aposta de futebol, pinta os cabelos de louro e envolve-se
em um crime por motivo fútil. Uma simples ofensa levou Máiquel a matar Suel, um bandido
que, no entendimento da comunidade local, merecia morrer. A partir desse fato, ele inicia sua
vida de matador de aluguel e envolve-se em outras ocorrências que o transformarão em um
criminoso cruel, mas admirado.
Com foco narrativo em primeira pessoa do singular, o romance narra a ascensão e
derrocada de Máiquel, um jovem de periferia que, por acaso, se transforma num assassino
profissional, admirado e querido por seus vizinhos, por ser visto como um justiceiro que se livra
dos bandidos que ameaçam a ordem de seu bairro.
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Nesta obra, Patrícia Melo retoma o estilo urbano violento das primeiras obras de Rubem
Fonseca e para retratar as novas facetas da sociedade brasileira no fim do século XX, levando a
uma relação inevitável entre o mundo retratado nos textos consagrados do autor na década de
1970 e a realidade social, 25 anos depois.
Neste universo em que predominam as ações, descritas de maneira realista e minuciosa,
a violência exerce um papel fundamental, justamente pelo fato de ser o próprio matador quem
narra. É interessante perceber como essa narrativa da violência vai se construindo às custas da
publicidade, das notícias de telejornal, dos anúncios, reportagens e manchetes jornalísticas. O
fragmento abaixo exemplifica este comportamento da linguagem literária.
Nesse prisma, a autora promove uma leitura das mazelas do Brasil contemporâneo,
apresentando de modo visceral as motivações e os sentimentos das personagens, no intuito de
evidenciar suas personalidades marcantes e controversas. A representação ficcional desta
realidade é adequada para a linguagem fílmica, em especial ao ritmo acelerado da narrativa,
capaz de permitir cortes rápidos e o dinamismo necessário ao longa-metragem.
Um registro importante do ponto de vista do realismo é a reação da sociedade, a julgar
pelo entendimento de que bandido bom é bandido morto. Conforme expôs Jaguaribe, vemos a
representação do “choque do real” quando a sociedade, forçada pela ineficiência do judiciário e
pela sensação de impunidade, é capaz de ignorar os direitos humanos na busca por justiça:
Nesse sentido, os cenários de incerteza urbana minados pela violência e pela cultura do medo, as produções de retratos contundentes da realidade em viés
realista funcionam como uma “pedagogia do real” e da realidade que
potencializa narrativas de significação em tempos de crise.
Dentro da diversidade de narrativas e imagens acopladas aos registros do realismo contemporâneo, o “choque do real” é produzido pelas estéticas do
realismo literário e cinematográfico que visam dar conta das conflitivas
experiências da modernidade urbana no Brasil (p. 99). Defino o “choque do real” como sendo a utilização de estéticas realistas
visando suscitar um efeito de espanto catártico no leitor ou espectador. [...] o
choque do real, no sentido que aqui emprego está relacionado a ocorrências cotidianas, históricas e sociais (JAGUARIBE, 2007, p. 100).
Em “O Matador”, a violência verbal é expressa pelo discurso fragmentado, pela visão
irônica da realidade e por meio da agressividade das palavras do narrador. Na cena seguinte, o
leitor percebe esta agressividade, com riqueza de detalhes, no assassinato de Ezequiel:
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Veio caminhando na minha direção, com tranquilidade. Ninguém por ali.
Você quer falar comigo?; ele perguntou. Quero. Ele sorriu um sorriso de gentileza, pois não, eu saquei a arma, mirei e puf, errei o primeiro tiro. O que é
isso?, uma pergunta sincera, ele não estava entendendo o que era aquilo.
Aquilo era uma arma. Puf, errei o segundo, o terceiro pegou na coxa, o quarto
no peito, ele caiu, errei mais dois tiros. Ezequiel continuava vivo, gemendo, sofria, queria se levantar, falar alguma coisa, queria ir para casa jantar com a
mamãe, eu não tinha mais balas. Ele não poderia ficar vivo, não agora,
arranquei um pedaço de pau que servia de cerca para uma árvore e fui para cima dele, dei na cabeça, martelei, martelei, martelei, furei os olhos dele.
Ezequiel continuava vivo, meus braços doíam, espetei a lança de madeira no
coração do estuprador, eu já tinha visto uma cena na televisão, a mocinha
matando vampiro. Ezequiel vomitou sangue e morreu. Atravessei a rua e fui embora (MELO, 1995, p.48).
Na narrativa fílmica, a forma de abordar a criminalidade é diferente do romance. Isso
acontece porque no cinema o visual é elemento determinante em algumas situações. Assim,
enquanto o texto literário constrói imagens, via linguagem verbal, que deverão ser desvendadas
pelo leitor, o cinema, devido ao seu caráter visual, proporciona a imagem imediata do objeto.
Tabela 1 – Roteiro da Morte de Ezequiel
Externa - ruas pobres do subúrbio – noite
Máiquel segue Ezequiel por uma rua com pouco movimento,
entra numa esquina e a rua vai ficando deserta. Ezequiel para e
olha para trás.
Ezequiel - Você é o Máiquel, não é? (pausa) Qual é o assunto,
cara?
Máiquel (Depois de curta hesitação) - Nada não.
Máiquel vira as costas e afasta-se.
Máiquel (Off) - Nessa época, eu ainda não tinha aprendido a
odiar. Falavam do Ezequiel como se ele fosse o diabo, mas
tudo que eu via na minha frente era um pobre coitado.
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Ouve-se um estampido de tiro.
Máiquel se assusta, vira-se e vê Ezequiel com um revólver na
mão trêmula. Máiquel saca a arma e atira em Ezequiel. Este é
atingido no peito, cai. Ezequiel está se contorcendo no chão,
gravemente ferido. Máiquel se aproxima, encosta a arma na
cabeça de Ezequiel e puxa o gatilho. A arma engasga. Ele
aperta o gatilho seguidas vezes sem sucesso. Máiquel,
ajoelhado ao lado de Ezequiel, concentra-se em checar sua
arma. Tira o pente e recarrega novamente, destrava o pino,
engatilha a arma.
Pós-produção - Som de estampido de arma
Fonte: Filme O Home do Ano
Imagem 2 – Cena da morte de Ezequiel
Fonte: Filme O Homem do Ano
O foco principal – o assassinato de Ezequiel – foi mantido pelo roteirista, assim como o
insucesso de Máiquel na execução do assassinato. Entretanto, o espectador tem certeza da
consumação da morte de Ezequiel, por meio do som de estampido da arma. Esse recurso sonoro
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atua como um elemento narrativo junto à imagem de Máiquel recarregando e engatilhando a
arma.
No longa-metragem, Máiquel também é o narrador. Nele permanece toda a
credibilidade e a cumplicidade do espectador, porém a linguagem requer a supressão de certos
detalhes presentes no romance. Mesmo estando em primeira pessoa, o narrador relata sua vida
tentando negar sua condição de matador de aluguel, comportando-se como “vítima” das
circunstâncias que o levaram à criminalidade.
[...] Aprender a matar é como aprender a morrer, um dia você morre e pronto.
Ninguém aprende a morrer, um dia você morre e pronto. Ninguém aprende a matar. Isso é conversa furada de tira. Todo mundo nasce sabendo. Se você tem
uma arma na mão, é isso, você já sabe tudo. É como foder pela primeira vez,
você pensa que não sabe, mas o seu corpo faz tudo sozinho, alguma coisa lá
dentro faz isso por você. É a mesma coisa (p.93).
Tabela 2 – Roteiro da reflexão de Máiquel
Máiquel (Off) - Até matar o primeiro cara a gente pensa que
existe essa história de aprender a matar. Aprender a matar é
como aprender a morrer, um dia você morre e pronto.
Ninguém aprende a matar. Todo mundo nasce sabendo. Se
você tem uma arma na mão, é isso, você já sabe tudo.
Fonte: Filme O Homem do Ano
Imagem 3 – Cena da “transformação” de Máiquel
Fonte: Filme O Homem do Ano
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No romance, o protagonista mantém relação com três mulheres: Arlete (cabelereira),
Cledir (vendedora do Mappin) e Érica (menina de quinze anos, ex-namorada Suel, sua primeira
vítima). No filme, houve exclusão da personagem Arlete para Cledir assumir seu papel.
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Imagem 4 – Cledir e Érica em cena do triângulo amoroso
Fonte: Filme O Homem do Ano
De forma emblemática, Máiquel começa a atuar profissionalmente na empresa de
segurança patrimonial, em sociedade com o delegado Santana. A rápida ascensão social e o
reconhecimento da população local garantiram a ele o prêmio de homem do ano.
O mecanismo catártico do “choque do real” visa a aguçar a redescoberta de
uma vivência que absorvíamos na indiferença. Assim, ao transitar pela cidade, trancamos a porta do carro, fechamos a janela, apressamos o passo, nos
esquivamos do mendigo, driblamos o pivete, fugimos do assalto. Enfim,
vivemos no registro de autoproteção e insulamento fabricado pela cultura do
medo (JAGUARIBE, 2007, p. 123).
Seguindo a reflexão de Beatriz Jaguaribe, os trechos extraídos, tanto da linguagem
fílmica quanto da romanesca, revelam o poder transformador do medo. Desta forma, o
contraventor que rouba o trabalhador ou que saqueia empresas é temido. O pavor aumenta
porque a justiça e o sistema prisional não são capazes de ressocializá-lo. Por isso, a sensação de
segurança só aparece com o marginal morto. Sob esse prisma, ao destemido que assumir a
função de justiceiro cabe o posto de herói e um lugar perene nessa lenda urbana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse “choque do real”, provocado pela estratégia de realismo feroz ou brutalista,
milhares de imagens afetivas foram geradas para cada palavra, cada frame. Por isso, o
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blockbuster sucede o best-seller e o longa-metragem, o romance. Independente do gênero, a
praxe é o livro virar roteiro, não o inverso. Parece lógico, controverso; porém. Nota-se que o
instrumento de Confúcio era o texto, contudo para ele uma imagem valeria mais que mil
palavras, enquanto Milôr Fernandes, que viveu de produzir imagem, indagou: “se uma imagem
vale mais do que mil palavras, então diga isto com uma imagem”. Assim, rompendo com o
clichê de Confúcio e atendendo à provocação de Fernandes, o Realismo, face ao exposto, é a
palavra que representa mais de mil imagens.
REFERÊNCIAS
SCHOLLHAMMER, Karl Erik. À procura de um novo realismo – Teses sobre a realidade em
texto e imagem hoje. In: Literatura e Mídia. São Paulo: Loyola, 2002.
____. Realismo afetivo: evocar realismo além da representação. In: Estudos de literatura brasileira
contemporânea. Brasília: UnB, 2012
____. A literatura e a cultura visual. In: Literatura e cultura. Rio de Janeiro: PUC-RIO; São Paulo:
Loyola, 2003.
JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
BARTHES, Roland. O efeito do real. In: BARTHES, Roland et al. Literatura e semiologia.
Petrópolis: Vozes, 1972.
METZ, Christian. A significação no cinema. SP: Perspectiva, 1977.
MELO, Patrícia. O matador. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
O HOMEM DO ANO. Direção: José Henrique Fonseca. Roteiro: Rubem Fonseca. Produção: Beto
Bruno. Rio de Janeiro: Conspiração Filmes Entretenimento S/A.
FONSECA, Rubem. O Cobrador. São Paulo: Nova Fronteira, 1979
BOSI, Alfredo. Situação e formas do conto contemporâneo. In: O conto brasileiro contemporâneo.
São Paulo: Cultrix, 1988.
NICHOLS. Bill. Introdução ao documentário. Campinas-SP: Papirus, 2005.
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