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i
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE
GOVERNO DA PROVÍNCIA DE MANICA
ARPAC – INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO SÓCIO – CULTURAL
ii
Ficha Técnica
Membros da comunidade de Nhassacara envolvidos
1. Aissa Luís Jairosse
2. Albertina Maipa Niquisse 3. Alessi Sinate 4. Augusto José Baute 5. Bernardino Alficha 6. Cesário Alferes 7. Daniel Domingos 8. Ernesto Fole Lingada 9. Estivine Américo 10. Febi Jairosse 11. Fernando Timóteo 12. João Nzeru 13. João Pessane 14. Juliano Cutambula 15. Julio Simione 16. Lavumo Languitone Viagem 17. Linda Samissone 18. Maria Domingos Maitene 19. Octavio Frangue Nguiraze 20. Patrício Julai 21. Pinducai Campaunde 22. Queniasse Dique Sarcato 23. Raimundo Muandipandussa 24. Zeferino Manejo
Título: Património Cultural Imaterial do Distrito de Báruè: Caso da Localidade de Nhassacara,
Organização e orientação: Alberto Folowara e Killian Dzinduwa.
Autores: Alberto Folowara, Killian Dzinduwa, Pascoal Saraiva, Conde Saiconde, Mariano Bento e Epifánio Benesse.
Colaboração: Edmar Raene, Felizardo Jequecene, Leandro Fernando e Júlio Faindane
Direcção: João Fenhane
Ano: 2016
iii
SUMARIO
Lista de tabelas ……………………………………………………………………………... 4
Lista de figuras ……………………………………………………………………………… 4
Introdução ……………………………………………………………………………………. 9
Metodologia de trabalho …………………………………………………………………. 11
O Sitío Nhassacara ……………………………………………………………………….. 16
Cestaria (kumanga zvitsero ne matengu) …………………………………………….. 36
Olaria (kuumba) …………………………………………………………………………… 51
Carpintaria (kutsema) ……………………………………………………………………. 59
Cerâmica (kudinda madina) ……………………………………………………………. 65
Culinaria (kubika) ……………………………………………………………………….... 72
Ferragem (kukoma) ……………………………………………………………………….. 87
Tecelagem (kuruka) ……………………………………………………………………….. 91
Medicina tradicional (kurapa) ………………………………………………………….. 96
Mikanda …………………………………………………………………………………... 102
Música tradicional ………………………………………………………………………. 105
Dança tradicional ……………………………………………………………………..... 114
Contos (ngano) …………………………………………………………………………... 128
Ritos ………………………………………………………………………………………... 133
Rito de nascimento (kubarwa kwemwana) …………………………………………... 134
Rito de casamento (kurora) ………………………………………………………………. 141
Rito de morte (rufu) ………………………………………………………………………... 152
Rito de chuva (kuteta madzi) …………………………………………………………….. 162
Bibliografia ……………………………………………………………………………………….. 169
Lista dos entrevistados ………………………………………………………………... 170
4
Lista de Tabelas
Tabela 1: Manifestações ideficadas por cada bairro que compõe a Localidade
sede de Nhassacara (Fonte: Autores)………………………………………………...…16
Tabela 2: Distribuição por sexo e idade da população da Localidade de
Nhassacara (Fonte: INE)…………………………………………………………………..27
Tabela 3: Rede escolar da Localidade de Nhassacara nos anos de 2014 e 2015
(Fonte: SDEJT de Báruè, 2015)………………………………………………………….31
Tabela 4: Taxa de desistência em % da Localidade de Nhassacara para o ano de
2014 (Fonte: SDEJT de Báruè, 2015)…………………………………………………..32
Tabela 5: Principais patologias da Localidade de Nhassacara nos anos de 2013,
2014 e 2015 (Fonte: SDSMAS de Báruè, 2015)………………………………………33
Tabela 6: Casos de desnutrição da Localidade de Nhassacara nos anos de
2013, 2014 e 2015 (Fonte: SDSMAS de Báruè, 2015)……………………………...34
Lista de Figuras
Figura 1: Primeiro contacto com a comunidade (Foto de Epifânio Caluane
Benesse)……………………………………………………………………………………….14
Figura 2: Membro da comunidade assinando o consentimento livre, prévio e
informado (Foto de Felizardo Jequecene)………………………………………………14
Figura 3: Participantes descutem o trabalho em grupo (Foto de
Killian.Dzinduwa)……………………………………………………………………………15
Figura 4: Senhor Nguirazi, membro da comunidade, desenhando o mapa da
Localidade de Nhassacara no chão (Foto de Killian Dzinduwa)…………………..15
Figura 5: Membro da comunidade apresentando resultados de trabalho feito
em grupo (Foto de Killian Dzinduwa)…………………………………………………..15
Figura 6: Mapa da Localidade de Nhassacara - Mapeamento em croqui (Foto de
Killian Dzinduwa)……………………………………………………………………………15
5
Figura 7: Membros da comunidade recolhem dados do PCI nos bairros
mediante demostração do praticante (Foto de Mariano Bento)………………..…17
Figura 8: Membros da comunidade recolhem dados do PCI no bairro mediante
explicação do praticante (Foto de Leandro Fernando)………………………………17
Figura 9: Enquadramento geográfico da Localidade de Nhassacara (Fonte:
Autor)…………………………………………………………………………………………..20
Figura 10: Imagem de satélite da Localidade de Nhassacara (Fonte: Google
Earth)…………………………………………………………………………………………..22
Figura11: Pirámide etária da Localidade de Nhassacara(Fonte: Autor)……...…28
Figura 12: Tipologia de residência ao nível da Localidade de Nhassacara – casas
de construção precária (Foto de Pascoal dos Santos Saraiva)…………………….30
Figura 13: Tipologia de residência ao nível da Localidade de Nhassacara – casas
de construção convencional (Foto de Conde Serafim Saiconde)………………….30
Figura 14: Vista parcial da EN7 atravessando a Localidade de Nhassacara (Foto
de Conde Serafim Saiconde)………………………………………………………………36
Figura 15: Parte de tipo de veículos que circulam ao nível da Localidade de
Nhassacara (Fotos de Conde Serafim Saiconde)……………………………………..36
Figura 16: Artesão no acto de fabrico de cestos (Foto deLeandro Fernando)….42
Figura 17: Artesão demostrando o processo de fabrico de peneira (Foto de
Mariano Bento Candieiro)…………………………………………………………………44
Figura 18: Artesão no acto de fabrico de esteira feita com base no caniço
denominado “mitete” (Foto de Epifânio Caluane Benesse)………………………...48
Figura 19: Esteira no acto de fabricação, com base no caniço denominado
“nzire” (Foto de Edimar Fernando Reane)……………………………………………..49
Figura 20: Potes de barro resultantes da olaria (Foto de Edimar Fernando
Reane)………………………………………………………………………………………….52
6
Figura 21: Barro misturado com água em um molde côncavo (Foto de Conde
Serafim Saiconde)…………………………………………………………………………...54
Figura 22: Panela de barro sendo moldada (Foto de Edimar Fernando
Reane)………………………………………………………………………………………….56
Figura 23: Oleira moldando uma panela de barro (Foto de Edimar Fernando
Reane)………………………………………………………………………………………….56
Figura 24: Aros para janelas (Foto de Leandro Fernando)…………………………62
Figura 25: Porta estufada em processo de fabrico e aros para janelas (Foto de
Pascoal dos Santos Saraiva)………………………………………………………………62
Figura 26: Ceramista depois de despositar no solo a massa de tijolo húmida
(Foto de Leandro Fernando)………………………………………………………………65
Figura 27: Forma dupla utilizada na fabrição de tijolos (Foto da Internet)……65
Figura 28: Ceramistas trabalhando no processo de secagem de tijolos (Foto de
Leandro Fernando)………………………………………………………………………….66
Figura 29: Demostração de arumação do forno (Foto de Leandro
Fernando).…………………………………………………………………………………….68
Figura 30: Forno depois de queimado (Foto de Leandro Fernando)……………..68
Figura 31: Prato contendo kwechete (Foto de Pascoal dos Santos Saraiva)…...71
Figura 32: Prato contendo quiabo de cima após sua retirada da machamba
(Foto de Conde Serafim Saiconde)……………………………………………………….73
Figura 2: Cozinheira cortando quiabo em rodelas para sua preparação (Foto de
Conde Serafim Saiconde)………………………………………………………………73
Figura 34: Momento da preparação do quiabo (Foto de Conde Serafim
Saiconde)………………………………………………………………………………………74
7
Figura 35: Quiabo já preparado e servido em prato (Foto de Conde Serafim
Saiconde)………………………………………………………………………………………75
Figura 36: Pó de quiabo usado para preparação de kadududzira (Foto de
Pascoal dos Santos Saraiva)………………………………………………………………76
Figura 37: Folhas seca de feijão nhemba (nkundza) misturado com outros
ingredientes (Foto de Pascoal dos Santos Saraiva)………………………………….78
Figura 38: Folhas seca de feijão nhemba sem igredientes (Foto de Pascoal dos
Santos Saraiva)………………………………………………………………………………78
Figura 39: Praticante da culinária demonstrando formas de servir a refeição
(Foto de Leandro Fernando)………………………………………………………………79
Figura 40: Membros da comunidade e técnicos passando junto a refeição
depois de preparada (Foto de Leandro Fernando)……………………………………79
Figura 41: Tambor contendo kabanga durante o processo de cozedura (Foto de
Mariano Bento Candieiro)…………………………………………………………………81
Figura 42: Ferreiro demonstrando o seu ofício, a medida que exibe alguns de
seus instrumentos de trabalho (Foto de Mariano Bento Candieiro)……………..84
Figura 43: Praticante da tecelagem demostrando o processo de bordagem de
diversos artigos de vestuário (Foto de Mariano
Bento Candieiro)…………………………………………………………………………….86
Figura 44: Rolo de linha de diversas cores (Foto da Internet)…………………….86
Figura 45: Praticante da tecelagem exibindo uma calça para uso de uma
criança (Foto de Mariano Bento Candieiro﴿……………………………………………88
Figura 46: Praticante mostrando uma criança vestindo chapéu feito com
recurso a tecelagem (Foto de Mariano Bento Candieiro)………………………......89
Figura 47: Amostra de chapéu confeccionado com recurso a tecelagem (Foto da
Internet)…………………………………………………………………………………….…89
8
Figura 48: Botinhas feita com recurso a tecelagemparauso de bebês (Foto de
Mariano Bento Candieiro)…………………………………………………………………89
Figura 49: Curandeira (nyahana) praticante da medicina tradicional (Foto de
Edimar Fernando Reane)………………………………………………………………….91
Figura 50: Curandeiro (nyabezi) praticante da medicina tradicional (Foto de
Leandro Fernando)………………………………………………………………………….91
Figura 51: Praticante de medicina tradicional durante o tratamento de uma criança ﴾Foto de Edimar Fernando Reane)………………………………………….…94
Figura 52: Colares feito de mikanda e suas respectivas argolas ﴾Foto de
Mariano Bento Candieiro)…………………………………………………………………96
Figura 53: Fazedora de mikanda exibindo um colar de mikanda (Foto de
Mariano Bento Candieiro)…………………………………………………………………96
Figura 54: Instrumento designado por kaembe (Foto de Conde Serafim
Saiconde)………………………………………………………………………………………99
9
10
O Governo de Moçambique tem vindo a fazer campanhas a vários níveis de
modo a promover a preservação e valorização do património cultural nacional.
Entre 1979 e 1983, após a independência nacional, foi implementada uma
campanha que visava a colecta sistemática das manifestações culturais em
todas as províncias do país. No período posterior a Campanha Nacional de
Preservação e Valorização até aos dias actuais, o Governo continuou a se
empenhar na valorização do património cultural.
No ano 1988, Moçambique criou a Lei 10/88 de 22 de Dezembro que determina
a protecção legal dos bens materiais e imateriais do património cultural
moçambicano. Na alínea 3) do seu Artigo 4, a lei estabelece que o Estado
Moçambicano colabora com outros Estados, com organizações internacionais,
intergovernamentais e não governamentais no domínio da protecção,
conservação, valorização, estudo e divulgação do património cultural.
A nível internacional, a UNESCO tem vindo a apoiar os seus Estados Partes na
implementação de acções que visam a protecção, valorização e salvaguarda do
património cultural e, Moçambique não é excepção. Desde a sua criação, a
UNESCO legitimou várias convenções com destaque para as de Salvaguarda do
Património Cultural Intangível e da Protecção e Promoção da Diversidade da
Expressões Culturais dos anos 2003 e 2005, respectivamente.
A luz da Convenção de 2003, foi inventariado o Património Cultural Imaterial
(PCI) da Ilha de Moçambique durante o período 2009 a 2012, junto aos falantes
da língua makhuwa. Entre 2013 e 2014, foi inventariado o PCI na Localidade
de Chinyambudzi do Distrito de Manica, Província do mesmo nome.
Tendo notado a falta de visibilidade, promoção do património cultural
imaterial, desvalorização do conhecimento tradicional e as praticas culturais da
vida quotidiana no território moçambicano, o Governo de Moçambique, por
meio do Plano Estratégico da Cultura (PEC) 2012-2022, definiu que a Direcção
Nacional de Acção Artístico-Cultural e o ARPAC devem colocar no centro das
suas acções, a recuperação e valorização do PCI em todas as suas formas. Com
este propósito em mente, o PEC orienta as entidades visadas a desenvolverem e
implementarem programas de actividades que destaca o PCI.
À luz do Plano Estratégico do Governo moçambicano e, no âmbito da
implementação da Convenção da UNESCO 2003 sobre a Salvaguarda do PCI, o
ARPAC, Delegação Provincial de Manica, colocou no seu programa de
actividades para o ano 2015 o Inventário Comunitário do PCI na Localidade de
Nhassacara, Distrito de Báruè. Este inventário envolveu as comunidades no
11
levantamento das manifestações culturais que constituem o seu património
cultural imaterial de modo a estimular o sentimento de pertença.
O trabalho foi realizado entre Junho e Dezembro de 2015 pelo ARPAC-
Instituto de Investigação Sócio-Cultural, Delegação Provincial de Manica, com
apoio da Direcção Provincial de Educação e Cultura de Manica, Serviço
Distrital de Educação, Juventude e Tecnologia de Báruè e membros da
comunidade de Nhassacara provenientes dos bairros Chibade, Josina Machel,
7 de Setembro, 1º de Maio, Verde e Futuro Melhor.
O envolvimento da comunidade na inventariação do PCI é uma condição
indispensável para garantir que a actividade contribua para salvaguarda do
mesmo. Na base deste pensamento, foram capacitados 24 membros da
comunidade de Nhassacara em metodologias de recolha de dados sobre o PCI.
Depois da capacitação, os membros, junto a equipa técnica, recolheram dados
sobre as manifestações culturais designadamente:danças tradicionais, contos,
provérbios, música tradicional, cestaria, olaria, carpintaria, cerâmica, medicina
tradicional, ferragem, culinária, tecelagem, missanga e ritos (nascimento,
casamento, fúnebres, chuva).
Metodologia de trabalho
O Inventário do PCI na Localidade de Nhassacara serviu para dotar os
membros da comunidade de conhecimentos básicos e habilidades para
executar o inventário comunitário em torno das suas circunstâncias
particulares. Uma das abordagens cruciais do inventário foi à ênfase dada ao
papel chave das comunidades na identificação, manutenção e transmissão do
seu PCI. Realmente a Convenção de 2003 reconhece que o PCI é parte
integrante da vida das comunidades que são portadores e praticantes do seu
própio PCI. Assim, é fundamental garantir sua participação na implementação
dos inventários e na proposição de medidas de salvaguarda de suas
manifestações culturais.
Para a materialização do Inventário do PCI na Localidade de Nhassacara, o
trabalho foi dividido em quatro etapas sendo a primeira, a selecção dos
membros representantes dos seis bairros acima mencionados; segunda etapa
foi a capacitação comunitária em matéria ligada ao PCI e as técnicas de recolha
de dados; terceira etapa consistiu na recolha das manifestações culturais que
constituem o PCI nos seis bairros e quarta foi a sistematização das informações
e produção do relatório do inventário.
12
O ARPAC, em contacto prévio, coordenou com as lideranças locais para a
selecção de quatro membros em representação de cada bairro, a escolha destes
baseou-se nos conhecimentos das manifestações culturais existentes nos seus
bairros, sendo no total seleccionados vinte e quatro membros da comunidade.
No primeiro contacto entre e equipa do ARPAC e os membros da comunidade,
foi elaborado o termo de consentimento livre, prévio e informado que explicava
à comunidade os objectivos do trabalho, os procedimentos metodológicos e os
resultados esperados do inventário. Depois de ter sido esclarecido, a
comunidade acolheu a equipa técnica com muita alegria. Lido e explicado o
termo de consentimento livre, prévio e informado, a comunidade escolheu sete
representantes que livremente assinaram o documento.
Figura 3: Primeiro contacto com a comunidade (Foto
de Epifanio Benesse)
Figura 2: Membro da comunidade assinando o
consentimento livre, prévio e informado (Foto de
Felizardo Jequecene)
Capacitação dos participantes
Tendo sido identificados os membros representantes da comunidade, estes
foram capacitados pelos facilitadores do ARPAC nas matérias do PCI e na
recolha colectiva das manifestações nos seus respectivos bairros. A
capacitação, que durou dois dias, consistiu na apresentação de documentos
em PowerPoint de aspectos relacionados com inventário do PCI a luz da
Convençao da UNESCO 2003, realização de trabalhos em grupos e
mapeamento comunitário das manifestações da Localidade de Nhassacara.
Esta capacitação também serviu de base para a identificação das
manifestações inventariadas.
13
Figura 3: Participantes descutem o trabalho em grupo
(Foto de Killian.Dzinduwa)
Figura 5: Membro da comunidade apresentando
resultados de trabalho feito em grupo (Foto de Killian
Dzinduwa)
Figura 4: Senhor Nguirazi, membro da comunidade,
desenhando o mapa da Localidade de Nhassacara no
chão (Foto de Killian Dzinduwa)
Figura 6: Mapa da Localidade de Nhassacara-
Mapeamento em croqui (Foto de Killian Dzinduwa)
Manifestações identificadas por bairro
Bairros Manifestações culturais
Chibade Medicina tradicional, Cestaria, Olaria,
Carpintaria, Ferragem, Culinária e Dança
14
tradicional.
Josina Machel Carpintaria, Olaria, Medicina tradicional,
Cestaria, Musica tradicional e Culinária
7 de Setembro Olaria, Cestaria, Dança tradicional, Ritos
de nascimento, Ritos fúnebres, Mikanda e
Ritos de chuva.
1º de Maio Dança tradicional, Olaria, Carpintaria,
Tecelagem, Cestaria, Cerâmica, Medicina
tradicional, Culinária e Ferragem.
Verde Cestaria, Olaria, Medicina tradicional,
Dança tradicional, Contos, Ritos
fúnebres, Ritos de casamento e
Carpintaria.
Futuro Melhor Dança tradicional, Contos, Provérbios,
Cestaria, Olaria, Carpintaria, Culinária,
Mikanda, Ritos de chuva, Ritos de
casamento.
Tabela 1: Manifestações ideficadas por cada bairro que compõe a Localidade sede de Nhassacara (Fonte: Autor)
Recolha de dados nos bairros
Foram criados seis grupos constituídos por membros da comunidade e técnicos
para trabalhar nos bairros. Os grupos deslocavam-se no período de manhã
para recolher as informações inerentes ao PCI e no período de tarde
regressavam à sede da Localidade para sistematizar as suas informações. Este
trabalho de campo durou quatro dias. As técnicas usadas na recolha de dados
foram entrevistas semi-estruturadas, observação direita, registo fotográfico e
registo em vídeos.
15
Figura 7: Membros da comunidade recolhem dados
do PCI nos bairros mediante demostração do
praticante (Foto de Mariano Bento)
Figura 8: Membros da comunidade recolhem dados
do PCI no bairro mediante explicação do praticante
(Foto de Leandro Fernando)
Divulgação dos resultados preliminares
Após a sistematização de fichas das manifestações do PCI, a equipa técnica
produziu o relatório preliminar do Inventario do PCI da Localidade de
Nhassacara. Depois de ter sido compilado o relatório, foram divulgados os
resultados preliminares do processo de inventariação onde igualmente foram
exibidas algumas manifestações levantadas em vídeos e fotografias.
Pesquisa complementar e compilação do relatório do inventário
Tendo regressados aos escritórios, os técnicos iniciaram por revisitar o relatório
preliminar para o seu melhoramento. Nesta revisão, foram identificados vários
aspectos em cada manifestação que precisaria de pesquisacomplementar.
Novamente a equipa técnica deslocou à Localidade de Nhassacara para
efectuar pesquisa adicional nos seis bairros anterirmente laborados. Esta
actividade culminou com a elaboração do presente relatório do inventário que
poderá ser utilizado para definir futuras acções de salvaguarda do PCI naquela
localidade.
16
17
Denominação
Relatos orais dão conta que no período colonial algumas pessoas saiam de
Sena, na Província de Sofala, e iam trabalhar nas minas e plantações da
Rodésia do Sul (actual Zimbabwe). Findo trabalho, regressavam as suas zonas
de origem. A emigração para o país vizinho visava procurar melhores
oportunidades de emprego, visto que, os salários pagos eram mais elevados
comparados aos que ganhavam na zona de origem. Com o dinheiro ganho, para
além de comprar mantimentos, pagar impostos entre outros, servia para
compra de roupas novas.
Durante a longa caminhada de regresso, os trabalhadores descansavam e
tomavam banho ao longo de um rio e, após o banho, eles mudavam de roupa,
sendo que, as roupas antigas em mau estado de conservação ou rasgadas eram
deixadas neste local e depois, continuavam a sua caminhada com destino as
suas zonas de origem.
A terminologia Nyatsakara por aquilo que os nativos fazem saber, surgiu a
quando deste mesmo movimento migratório. Em língua local, Ci-Barke, roupa
usada e já rasgada é designada Matsakara, enquanto o prefixo “Nya”,
comummente escrito “Nha” devido a influência da língua portuguesa, parece
ser usado para caracterizar abundância. Por isso, Nyatsakara significa local de
muita roupa em mau estado ou rasgada. Em harmonia com a história oral,
terá sido a partir destes termos que as pessoas passaram a usar com grande
frequência o termo Nyatsakara para designar o rio e depois ao território onde
constantemente os trabalhadores regressados do Zimbabwe tomavam banho e
deixavam a roupa em mau estado. Devido a influência da língua portuguesa na
nomenclatura de localidades, o sítio passou a se designar Nhassacara.
Entretanto, terá sido nesta vaga migratória que se deu início o povoamento da
actual Localidade de Nhassacara.
Fundamentação do Inventário
A Constituição da República de Moçambique consagra, entre os seus princípios
fundamentais, a responsabilidade do Estado na promoção do desenvolvimento
da cultura e personalidade nacional. Essa acção preconizada pela Lei
Fundamental passa pela identificação, registo, preservação e valorização dos
bens materiais e espirituais que integram o património cultural moçambicano.
No património cultural está à memória do Povo, a sua protecção assegura a
perenidade e transmissão às gerações futuras não só do legado histórico,
18
cultural e artístico dos nossos antepassados como também das conquistas,
realizações e valores contemporâneos.
A deterioração, desaparecimento ou destruição de qualquer parcela do
património cultural constitui uma perda irreparável, competindo aos diversos
organismos públicos e privados e aos cidadãos em geral, a responsabilidade de
impedir este processo de empobrecimento do nosso País, importa assim,
assegurar aos bens do património cultural a necessária protecção.1
No caso específico do PCI, a Convenção para Salvaguarda do PCI (2003), na
qual Moçambique é Estado Parte, promove, a Salvaguarda do PCI; o respeito
pelo PCI das comunidades, grupos e indivíduos envolvidos e; a conscientização
no plano local, nacional e internacional da importância do PCI e seu
reconhecimento recíproco.
É neste contexto que o Plano Estratégico da Cultura 2012-2022 contempla
como uma das acções prioritárias, promover o PCI como elemento fundamental
da identidade nacional, unidade e coesão social. A inventariação do PCI na
Localidade de Nhassacara pretende documentar e salvaguardar o PCI com
maior expressão pertencente a comunidade local, para o conhecimento da
sociedade visto que é obrigação de todos nós, preservar, transmitir e deixar
todo esse legado, às gerações vindouras. Porém, para que tais objectivos sejam
alcançados é fundamental o envolvimento da comunidade.
Território inventariado
Nhassacara localiza-se no extremo norte do Posto Administrativo de
Nhampassa, a uma distância cerca de 55 quilómetros do Município de
Catandica, concretamente na Latitude 17º36´25´´ S e Longitude 33º15´14´´E. A
Localidade limita-se a Norte pelo Distrito de Guro, através do Rio Mupha, a Sul
pela sede de Nhampassa, através do rio Kamuasanchenga, a Este pelo Distrito
de Macossa, através do Rio Phandira e a Oeste pela República do Zimbabwe,
através do Rio Kaeredzi.
1 Lei 10/88 de 22 de Dezembro (Determina a protecção legal dos bens culturais materiais e imateriais do património cultural moçambicano).
19
Figura 9: Enquadramento geográfico da Localidade de Nhassacara (Fonte: Pascoal Saraiva)
Relativamente ao aspecto político administrativo, a localidade está integrada ao
território da Província de Manica, cuja autoridade máxima é o Governador
Provincial. A província está, geograficamente, dividida em 12 distritos, geridos
pelos Administradores Distritais. Estes por sua vez subdividem-se em Postos
Administrativos, geridos pelos Chefes dos Postos e, finalmente, os Postos
Administrativos parcelam-se em Localidades, chefiados pelos Chefes de
Localidades.
20
Como nos referimos anteriormente, ao nível da localidade a estrutura
administrativa do topo da hierarquia é o Chefe da Localidade, apoiado pelo
Régulo (Nyakwawa), designado oficialmente de Líder tradicional do 1º Escalão,
seguido de chefes de grupo de povoações (Pfumo) designados por Líderes
tradicionais do 2º Escalão e, finalmente os chefes de povoações (Sapanda) que
desempenham papel do secretário do bairro. Os Sapandas gerem as suas áreas
dividindo-as em pequenos aglomerados populacionais.
A Localidade de Nhassacara é composto por 1 Nyakwawa, 6 Pfumo e um
número não especificado de Sapandas, visto que este varia de 5 a 10, de
acordo com a área sob sua jurisdição. Cabe a estes diversas tarefas, dentre as
quais: cuidar da harmonia da comunidade; velar pelos limites do território
linhageiro; intervir na resolução de conflitos da comunidade, quando estes não
são resolvidos no seio familiar e linhageiro; promover e orientar cerimónias de
interesse geral da comunidade; requerer a colaboração do conselho de anciões;
assegurar que a terra seja o património da comunidade e bem de todos para
uso, igualmente, de todos.
Geralmente o poder da chefia tradicional é legitimada em função da linhagem
que constitui o principal critério, para além de primazia de ocupação do espaço
geográfico e carisma.
Actualmente a localidade encontra-se sem Nyakwawa, sendo que a memória
colectiva oral fez saber que para o processo de sucessão, o espírito “Nyangulo”2
precisa encarnar e revelar-se em uma determinada pessoa, segundo eles a
escolhida para suceder o anterior no trono, dai sua legitimidade ser aceite por
todos na comunidade uma vez que a quase totalidade dos nativos da
Localidade de Nhassacara em particular e do Distrito de Báruè no geral,
acredita ter o mesmo antepassado comum (Os Makombe).
O território da Localidade de Nhassacara está integrado no regulado
Samanyanga e, em termos de ordenamento administrativo, ele está dividido em
18 povoados ou bairros, dos quais 6 na localidade sede, nomeadamente:
Futuro melhor, Verde, 7 de Setembro, 7 de Abril, Chibade e 1º de Maio.
2Devido à riqueza e complexidade do mosaico sociocultural desta região, considera-se provável que os
Nyangulo, idos de M´bire, já tivessem seus “parentes” em terras do actual território moçambicano, mesmo
antes da expedição dos Makombe e irmãos Chipapata e Samanyanga. De facto, durante as preces e rituais é
comummente invocado o Nyangulo, considerado o totem (mutupo), nome de um dos dois principais grupos
antepassados comuns (Nyangulo e Shuwambo) dos povos que faziam parte do Estado do Mwenemutapa.
21
Figura 10: Imagem de satélite da Localidade de Nhassacara (Fonte: Google Earth)
A estrutura tradicional é o elo de ligação entre as autoridades governamentais
e a população e, desempenha um papel importante na resolução de conflitos no
seio da comunidade, como: intrigas entre famílias, roubos, etc. Esta também é
responsável pela atribuição de novas parcelas de terra, principalmente para
indivíduos que não pertencem ao seu regulado, uma vez que para os nativos, a
atribuição de terra é feita por herança.
Historial
A ideia defendida por alguns interlocutores é aquela que sustenta que a região
de Nhassacara serviu de corredor do movimento migratório entre Moçambique
e Zimbabwe.
As fontes orais acreditam que Samanyanga tenha sido o primeiro líder
tradicional a governar aquele território no período pré-colonial. Nota que,
alguma fonte escrita actual, apesar de alguma subjectividade, sustenta esta
versão ao falar de Samanyanga como sendo um dos contemporâneos dos
Makombe que indo de M´bire, região norte da República do Zimbabwe por ali
se instalou e reinou.
22
Esta versão encontra eco com o escrito por Domingos Artur no seu livro
Subsídios a Reconstituição da Personalidade de Makombe, segundo o qual:
Makombe ido de M´bire (norte do Zimbabwe), veio na companhia do seu
irmão mais novo Samanyanga (?). Eles teriam partido de M´bire sob
impulso e condução dos espíritos mhondoro que lhes permitiram a
formação de dois grupos de guerreiros, um para cada irmão. Diz-se que o
“exército” de Makombe era o mais temido pelo facto de ser constituído por
homens de muita experiência guerreira, enquanto o do irmão Samanyanga
era composto por homens pertencentes ao mhondoro protector que não
queria guerra.(Raiva Pangaia, Báruè, 1994)
Samanyanga preferiu controlar a região de Mpataguenha, numa área
compreendida entre os rios Kaeredzi, Nyazónia e Ngoera. O seu irmão
Makombe se instalara na actual área de Báruè tendo fixado a sua base na
actual região de Macossa.
Na língua Shona, Samanyanga, quer dizer senhor do marfim. Este nome pode,
curiosamente, estar relacionado pelo facto de que a zona compreendida entre
os rios Kaeredzi, Nyazònia e Ngoera ter sido reputada de corredor de marfim,
sendo escoado depois, rio Zambeze abaixo, até o oceano Índico durante o
período em que Makombe teria aparecido por essa região.
Depois da morte de Samayanga, a qual as fontes históricas não fazem menção
e a memória colectiva nãotem registo cronológico preciso, o período colonial foi
caracterizado por contactos de culturas africana-tradicional e europeia-
ocidental, que ao longo da história podemos destacar como as principais
implicações desse contacto as alterações do modelo político tradicional
africano.
A subordinação do sistema legal costumeiro ao sistema legal europeu culminou
com a perda de soberania política dos chefes tradicionais e, também, na
restrição dos direitos executivos dessas autoridades: os chefes deixaram de
poder decidir autonomamente sobre a vida das suas populações, ficando a
mercê dos interesses da administração colonial.3
Após este período, a medida que nos aproximamos do tempo, concretamente no
pós-independência, relatos orais a qual memória colectiva tenha registo sem no
3Ao ser incorporado no sistema de administração colonial, o chefe tradicional deixou de ser uma “autoridade
indígena” e passou a ser um agente administrativo, ou Régulo (forma pejorativa para designar Rei Pequeno).
23
entanto datar o período de cada reinado, falam de forma diacrónica de Zawa-
Zawa, Tenessi e Gripedi como sendo os Nyakwawas reinantes.
Perfil sociocultural e condições de vida
O grupo etnolinguístico predominante em Nhassacara é o Barke, um dos
segmentos da etnia Shona onde se encontram os Tewes, Tongas e Ndaus. Estes
grupos são patrilineares onde o marido é o chefe da família e transmissor da
herança. Neste grupo a observação da filiação é mediante a prática de dotes
como compensação aos pais pela transferência da noiva para a família do noivo
e pagamento de lobolo para a legitimação dos filhos nascidos no matrimónio.
As comunidades são constituídas por unidades domésticas dispersas uma das
outras, dentre elas algumas monogâmicas e outras poligâmicas. A poligamia é
prática comum no seio da comunidade à pretexto de que, quanto maior for o
número de mulheres maior será a mão-de-obra para desenvolver as principais
actividades e melhorar deste modo a sua condição de vida.
A terra é propriedade dos homens, por isso, os filhos de sexo masculino são os
que têm direito a herda-la. Cada unidade doméstica esta estruturada e
hierarquizada na geração e sexo, o que determina a distribuição de funções
entre os seus membros. Enquanto ao homem compete o derrube de árvores,
caça, venda e trabalho assalariado, a mulher tem a obrigação de cultivar,
cozinhar, cuidar dos filhos e higiene da casa. Estas unidades têm obrigações
recíprocas de cooperação e solidariedade.
Na Localidade de Nhassacara, exceptuando a agricultura e a criação de
animais que são actividades exercidos tanto pelos homens como pelas
mulheres, as restantes actividades são divididas por sexo. Assim sendo, as
mulheres são as responsáveis pela olaria, enquanto os homens a extracção de
ouro, artesanato, pesca e caça. Na criação de animais, as aves e porcos são da
responsabilidade das mulheres, enquanto o gado bovino e caprino são
responsabilidade dos homens.
Os hábitos alimentares baseiam-se essencialmente na xima de farinha de
milho ou mapira, acompanhada de carne, peixe e principalmente de verduras
como abóbora, feijão-nhemba, hortícolas e quiabo.
24
Existem em Nhassacara, várias crenças religiosas envolvidas em actividades
sociais, dentre elas destacam-se a católica e as protestantes.
Meio-ambiente
A Localidade de Nhassacara possui um relevo plano, com solos areno-argilosos
de fraca fertilidade, permitindo o desenvolvimento de cereais em pequena
escala. Na zona de Mpataguenha e Kaeredzi, localizados nas margens do rio
Kaeredzi, que serve de fronteira natural com o Zimbabwe, o desastre natural
mais frequente é a seca.
O solo é usado pelo sector familiar e na base tradicional, obedecendo à prática
da agricultura itinerante, onde anualmente os camponeses abrem novas terras,
deixando as anteriores em pousio, recorrendo frequentemente a queimadas
para abertura dos campos agrícolas.
Posse de terra
A terra não constitui um factor conflituoso para as comunidades residentes em
Nhassacara. No caso em que indivíduos de outros regulados pretendem
explorar ou adquirir uma parcela de terra, cabe ao régulo em coordenação com
outras autoridades do poder tradicional, decidirem sobre o uso e
aproveitamento.
Rede hidrográfica
A localidade é caracterizada por possuir uma grande bacia hidrográfica onde se
destacam o rio Nhassacara, rio Nfudze, rio Mugabide, rio Kamwazanchenga, rio
Chicuio, rio Nhanthuthu e rio Kaeredzi todos de regime periódico e não
navegáveis com a excepção do rio Kaeredzi.
A pesca apesar de completar a dieta alimentar, não desempenha na
actualidade nenhum papel de relevo em termos comercias para a comunidade.
25
Recursos minerais
A Localidade é potencial em recursos minerais explorados artesanalmente e
outros ainda por explorar. No entanto, verifica-se a ocorrência de ouro
aluvionar na região do rio Kaeredzi, turmalina e granada em Mpataguena e
quartzo em Kamwazanchenga. Todas são exploradas artesanalmente, pese
embora as empresas Mozaouro e Socadif tenham efectuado uma prospecção do
ouro com vista a exploração industrial. Ao nível da localidade sede, ao longo da
estrada Nº 7, verifica-se a extracção de areia e pedra para construção, também
de forma artesanal por singulares não licenciados.
Floresta e fauna
Ao nível da Localidade de Nhassacara predominam as seguintes espécies
florestais: Umbila, Mbawa, Chanati (a mais predominante), Chanfuta, Panga-
panga e Pau-ferro. Além destas existem as espécies que servem de fonte de
combustível lenhoso como a Mussassa, Muimbe e Mfuti. A exploração destas
espécies é feita por duas empresas madeireiras. O reflorestamento verificado na
localidade é devido a iniciativa, um líder, uma floresta, o que faz com que
actualmente existam 21 florestas comunitárias que ocupam uma área
equivalente a 42 hectares.
Em termos de recursos faunísticos distinguem-se a presença de elefantes,
hienas, hipopótamo, macacos, porco-espinho e crocodilos.
Na região de Nhamuzambira, existe uma área de conservação florestal e
faunística designada de Safari Machamba Nzou explorada por agentes Sul-
Africanos cujo elefante que em língua local Ci-Báruè significa “nzou” constitui a
principal atracção turística do local.
O desflorestamento, as queimadas descontroladas e a erosão dos solos são os
problemas ambientais que afligem os residentes da Localidade de Nhassacara.
No âmbito da sustentabilidade ambiental, o Serviço Distrital de Actividades
Económicas (SDAE), em estreita ligação com os líderes comunitários
prosseguem com a preservação e o uso sustentável dos recursos naturais,
através da fiscalização florestal e faunística, a sensibilização das comunidades
contra o perigo das queimadas descontroladas e promoção de produtos
florestais não madeireiros como o bambu e outros.
26
População
A localidade possui uma populaçãoestimada em 16.334 habitantes, de acordo
com o censo populacional 2007. Esta população encontra-se desigualmente
distribuída pelo território, devido a factores como a seca, erosão e
empobrecimento dos solos, que contribuíram para o abandono de certas
regiões.
A população da localidade é maioritariamente jovem (menor que 15 anos), com
51,5%, e um índice de masculinidade de 53,4%. A totalidade da população é
rural e apresenta o tipo sociológico alargado, ou seja, apresentam um ou mais
parentes para além do filho.
População
Idade Total Homens Mulheres
Total 16334 7762 8572
0 851 434 417
1-4 2740 1296 1444
5-9 2724 1346 1378
10-14 2096 1071 1025
15-19 1766 860 906
20-24 1327 625 702
25-29 1185 527 658
30-34 876 416 460
35-39 665 298 367
40-44 444 197 247
45-49 437 179 258
50-54 323 109 214
55-59 228 93 135
60-64 209 81 128
65-69 161 89 72
70-74 119 50 69
75-79 81 32 49
80+ 102 59 43
Tabela 2: Distribuição por sexo e idade da população da Localidade de Nhassacara (Fonte: INE)
27
Figura11: Pirámide etária da Localidade de Nhassacara (Fonte: Autor)
Meios de vida
As principais actividades de sustento praticadas pela comunidade de
Nhassacara são: agricultura, criação de animais (bois, cabritos, galinhas,
patos, perus, porcos), extracção artesanal de ouro e pedras preciosas,
artesanato (esteiras, cadeiras, peneiras), olaria (panelas de barro e potes) e
caça. Pratica-se também a pesca artesanal nos rios e lagos existentes ao nível
da localidade.
O sector formal emprega 137 pessoas na área de educação, 5 na área de saúde,
uma na área da agricultura, igual número para a polícia e 12 na secretaria da
localidade. A actividade informal, sector que emprega um número não
específico de trabalhadores é constituída por 53 bancas, 16 moagens, 2 lojas, 4
oficinas mecanicas e número não especificado de oficinas de carpintaria e
artesanato.
Agricultura
A agricultura constitui a principal actividade de sustento familiar e a
horticultura, geralmente praticada em zonas baixas considerada prática
auxiliar a agricultura.
28
O tipo de agricultura praticado é de sequeiro, onde a enxada de cabo curto e a
tracção animal ocupa um papel importante na preparação da terra. O único
tractor que apoia a comunidade na abertura de campos agrícolas em
Nhassacara é da pertença de uma associação de agricultores sediada no
vizinho Distrito de Guro.
As principais culturas cultivadas são o milho, a mapira, os feijões, a batata-
reno, batata-doce e as hortícolas. No geral, o destino da produção é o consumo
e venda em caso de excedentes. Os principais produtos comercializados são,
milho, batata-doce, tomate, alho e cebola. Ao nível da localidade também são
cultivadas culturas de rendimento como o tabaco, algodão, soja e gergelim,
cujas áreas cultivadas é dominada pelo sector familiar.
A exploração agrícola é feita em regime de consociação de culturas alimentares,
nomeadamente, milho, feijão-nhemba e batata-doce.
A irregularidade da precipitação verificada na actualidade e o fraco
desenvolvimento tecnológico condicionam a produtividade agrícola da
localidade e conduzem a níveis de insegurança alimentar.
Pecuária
Aactividade pecuária na localidade é fraco, porém, dado a tradição de criação
de gado e a existência de boas áreas de pastagem, há condição para o
desenvolvimento pecuário, sendo as doenças e a falta de fundo e de serviços de
extensão rural para a plena cobertura da localidade, os principais obstáculos.
Na pecuária cria-se gado bovino, gado caprino, gado suíno, galinhas, patos,
perús para a alimentação e para a venda.
Habitação
O tipo de habitações varia em função das condiçãos económicas das famílias. A
casa do Chefe da Localidade, as residências de trabalhadores e muito poucas
residências particulares distribuídas pela localidade, foram edificadas de
material convencional, isto é, de blocos de cimento ou tijolo queimado cobertas
de chapas de zinco. As habitações predominantes são de casas de formato
circular ou rectangular, fabricadas de pau a pique e barro, cobertas de capim.
Todavia, nota-se cada vez mais a construção gradual de habitações com base
em tijolos queimados, erguidas com cimento e cobertas por chapas de zinco.
29
Geralmente os grupos domiciliares são constituídos por pai, mãe, filhos e avós
paternos. Nestes grupos as mulheres depois de crescer devem casar e sair de
casa. Os homens geralmente acabam erguendo as suas casas no terreno dos
pais.
Figura 12: Tipologia de residência ao nível da
Localidade de Nhassacara – casas de construção
precária (Foto de Pascoal dos Santos Saraiva)
Figura 13:Tipologia de residência ao nível da
Localidade de Nhassacara – casas de construção
convencional (Foto deConde Serafim Saiconde)
Na perspectiva de alargar a área urbanizada, existe dois planos pormenores
produzidos ao nível doServiço Distrital de Planeamento e Infra-Estrutura
(SDPI). O primeiro consiste em parcelar 573 terrenos ao nível da localidade,
actividade até então realizada, o segundo, consiste em parcelar 280 terrenos
em 4 bairros localizados nos dois lados da EN7, este último em curso com a
colocação de marcos e abertura de arruamentos. Estes terrenos são para
edificação das mais variados tipos de habitações, infra-estruturas sociais,
comerciais, entre outras.
Educação
No momento em que decorreu o inventário, a Educação formal na Localidade
de Nhassacara era constituída por 11 Escolas das quais 3 EP1 e 8 EPC. De
referir que entre os anos 2014 e 2015 houve aumento em uma EP1, enquanto
3 passaram de EP1 para EPC, como demonstra a tabela abaixo.
Nº Ano 2014 Ano 2015
EP1`s EPC`s EP1`s EPC`s
01 EP1 Zamba EPC Nhassacara EP1 Kaeredzi EPC Nhassacara
30
02 EP1 Nhagurungo EPC Nhantuto EP1
Machecacheca
EPC Nhantuto
03 EP1 Kaeredzi EPC Magobide EP1 Nhacufo EPC Magobide
04 EP1 Nhamuzambira EPC Chicuio EPC Zamba
05 EP1 Machecacheca EPC Mpataguenha EPC Nhagurungo
06 EPC Chicuio
07 EPC
Mpataguenha
08 EPC
Nhamuzambira
Tabela 3: Rede escolar da Localidade de Nhassacara nos anos de 2014 e 2015 (Fonte: SDEJT de Báruè, 2015)
Dados existentes no SDEJT de Báruè demonstram que o ensino primário no
seu todo contava em 2015 com 6.621 alunos dos quais 5.455 do EP1 (1ª a 5ª
classes), dentre eles 2.626 mulheres e 760 alunos do EP2 (6ª e 7ª classe), dos
quais 360 mulheres. De referir que entre os anos 2014 e 2015 houve um
crescimento em 4% no efectivo escolar. Porém, o número de mulheres que
frequentam a Escola é relativamente inferior em relação aos homens,
principalmente no EP2.
As taxas de desistências verificadas em 2014, como demonstra a tabela abaixo,
foram elevadas na EPC Nhanthuthu, EPC Magodibe, EPC Mpataguenha e EP1
Kaeredzi. Estas taxas tornam-se mais preocupantes no EP2 com maior enfoque
para as mulheres.
Escola
Taxa de Desistência 2014 (%)
EP1 EP2
M HM M HM
EPC Nhassacara 4,2 4,5 4,5 3,9
EPC Nhanthuthu 15,9 19,5 18,2 23,3
EPC Magobide 12,4 9,1 20,6 19,7
EPC Zamba 24,4 27,3
EPC Nhagurungo 9,5 9,1
31
EPC Mpataguenha 13,0 15,6 15,2 25,3
EP1 Caereze 32,6 31,0
EPC Nhamuzambira 8,2 7,7
EP1 Madjecacheca 0,0 0,0
EPC Chicuio 3,6 3,3 11,8 11,1
Tabela 4:Taxa de desistência em % da Localidade de Nhassacara para o ano de 2014 (Fonte: SDEJT de Báruè,
2015)
O número de docentes que assegura o processo de ensino e aprendizagem
subiu de 120 docentes em 2014 para 133, em 2015. No que respeita ao tipo de
formação do pessoal docente, do total dos docentes em 2014, 63 tinham
formação de 10ª+1, 29 sem formação psicopedagógica, 21 com formação 10ª+2,
5 com formação 7ª+3 e 3 com outro tipo de formação. Com vista a melhorar a
qualidade de ensino, no ano de 2015 o número de docentes sem formação
psicopedagógica reduziu para 22, enquanto os de formação 10ª+1 subiu para
71, 10ª+2 subiu para 31, 7ª+3 subiu para 6, porém, os com outro tipo de
formação permaneceu constante.
No que se refere ao subsistema de Alfabetização e Educação de Adultos (AEA),
o número de centros não variou de 12, para os anos de 2014 e 2015. Quanto
ao efectivo de alfabetizandos, de 2014 para 2015 o crescimento foi
insignificante, isto é, de 430 para 451, correspondente a uma percentagem de
4%. Nos dois anos, os alfabetizandos que mais aderiram são os do sexo
feminino, sendo 314 em 2014 e 352 em 2015.
Saúde
A rede sanitária da localidade é composta por um único Centro de Saúde para
toda comunidade, com serviços de Saúde Materno Infantil (SMI), Programa
Alargado de Vacinação (PAV), Tratamento Ante Retro Viral (TARV), farmácia,
consultório e maternidade com casa de mãe espera. O seu funcionamento é
assegurado por 5 funcionários, nomeadamente, Médico (clínico geral), Técnico
de Medicina Preventiva, Enfermeira de SMI, Farmacêutica e Agente de Serviço.
Para cobrir a população em termos de cuidados médicos, existe ao nível da
localidade 6 Agentes Polivalentes Elementares (APE) que constituem brigadas
móveis e que atende doenças gerais em povoados como Kaeredzi, Zamba,
32
Nhantuto e Nhagurungo. Actualmente estão em formação mais 2 agentes para
os povoados de Nhamuzambira e Magobide.
Trata-se de um Centro de Saúde que não possui meio circulante. Contudo, em
caso de necessidade, solicita-se a ambulância do Serviço Distrital de Saúde,
Mulher e Acção Social (SDSMAS). As doenças mais comuns são a malária,
doenças diarreicas, infecções respiratórias, HIV/SIDA, conjuntivite, parasitose
intestinal, tosse e pneumonia. Dentre estas, as principais patologias que
afectam a população são a malária, diarreias, HIV/SIDA e parasitose.
Patologias 2013 2014 2015
HIV/SIDA Testados 2002 2684 1534
Positivos 137 188 100
Em TARV - 146 224
Malária 0 - 4 3251 3855 3558
5 Anos + 2819 3272 3311
Total 6070 7127 6869
Parasitose 594 376 131
Tabela 5: Principais patologias da Localidade de Nhassacara nos anos de 2013, 2014 e 2015 (Fonte: SDSMAS de
Báruè, 2015)
O índice do HIV/SIDA permanece elevado uma vez tratar-se de uma localidade
atravessada pela estrada N7, onde se verifica um fluxo de camionistas.
Entretanto, é nas mulheres onde facilmente o vírus é identificado com base nos
testes pré-natais. Apesar da sensibilização contínua feita ao nível das
comunidades para adesão ao TARV, a mudança de residência por parte da
população tem sido apontado como o factor que mais contribui para o
abandono ao tratamento.
Tratando-se de uma localidade produtiva, não são frequentes os casos de
desnutrição, associado ao facto de decorrerem frequentemente, ao nível do
centro de saúde, palestras sobre educação nutricional. No entanto, sempre que
as autoridades sanitárias identificam casos crónicos de desnutrição, os
pacientes são submetidos a uma alimentação terapêutica. Todavia, verifica-se
uma tendência crescente de casos de mau crescimento. De referir que casos de
mortalidade infantil não são frequentes na localidade.
33
Casos de Desnutrição 2013 2014 2015
Controlo de crescimento Mau 14 16 25
% Mau 0,2 0,3 0,7
Baixo peso à nascença Nascimentos 626 578 268
Baixo peso 56 37 11
% 8,9 6,4 4,1 Tabela 6: Casos de desnutrição da Localidade de Nhassacara nos anos de 2013, 2014 e 2015 (Fonte: SDSMAS de
Báruè, 2015)
Importante notar que, apesar da ausência de dados concretos, sabe-se que
existem na localidade, o recurso a medicina tradicional, a qual a população
recorre quando afligidas por doenças. Acredita-se que a medicina tradicional
(Un´ganga) tem a capacidade de cura dos mais diferentes tipos de
enfermidades. Os médicos tradicionais geralmente são procurados quando se
suspeita que uma doença que tenha origens sobrenaturais, como é o caso da
feitiçaria ou da possessão de espíritos.
Infra-estruturas
Em termos de infra-estruturas de relevo, a localidade conta com a secretaria da
localidade, a casa do chefe da localidade, o centro de saúde, 2 casas da saúde,
residência do técnico da agricultura, casa de mãe espera, centro aberto que
acolhe crianças órfãs e vulneráveis, 86 salas de aulas das quais 27 melhoradas
e as restantes precárias.
O consumo de água é feito apenas na base de furos de água e poços
particulares. Ao nível da localidade existem 12 furos de água, todos
operacionais, abertos com fundos do Governo. Para a gestão dos furos de água
foram criados comités de gestão constituídos por 10 membros que fazem
colecta de contribuição da população para fazer face a pequenas avarias do
sistema. Para além dos furos e poços, a população socorre-se da água dos rios
e riachos que atravessam a localidade.
A rede eléctrica usada na localidade é nacional, porém de fraca qualidade e
usada por poucas famílias na sede da localidade.
Por tratar-se de uma localidade totalmente rural, não existe um sistema de
esgoto. O saneamento do meio é feito pelas famílias mediante a abertura de
cova para a deposição do lixo.
34
Transporte e comunicação
A Localidade de Nhassacara é atravessada pela EN7 que liga as Províncias de
Manica e Tete. Por esta estrada circulam diversos tipos de veiculos, desde os
mais pesados aos ligeiros e ciclistas, que permitem o deslocamento de pessoas
e bens para vários pontos do distrito, província e país. A ligação com a sede
distrital, Catandica, é feita pela mesma estrada que alcatroada apresenta-se
um estado excelente de transitabilidade.
A ligação entre povoados é feita mediante estradas de terra batida, muitas em
estado de degradação elevado (tanto no tempo seco como chuvoso). Esta
situação condiciona o escoamento de produtos agrícolas das zonas de maior
produção para os potenciais pontos de comercialização, nomeadamente, sede
da localidade, cruzamento de Macossa e Posto Administrativo de Nhampassa.
A ligação rodoviária entre povoados é limitada devido a intransitabilidade de
grande parte das vias de acesso. As ligações entre povoações são feitas
mediante camionetas alugadas para o transporte de produtos agrícolas.
Na sede da localidade é possível captar todas as redes de telefonia móvel,
nomeadamente Mcel, Vodacom e Movitel. Em termos de rádio, é possível captar
a Rádio Comunitária de Catandica e Antena Nacional. Porém, nos povoados de
Donga e Nharobato não existe cobertura de telefonia móvel. No que respeita ao
sinail de televisão, apenas capta-se sinal de televisão por via satélite (DStv,
Zap, GOTV, Startime).
35
Figura 14: Vista parcial da EN7 atravessando a
Localidade de Nhassacara (Foto de Conde Serafim
Saiconde)
Figura 15: Parte de tipo de veiculos que circulam ao
nível da Localidade de Nhassacara (Fotos de Conde
Saiconde)
36
Kumanga zvitsero ne matengu
37
A cestaria é entendida como um conjunto de objectos ou utensílios, obtido
através de objectos trançados. Ela compreende a técnica de fabricação de
cestos e designa a arte de trabalhar fibras. No sentido mais lato, entende-se
como um conjunto de objectos ou utensílios, obtidos através de fibras de
origem vegetal. A cestaria envolve também a fabricação de esteiras assim como
objectos de revestimento ou cobertura.
Neste sentido a cestaria compreende a técnica de fabricação de cestos ou
vasilhas de dois tipos fundamentais: o tipo entrelaçado, que engloba os géneros
cruzado, encanado, enrolado e torcido, conforme a maneira de dispor as fibras,
e o tipo espiral, com ou sem armação de sustentação. Qualquer um dos tipos
obedece mais propriamente às características da fibra a utilizar, do que a um
padrão cultural ou de área geográfica. As peças conforme o uso variam em
tamanho e forma assim como a técnica de manufactura e são geralmente peças
criadas segundo a sua funcionalidade.
No sentido global, existem poucas fontes que sem avançar o período concreto
falam sobre a origem da cestaria:
1. Origem Indígena, advoga que surgiu através da fabricação de cestos para
transportar objectos ou para armazenagem de alimentos, com a
comercialização, os indígenas passaram a fabricar muito mais
instrumentos.
2. Origem Nómada afirma que a cestaria teve origem na antiguidade nos
povos nómadas na procura de soluções de armazenamento e transporte
de alimentos.
3. Origem Persa relata a origem da cestaria com base em alguns escudos
feitos e utilizados no batalhão persa dos imortais4.
Na comunidade de Nhassacara, a cestaria é uma actividade executada desde os
tempos imemoriais pelos ancestrais do grupo, e tem vindo a sofrer algumas
mudanças, essencialmente no que diz respeito a pintura dos objectos para dar
mais estética, algo que em tempos não acontecia.
Outro aspecto tem a ver com o facto de que antigamente a peneira e esteira
produzidas eram objectos preparados e utilizados especificamente em
cerimónias de casamento, ritos fúnebres e outros locais de convivência social.
Actualmente a peneira e esteira, devido ao desenvolvimento sócio-económico e
a intensificação das trocas comerciais ao nível das comunidades, vem
4Wikipédia, a enciclopédia livre.
38
ganhando valor económico através da importância que se verifica devido a
exibição em exposições ao longo das vias públicas para venda com objectivo de
sustento familiar.
Ainda actualmente, nota-se ausência de consistência dos objectos da cestaria
porque as pessoas fazem com muita rapidez para o mais rápido ganhar algum
valor com a sua venda, aliado a falta de experiência de alguns artesão, acaba
ocasionando de alguma forma a fabricação de objectos sem a devida qualidade.
A confecção de objectos da cestariana comunidade de Nhassacara é uma tarefa
masculina e sua utilização, geralmente, feminina. Na sua generalidade, a
cestaria é realizada de forma individual por cada artesão e em casos
excepcionais acontece com a presença de aprendizes que procuram o artesão
para aprenderem o ofício. Importante referir que em determinados momentos
do processo de produção, as mulheres e os filhos auxiliam nas actividades
secundárias como carregamento do material, fornecimento do material no
processo de fabrico e em casos excepcionais em acabamentos de determinados
objectos.
A prática da cestaria constitui um legado cujas técnicas usadas são passadas
de geração em geração, geralmente de pai para filho, de tio para sobrinho bem
como de mestre para aprendiz, através da convivência e de práticas diárias
durante o fabrico de objectos.
Apesar de não existir um períodoespecífico para o fabrico de objectos da
cestaria, normalmente Abril a Setembro é o período que mais objectos se
produzem por causa da abundância da matéria-prima junto as margens dos
rios e, de Outubro a Maio tem sido o período considerado de crescimento do
caniço e apontado como difícil de encontrar, por isso durante este período a
pratica torna-se rara5. Note que o período de maior produção de esteiras
coincide com a época de menor actividade agrícola.
A cestaria para além de testemunhar a história de convivência do povo Tonga e
Barkeao longo da sua existência, os objectos resultantes desta prática podem
ser encontrados um pouco por todo o país tanto nas zonas rurais
comourbanas, fruto da intensificação das trocas comercias entre as
comunidades, visto que os objectos produzidos são muito importantes para o
uso quotidiano uma vez possuírem variadíssimas aplicações como utensílios de
5 Outro aspecto que tem influenciado tal caso é o facto das queimadas descontroladas que tem se verificado no inicio de cada época agrícola para limpeza dos campos, queimarem grandemente a matéria-prima usada na fabricação destes instrumentos o que depois requer tempo para regenerar e crescer.
39
armazenamento e carga que vão desde cestos, objectos de mobiliário e
decoração incluindo o fabrico de esteiras.
É também uma actividade indispensável na economia da vida rural e
doméstica. Além de valorizar a nossa cultura, a cestaria ainda gera renda e
emprego a artesãos e comerciantes e diz respeito ao conhecimento tecnológico
à adaptação ecológica. O conjunto de objectos incorporados à vivência de uma
determinada sociedade expressa concretamente significados e concepções
daquela sociedade, bem como a representa e a identifica.
Especificamente para a comunidade de Nhassacara, e do ponto de vista sócio –
cultural, os objectos da cestaria estâo sempre presentes em diversas ocasiões,
a título de exemplo, as esteiras são frequentemente usadas nas cerimónias
fúnebres, nos casamentos entre outros locais de convivência social destinados
para dormir, sentar, construir barbearias, vedar quintais e aviários, enquanto
os cestos e peneiras são usados parapeneirar farinha, transportar e guardar
diversos produtos, materiais e objectos.
Apesar de grande importância que a cestaria possui para comunidade de
Nhassacara, nota-se algumas ameaças à sua continuidade. A escassez e o
desaparecimento da matéria-prima para a fabricação de objectos da cestaria
devido ao seu corte e uso desenfreado, tem tornado o recurso escasso e
insustentável fazendo com que ultimamente os artesãos percorram longas
distâncias para colecta do mesmoo que desmotiva alguns artesãos e
impossibilita outros de continuarem com actividade.
Outro factor que ameaça a continuidade da prática é o facto de actualmente
notar-se uma tendência cada vez mais reduzida na transmissão dos
conhecimentos relativos aos valores socioculturais inerentes a esta actividade o
que poderá num futuro breve, aliado ao desaparecimento da matéria-prima,
comprometer a continuidade destamanifestação. Os mais novos pouco ou nada
se interessam pela aprendizagem deste ofício uma vez optaremna prática de
outras actividades ou outros fazeres em detrimento deste. A exemplo disto é o
facto de muitos aprendizes acabarem por desistir ou abandonar o aprendizado
muito antes de terminar a produção de um único objecto, segundo
testemunharam os nossos entrevistados.
O processo da cestaria
Para chegar-se a confecção de um objecto ou utensílio da cestaria, com
particular destaque para peneiras, cestos e esteiras da qual nos dispomos aqui
em abordar mais adiante, há um caminho preparatório. As etapas necessárias
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são: extracção da matéria-prima, preparação da matéria-prima e finalmente a
fabricação do objecto, podendo ser de modelos diferentes e ter forma, tamanho
e funções que variam.
Cesto (Thengu)
Fase da preparação
A actividade inicia com a extracção do bambu6 (masengere) junto as margens
dos rios Phandira e Kanyungwe, de seguida cada um dos bambusé dividido ao
meio longitudinalmente e por sua vez cada um dos pedaços é dividido da
mesma forma fazendo 4 tiras, duas interiores e duas exteriores. Esta divisão
acontece nas margens do rio como forma de facilitar o carregamento para a
residência do artesão, sendo que, alguns artesãos preferem fazer o mesmo
trabalho nas suas residências.
Transportado a casa, as tiras interiores7, anteriormente cortadas, são divididas
transversalmente com uma catana ou machado (bemba ou mbadzo), em
pedaços de um metro, podendo uma tira sair até quatro pedaços, dependendo
do tamanho do bambu. Ao passo que as tiras exteriores8 são divididos
sagitalmente em pequenos pedaços.
Subsequentemente, os mesmos são submetidos a um processo de secagem
durante um ou dois dias de maneiras a tirar um pouco de humidade, findo os
quais, com ajuda de uma faca (mpeni) um a um os pedaços vão sendo
raspados, alisados, dando a sua forma e seu devido acabamento, num processo
designado por kupola. Note que não existe uma fórmula ou regra específica e
exacta a qual deve-se seguir para a confecção dos cestos, casos há de artesãos
que submetem as ripas ao processo de secagem antes do corte e
somenteraspam e alisam depois de mergulhado em água no dia anterior ao
fabrico do objecto.
6 Material que acredita-se ser utilizado desde tempos primitivos, originalmente oriundo de varas moles e flexíveis que em algum momento passou a designar qualquer matéria-prima de origem vegetal com tais características e que, trançado, possui diversos usos, principalmente na manufactura de cestos e peneiras. Sua composição parece delicada, mas é robusta, tornando-se numa opção de matéria-prima barata e de fácil obtenção. 7As tiras feitas da parte interiordo bambu são usadas para fazer a base e suster a borda redonda do cesto por onde depois são entrelaçados as tiras exteriores. 8As tiras feitas da parte exterior do bambu são usadas para entrecruzar tanto a base assim como aborda redonda do cesto visto que estas permitem ser manipulada com bastante facilidade sem que se quebrem.
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Enquanto o artesão vai trabalhando o bambu, ele mergulha na água uma
corda (nzoi) extraída ao mato em uma árvore denominada mfuti onde depois é
desfiada e trançada.
Fabrico
Antes de se começar a fabricar o cesto todo este material é submetido a um
mergulho em água durante um dia para torna-lo maleável de modo a facilitar o
seu manuseamento e evitar que haja perdas significativas ao longo do processo
de fabrico.
Reunida a matéria-prima, oito tiras interiores do bambu são arrumadas de
forma perpendicular cruzadas duas à duas, no chão ou numa esteira, todas
unidas em um único centro ou ponto de encontro e distribuídas
equitativamente ao longo do raio. Depois a estrutura é fixada por uma corda.
Novamente outra corda é usada para fixar uma estrutura idêntica que se
sobrepõe a primeira, desta vez, formada por quatro tiras.
De seguida, as tiras exteriores do bambu, finas, são entrecruzadas de forma
circular sobre a estrutura feita, em várias linhas concêntricas, até formar a
base tendo em conta o tamanho do cesto pretendido pelo artesão.
Caso o artesão note que na base do cesto ainda exista espaços enormes vazios,
ele pode preencher novamente na parte exterior da base com um número
variado de tiras interiores do bambú de acordo com os espaços abertos, com
tiras de 50 centímetros caso as primeiras tenham 1 metro de comprimento ou
de outra medida, desde que, após fixar-se com uma corda, tenha o mesmo
tamanho das restantes.
Ainda com ajuda de uma corda o artesão amara as pontas das tiras interiores
que sustentam a borda do cesto e depois de dar a forma curva e vertical, vai
entrecruzando (kupakasa) sobre as tiras exteriores colocando-as de forma
concêntrica horizontalmente até ao topo, formando um objecto com uma base
estreita e circular com uma borda redonda e mais aberta a medida que vai se
chagando a boca do cesto.
Terminado este processo, o artesão vira o cesto com a parte da boca sobre o
solo deixando a base por cima e com os pés pressiona-a de maneiras a criar
uma cavidade que permita a seu carregamento na cabeça a quando da sua
utilização.
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O acabamento final é feito depois da parte superior do cesto estar nivelado
mediante dois círculos feitos de bambu que são colocados sobre a estrutura
anteriormente feita, sendo um círculo por fora e outro por dentro. Depois, com
ajuda de um arame afiado (fondo) vai-se cozendo a boca do cesto com uma
corda9 (ntsissi) envolvendo os dois círculos e a estrutura já feita que fica entre
os mesmos.
O tamanho do cesto depende do tamanho do bambu usado, isto é, quanto
maior for o cesto, maior terá que ser o tamanho das tiras interiores cortadas.
Contudo, dois dias é o tempo médio para a confecção de um cesto de tamanho
médio.
Figura 16: Artesão no acto de fabrico de cestos (Foto deLeandro Fernando)
Peneira (Chisero)
Fase da preparação
O primeiro passo consiste em extrair o bambu (masengere) junto as margens
do rio, no caso concreto Kamwanza, onde com uma catana (bemba) o artesão
corta um a um até obter a quantidade por ele pretendida que vai de acordo
com o tamanho e a quantidade das peneiras a qual pretende fabricar. A
9Antes de ser usada é mergulhada na água em uma panela e põe-se a ferver durante aproximadamente 5 minutos, depois de pronto e arrefecido ela é desfiada e retira-se as partes da qual não interessa, focando a camada interior e mais resistente.
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qualidade10 do bambú é avaliada com base na leveza do mesmo, o que significa
que quanto mais leve e maleável for, de melhor qualidade se trata.
Extraído, o bambu é transportado para casa onde o artesão corta o bambu
longitudinalmente ao meio e depois as duas partes são medidas e divididas
transversalmente em pedaços de um metro11. Por sua vez, os pedaços são
divididos longitudinalmente cada um em três partes. Por fim, cada uma destas
partes é dividida sagitalmente até formar oito tiras. A quantidade das tiras
depende do diâmetro do bambu e da maneira como o artesão pretende
trabalhar a peneira, podendo ficarem mais grossas ou mais finas, para depois
submeter a um processo de raspagem e alisamento.
Para caso de objectos pintados o artesão extrai cascas da uma planta de nome
mutamba cuja seiva possui propriedades colagenas, que depois de batida e
esmagada é misturada a água onde acrescenta-se o barro de cor preto. Os
feixes depois de trabalhados são mergulhados durante um período de três dias,
depois passados em água de modo a retirar o excesso de terra onde passam a
ostentar a cor roxa escura. As decorações podem ser geométricas ou com
desenhos que lembram flores ou mesmo motivos abstractos, tudo de modo a
chamar atenção e destacar a beleza do objecto.
Note que no fabrico de peneiras, geralmente o bambu é trabalhado ainda
fresco. Porém, caso por motivos diversos o bambu seque ligeiramente, o mesmo
é colocado em água durante um dia para permitir o seu manuseamento.
Enquanto, os feixes após prontos devem ser tecidas até dois dias, caso assim
não aconteça, no dia do fabrico são colocadas em água durante um período de
aproximadamente uma hora.
Fabrico
O processo de fabricação decorre, geralmente, numa esteira, sendo que o
primeiro passo consiste em fazer o rectângulo ou quadrado designado por
“mukokoto, thete ou chipembe”que sustenta a peneira por onde são colocados os
produtos, que consiste em rasgar um bambu12 seco ao meio e colocar por
dentro as terminais dos feixes já preparadas em ordem, de forma paralela uma
10 Outro aspecto que atesta a qualidade é através da verificação do interior do bambu, isto é, caso exista um furo longitudinal no interior do bambu, de menor qualidade se trata. 11 São esses pedaços que ditam qual é o tamanho da peneira que o artesão irá fabricar. No caso concreto trata-se de uma peneira de tamanho médio, as comummente usadas pala comunidade onde foi desenvolvido o inventário. 12 Em alguns casos, o artesãos utiliza cordas para evitar que os feixes se movam.
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seguida da outra, de maneiras a mantê-las presas e facilitar o manuseamento.
A quantidade dos feixes depende do tamanho das mesmas e do tamanho da
peneira que o artesão pretende fabricar.
A seguir, começa-se a tecer os feixes entrecruzando-as com as outras de forma
perpendicular numa combinação 3-3-3, 2-2-213 até formar o rectângulo ou
quadrado com linhas de descontinuidades num processo designado de “pakasa
ou kuvika” como é demonstrado na figura abaixo.
Figura 17: Artesão demostrando o processo de fabrico de peneira (Foto deMariano Bento Candieiro)
Depois deste processo rasga-se novamente de forma longitudinal um bambu ao
meio de até dois metros e um dos pedaços é dividido em duas partes para fazer
o círculo (kowa) a qual sustentará o rectângulo ou quadrado feito
anteriormente. São feito dois círculos relativamente maiores e mais fortes que
os feixes tecidos, um de diâmetro maior feito a partir do pedaço interior ao
corte e o outro de diâmetro e espessura menor feito a partir do pedaço exterior
ao corte que depois são raspados e devidamente cortados nas laterais. Caso
estes estiverem bastante secos, são mergulhados em água durante alguns
minutos ou hora de modo que se tornem maleáveis e flexíveis.
13 Combinação padrão dos grafismos que representam três por cima, três por baixo e dois por cima dois por baixo. Geralmente quanto maior for o feixe menor tem sido o número das combinações e vice-versa, sendo que a combinação 3-3-3 tem sido a mais usada.
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Subsequentemente, ajustam-se as medidas entre o círculo de diâmetro maior e
a base rectangular ou quadrangular e com uma agulha feita na base de arame
(kadheyo) faz-se furos ao meio do bambu numa média de cinco seguidos,
separados a uma distância de 5 cm ou um palmo de mão até completar a volta
toda.
Leva-se a base rectangular ou quadrangular e coloca-se sobre o círculo maior
fazendo uma ligeira concavidade, posteriormente cortam-se as sobras das
extremidades de forma circular na metade da espessura do círculo e coloca-se
o círculo de diâmetro menor sobre a base rectangular ou quadrangular
deixando-a no meio entre os dois círculos.
Com uma corda14 e com ajuda de uma agulha de peneira (ntsulo) previamente
preparadas começa-se a costurar (kusona) a partir do ponto onde o bambu se
cruza e forma o círculo completo, envolvendo a corda sobre a metadeinferior da
espesura do círculo externo de diâmetro maior, a base quadrangular ou
rectangular e o círculo interno de diâmetro menor e espesura da metade do
círculo externo. Este processo de costurar a peneira geralmente acontece da
seguinte maneira: quando se começa a costurar em um determinado lugar, a
seguinte costura obrigatoriamente o artesão deve fazer do lado oposto a
anterior e assim sucessivamente de maneiras a permitir que ela tenha um
melhor acabamento.
As peneiras produzidaspara além do uso doméstico, são vendidas no mercado
local e regional com preços que variam de 80 a 100 meticais, podendo por
média, o artesão obter um rendimento de 2.000 meticais mensal resultante da
actividade.
As técnicas empregues na produção de cestos e peneiras podem ainda ser
usadas na confecção de utensílios domésticos tais como enfeites, arranjos,
mobiliário de decoração, acessórios de moda, adorno pessoal e objectos para a
agricultura, comércio e criação de animais.
Curioso é o facto de a Matemática estar reflectida nas formas geométricas
presentes na tradição Barke na confecção de objectos como cestos e peneiras
mesmo que os seus fabricantes não tenha noção disto.
Esteira (Mpassa)
Antes porém, importa clarificar que existem dois tipos de esteiras (mpassa)
designadamente esteira feita de mitete e esteira feita de nzire as quais iremos
14 Ver nota de rodapé 9 sobre a forma de preparo da corda.
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debruçar a seguir. A sua diferença reside no tipo de material utilizado, as
técnicas empregues e a forma de fabricação.
Esteira feita de mitete
O artesão se dirige nas primeiras horas da manhã para junto das margens do
rio, a fim de extraircaniço (mitete) segundo a quantidade por ele desejada ou
necessária. Os caniços usados apresentam tamanho e diâmetro diferentes, isto
é, quanto maior for o diâmetro do caniço melhor tem sido a sua qualidade e
menor tem sido a quantidade extraída.Chegado ao local da extracção e
identificado o caniço, com recurso a uma catana (bemba) corta-se por baixo e
por cima (na estremidade) e retira-se as cascas.
De seguida o caniço é transportado ainda fresco para a casa onde é dividido
longitudinalmente15 com uma faca (mpeni) pelo meio ou em várias partes
iguais, dependendo do seu diâmetro16 e colocado ao sol a secar durante 4 a 5
dias em medis, de acordo com a intensidade do sol. De referir que alguns
artesãos preferem secar o caniço por inteiro, simplesmente fazendo pequenos
cortes numa das extremidades.
Alguns artesãos após o corte do caniço e acumular a quantidade necessária
deixam o caniço na mata ao sol para poder secar e só depois de seco é que
transportam para casa. Geralmente isto acontece quando se trata de grandes
quantidades extraídas o que torna difícil o seu carregamento visto que, depois
de seco os mesmos tornam-se mais leve.
Após a secura do caniço, na tarde que antecede o fabricoda esteira, o artesão
retira a quantidade necessária para a fabricação de uma esteira e formando um
molho amarado por uma corda, volta a mergulhar o caniço na água
(comummente no rio) durante toda a noite enquanto prepara uma corda
(nkambala, nkossi ou chingu) feita a partir de fibras retiradas das cascas de
uma árvore denominada mfuti que será usado na produção da esteira. Este
processo de mergulhar o caniço na água serve para torna-lo maleável e facilitar
a sua perfuração ao longo da actividade e evitar perdas e danificação do
mesmo.
15 Este processo facilita segundo os entrevistados a secagem do caniço por um lado e por outro permite que o mesmo adquira logo o formato apropriado para o início do processo de fabrico. 16 Os caniços são divididos de forma par de 4, 6 até 8 pedaços o que no dizer dos nossos entrevistados tem a ver com o facto de procurar fazer com que as partes divididas sejam sempre do mesmo tamanho bem como para facilitar trabalhar o próprio caniço.
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Fabrico
No dia seguinte retira-se o caniço da água e organiza-se de forma alternada
sobre uma esteira para evitar que se suje, na quantidade suficiente para fazer
uma esteira. De seguida leva-se uma agulha de esteira (ntsingano wa mpassa,
chisongolera ou mayo) coloca-se a corda anteriormente preparada, começa-se a
tecer furando os caniços ao meio, um por um, passando a corda principal
sobre os mesmos e esticando a corda na medida que se vai tendo uma
quantidade furada de canoço sobre a linha, por formas a que os caniços fiquem
devidamente arrumados.
Depois leva-se uma faca e cortam-se os caniços nas extremidades17de modo
que tenham a mesma medida e prega-se sobre o solo dois paus ou dois ferros,
um de cada lado, por onde a corda primária ou principaldepois de esticada é
amarada e os caniços são devidamente organizados.
As cordas secundárias que procedem a corda primária são colocadas a uma
distância de variáveis um palmo da mão de forma alternada, isto é, uma do
lado direito e outra do lado esquerdo da corda primária e vice-versa até colocar
as linhas necessárias para o acabamento da esteira, com apoio das mãos e das
pernas.
O acabamento final faz-se abainhando (kuludzira) e amarando de forma segura,
com uma corda, dois a dois caniços nas extremidades laterais para evitar que a
esteira se desfaça e tenha boa estética.
Uma esteira média leva normalmente 20 caniços e são atravessados por 8 a 12
linhas, dependendo do tamanho dos caniços, o que significa que, quanto maior
for o comprimento dos caniços maior será a esteira e o número de linhas. A
produção de uma esteira média leve geralmente 6 horas, podendo o artesão
fazer até duas esteiras por dia.
17 Nem sempre os artesãos procedem deste jeito, alguns preferem fazer o corte depois da colocação de todas as linhas, outros ainda depois do acabamento final.
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Figura 18: Artesão no acto de fabrico de esteira feita com base no caniço denominado “mitete” (Foto de Epifânio
Caluane Benesse)
Esteira feita de nzire
A forma de extracção da matéria-prima nzire, não difere da anterior mitete as
diferenças está na preparação da matéria-prima e no modo de fabrico. O nzire,
matéria-prima utilizado para a fabricação da esteira não é dividido
longitudinalmente como acontece nas esteiras fabricadas de mitete, ele é usado
por inteiro e o mesmo não se deixa secar18 totalmente.
Fabrico
Antes do inicio de fabrico da esteira, o artesão coloca duas estacas de forma
vertical de até aproximadamente 2,5 metros de altura, separados e
atravessados por outra estaca acima colocada na posição horizontal a uma
distância de 1,5 metros entre elas, conforme ilustra a figura 1219. De seguida o
18 Caso por algum motivo alheio a vontade do artesão o caniço seque mais do o necessitado, nas horas que antecedem o fabrico da esteira, os caniços são molhados deitando-se pingos de água sobre os mesmos ou cobrindo-os com um saco molhado de maneiras a adquirir e manter a humidade. Em alguns casos para evitar que tal aconteça o artesão cobre os caniços com capim de modo a evitar que estes apanhem raios solares e mantenha a humidade. 19Após a sua montagem, a estrutura de estacas permanece no mesmo local e o artesão vai usando a medida em que vai fabricandoas suas esteiras.
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artesão faz pequenos cortes20, no formato da letra V, na estaca superior
horizontal, a distâncias variáveis de cerca de um palmo da mão com uma
catana. Estes cortes podem ser feitos antes ou depois de sua colocação sobre
as estacas veriticais.
Depois o artesão coloca as cordas que irá usar no fabrico das esteiras sobre os
cortes dando volta a estaca e nas duas pontas da corda, amarra uma pedra.
Posteriormente são colocados os caniços, geralmente dois de cada vez, para
tornar a esteira mais forte e resistente. A medida que os caniços são colocados,
as cordas e as pedras são atravessadas sobre os caniços, isto é, uma pedra vai
para o lado contrário a outra faz e assim sucessivamente. Este exercício
acontece com todas outras cordas até que a esteira atinja o tamanho
pretendido.
Note que no caso específico da esteira feita de nzire, não existe qualquer regra
específica na colocação das cordas, qualquer uma pode iniciar, podendo
começar de uma ponta para outra, do meio para a esquerda, do meio para a
direita, em fim, da forma em que o artesão julgue melhor desde que, em cada
caniço colocadoomovimento das pedras seja repetido por todas as cordas.
Figura 19: Esteira no acto de fabricação, com base no caniço denominado “nzire” (Foto de Edimar Fernando Reane)
20 Geralmente para este tipo de esteira nem todos os cortes feitos são utilizados pelos os artesãos, uma vez que este tipo de caniço não cresce de forma muito comprida o que por vezes faz com que ao longo da fabricação da esteira o artesão não use ou coloque cordas em alguns cortes feito, optando por aqueles que julgar necessários para determinada esteira. Importa ainda realçar que o tamanho dos caniços e o número de cortes a usar é que determinara o número de linhas que a esteira terá.
50
De acordo com as nossas fontes, na Localidade de Nhassacara a esteira feita de
mitete tem sido amplamente fabricada e procurada pelos utentes por causa do
tamanho da matéria-prima usada que é maior o que acaba condicionando o
tamanho da esteira em relação ao material usado na fabricação de esteiras de
nzire, quefaz com que as esteiras também sejam de tamanho relativamente
menor.
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Kuumba
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Kuumba, nome local que significa Olaria, é a arte que consiste na elaboração
ou produção de peças utilizando o barro ou argila como matéria-prima.
O fabrico de utensílios feito de barro é uma prática cultural comum nas
comunidades tradicionais desde tempos idos. A manufactura de objectos de
barro e o surgimento de oficinas de oleiro ocorreu no período Neolítico, quando
os povos ou sociedades iniciaram a produção de instrumentos mais
sofisticados para sanar o problema do armazenamento ou do preparo dos
produtos oriundos da produção agro pastoril, principal característica da
revolução neolítica21.
Ki-Zerbo corrobora da ideia que a olaria tenha surgido no período Neolítico,
acrescentando que “a sua invenção parece inspira-se estreitamente nos
recipientes de folhas ou de fibras que são os cestos, pois a forma e a decoração
exterior destes transparecem com frequência na manufactura das vasilhas”.
(1999:65)
Entre os Bantu o trabalho com o barro é uma actividade que já se manifestava
desde o século XIX. É comum verificar o uso da argila no fabrico de potes pelas
mulheres da descendência Bantu, que eram mantidas dentro das cabanas.
Tindall (1968:73) avança que “… panelas epratosdevários tamanhos
diferentesforam fabricados para cozinhare armazenar alimentospara além de
servir no fabrico de bebidas e notransporte de águae cada um desses potestinha
a sua funçãoespecial eseu próprio nome.”
Argumenta ainda que frequentemente os potes eram decorados com vários e
diferentes desenhos que variavam de tribo para tribo. Linhas deincisãoe
padrões deviga eramfeitos geralmenteem volta dopescoço comum espinhoou
galho afiado.
Porém, notamos que Serra (2000), fala da olaria como sendo uma das
actividades económicas bastante desenvolvida a quando da expansão Bantu
pela região actual de Moçambique entre os séculos I e IV.
Contudo, em paralelo com o pensamento de Tindall, esta o facto de que no seio
dos barkes a olaria ter o fim de produção da panela (chikalango), as quais
divide-se em phitso (panela de barro de tamanho maior usada para o fabrico de
bebida tradicional); nkali (panela de barro de tamanho apropriado para o
transporte e conservação de água para uso caseiro); chiombwee kahombwe
(panelas de tamanho relativamente menores usadas para preparar refeições de
21Wikipédia, a enciclopédia livre.
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acordo com o tamanho do agregado familiar). De referir que para além dos
utensílios já mencionados produz-se também tampas (mbale), cântaros (tsuko)
e balde (nkate).
Figura 20: Potes de barro resultantes da olaria (Foto de Edimar Fernando Reane)
Entre osbarkes, a olaria para além de permitir obter utensílios necessários a
cozinha de uso diário, acredita-se que determinados alimentos como o quiabo e
outros são mais saborosos quando confeccionado em panelas de barro. Por
outro lado, admite-se que a água conservada em cântaros de barro fica mais
fresca para o consumo do que as conservadas em outros recipientes modernos.
Nestas comunidades, a olaria é uma prática meramente feminina e aponta-se a
sua origem na região de Macossa desde tempos imemoriais. Contudo ela tem
vindo a sofrer algumas alterações na maneira de fazer os objectos tal é o caso
de que, antigamente na produção de panelas havia uma tendência comum de
produzir objectos contendo na parte superior um “pescoço” antes da boca,
actualmente devido a diversidade e criatividade de expressão e o
desenvolvimento da actividade, as oleiras produzem também objectos com a
parte superior mais aberta, sem o “pescoço”, isto é, somente com o corpo e a
boca do objecto.
Outro aspecto esta relacionada com o facto de que antigamente as oleiras
fabricavam objectos com bastante decorações no seu acabamento exterior e
que actualmente fazem com poucas ou nenhuma decoração.
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Alguns rituais praticados antigamente no processo de produção dos objectos
como o muko22 não se verificam mais actualmente.
Por fim, anteriormente depois da cozedura de um cântaro com dimensões
maiores, geralmente os que são utilizados no transporte e conservação de água,
buscava-se folhas frescas de uma árvore nativa designada por mutoto, pilava-se
e esfregava-se em torno da parte exterior do objecto e de seguida colocava-se
no fogo e quando o objecto estivesse quente retirava-se. Isto servia para evitar
que o cântaro pudesse deixar escapar água durante da sua utilização.
Geralmente a olaria efectua-se em período seco (marimo) porque no tempo
chuvoso, os objectos facilmente se danificam devido a chuva aliado ao facto de
tratar-se de uma actividade secundária em relação à produção agrícola.
Esta actividade é realizada em oficinas caseiras, primitivas e rudimentares,
durante o dia e interrompendo-se ao cair da noite. Caso se trate de uma
objecto maior, parado o processo de fabricação durante o dia, retoma-se a
actividade no dia seguinte até que o mesmo esteja pronto.
Apesar da grande importância, a pratica corre o risco de desaparecer visto que
os mais novos não se identificam com a actividade, o que faz com que a mesma
seja realizada maioritariamente por pessoas da terceira idade (mais velhas) e
muitas vezes devido aos problemas de visão associado a disponibilidade da
matéria-prima, a olaria deixou de ser actividade amplamente praticada.
Por outro lado, devidoao surgimento das indústrias modernas de fabrico de
utensílios domésticos mais fortes e duráveis como panelas, baldes, bacias e
pratos feitos de metal ou plástico, contribui para o abandono da prática.
O trabalho com o barro ao nível da Localidade de Nhassacara compreende as
seguintes etapas, a saber: colecta de barro, preparação, moldagem, secagem e
queima.
Colecta de Barro
O processo de fabricação do utensílio inicia com a deslocação ao mato a
procura de colectar a matéria-prima, geralmente em terrenos argilosos. Em
22 Ritual que consistia, essencialmente, em consumir a primeira refeição(papa de farinha de milho) feita na panela, o que segundo os praticantes, servia de agradecimento aos espíritos pelo feito de terem tido mínimas perdas ao longo do fabrico do utensílio.
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Nhassacara, o barro ou argila de boa qualidade é extraída num Barreiro23 junto
às margens do rio,no caso concreto do rio Kanyungwe ou numa termiteira24.
Ocorre-nos referir que a qualidade da argila é atestada com base em
propriedades como a viscosidade, plasticidade, impermeabilidade, resistência e
endurecimento após a secagem e cozedura.
Identificado e chegado ao local batem-se palmas e pede-se aos espíritos da
zona para poder extrair o barro, este ritual é feito para que, segundo os locais,
nada de mal aconteça à pessoa aquando do processo da extracção, ritual este
nem sempre verificado, podendo variar de praticante para praticante. Algumas
oleiras quando chegam ao local da extracção simplesmente se limitam a extrair
o barro. O barro é extraído geralmente com ajuda de uma enxada (phadza) e
após a extracção transportado para a casa num balde ou bacia maior e até em
sacos.
Preparação do barro
Chegado em casa, arranja-se um local seguro, geralmente dentro de casa onde
o barro é guardado no mesmo recipiente a qual foi trazido do local da
extracção. Posteriormente humidecido com água, seja no mesmo dia ou
quando a oleira achar conveniente e pronta para exercer o oficio. O local da
mistura do barro e água acontece geralmente, num molde em formato de um
prato ou peneira fabricado na base de tronco de árvore ou de barro (phande)
numa quantidade estimada segundo o tamanho do objecto que se pretende
fabricar, conforme ilustra a figura a baixo.
Figura 21: Barro misturado com água em um molde côncavo (Foto de Conde Serafim Saiconde)
23
Local de extracção da argila, geralmente de cor cinzenta, a mais comum entre as oleiras contactadas. 24
Local onde cresce o muchém e geralmente apresentam argila de tons avermelhados.
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Depois da mistura, o barro fica guardado em um local onde não permite a
entrada de raios solares, normalmente dentro de casa. O objecto só é fabricado
no dia seguinte e, durante este período o barro é coberto por um plástico ou
capim de modo a evitar a sua mistura com outros dejectos e permitir conservar
a sua humidade. O fabrico do objecto acorre no dia seguinte porque a massa
do barro fica mais homogénea, leve, macia e propensa para o seu
manuseamento.
Moldagem do objecto
Passados vinte e quatro horas após a preparação do barro, o processo de
fabrico dos objectos começa com o amaciamento do barro para que as
diferentes partículas e a humidade se distribuam de forma homogénea e evitar
a formação de bolhas de ar. O passo seguinte consiste na moldagem manual do
objecto desejado ou programado recorrendo a diversas ferramentas como o
caroço de milho queimado (tsongondo). O tempo de fabrico depende muito do
tamanho do objecto, mais, geralmente, a primeira fase de fabrico leva em
média um dia. O uso de caroço de milho queimado ajuda a dar consistência e
alisamento ao objecto.
Em alguns casos no fabrico de panelas, o formato é obtido na base de um
molde cilíndrico (djinga) com uma abertura longitudinal ao meio de um lado ao
outro. Este molde é feito com base em tronco de madeira de uma árvore nativa
localmente designada por pukandweonde na parte exterior do molde coloca-se
o barro para fazer primeiramente o tronco da panela (a parte mais larga da
panela), e depois de dar forma o corpo da panela, com ajuda do caroço
(kwengo) de fruta de uma árvore designado ntcheutira-se o molde, colocando o
objecto em fabrico sobre um phande e começa-se a trabalhar a parte superior
da panela (parte do pescoço e da boca). Um cuidado especialé tomadoao
moldaropescoço e ao alisar a superfície ligando-a ao tronco até dar o formato
desejado.
Depois deixa-se o objecto num local fresco, geralmente dentro de casa durante
uma média de dois dias para reduzir a humidade e facilitar o seu
manuseamento em fases subsequentes sem que o objecto se deforme. Note que
até este período a parte inferior do objecto permanece aberta. Passados dois
dias tira-se o objecto para fora e com uma colher (chikwengo), uma carapaça de
caracol (nkhazi), uma casca de abóbora (tsukusa), um trapo de pano (chinguwo)
e com uma pedra lisa (kulungu) trabalha-se a parte inferior do objecto que
57
permanecia aberta, mergulhando constantemente na água os diferentes
materiais e alisando-se a parte interior e exterior do objecto retirando o excesso
de barro. O uso da água durante esta etapa do processo permite que a argila
mantenha a sua plasticidade e não surjam rachas.
Terminado este processo, algumas oleiras fazem decorações/tatuagens
(nhambo) na parte exterior do objecto, geralmente riscos com diversas formas e
tipos para dar mais beleza ao objecto. Geralmente as decorações são feitas no
pescoço dos objectos com ajuda de um galho afiado ou espinha (pfena) do
porco de mato.
Figura 22: Panela de barro sendo moldada (Foto de
Edimar Fernando Reane)
Figura 23: Oleira moldando uma panela de barro
(Foto de Edimar Fernando Reane)
Secagem do objecto
Uma vez moldado, o objecto é submetido a um processo de secura, colocando-o
em um local seguro e sem penetração de raios solares, comummente dentro de
casa de modo a permitir que o mesmo seque natural e lentamente, o que de
acordo com o conhecimento local, torna o objecto mais resistente e evita o
aparecimento de rachas ou mesmo destruição pela intensidade do sol.
O tempo de espera entre a secagem do objecto e a cozedura vária consoante a
temperatura e os objectivos da oleira, uma vez que algumas alegam levar muito
tempo porque preferem queimar vários objectos de uma só vez. A secagem do
objecto leva em média dois dias e a maior dureza e tendência de mudança de
cor do objecto é que denuncia que o mesmo está pronto para a cozedura, isto é,
quando o barro está fresco permanece leve e com a cor originária a quando da
58
sua extracção e a medida que vai secando tende a tornar-se mais duro e a
clarear.
Queima do objecto
Após o processo de secagem, a oleira retorna ao mato em busca de capim e de
cascas de troncos de árvores locais com destaque paramfuti oumugowe, nfuta,
mwimbe, nkunku e muthokwiro que servem para queimar os objectos e finalizar
o processo de fabrico. A queima serve para dar a devida consistência e
resistência, na medida que o objecto perde a sua humidade. Neste processo o
capim seco e as cascas das árvores são colocadas em torno do objecto,
envolvendo-o por todos os lados como que se de um forno se tratasse.
Geralmente a cozedura dos objectos acontece dentro do quintal em uma cova
rasa, local específico denominado djotcho, durante aproximadamente um dia
onde depois de arrefecido é retirado e colocado dentro de casa para a sua
utilização no dia seguinte, passando o objecto a apresentar uma cor com tons
mais avermelhados.
O objecto é testado num processo designado kuzimula, que significa “inaugurar
ou inauguração”, este processo realiza-se quando se trata de panelas para
confeccionar os alimentos e consiste em colocar no fogo a panela fabricada e
fazer uma papa densa de farinha que deve ser deixada a ferver durante algum
tempo. Depois retira-se a panela do lume, deita-se a papa e lava-se a panela,
podendo ser utilizada para cozer qualquer outro alimento. A confecção dapapa
em primeira instância, antes de usar a panela fabricada, esta associado ao
facto dos locais, acreditarem que o acto confere mais consistência à panela, na
medida em que a papa tapa possíveis poros que parecem invisíveis, caso
existam, de modo a que a panela não deixe escapar água a quando da sua
utilização.
Em caso de cântaros e demais utensílios assim que passa pelo processo de
cozedura e estiver pronto, o objecto depois de lavado e limpo pode ser utilizado
para o devido efeito.
Existe um tabú local, segundo o qual, durante o período de fabricação do
objecto desde o dia que antecede a colecta de barro até o dia do término, a
mulher não pode manter relações sexuais com um homem, sob o risco do
utensílio se danificar antes ou depois do seu acabamento.
59
Kutsema
60
A carpintaria ouKutsema na língua local, é uma actividade executada para
produzir os mais variados objectos na base de madeira, desde móveis,
ferramentas, artigos para construção civil, construção naval, entre outros. O
trabalho em uma carpintaria envolve frequentemente a utilização de esforço
físico e trabalhos ao ar livre.
Na carpintaria o profissional desta área deve ter noções de geometria e um
vasto conhecimento de como lidar com madeira no seu estado natural. A
especialidade abrange o feitio de escadas, assoalho, forros, portas, móveis,
entre outros25.
A comunidade de Nhassacara valoriza bastante a prática, por se tratar de uma
actividade que produz objectos que são usados no seu dia-a-dia para os mais
variados fins. Atualmente, com o desenvolvimento económico cada vez mais
acentuado e consequente construção de casas melhoradas, as pessoas
valorizem mais a prática na perspectiva de trazer até si, maior conforto e bem-
estar possível.
A carpintaria é executada desde os tempos imemoriais do grupo, notando-se
algumas transformações do ofício, dos quais tem a ver com o facto de que no
passado não se usava verniz, algo que acontece actualmente para dar maior
estética e brilho ao objecto.
Outro aspecto é que actualmente constroe-se objectos mais elaborados que vão
de acordo com o interesse e a capacidade dos usuários por isso fabricam-se
novos e modernos tipos de objectos, o que implica a utilização de novas
técnicas e novos instrumentos de fabrico que diariamente tem aparecido no
mercado. A exemplo disto, antigamente para furar madeira o carpinteiro usava
o pfondo, um ferro aquecido para fazer o furo onde era introduzido o rebite,
contrariamente as brocas usadas actualmente. O mesmo acontecia para colar a
madeira onde usava-se uma seiva denominada chamwa de uma planta nativa
contrariamente as colas de madeira modernas usadas actualmente.
Nota-se ainda uma modificação na durabilidade dos objectos e a qualidade da
madeira usada actualmente, isto é, antigamente os objectos eram mais
resistentes o que já não acontece ultimamente devido a qualidade da madeira
utilizada (eucalipto, pinho) associado a falta de experiência de alguns
carpinteiros que praticam o ofício, simplesmente para poder ganhar dinheiro,
criando objecto sem a devida qualidade.
25Wikipédia, a enciclopédia livre.
61
Geralmente esta actividade é praticada de forma individual e especificamente
por homens adultos, sendo que as mulheres e filhos auxiliam nas actividades
secundárias como carregamento, transporte e fornecimento de diversos
materiais no processo de fabrico. De referir que na Localidade de Nhassacara,
existe um caso de pessoas que trabalham em associação, é o caso do Centro
Social de Nhassacara construído pela Save the Children para acolher crianças
órfãs, carentes e necessitadas que aprendem o ofício.
Os conhecimentos relativos a este ofício são transmitidos de geração em
geração, isto é, de pai para filho e de mestre para aprendiz como acontece na
associação existente no Centro Social de Nhassacara, onde o mestre ensina a
arte para crianças órfãs, carentes, necessitadas e demais interessadas
mediante observação e prática.
Constitui ameaça à actividade o desflorestamento intensivo que provoca a
escassez da matéria-prima (madeira) o que obriga os carpinteiros a comprar a
madeira muito cara ou percorrer grandes distâncias para extracção da
madeira.
Aquisição e corte da madeira
Actividade inicia com a planificação das necessidades, em função do objecto
que se pretende fabricar, por vezes fruto de encomendas feitas por pessoas
singulares ou colectivas. A seguir, o carpinteiro dirige-se ao mato no sentido de
identificar a árvore (muti) em que vai obter a madeira. Não tem sido qualquer
árvore usada, destaque vai para Tigelia Africana (Mubunguti ou Mvuti) Umbila
(Mukonambira), Chanfuta (Mugoriondo), Umbaua (Mubawa) e Pangapanga
(Mpangapanga).
Todas as espécies acima mencionadas são encontradas localmente numa
floresta designada Nyasulo. Mugoriondo é o tipo de madeira mais apreciado ao
nível da Localidade de Nhassacara pela sua qualidade e resistência,
principalmente ao ataque de insectos e humidade, fazendo com que ela dure
mais que as outras, isto porque, madeiras de diferentes tipos de árvores têm
diferentes cores e níveis de densidade, aliado ao facto de algumas espécies de
madeiras terem um crescimento mais demorado do que outras, o que faz com
que tenham qualidade e valor comercial diferenciado.
Importante realçar que nem sempre os carpinteiros vão a floresta a fim de
extrair a madeira. Neste caso, deslocam-se aos locais de venda da madeira
serrada de várias espécies florestais para comprar com indivíduos que extraem
62
fora da localidade, visto que nem sempre a madeira é extraída localmente. O
custo da madeira varia consoante a qualidade da mesma, sendo que, à
exemplo segundo os nossos entrevistados, um pedaço de madeira de Chanfuta
com 3 centrimetros de espeçura, 20 centímetros de largura e 2 metros de
comprimento é comercializado a um preço de 100 meticais durante o período
em que decorreu o estudo.
Em caso de extracção da madeira no mato pelo carpinteiro, uma vez
identificada a árvore, ele leva um machado maior (mbadzo) para cortar a árvore
e uma vez caída, com ajuda de um machado menor (ntsemo) retira a casca do
tronco da árvore, os ramos e as partes que não interessa. A seguir leva-se um
fio (nkambala) mede-see marca-seo tronco longitudinalmente poronde o mesmo
será cortado e dividido em duas partes.
Para o processo de marcação, o fio é misturado com água e carvão ou em pó
extraído do interior de uma pilha usada. Para tal, dois indivíduos, um de cada
lado, pegam no fio esticam e batem ao meio do tronco pela longitudinal para
demarcar a linha de corte.
De seguida o tronco é colocado encostado a uma árvore ou qualquer outro
objecto eusando um serrote, dois indivíduos, um de cada lado, dividem-o em
duas partes seguindo o marco feito anteriormente. Este processo de corte até
chegar a carpintaria pode levar dias e até semanas, tudo dependendo do
diâmetro da árvore e da disposição dos indivíduos que extraem a madeira.
Fabrico e comercialização de objectos de carpintaria
Transportado a madeira para a carpintaria, primeiramente com um encho
tiram-se as camadas inúteis da madeira de modo a nivela-la e com ajuda de
uma fita métrica ela é medida por cima do cavalo26, marcada por um lápis e/ou
riscada por um graminho e despedaçada em componentes menores, com ajuda
de um serrote (mpeni), tudo de acordo com o que se pretende construir. A
fixação da madeira ao cavalo é efectuada por meio de um grampo que tem por
objectivo prender a madeira sobre o cavalo para que ela não se mova e facilitar
o processo de corte.
26Cavalo, refere aos dois troncos separados e colocados sobre o solo na posição vertical e atravessados por uma madeira horizontal fixada sobre os troncos na qual serve de apoio para o carpinteiro exercer a sua actividade. Geralmente numa carpintaria costuma existir dois cavalos colocados de forma paralela onde decorre a maior parte da actividade principalmente no que diz respeito ao corte, medição, alisamento e furo da madeira.
63
Para fabricar qualquer objecto, o primeiro passo é formação do seu esqueleto
principal, denominado espelho, depois alisar a madeira cortada com ajuda de
um planador. De seguida com uma fita métrica, serrote, esquadro (khona) e um
furador (pua), as componentes são medidas, cortadas e furadas (kuboora) em
medidas exactas para facilitar o encaixe das peças por meio de pregos (pedego)
ou cavilhas/torno com ajuda de um martelo (sando).
As conexões são feitas em combinação de macho e fêmea (encaixes) com ajuda
de um formão. Na montagem do objecto, para além do uso de pregos e tornos,
usa-se também a cola para dar maior consistência e resistência as ligações,
contudo, os objectos podem ser simples ou complexos. Quanto mais simples é
odesign, mais fácil será o seu fabrico.
Note que, apesar de desempenharem quase que a mesma função de unir as
peças, o prego e o torno apresentam algumas diferenças na forma como são
empregues em determinados objectos segundo os nossos entrevistados, se não
vejamos:
Geralmente o torno é o mais indicado porque permite usa-lo mesmo que
a madeira esteja ainda fresca e depois de seca, não sem se racha, o que não acontece com o prego que facilmente racha a madeira;
As cadeiras fixas, geralmente as maiores, aconselha-se a usar o torno enquanto as dobráveis, geralmente as menores, o prego devido aos
movimentos que muitas vezes são submetidos e por causa da forma como as madeiras são fixadas;
Usando o torno, o objecto dificilmente se danifica ao invés do que
acontece com o prego que com o passar do tempo devido aos
movimentos, durante a utilização o objecto tende a danificar-se;
Pelo facto do torno ser feito de madeira e colocado depois de furada a
madeira e antecedido da colocação da cola ele depois é planado para que adquira o mesmo nível da madeira o que torna o objecto mais resistente e homogénio, ao passo que com a colocação do prego o objecto já não
pode ser planado sob o risco de danificar o planador. Depois de montado, o objecto é mais uma vez alisado em determinados pontos,
caso necessário, depois polido com uma lixa, posteriormente envernizado e deixado a secar durante um dia.
Constitui alguns objectos produzidos na Localidade de Nhassacara, cadeiras
fixas, cadeiras dobraveis, janelas, portas, aros, casquilhos, bases de camas,
entre outras peças.
64
Esse mobiliário é vendido no mercado local a quando da realização do
Inventário a preços que variam de 150,00 meticais a 350,00 meticais para
cadeiras, 150,00 meticais a 300,00 meticais para aros de janelas, 1.800,00
meticais a 2.000,00 meticais para bases de cama, 400,00 meticais a 700,00
meticais para portas lisas e 1.000,00 meticais a 1.200,00 meticais para as
portas estufadas.
Figura 24: Aros para janelas (Foto de Leandro
Fernando) Figura 25: Porta estufada em processo de fabrico e
aros para janelas (Foto de Pascoal dos Santos
Saraiva)
65
Kudinda madina
66
Os vestígios mais antigos de tijolos datam de 7500 a.C. Inicialmente não eram
cozidos, apenas secos ao sol. Por volta de 3.000 a.C. começam a surgir os
tijolos cozidos, muito mais resistentes. Por volta de 1.200 a.C. a produção se
massifica, com o advento das grandes olarias, que provocam uma grande
redução dos preços27.
Em lugares como na China e no Egipto, a cerâmica tem cerca de 5.000 anos.
Tendo destaque especial na construção de túmulo de imperadores. Outras
manifestações importantes na história da cerâmica foram os Babilónicos,
Assírios bem como os Persas que utilizavam cerâmica no século VI a.C.
Com o tempo, a cerâmica foi evoluindo e ganhando os nossos dias, mas não
sem contar com os esforços dos Gregos, Romanos, Chineses, Ingleses,
Italianos, Franceses, Alemães e Norte-Americanos e com o passar dos anos, a
indústria cerâmica se desenvolveu com grande rapidez. Novas tecnologias,
matérias-primas, formatos e design foram desenvolvidos e no tocante da
tecnologia actual, o uso da cerâmica não se restringe apenas aostijolos28.
Mesmo com o advento de diversos outros materiais, o tijolo, em seus diversos
formatos e materiais, continua sendo em larga escala, o principal material
utilizado na construção civil, desde a antiguidade até aos nossos dias, e desde
muito cedo a produção cerâmica deu importância fundamental à estética, já
que seu produto, na maioria das vezes, destinava-se ao comércio. Talvez por
esta razão a maioria das culturas, acabou por desenvolver estilos próprios que
com o passar do tempo consolidavam tendências e evoluíam no aprimoramento
artístico.
Na Localidade de Nhassacara a cerâmica é executada desde os tempos
imemoriais, contudo, ao longo do tempo ela foi sofrendo algumas
transformações. Em tempos, os tijolos eram feitos em forma cilíndrica,
produzidos em latas ou copos e que, geralmente não eram cozidos, toadavia,
actualmente usa-se forma de madeira rectangular e os tijolos são queimados
em fornos rudimentares montados localmente.
A cerâmica tradicional é responsável pela fabricação de tijolos frequentemente
recorridos e usados pelas comunidades para a edificação de casas e demais
infra-estruturas não só pela resistência que estes oferecem a edificação mais
também pelo seu valor estético que muitas vezes representa sinónimo de
diferenciação social ao nível das comunidades. São essas mesmas edificações
27 Wikipédia, a enciclopédia livre . 28 Idem.
67
que protegemos humanos das intempéries da natureza, em especial da chuva
ou sol, frio ou calor, vento e até mesmo de animais.
Não existe uma forma específica para a execução desta actividade, alguns
ceramistas praticam de forma individual e outros de forma colectiva,
dependendo da disposição e dos objectivos de cada um.
Os que praticam de forma colectiva geralmente os grupos variam de dois a
cinco elementos, entre familiares, amigos, vizinhos e aprendizes. Aspecto
importante é que não existe nenhuma restrição do ponto de vista do género na
execução desta manifestação, tanto os homens como mulheres geralmente
maiores de idade, praticam tal actividade.
O fabrico de tijolos ocorre geralmente no período seco, de Abril a Outubro por
tratar-se de um período de pouca ou nenhuma pluviosidade o que permite a
prática da actividade sem riscos de danificar os tijolos.
Preparo da argila
Para iniciar o fabrico do tijolo o ceramista identifica o local onde irá extrair a
argila de acordo com a sua preferência. No entanto, existem diversos tipos de
argilas que conferem propriedades diferentes aos tijolos e, geralmente qualquer
argila é usado, apesar de que têm sido preferência, as situadas nos locais
próximas as margens dos rios para facilitar o acesso a água.
Identificado o local, com ajuda de uma enxada (phaza) e uma pá (fosholo),
remove-se a argila numa área e profundidade de acordo com a disposição,
objectivos e quantidade de tijolos que o ceramista pretende fabricar, depois
com ajuda de uma botija (chigubu) rega-se a argila removida com bastante
água de modo a humidece-lá.
A argila misturada com a água é amaciada com os pés durante um período de
tempo que varia de acordo com a quantidade da argila existente, área e
profundidade do local onde se pretende extrair a argila, isto até formar uma
massa densa, homogénea sem partículas sólidas.
Em alguns casos, a rega da argila pode levar até três dias, isto acontece para
humedecer cada vez mais as partes sólidas e o terreno removido, de maneiras a
facilitar o processo de amaciamento da argila e abertura de futuras escavações,
visto que numa mesma área pode ser removida a argila quantas vezes o
ceramista julgar necessário.
68
Fabrico de tijolos
Depois da massa da argila estar pronta, leva-se uma forma de tijolo
(chikomborero) feita na base de madeira, mergulha-se na água e depois põe-se a
massa da argila humida, na medida em que vai-se compactando com as mãos
e depois é depositada em filas no solo em um lugar próximo, nivelado e limpo
previamente.
A forma usada para fabricar os tijolos é feita por carpinteiros com base nas
medidas que o ceramista pede, geralmente o padrão obedece as seguintes
medidas: 25 centímetros de comprimento, 12 centímetros de largura e 9
centímetros de altura. Podendo ser única ou múltipla, de acordo com a
preferência dos ceramistas.
Figura 26: Ceramista depois de despositar no solo a
massa de tijolo húmida (Foto de Leandro Fernando)Figura 27: Forma dupla utilizada na fabrição de
tijolos (Foto da Internet)
Processo de secagem
Após o seu acabamento leva-se capim (uswa) e coloca-se por cima dos tijolos
durante 3 a 5 dias, dependendo da intensidade do sol. Isto acontece para evitar
que a intensidade dos raios solares danifique os tijolos, para além de permitir
que os mesmos sequem numa primeira fase, de forma mais lenta. Findo este
período, retira-se o capim e levantam-se os tijolos verticalmente, desta vez,
para ficarem durante uma média de três dias ao sol, sem nenhuma protecção
para a sua secura final.
Pelo facto do processo de secagem depender de factores climáticos, tanto na
primeira fase (com capim) assim como na segunda fase (sem capim) os
69
ceramistas conseguem perceber o momento ideal da passagem de uma para a
outra através da tendência que geralmente os tijolos apresentam, sendo que,
quando a argila está fresca permanece leve e com a cor originária a quando da
sua fabricação e a medida que vai secando tende a tornar-se mais dura e a
clarear.
Dependendo da quantidade de tijolos fabricados, da disposição e dos objectivos
do ceramista como anteriormente nos referimos, ele pode avançar para o
processo de preparo do forno para a cozedura dos tijolos ou repetir o mesmo
processo até que tenha a quantidade de tijolos por ele pretendido para a
prossecução dos seus objectivos. Caso pretenda continuar com o fabrico de
mais tijolos o ceramista arruma em um espaço previamente preparado,
próximo dos tijolos ora fabricados para reaproveitar o mesmo espaço para
poder colocar os tijolos que pretende fabricar novamente.
Note que, nem sempre os ceramistas submetem os tijolos ao processo de
cozedura, em alguns casos após a secura os tijolos são usados pelo ceramista
para o fim pelo qual foram fabricados.
Figura 28: Ceramistas trabalhando no processo de secagem de tijolos (Foto de Leandro Fernando)
Cozedura dos tijolos
O ceramista prepara e arruma o forno de tijolos (ovone) da seguinte forma:
sobre o solo, em um espaço previamente preparado, coloca verticalmente três
tijolos de forma paralela seguido de um espaço (boca de forno) pela direita
equivalente a dois tijolos colocados na horizontal. Volta a colocar seis tijolos na
mesma posição que os três anteriores seguidos de novo de um espaço
equivalente ao anterior e por ali adiante na mesma ordem 3-6-3-6 até formar
as bocas de forno que julgar necessária a quantidade de tijolos por ele
pretendido cozer.
70
Por cima da primeira fiada sobre os tijolos do solo o ceramista arruma-os na
posição contrária, isto é, horizontalmente o que faz com que as bocas de forno
vão se fechado (formando um semi-circulo) a medida que o forno vai ganhando
altura. Esta arrumação vertical - horizontal de fiadas de tijolos repete-se até
formar buracos intercalados chamadas de “boca de forno” onde posteriormente
é posta a lenha para a cozedura dos tijolos.
Depois de formadas as bocas de forno, a arrumação dos tijolos continuam na
mesma ordem e a medida que o forno atinge uma determinada altura o
ceramista diminui o número de filas formando uma estrutura com uma base
mais larga e um ápice pouco mais afunilado para permitir que o fogo abranja
todos os tijolos.
O número de bocas de forno vária consoante a quantidade de tijolos que se
pretende cozer. Quanto maior for a quantidade de tijolos maior será a
probabilidade de ter mais bocas de forno, podendo variar de 3 a 7 bocas.
O preparo e arranjo da lenha (nkuni), geralmente acontece depois dos tijolos já
terem sido arrumados, e a preferência vai para a lenha de uma árvore
designada de mfute por causa do poder de fogo (moto) e queima que o seu
tronco proporciona. A lenha é arrumada começando com as maiores por baixo,
seguidas das médias e as pequenas, ambas colocadas ainda semi-frescas e por
fim coloca-se pauzinhos secos e capim para poder ajudar o fogo a pegar e se
alastrar pela boca de forno. O uso da lenha semi-fresca acontece para dar mais
tempo de lume ao forno e de cozedura aos tijolos uma vez demorar mais tempo
a se decompor a medida que arde.
Após a colocação da lenha nas bocas de forno, o mesmo é revestido (matikado)
com a massa de argila, a mesma que se utilizada na fabricação dos tijolos
deixando as bocas de forno abertas para permitir a colocação do fogo. A parte
de cima do forno so é revestida 1 dia depois da colocação do fogo, isto para
permitir que o mesmo ganhe intensidade se alastre e não se apague por falte de
ar.
As bocas de forno são acesas, uma de cada vez seguindo a mesma direcção e
espera-se que o fogo ganhe intensidade e se alastre até a outra ponta, em
alguns casos a medida que o fogo ganha intensidade o ceramista acrescenta a
quantidade da lenha existente nas bocas de forno caso ache necessário e fecha-
as nos dois lados, usando pedaços de tijolos e massa de barro, deixando os
tijolos a cozer geralmente durante 4 dias.
Após este período abrem-se as bocas de forno e deixa-se arrefecer durante três
dias, onde de seguida os tijolos poderão ser retirados para a sua
71
comercialização ou edificação de diversas infra-estruturas. Uma vez cozidos os
tijolos adquirem uma cor com tons avermelhados e tornam-se mais resistente.
Durante o período que decorreu o Inventário, cada tijolo fabricado custava 1.00
metical, sendo que mensalmente um ceramista produz em média cerca de
5.000 tijolos, porém este número pode variar de acordo com a disposição,
objectivos e o número dos fabricantes.
Figura 29: Demostração de arumação do forno (Foto
de Leandro Fernando)
Figura 30: Forno depois de queimado (Foto de
Leandro Fernando)
72
Kubika
73
Kubika significa a arte de cozinhar, ou seja, confeccionar alimentos. Esta arte
foi evoluindo ao longo da história e faz parte da cultura de vários povos do
mundo, da África e da etnia barke de forma particular. Comer é mais que
ingerir um alimento, implica também relações pessoais, sociais e culturais que
estão envolvidas naquele acto. A cultura alimentar está directamente ligada
com a manifestação das pessoas na sociedade.
SegundoLeonardo (1982ː26) alimento é um dos requerimentos básicos para a
existência de um povo, e a aquisição desta comida desempenha um papel
importante na formação de qualquer cultura. Os métodos de procurar e
processar estes alimentos estão intimamente ligados à expressão cultural e
social de um povo.
O continente africano constitui a segunda maior massa de terra do planeta e
berço de milhares de tribos, etnias e grupos sociais. Essa diversidade reflecte-
se na alimentação, no uso de ingredientes básicos assim como na preparação e
técnicas culinárias. Muitos colonizadores passaram pela África devido às rotas
marítimas que ligavam ao Ocidente. Sendo assim, a comida típica da África
sofreu influência de diversas partes do mundo.
A culinária actual, devido à globalização e o advento das multi-nacionais com
as grandes redes de produtos alimentícios, tem uma tendência de se
universalizar, levando o mesmo alimento para todas as partes do mundo. Já as
cozinhas regionais tentam, mesmo com a globalização, preservar o que lhes é
peculiar, pois é exactamente isso que as torna diferentes do resto do mundo.
Desta forma, cada canto do mundo tem culinária com suas peculiaridades.
A culinária está associada à cozinha ﴾nyumba yaKubikira), pois este é o local
ideal para confeccionar os alimentos. Contudo, os métodos de culinária variam
de região para região, tanto em ingredientes, técnicas e os próprios utensílios.
Portanto, esta prática é muito antiga na história da humanidade de forma geral
e dos povos africanos em particular.
Tradicionalmente, a cozinha nas comunidades da Localidade de Nhassacara
fica por lado de fora da casa principal, ou em uma construção separada dos
quartos e sala.
Em Nhassacara, os trabalhos relacionados com a culinária, são actividades das
mulheres. Nesta localidade, os vegetais ocupam um papel importante na
culinária local, sendo uma das principais fontes de alimentação a par de milho,
mandioca, inhame, feijões entre outros.
74
Em geral, folhas verdes e hastes jovens são colectadas, lavadas, cortadas e
preparadas no vapor ou fervidas em combinação com ingredientes como cebola
e tomate. Pode-se encontrar variedade de pratos tais como massa de mapira
﴾nsima ramapira﴿, massa de milho﴾nkura yamagwere﴿, caril de folha de abóbora
﴾muliwo wa tikiti﴿, quiabo ﴾therere﴿, caril de folha de feijão nhemba ﴾muliwo wa
mkunza) e quiabo do chão que nasce naturalmente (tove/kwechete﴿.
O quiabo, para além de ser fonte de alimento também é considerado medicinal,
porque aconselha-se a mulheres a consumir durante o período de gestação
pois segundo os nossos entrevistados, o consumo deste nasta fase facilita o
parto devido a sua viscosidade. Para além desta convicção, ainda no dizer dos
mesmos, acredita-se que o alimento proporciona um ambiente agradável
dentro da barriga da gestante. Portanto esta convicção tende a desaparecer
com o tempo.
No passado a comida era servida no mesmo prato para todos a excepção do pai
da família e das crianças de idade menor. Actualmente verifica-se a mudança
deste hábito, o pai passa a refeição junto dos filhos mais velhos e casados, na
qual, as esposas trazem a comida para estes. Os solteiros passam a reifeição
na casa (guero) dos jovens, enquanto as noras e as filhas da casa passam junto
da sogra e da mãe, respectivamente. Em tempos, a água usada para beber
durante a refeição era servida na cabaça (senkombo ou ndiko), que devia ser
entregue ao intereçado pelo pai ou mão.
Portanto, a culinária na Localidade de Nhassacara é feita de várias maneiras
dependendo dos ingredientes e daquilo que se confecciona. Eis alguns dos
pratos mais confeccionados na localmente:
Kwechete
É um prato tradicional típico da Localidade de Nhassacara preparado na base
do quiabo de baixo, neste caso, o de folhas.
Este vegetal ocupa um papel importante na culinária e nos hábitos alimentares
das cpmunidades locais. Porém, este prato também é uma das principais
fontes de vitaminas e proteínas a semelhança do milho, feijão e outros.
O kwechete é um vegetal de folhas finas e cada 100 grama possui
aproximadamente, 32g de calórias, 0.2g de gorduras, 7mg de sódio, 299g de
potássio, 7mg de carbo hidrato, 3.2g de fibra alimentar, 1.5g de açucar e 1.9g
de proteina. ﴾EMBRAPAː2008﴿
75
É um alimento de baixo nível calórico, possui uma boa quantidade de
vitaminas A e B e sais minerais, como: fósforo, ferro e cálcio.﴾SIMAː 2006﴿
Este vegetal germina e abunda no tempo chuvoso, isto é, de Dezembro a
Março. Contudo, pode ser encontrado em pequenas quantidades durante
outros meses do ano uma vez queas folhas nascem naturalmente sem
necessitar da intervenção humana.
Para colmatar a excassez do produto nos meses de menor abundância, os
aldeõessubmetem o alimento a um processo de conservação que consiste em
seca-las ao sol, por um período de aproximadamente uma semana. Depois são
trituradas no pilão até que fique em pó e, finalmente, o pó é conservado em
recipiente limpo e seco, nomeadamente tigela, bilha, panela de barro, dentre
outros. Isto faz com que algumas pessoas tirem quantidades enormes de
quiabo ainda fresco durante o período em abundância colocando-o a secar e
posterior conservação para poder consumir em período de excassez.
Os locais afirmam que o quiabo tem bastante económico por tratar-se de um
alimento que não acarreta custos de produção, bastando apenas dirigir-se ao
mato em tempo chuvoso para poder extraí-lo.
Figura 31: Prato contendo kwechete (Foto de Pascoal dos Santos Saraiva)
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Ingredientes
Quiabo seco em pó (kwechete),
Soda ﴾muteka/mkuma﴿,
Tomate ﴾matomate﴿,
Sal ﴾munyu﴿ e,
Água ﴾madzi﴿
Modo de preparar
Coloca-se água com soda (mkuma) na panela de barro ao fogo. Depois da água
ferver, coloca-se o tomate. A soda referida pode ser comprada nos mercados
locais ou produzida de forma caseira através da mistura em um recipiente de
cinzas de grampo de milho (massokonto) ou de lenha queimada com água e
depois filtrar. Trata se de um produto que serve para dar um sabor típico e
agradável ao caril.
Depois do tomate coser, tira-se a panela do lume e vai se colocando o pó
enquanto a medida que se mexe ﴾kupumpa therere﴿, durante alguns minutos
até que o caril esteja pronto para ser servido.
Modo de Servir
O caril é acompanhado de massa de farinha de milho, mapira ou mexoeira
(xima/nsima/sadza) e servido em utensílios como prato de madeira ﴾ndiro﴿,
prato de barro ﴾mbare﴿ou mesmo em pratos convencionais de esmalte,
porcelana, ferro e vidro.
Quiabo (Therere-la-Nyanthando)
Therere-la-Nyanthandoé um fruto fibroso e peludo de forma cônica e coloração
verde, cheia de sementes no seu interior de cor branca. É produzido por uma
quiabeira, planta tipicamente africana. Em Nhassacara a planta é semeada nas
machambas.
De modo geral, este alimento é consumido um pouco por todo o país para além
de outros países. Therere-la-Nyanthandofornece vários nutrientes importantes
à saúde, é rico em vitaminas A, C e B1 e possui ainda em sua composição
minerais como o cálcio, fibras e proteínas. Por fornecer poucas calorias
77
(30kcalpor cada100g) o quiabo pode estar contido em dietas de restrições
calóricas e com a vantagem de ser um alimento de fácil digestão. ﴾Muller e
Modoloː 1980)
Além de todos estes nutrientes, é também conhecido por conter propriedades
medicinais. Ele é anti-helmíntico, antiparasitário, demulcente e indicado como
tratamento de várias enfermidades como diarreia, verrinosas, disenteria,
inflamações e irritação do estômago, rins e intestino.
Figura 32: Prato contendo quiabo de cima após sua
retirada da machamba (Foto de Conde Serafim
Saiconde)
Figura 4: Cozinheira cortando quiabo em rodelas para
sua preparação (Foto de Conde Serafim Saiconde)
Ingredientes:
Quiabo (therere-la-nyathando),
Água﴾madzi﴿,
Soda (muteka ou mkuma),
Tomate (matomate),
Sal (munyu) e
Caldo﴾caldo﴿
Modo de preparar
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Tira-se o quiabo numa quantidade, normalmente de acordo com número de
pessoas que vão consumir, e coloca-se numa bacia limpa. De seguida lava-se e
corta-se o quiabo em rodelas com uma faca (mpeni).
Prepara-se a fogueira que pode ser de lenha ou carvão, de acordo com as
possibilidades da pessoa, põe-se uma panela de barro (chikalango) ao lume
com um pouco de água e soda de acordo com a quantidade do quiabo que se
pretende cozinhar e aguarda-se a fervura. Em seguida coloca-se o quiabo na
panela, depois acrescenta-se o tomate, sal e o caldo, tudo em quantidade que
baste.
Note que o uso do coldo acontece ultimamente por causa do processo da
globalização a qual retratamos mais acima, visto que em tempos e na sua
originalidade na confecção do prato não se verifica o uso do caldo.
No entanto pode-se colocar qualquer tipo de tomate no quiabo de acordo com o
gosto do consumidor, visto que, existem duas variedades de tomate
designadamente, o de tamanho reduzido com sabor azedo e o tomate de
tamanho maior que tem sido produzido pelos produtores com as sementes de
qualidade melhorada.
Figura 34: Momento da preparação do quiabo (Foto de Conde Serafim Saiconde)
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A soda usada pode ser a convencional vendida no mercado, ou soda produzida
de forma caseira como anteriormente se fez mensão quando abordou-se o modo
de preparação do kwechete.
Colocado todos ingredientes na panela, aguarda-sea ferver durante cerca de 5
minutos até que este esteja pronto a medida em que vai mexendo o quiabo
para que haja uma mistura completa de todos os ingredientes e formação de
uma pasta com características viscosas.
Modo de servir
O modo de servir do quiabo (therere-la-nyathando) não difere com o
dokwechete, tanto no que diz respeito aos acompanhantes bem como dos
utensílios que se utiliza ao servir.
Figura 35: Quiabo já preparado e servido em prato (Foto de Conde Serafim Saiconde)
Kadududzira
É um prato tradicional preparado na base de quiabo (therere-la-nyathando),
típico da região de Nhassacara. O principal ingrediente (quiabo de cima) passa
antes por um processamento, que permite a sua conservação para ser
consumido durante um longo período de tempo.
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O processo consiste, primeiramente, em colher o quiabo ainda fresco e depois
cortá-lo em rodelas e deixá-lo secar ao sol, por um período de uma semana ou
mais, dependendo da intensidade do sol. A posterior, leva-se as rodelas já
secas e armazenam-se em recipientes limpos e secos como tigelas, bilhas ou
panelas de barro onde o quiabo é conservado. No dia que se pretende preparar
o prato, leva-seas rodelas de quiabo seco na quantidade desejada, e se submete
ao processo de trituração no pilão de maneiras a obter-se o pó.
Figura 36: Pó de quiabo usado para preparação de kadududzira (Foto de Pascoal dos Santos Saraiva)
Ingredientesː
Quiabo em pó (kadududzira);
Soda ﴾muteka/mkuma﴿;
Tomate ﴾matomate﴿;
Sal ﴾munyu﴿ e;
Água ﴾madzi﴿
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Modo de preparar
Coloca-se a panela no fogo, misturando água com soda. Depois da água ferver,
coloca-se o pó de quiabo e cerca de cinco minutos depois, acrescenta-se o
tomate e o sal, mexendo-o durante mais 5 a 10 monutos até que o mesmo fique
denso e cozido.
Modo de Servir
Depois de pronto, okadududzira é servido e acompanhado a semelhança dos
dois pratos anteriores, nomeadamente o kwechetee o therere-la-nyathando.
Mkundza
É um caril típico da Localidade de Nhassacara, preparado com base em folhas
secas de feijão nhemba. Este vegetal serve de caril geralmente no momento
seco, período em que é notável a escassez de vegetais frescos devido a falta de
água nas margens dos rios, ondenormalmente pratica-se a horticultura.
Colhidas as folhas de feijão nhemba e colocadas numa peneira, são
friccionadas usando as mãos com objectivos de torna-las murchas oucolocadas
numa panela com água ao lume para ferver durante uma média de 10
minutos, até atingir uma cozedura intermédia. Em ambos os casos, à posterior,
as folhas passam pelo processo de secagem ao sol, por um período médio de
cerca de uma semana.Note que omkundza passado pelo processo de fervura é
de fácil cozedura no momento de preparação, comparativamente ao submetido
apenas à secagem.
Secas as folhas, procura-se um recipiente seco, que pode ser um cântaro
﴾nkari﴿, sacos plásticos, entre outros, onde as folhas são conservadas para o
seu consumo em período de escassez de vegetais.
Há casos em que o processo de secagem acontecedepois de misturado com
alguns ingredientescomo o tomate e pedaços de abóbora, visto que também no
tempo seco esses ingredientes escasseiam e servem e geralmente são usados
no preparodesse prato.
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Figura 37: Folhas seca de feijão nhemba (nkundza)
misturado com outros ingredientes (Foto de Pascoal
dos Santos Saraiva)
Figura 38: Folhas seca de feijão nhemba sem
igredientes (Foto de Pascoal dos Santos Saraiva)
Ingredientes:
Folhas secas de feijão nhemba (mkundza);
Tomate ﴾matomate﴿;
Amendoim ﴾amendoim﴿;
Gergelim ﴾chitowe﴿;
Óleo ﴾mafuta﴿ e;
Abóbora que é opcional
Modo de preparar
Coloca-se em uma panela de barro ou metálica com água ao fogo, logo que
começa a ferver, põe-se as folhas e deixa-se durante 10 a 15 minutos, depois
acrescentam-se o sal, tomate, abóbora, gergelim ou amendoim pilado (ntwiro),
cebola e um pouco de óleo. Todos estes ingredientes entram no mesmo
instante. Depois de o amendoim estiver cozido, pode-se considerar o caril
pronto para ser servido.
Como referiu-se anteriormente, casos em que os ingredientes como o tomate e
abóbora já aparecem misturadas com as folhas no processo de secagem, estes
não são colocados novamente.
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Modo de servir
O modo de servir o mkundzanão difere dos pratos anteriores referenciados.
Figura 39: Praticante da culinária demonstrando
formas de servir a refeição (Foto de Leandro
Fernando
Figura 40: Membros da comunidade e técnicos
passando junto a refeição depois de preparada (Foto
de Leandro Fernando)
Kabanga
Bastante difusa em Moçambique, trata-se de uma bebida tradicional alcoólica
produzida, geralmente, a partir de farelo de milho. As bebidas tradicionais
abundam no país e, cada região possui sua bebida típica em função da
matéria-prima abundante como as feitas com base em caju, canhú, mandioca,
manga, coco, cana-de-açúcar, arroz, mapira e mexoeira.
As bebidas tradicionais podem ser agrupadas em duas categorias,
nomeadamente as bebidas alcoólicas suáveis assemelhadas a cerveja, que são
resultantes da fermentação de cereais e de frutos e as que prove da destilação
primária conhecidas por aguardentes, vulgarmente designadas denipa,
fabricados principalmente na base de frutos doces.
No caso das bebidas de fermentação, como é o caso da kabanga, os fabricantes
mergulham previamente grãos de mexoeira, mapira, arroz ou milho em água
durante alguns dias, deixando até a semente iniciar o processo de germinação.
Depois os grãos são retirados e expostos ao sol durante dois dias para secar e,
de seguida pila-se para obter a farinha, neste caso de sabor azedo. Esta farinha
constitui a matéria-prima durante o fabrico das bebidas alcoólicas na base de
cereais.
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Estes dizeres encontram paralelismo quando Tindall (1968:74) refere que o
fabrico de bebidas tradicionais na cultura Bantu é uma prática antiga e
feminina, onde as mulheres são envolvidas no seguinte processo: “o milho é
mergulhado em água e deixado até brotar um pouco, depois é espalhado ao sol
para secar e misturado com alguns graus não brotados, em seguida, as
mulheres, usando o pilão, vão moer para produzir farinha que por sua vez é
fervida e deixada em repouso no potenciómetro por dias e durante a noite um
pouco de farinha que tinha sido mantida é lançada sobre o líquido para excitar
fermentação”
Kabanga pela sua natureza é uma bebida de consumo caseiro, normalmente
servida em ocasiões como cerimónia de casamento, nascimento, fúnebre,
aniversário, recepção de dirigentes, entre outras.
Na Localidade de Nhassacara, esta bebida fortifica as relações sociais e cria
novos laços de solidariedade, pese embora também não faltem pequenos
conflitos derivados do consumo da mesma.
A semelhança de outras componentes da culinária em Nhassacara, o processo
de preparação do kabanga também é uma actividade exclusivamente feminina,
sendo que a transmissão dos saberes associados ao fabrico faz-se, de mãe para
filhas ou entre vizinhas.
A venda de bebidas industrializadas, aliado ao facto da preparação desta
bebida exigir um esforço adicional, constitui um risco a continuidade e a
trasmissão de conhecimento inerentes a esta práticaaos as novas gerações.
Ingredientes:
20 Kg de farelo de milho;
Água;
20 de açúcar;
5 Kg de fermento;
Porção para 200 á 300 pessoas.
Modo de preparar
Passo inicial consiste em moer o milho, depois de moido, peneire-se
devidamente o cereal de modo a separar os graus ao farelo (gotxe)retirando o
excesso de casca, sendo os graus posteriormente moídos em farinha para a
preaparação da massa﴾nsima﴿, e o farelo posto a secar ao sol durante 2 dias
para a preparação da bebida.
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Depois de seco o farelo, leva-se ao fogo um tambor (diramo) com cerca de 100
litros de água (madzi﴿, e deixe-se a ferver. Depois da água ferver por alguns
minutos, adiciona-se uma porção de farelo, numa quantidade de 20kg que,
previamente é mergulhado durante 3 á 4 dias em água num recipiente.
Deixa-se cozer completamente até formar papas (phala). Mexe-se as papas com
uma colher de pau (mutiko), e deixa-se cozer por 1 a 2 horas até que se forme
papas muito densa de cor avermelhada, facto que denuncia que as papas estão
completamente cozidas. Retira-se o tambor do fogo e acrescentam-se cerca de
50 litros de água para diluir a papa com intuito de torna-la menos densa.
Figura 41: Tambor contendo kabanga durante o processo de cozedura (Foto de Mariano Bento Candieiro)
A mistura é colocada depois em recipientes plásticos (gubu) e deixa-se pelo
menos dois dias a arrefecer num lugar em segurança. Arrefecida, o praoduto é
depositado em potes de barro ou novamente em um tambort para se açucarar,
segundo a quantidade das papas, podendo chegar até 20kg de açucar, porém,
antes de colocar o açúcar, as papa passa por um processo de filtração em cefas
para remover impurezas de tamanho maior. Após misturado com açúcar, o
produto permanece durante um dia sem ser consumida para poder fermentar,
podendo o seu consumo contecer no dia posterior.
No dizer dos consumidores locais, a qual pode-se entrevistar, o sabor da
kabanga pode ser descrito comoagradável, acrescentando que, passados 3 a 4
dias enquanto fermenta, a bebida pode servir para o fabrico de aguardente
﴾nipa), atravéz do processo de destilação. No entanto, os mesmos consideram
86
boa kabanga aquela que depois da sua preparação e colocado todos os
ingredientes, começa a espumar e a transbordar do recipiente onde é
conservado, sinal este que significa bebida de boa qualidade o que não
acontece quando a bebida não é boa, visto que uma vez preparada não
apresenta tais características e o sabor tende a ser amargo.
Os consumidores da kabanga na Localidadede Nhassacara, acreditam por um
lado, que a bebida tem um efeito relaxante após o seu consumo, porque ajuda
o esquecimento desituações menos boas, razão pela qual esta quase sempre
presente nos ritos fúnebres, por outro lado, proporciona energia para execução
de algumas actividades, a exemplo de trabalhos agrícolas.
Ainda nesta localidade para além de ser consumida em cerimónias de
casamento e ritos fúnebres, a bebida também se fabrica para fins comerciais
onde os lucros variam, podendo em um tambor render um lucro equivalente de
1.000,00 meticais, quando a bebida for à considerada de boa qualidade. A
venda é feita em recipientes de tamanhos variados, dependendo do bolso do
consumidor. A finalidade da renda obtida a partir da venda da bebida, destina-
se na sua maioria o sustento familiar.
87
Kukoma
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É a arte de trabalhar o ferro ou outro metal, forjando-o, ou seja, moldando-o a
quente ou a frio com a finalidade de dar-lhe uma forma. É uma actividade que
a pessoa cria objectos de ferro ou aço por forjar o metal, ou seja, através da
utilização de ferramentas como fole, bigorna, martelo, dobra e corta, e de outra
forma moldá-la na sua forma não líquida. Geralmente o metal é aquecido até
que brilhe vermelho ou laranja, como parte do processo de forjar. Ferreiros
produzem bens como, esculturas, ferramentas, utensílios de cozinha (facas﴿,
instrumentos agrícolas como a enxada, o machado e armas.
A arte de ferragem identifica bastantemente os povos africanos, razão pela qual
se considera que foi neste continente que foram descobertos os primeiros
instrumentos feitos de ferro.
Os Bantu após terem saído do nomadismo e passando para o sedentarismo,
foram grandes praticantes desta arte, o que lhes garantiu a pratica de
agricultura e da caça, produzindo instrumentos para esse efeito.
Tindall (1968 ː74﴿, alega que “…algumas tribos entre os Bantu eram destacadas
no fabrico de vários utensílios na base de ferro. Entre outras tribos o destaque
vai para os Venda e Lemba em Mashonalandia, os Lala e Soli do norte de
Zambeze e os Tumbuka e Nyanja no Malawi.”
Segundo o mesmo autor, a fundição do ferro era realizada em fornos de argila,
no qual eram colocados carvão e minério. A temperatura do forno era mantida
por sopro com pele de cabra fole até que o minério fosse suficientemente
fundido para separar as impurezas do ferro.
No caso específico da Localidade de Nhassacara, não se sabe ao certo quando é
que esta arte surgiu, mas acredita-se que seja o resultadodo próprio
desenvolvimento intelectual da humanidade que foi acompanhando a sua
evolução, para suprir as necessidades diárias do homem.
Os conhecimentos relativosa arte sempre foi transmitida de geração em
geração, garantindo desta forma que várias famílias pudessem produzir
instrumentos e utensílios comofacas, machados, enxadas, armas, flechas entre
outros para as necessidades do quotidiano como o cultivo de campos agrícolas,
caça, pesca entre outas actividades.
Actualmente esta arte ainda se faz sentir, pese embora o desenvolvimento
tecnológico e o comércio regional e internacional tenha trazido consigo
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instrumentos tecnicamente mais elaborados e acabados facilitando desta forma
os utilizadores.
Figura 42: Ferreiro demonstrando o seu ofício, a medida que exibe alguns de seus instrumentos de trabalho (Foto de
Mariano Bento Candieiro)
Fabrico de instrumentos e utensílios na base de ferro
Primeiramente, o ferreiro procura a matéria-prima, geralmente molas de carros
(bemba﴿ partidas ou gastas para o fabrico dosinstrumentos. Encontrado o
material, reúne os seguintes instrumentosː
Martelo (sando﴿;
Fogo (moto﴿;
Pele de cabrito (kanda la mbudzi﴿;
Pedras (minyara﴿,
Carvão (massimbe﴿;
1 Tronco (muti﴿e;
1 Tubo de ferro ﴾mpembe)
O processo da fusão do ferro decorre num forno fabricado de argila, no qual é
colocado carvão. O tubo de ferro (mpembe) é acoplado à pele de cabrito (kanda
la mbudzi) em um dos lados formando uma bolsa, que tem a função de
pressionar o ar “kuvukuta” para alimentar a combustão do carvão no forno. A
temperatura alta no forno é mantida pelo sopro vácuo criado com a pele de
90
cabra até que o ferro seja suficientemente fundido. O lugar onde decorre este
trabalho, localmente é chamado de chipala.
Para fabricar os instrumentos, coloca-se a mola ﴾bemba﴿ no forno onde deve
permanecer tempo suficiente (média de 20 minutos) de modo a torná-lo
maleável. Depois, tira-se a mola e coloca-se por cima de um ferro que pode ser
pedaço de carril e com ajuda de um martelo, enquanto a mola estiver quente e
maleável, dá-se golpes de maneiras a dar forma o instrumento que se pretende
fabricar.
A medida que o metal vai arrefecendo, coloca-se sucessivamente no forno para
torná-lo maleável evai-se golpeando até obter o instrumento final. Note que,
sempreantes de retornar ao forno, o metal é mergulhada na água para evitar
que o instrumento final não tenha rachas comprometendo a qualidade do
mesmo.
Pelo facto do processo de fabrico de instrumentos da ferragem exigir aplique de
muita força na transformação da mola, faz com que o trabalho seja
exclusivamente executado por homens, geralmente adultos.
91
Kuruka
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Kuruka refere-se de uma forma de criação de artigos de cama, mesa e vestuário
utilizando para o efeito a linha de croche e agulhas (kiroshi). Diversas fontes
referem-se que, o bordado manual é uma herança portuguesa durante o
período colonial em Moçambique, no geral e da Localidade de Nhassacara, em
particular.
Na Localidade de Nhassacara, os artasãos usam para agulhas fabricadas com
base em raios de biscicleta e rolos de linha conhecido por bobinas para fabricar
camisolas para pessoas adultas e crianças, chapéus, botinhas, calças, saias
para recém nascidos e lencinhos (doiros) para ornamentação do mobiliário da
sala de uma casa.
Na etnia Barke, esta actividade é meramente feminina e praticada em tempo
considerado livre, ou ainda em momentos de ociosidade. Herdada dos seus
antepassados, a arte vem sendo trasmitida de geração em geração de mãe para
filha, tia para sobrinha ou mesmo entre vizinhas.
Figura 43: Praticante da tecelagem demostrando o
processo de bordagem de diversos artigos de
vestuário (Foto de Mariano Bento Candieiro)
Figura 44: Rolo de linha de diversas cores (Foto da
Internet)
Procedimentos de Kuruka
Qualquer que seja o artigo a fabricar, primeiro passo consiste em organizar a
matéria-prima, constituída por linhas de diferentes cores, geralmente
comprada no mercado, seguida do fabrico da agulha que apresenta uma
cavidade em formato da letra V na parte terminal frontal.
O processo de bordagem nogeral consiste em enrolar a linha no dedo indicador
do lado esquerdo e, a agulha na mão direita. Depois puxa-se com a agulha
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através da cavidade, a linha enrolada no dedo indicador da mão esquerda,
iniciando deste jeito a trançar o artigo pretendido
As agulhas possuem diferentes diâmetros para cada tipo de linha e tamanho do
artigo pretendido. Em geral, quando a linha usada for fina, a agulha tende a
ser igualmente fina e o artigo de tamanho menor e, quando a linha for grossa
igualmente a agulha tende a ser grossa e o artigo de tamanho maior.
As cores das linhas usadas durante o processo de kuruka, são alternadas de
acordo com o gosto do fabricante ou do proprietário, variando somenteas peças
que se produzem, tanto no seu tamanho como no formato, sendo que os
procedimentos técnicos para a produção das mesmas são em regra iguais.
Bordado de calças
Inicia-se bordando a parte superior da cintura (nkundu﴿. De seguida faz-se a
base que cobre as duas nádegas ﴾matako﴿, seguido das pernas ﴾mwendo﴿. Neste
processo vai-se conjugando as diferentes cores de maneiras a dar a peça mais
beleza a quando do seu acabamento final.
Durante o processo, quando nota-se algum erro no tamanho ou no formato da
calça, no que se refere às medidas, desmancha-se a peça e corrige-se o erro
para obter as medições e o formato pretendido continuaando com o processo
até obtero produto final.
Figura 45: Praticante da tecelagem exibindo uma calça para uso de uma criança (Foto de Mariano Bento Candieiro﴿
94
Bordado de camisola
Começa-se coma parte das costas, seguidada parte da frente e finalmente a dos
braços terminando o seu acabamento colocando gola e casa de botões. A
semelhança de outros artigos, na confecção da camisola, pode-se alternar as
cores das linhas de acordon com o gosto do fabricante ou proprietário.
Bordado de chapéu
Bordarchapéu de bebê pode ser moderadamente desafiador para os praticantes
de kuluka, mas com um pouco de prática e criatividade fabrica-se uma
variedade de chapéus usando apenas alguns pontos básicos.
De acordo com o modelo que se pretende fazer, geralmente, o chapéu inicia-se
com a parte superior mais afunilada em formato de um cone e, a medida que
vai-se bordando, usando técnica específica, vai-se formando a parte inferior
mais alargada, produzindo uma peça com a base larga e o ápice mais estreito.
Quando trata-se de chapéu com protetor para sol, a bordagem inicia criando o
protector para sol e conclui-sebordandoo resto da estrutura do mesmo.
Figura 46: Praticante mostrando uma criança
vestindo chapéu feito com recurso a tecelagem (Foto
de Mariano Bento Candieiro)
Figura 47: Amostra de chapéu confeccionado com
recurso a tecelagem (Foto da Internet)
Bordado de botinhas
O processo é semelhante ao do fabrico do chapéu. Começando com a bordar a
base do pé, seguido de altura da botinha. Depois de se alcançar a altura
desejada, passa-se para a fase de acabamento, fazendo uma peça bordada na
95
parte exterior da altura da botinha por onde o pé é colocado de modo a evitar
que esta se desfaça com alguma facilidade.
Figura 48: Botinhas feita com recurso a tecelagemparauso de bebês (Foto de Mariano Bento Candieiro)
96
Kurapa
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Kurapa é definida como sendo a combinação de conhecimentos e praticas
tradicionais usados no diagnóstico, prevenção e eliminação das doenças físicas,
mentais ou sociais e que assenta, sobretudo, em observações e experiências
passadas, transmitidas de geração em geração.
A medicina tradicional é uma prática comum na Localidadede Nhassacara,
porém, a actividade destes médicos tradicionais (curandeiros) não se restringe
apenas à sua zona de origem, ela se estende igualmente a outros locais desde
que para tal sejam solicitados.
Un’anga é a designação que se dá ao acto de curandeirismo, na Localidade de
Nhassacara, trata-se de uma parte da medicina tradicional que se baseia nos
espíritos dos antepassados para identificar as causas de doenças e a cura por
meio de raízes de várias plantas.
A prática da medicina tradicional nesta comunidade consiste em diagnosticar e
curar doenças usando espíritos dos ancestrais, ervas, raízes, plantas, água das
nascentes ou do mar, solo, gordura de animais, entre outros. Os médicos
tradicionais curam doenças, males e expulsam os espíritos maus, para além de
diagnosticarem as doenças através de sonhos e de instrumentos que podem,
igualmente revelar o tratamento e a dosagem a se cumprir.
Alguns praticantes exercem esta actividade por terem herdado o dom (chipo) de
cura dos seus antepassados ou parentes próximos, outros descobriram o dom
sem, no entanto saberem da sua proveniência. Para a transmissão do dom,
normalmente, os praticantes herdam dos seus e suas bisavós maternos, e o
espírito é que escolhe a pessoa da família para ser detentora do dom.
Relativamente ao aspecto de género, kurapaé praticado pelos curandeiros
(n’anga) do sexo masculino e (nyabezi) as de sexo feminino (nyahana). Os
curandeiros, normalmente, contam com o auxílio de ajudante (nyamakumbe),
tanto de sexo masculino como feminino.Os nyamakumbes para além de
desempenharem a função de auxiliares, intervêm em determinadas acções
específicas, como por exemplo, em casos em que um curandeiro tem um
paciente do sexo oposto, no entanto, caso este paciente padecer de uma doença
que afecta as partes íntimas e o tratamento requerer que se introduza o
medicamento no local, por questões éticas, ao invés de ser o nyabezi ou
nyahana a fazer o tratamento, o paciente deve ser medicado por uma auxiliar
"nyamakumbe" do mesmo género que o paciente.
O procedimento referido anteriormente, geralmente é frequente quando se trata
de doenças de transmissão sexual, concretamente dos órgãos genitais, visto
que do ponto de vista sociocultural existem assuntos que uma mulher não
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deve expor a um homem, e vice-versa. Estas interdições fazem parte de códigos
de condutas e de convivência socialmente estabelecidos, o que pressupõe que
certos assuntos não devem ser articulados entre indivíduos de sexos opostos
enquanto não constituírem um casal.
Aspecto importante constatado actualmente, esta relacionado ao método de
tratamento (kurapa), onde se verifica que os curandeiros têm trabalhado,
embora de forma informal, com os hospitais numa acção de inter-ajuda na
medida em que, quando estes enfrentam determinadas dificuldades no
tratamento de certas doenças, aconselham os doentes a dirigirem-se aos
Centros de Saúde. Isso também acontece com os hospitais quando sentem que
o paciente tem uma doença associado a causas espirituais ou que de alguma
forma torna imperceptível para eles, aconselham o paciente a procurar a
medicina tradicional. Essa conivência entre a medicina tradicional e a moderna
ou convencional é considerada boa por vários sectores da sociedade visto que,
o resultado final tem sido a salvação de vidas.
Figura 49: Curandeira (nyahana) praticante da
medicina tradicional (Foto de Edimar Fernando
Reane)
Figura 50: Curandeiro (nyabezi) praticante da
medicina tradicional (Foto de Leandro Fernando)
Entre os barkes, desconhece-se de concreto, quando é que a actividade teve
sua origem, porém, sabe-se que esta vem sendo exercida pela etnia já a muito
tempo, sendo mais antiga comparativamente a medicina convencional.
No passado quando alguém estivesse doente e fosse a um médico tradicional,
era tratado até curar, só depois de estar curado é que a pessoa vinha pagar
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pelo tratamento, aliás, não se falava de pagamento, mas sim de agradecimento.
No entanto, podia se trazer uma galinha, um cesto de farinha de milho ou
mapira. Mesmo no acto da consulta, caso faltasse alguma moeda para o
pagamento da análise tradicional (kupukutira), podia-se usar o capim como
símbolo em substituição ao pagamento.
Actualmente fazem-se cobranças antes e até depois, mesmo que o doente não
apresente sinais de melhoria no seu estado de saúde. No acto da consulta, o
capim já não se usa para substituir o dinheiro, muitas vezes são cobrados
valores elevados, o que representa uma viragem da medicina tradicional para
actividade comercial e lucrativa.
O curandeirismo não é uma actividade praticada somente na Localidade
deNhassacara, pelo contrário ele é praticado em quase todo o território
Moçambicano e na África em geral, embora possa ter outras designações, uma
vez que o país e o continente são compostos de uma ampla diversidade étnica.
Mas o certo é que, nesta localidade, a medicina tradicional desempenha um
papel de relevo. Primeiro porque faz parte das crenças deste povo, segundo,
porque os postos de saúde existentes, até então, encontram-se distantes de
alguns povoados, para além de carecerem de pessoal especializado e
medicamentos para o tratamento de certas doenças, permitindo, então, uma
acção massificada desta prática, o que vem a conferir uma posição de destaque
na estrutura social da comunidade.
Há que considerar em parte que, os médicos tradicionais sentem-se
reconhecidos pela medicina convencional, como um sector da sociedade capaz
de curar doenças não detectáveis pela medicina convencional, principalmente
quando estão associadas a natureza espiritual. Em decorrência disso, alguns
pacientes são encaminhados à medicina tradicional, o que tem trazido
resultados surpreendentes, fazendo com que este tipo de medicina assuma um
papel vital e indispensável nas comunidades.
Portanto, o conjunto de saberes subjacentes ao processo de cura, ao nível local,
traduz-se num valor de património cultural que foi e continua a ser
transmitido de geração em geração, com identidade própria nas formas de
tratamento das doenças.
O diagnóstico de doença
A identificação de doenças é feita através do contacto com espíritos dos
antepassados, que determinam se a doença é curável ou não. As doenças
frequentemente identificadas e curadas pelo curandeiro são as seguintes:
100
Tsanganico- doença espiritual que aparece quando as pessoas não
obedecem a cerimónia de purificação depois de sepultar um membro da
família, cerimónia localmente designada de "kupita kufa";
Lukaho - doença que surge quando uma mulher é tratada pelo seu
marido para não manter relações sexuais com outros homens, excepto o
marido. Caso mantenha relações sexuais com outro homem, esse corre o
risco de perder a vida quando não for tratado;
Nsoma - tratamento de fontanela;
Mapere (Lepra);
Bilharziose;
Dores de barriga;
Esterilidade;
Impotência sexual;
Mordedura de cobras;
Usando a cauda de um animal (chiphendo), o curandeiro começa a fazer análise
ao doente para identificar a doença e se ela é curável ou não. Geralmente, usa-
se a cauda de Kudo (ngoma) designado por nchira. Depois usa-se instrumento
de consulta (nhamphembera) para saber o tipo de medicação a dar ao paciente.
Uma vez identificada à doença, segue-se ao tratamento com raízes.
O tratamento
De acordo com as nossas fontes, o tratamento é um acto que pode ou não estar
associado a crenças e envolvem espíritos, que afiguram como elementos
mediadores entre o sobrenatural e o n’anga (curandeiro). Quando for o caso, o
espírito age como elemento de ordem divina para orientar os procedimentos
que devem ser levados a cabo pelo n’anga para efectuar o tratamento. Para o
efeito, os n’angas recebem as informações concedidas pelo espírito, indicando
os medicamentos que devem ser aplicados no âmbito da cura de uma
determinada doença.
As informações que são obtidas durante o sonho, proveniente de contacto com
os espíritos, possibilita saber quais são as plantas e os locais onde se podem
encontrar os remédios. É deste modo que os curandeiros conseguem obter os
conhecimentos inerentes a medicina tradicional, para que as pessoas se
possam beneficiar da cura de diversas doenças.
Nos casos em que o curandeiro já conhece o medicamento ou já recebeu
instruções de outras formas de praticar a medicina tradicional, não passa pelo
101
processo descrito. Ele, simplesmente receita imediatamente ao seu paciente o
tipo de medicamento, dando-lhe todas as instruções de aplicação.
Figura 51: Praticante de medicina tradicional durante o tratamento de uma criança ﴾Foto de Edimar Fernando Reane﴿
102
103
Mikanda é o nome local designado ao colar fabricado na base de missangas.
Trata-se de um objecto decorativo usado para ornamentar colares, que
possuem um pequeno furo no meio por onde passa um fio ou corda.
O uso de mikanda é uma prática antiga no seio do grupo etnolinguístico Barke,
exclusivoprincipalmente em mulheres adultas e adolescentes para torna-las
lindas e atraentes. As crianças do sexo feminino também são colocadas
mikanda, neste caso, apenas como objecto de adorno.
Quando se trata de criança, a mãe é a responsável no fabrico do colar, e este,
deve ser feito com apenas um fio de missangas, enquanto nas adolescentes e
adultas, cada uma é responsável na confecção do seu próprio colar de vários
fios de missangas.
Antigamente as adolescentes consideradas prontas para o relacionamento
conjugal, deslocavam-se as lojas dos comerciantes indianos para comprar
pacotes de missangas. Nestes pacotes, podiam encontrar-se missangas
misturadas de diversas cores entre vermelho, verde, branco, azul e amarelo.
Nessa altura, caso a menina se deparasse com um conhecido ou vizinho na
loja, ela não efectuava a tal compra, até que este saísse do estabelecimento,
pois tratava-se de um tabu.
O fabrico de mikanda é uma arte secreta feminina, por isso, deve ser feita fora
do alcance dos homens e de menores de idade, razão pela qual, geralmente são
fabricadas em lugares fechados, caso contrário existe uma crença segundo o
qual não surtira os efeitos desejados.
As mulheres da Localidade de Nhassacara colocam a mikanda como forma de
valorizar o seu corpo e, sentem-se prestigiadas perante as outras mulheres que
não tenham. Além disso, localmente acredita-se que o ruído resultante do
choque entre as missangas serve de estímulo durante as relações sexuais. Este
som também é sinónimo de beleza e fonte de atracção dos homens, para o caso
de mulheres solteiras.
Actualmente, a prática caiu em desuso devido a desvalorização do costume, a
falta de missangas de grande qualidade no mercado como também devido a
evolução das pessoas que com o passar do tempo, adoptaram novas e
diferentes formas de se vestir.
Importante referir que, para os barkes existe uma diferença entre missanga e
mikanda, pese embora missanga seja uma palavra portuguesa. Para estes,
missanga são as de tamanho menor que geralmente colocam no pescoço ou
nos braços da mulher, enquanto mikanda são grossas e coloca-se na cintura.
104
Em alguns casos, missangas eram também usadas pelos homens com espírito
de caça ou caçador ﴾maissiri﴿.
Figura 52: Colares feito de mikanda e suas
respectivas argolas ﴾Foto de Mariano Bento
Candieiro﴿
Figura 53: Fazedora de mikanda exibindo um colar
de mikanda (Foto deMariano Bento Candieiro)
Fabrico da Mikanda
Primeiro passo consiste em adquirir as missangas, de seguida são retiradas do
pacote e colocadas (kutunguira) num fio de sisal (gavi), ou ainda linha de saco.
Para facilitar a introdução da linha no furo das missangas, ela é colocada
numa agulha em uma das extremidades. As missangas são seleccionadas de
acordo com a cor, de modo a diversificá-las e torná-las mais decoradas, lindas
e atraentes.
Na medida que são colocadas sobre o fio, a fabricante vai experimentando para
verificar sea quantidade colocada é suficientes para dar a volta a sua cintura.
Dependendo da quantidade das missangas disponíveis, a mikanda pode
comportar entre 10 à 30 linha de missangas. Depois disso, o colar estará
pronto para ser usado na cintura (nkundu).
105
106
No sentido amplo, música é entendida como a combinação de ritmo, harmonia
e melodia, de maneira agradável ao ouvido. É ainda a organização temporal de
sons e silêncios. No sentido restrito, é a arte de coordenar e transmitir efeitos
sonoros, harmoniosos e esteticamente válidos, podendo ser transmitida através
da voz ou de instrumentos musicais.
A música tradicional também denominada música folclórica ou étnica, é aquela
que se transmite de geração em geração por via oral e hoje em dia se transmite
também de maneira académica como uma parte más dos valores, da identidade
e da cultura de um povo. Tem uma característica étnica que normalmente a faz
fácil de compreender e que simboliza as tradições e costumes de um povo.
A música tradicional representa as crenças e as tradições de uma determinada
região e, grande parte dela possui letra de fácil memorização e está ligada às
festividades, envolvendo danças típicas de uma determinada cultura para além
de que está intimamente ligada à música popular.
Kaembe
Entre os barkes de Nhassacara é indissociável a músicado instrumento
musical, isto é, a música tradicional é acompanhada de toque de instrumentos
tradicionais, e no caso concreto, tanto a música bem como o instrumento
tradicional, são designados de Kaembe.
Importa clarificar que o nome “Kaembe” surge porque na Localidade de
Nhassacar o indivíduo por sinal a única mulher, quem toca a música e o
instrumento tradicional ser vulgarmente conhecida por Mbuya Nyakaembe, daí
as pessoas passaram a designarKaembe para se referir tanto as músicas como
o instrumento tradicional.
O Kaembe como música tradicional, pode-se equiparar a uma trova pelo facto
de normalmente não ser dançada, mas sim escutada e o conteúdo das suas
letras e canções são bastante admiradas pela comunidade, pelo facto de
retratar a realidade social e o quotidiano como teremos a oportunidade de
perceber mais adiante.
Kaembe como instrumenta tradicional musical é produzido com a finalidade de
produzir som que acompanha a música.
Ao nível da localidade, não se tem conhecimento da época a respeito da origem
do surgimento da música assim como do instrumento a ela ligado, pelo facto de
inexistência de literatura que retratam o assunto. Certo, é o facto de que no
107
passado o instrumento Kaembe acompanhava outros instrumentos tradicionais
como a Valimba, e actualmenteacompanha alguns cânticos ecuménicos
entoados nas igrejas.
Contemporaneamente ao nível da Localidade de Nhassacara, nota-se uma
tendência de desaparecimento da música assim com do instrumento
tradicional, pelo que se pode constatar, somente uma pessoa é que pratica tal
manifestação, aliado a isto está o facto dos admiradores da música e do
instrumento tradicionalpreferiremapenascontemplar a praticante enquanto
canta e executa o instrumento, sem no entanto interessarem-se em aprender
tal manifestação.
O cântico e a execução do instrumento podem decorrer a qualquer altura do
dia, ano e local, sendo que a sua disseminação e divulgação é feita não só ao
nível comunitário e regional como tambémem Festivais Nacionais de Cultura. A
sua valorização pode constituir não só a preservação de traços culturais do
grupo étnico barke como também potenciar o turismo de base comunitário.
Fabrico do instrumento Kaembe
O processo de fabrico do Kaembe é bastante simples, bastando para tal, dirigir-
se ao mato para obter o caniço (nyatsingai) o qual é cortado, tanto com as
mãos ou com ajuda de uma faca (mpeni) em tamanhos e medidas iguais. Uma
vez transportados a casa, prepara-se uma corda29 de saco (ussalu wa mica)
para poder unir os pedaços de caniço, que são organizados paralelamente com
até cerca de 30 centímetros de cumprimento cada. De seguidacom a corda,
tecem-se com as mãos juntando vários caniços, de modo a não deixar
nenhuma folga entre eles, até obter uma estrutura com formato de uma
esteira, com geralmente, três linhas de cozeduram sendo duas nas
extremidades e uma ao meio.
Depois de alcançar as medidas desejadas, o instrumento é dobrado e colocado
ao meio por dentro perpendicularmente aos caniços, um pau grosso com a
medida do instrumento de maneiras a suportá-lo a quando do seu manuseio e,
nas duas extremidades perpendiculares ao apu grosso, são colocados caniços
mais resistentes. Note que, geralmente são colocados paus ou caniços mais
29Este processo consiste em juntar duas ou mais linhas e com ajuda das coxas dos pés e as mãos vai-se esfregando (trançar) suavemente começando de uma ponta até a outra, ambas de uma só vez fazendo uma única corda tornando-a mais resistente.
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fortes por onde o instrumento é dobrado e pelo meio no seu interior, para
dificultar a sua danificação.
Terminado este processo, coloca-se no interior do instrumento algumas
pedrinhas (minhala) que quando movimentado o instrumento, produz um som
caracteristico. No final, tapa-se as laterais com cola, asfalto (thala) ou cera de
abelha, e deste modo, após a secagem da cola, o instrumento está pronto para
ser utilizado.
Figura 54: Instrumento designado por kaembe (Foto de Conde Serafim Saiconde)
Forma de tocar o Kaembe
O Kaembe é tocado com as duas mãos segurando o instrumento nas duas
extremidades dobraveis. Os dedos polegares ficam por cima do instrumento,
enquanto os restantes ficam do lado de baixo. As mãos tocam o instrumento
através de movimentos em ziguezague, de cima para baixo ao nível entre o
peito e a parte abdominal, produzindo um som mediante o choque entre as
pedras e os caniços no interior deste. Toca-se normalmente sentado em uma
esteira ou cadeira.
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As letras musicais
Eis algumas músicas em língua local ci-barke (original) e sua respectiva
tradução em língua portuguesa:
Música tradicional em língua ci-barke
Ndasala nderera
Ndasala nderera ine
Ndasala nderera
Muanzanu ndasati ndalira ine
Ndasala nderera muaianu ndasati kulonga ine
Ndasala nderera mubonera ndabonera ine
Hehe i he hai
Hehe ihe mai
Hehe ihe
Ndasara murombo, ndasala nderera makole masere ndikubonera ine
Ndasala ndelela namala ndapinda tsaona ine
Ndasala nderera kugonera ku gonera rede
Ndasala nderera kufunika nkufunica moto
Ndagala nderera muanzanu ndasati ndalira
Ndasati ndalira kumberi ku ndichalira muaianu
Ndabonera ine, mai kubonera ine
Ndabonera ine kubonera chengeta nderera
Ndabonerea ine cubonera cuchengeta wapuere ine
Ndabonera ine wana wakula palibe chaona ine
Ndabonera ine ndiende kumunda chinelo zichalipo
Ndabonera ine kudanyumba foro ichainchadaiona
Tradução em língua portuguesa
Fiquei órfã
Fiquei órfã eu, fiquei órfã
Fiquei órfã eu vossa colega antes de chorar eu
Fiquei órfã eu antes de chorar
Fiquei órfã eu antes de falar, sofrer já sofri eu
Fiquei pobre e fiquei órfã, seis anos eu a sofrer e depois disso entrei em um
grande acidente
Para dormir durmo numa rede mosquiteira e cobrir cubro fogo
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Fiquei órfã eu vossa colega antes de chorar e sei que mais vou chorar lá em
frente
Sofri eu mãe e estou sofrendo e criando crianças órfãs
Sofri, as crianças cresceram e nada vi eu, sofri eu ir a machamba sem pelo
menos chinelos, sofro mais ainda porque quando entro dentro da casa ainda
vejo a foto dele.
Música tradicional em língua ci-barke
Ine mai kupalikiwa ine
Ndatine mai kupalikiwa ine
Wakalekale ndiwo ampalika
Wana wana hawachapalike
Mungada kupalikaku palika mphalidzóo
Napakufamba napakutaula
Ningalipakati pakutambudzana
Wangada kuseca secapamano
Wakalekale ndiwo anamuambóo
Wana ino hawachina mitemóo
Wakulu walikulonga walikutucatuca moio
Napafamba musolo kutendera
Chinaronga wakulu ngawataire wanawa
Akabala mwana mbodzi avindaitiwa ine waiangu
Mukhandaidzenimbo mai watingui
Wasati wakula uchali mwana ma
Kubala muama sikudakuaco tai
Udabala muanapa nimulungu adakupa
Adakupasila kukunyaladza moio wakoiu kuti bambudziko la underera limale
U ite ma nyemueniemuere mulungu muaita basa
Muakandipa changu ndinoda
Wakale wangu wakandiseka
Wakandiseka wachindisarudza, wachindivunza ndiri nderera
Ndadzaenda kiabsaga kubsaga baba wangu
Kupsika nalero mulungu ndinaie
Ndainaupenyu na hama dzangu
Kana kufeka kufeka ndembe nderera
Kana kufuca kufuka moto mulombo
Kiandipa madzi kundipa sude nderera
Kiandipa sadza kundipa bhutu mulombo
111
Kiandipa nyama kundipa tsesa la muti
Kuva kuti ndinyama nkunchoncha muto okha
Lekani kupedza nyama saka nchimuti chili mumbale
Hama dzangu ndingalongeni ine nderera
Hama dzangu ninseka tani ndili mulombo
Mwaona ndakula muakundida chinchino
Ndainamui wangu na hama dzangu ziri paumbapa
Andeni pai ndiri piachema kuna mulungu
Ndakula baba ndakula baba nderera
Tradução em língua portuguesa
Ser casada numa poligamia
Mãe, estar numa poligamia...
Os antigos é que fazem a poligamia, as crianças de hoje já não conseguem fazer
a poligamia
Quando fazem a poligamia fica pregação na zona a andar falar das esposas
Parecem que estão no meio de se maltratar, quando rir só são os dentes
Os antigos é que tem educação, mas as crianças de hoje já não tem educação,
quando os mais velhos falam eles nos seus corações estão a insultar, onde você
anda a cabeça sempre a rodar o contrário
O que falam os mais velhos que estas crianças obedeçam
Quando nasce uma só criança diz que algo fui feito, mamã chama-me também
alguém para encontrarmos as causas
Antes não cresceste, ainda és criança, o nascer criança não é sinónimo de
crescer
Se nasceste esta criança é porque Deus te deu
Te deu para te acalmar o coração para o teu sofrimento de órfã acabe
Devias jingar e alegrar dizendo obrigado Deus porque me deu o que eu tanto
queria, a família me ria e se separavam de mi, dizendo que sou órfã
Fui procurar, procurar meu pai e até hoje estou com Deus
Tenho uma vida com minha família
Mesmo para vestir o órfão veste farrapos, e para cobrir cobre fogo o pobre, peço
vos água me dão água sujapor ser órfã e quando me dão comida me dão farelo,
em vez de me dar carne me dão casca de árvore órfã
Ouvir que em casa há carne somente me dão molho e carne é um grande
pedaço de pau que está no prato
Meus irmãos, o que posso dizer eu sendo uma órfã, como me posso alegrar
enquanto sou pobre
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Agora que cresci já me precisam, porque estão a ver que já tenho minha casa e
minha família
É verdade pai, eu chorei perante Deus, já cresci, já cresceu aquele órfão
Agora que cresci já me precisam, porque estão a ver que já tenho minha casa e
minha família
É verdade pai, eu chorei perante Deus, já cresci, já cresceu aquele órfão
Música tradicional em língua ci-barke
Nyakucherenga ine
Baba nyakucherenga ine (5 vezes)
Muacherenga mucherenga chua imue
Wakadzi wamazua ano kulamba amunalombo
Walikuda mantigo mantigo ndio anamale
Umgafikira panyumba yantigo kufikira ng´ombe alibe
Ati male antambira immalira aputa na mbamua
Haubziuone wekha, Haubziuone wekha
Mulikulamba alombo siwa imue
Nyacucherenga ine
Ande kucherenga nde, ande kucherenga nde
Unde kucherenga ine, ande kucherenga nde
Ona ndainanyumba ine, ona ndainawana wangu
Aziwanga kundiramba chua
Baba kucherena ine, andecherenga ine
Andecherenga ine, baba kucherena ine...
Tradução em língua portuguesa
Sofrimento
Pai quem está a sofrer sou eu, pai quem está a sofrer sou eu, pai quem está a
sofrer sou eu.
É verdade que você está a sofrer? As mulheres actuais negam homens pobres
Somente querem antigos combatentes porque tem dinheiro
Quando chegar na casa de um antigo combatente e encontrar que não tem
uma cabeça de vaca, diz-se que o dinheiro acaba com as prostitutas e bebida,
não vens também sozinho?
Estão a negar casar-se com os pobres, será verdades que estão a sofrer?
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Quando chegar na casa de um antigo combatente e ver que não tem casa
condigna, dizem que o dinheiro que recebe acaba com prostitutas e bebida, não
vens também sozinha?
Estão a negar pobres, veja que já tenho casa, já tenho crianças
Negar o pobre, negar o pobre, é verdade?
114
115
Dança tradicional é conceituada como sendo a arte de movimentar
expressivamente o corpo seguindo movimentos ritmados, em geral ao som de
música.
Dança folclórica - trata-se de uma forma tradicional de dança recreativa do
povo e são específicas de um determinado país e cultura. As danças sempre
foram um importante componente cultural da humanidade. Muitas das danças
folclóricas tem origens anónimas e foram passadas de geração para geração
durante um longo período de tempo. O folclore da Província de Manica é rico
em danças que representam as tradições e a cultura de uma determinada
região, muitas delas ligadas aos aspectos religiosos, festas, lendas, factos
históricos, acontecimentos do quotidiano e brincadeiras.
Geralmente a arte de dançar é praticada em diferentes ocasiões como no
período de colheitas, nos rituais aos deuses, na época das caçadas e pescas,
nos casamentos, em momentos de alegria ou tristeza, ou ainda, em
homenagem à mãe natureza. É considerada a mais completa das artes, pois
envolve elementos artísticos como a música, o teatro, a pintura e a escultura,
sendo capaz de exprimir tanto as mais simples quanto as mais fortes emoções.
Na maior parte dos casos, a dança, com passos cadenciados é acompanhada ao
som e compasso de música e envolve a expressão de sentimentos potenciados
por ela.
O significado da dança vai além da expressão artística, podendo ser vista como
um meio para adquirir conhecimentos, opção de lazer, fonte de prazer,
desenvolvimento da criatividade e importante forma de comunicação. Através
da dança, uma pessoa pode expressar o seu estado de espírito. A dança pode
ser acompanhada por instrumentos de percussão ou melódicos, ou ainda pela
leitura de diferentes textos.
A dança teve forte influência nas sociedades ao longo dos tempos. Como via de
socialização e disseminação de cultura, proporcionou ao mundo o
conhecimento sobre a diversidade cultural dos diferentes povos em todo
mundo, especialmente através das danças folclóricas.
Todas as sociedades tradicionais assim como as modernas são acompanhadas
de dança e música que as tem identificado ao longo da vida. As origens da
dança perdem-se no longo percurso da sua história. Realmente, desde os
tempos já lá idos a expressão cultural lhes é reservado um papel importante na
sociedade e de acordo as especificidades de cada região, elas foram adquirindo
116
diferentes significados, transmitindo por um lado, a alegria, o amor, a
fraternidade e a solidariedade e, por outro, a tristeza, o sofrimento, a nostalgia
e a dor, entre outros sentimentos humanos.
Entre os barkes na sua generalidade e na comunidade de Nhassacara
particularmente, a dança faz parte do quotidiano dos residentes em qualquer
momento das suas vidas. Ela estende-se ao domínio ambiental, social e mostra
maneiras como os adolescentes e jovens são preparados para os desafios da
vida, tanto a nível individual, como de grupo. No domínio espiritual, a dança
simboliza o elo entre os vivos e os mortos, jogando estes últimos, um papel
relevante na reprodução material dos primeiros. As canções e as letras dessas
são compostas de acordo com o tipo de situação em alusão, além de que as
letras também podem trazer alguma mensagem educativa para a comunidade.
Dança Mafuwe
É uma dança, segundo os nossos entrevistados, originária do Distrito de
Changara, Província de Tete onde actualmente é bastante praticada, e ao nível
da Província de Manica, ela é praticada na zona Norte, possivelmente pelo facto
da sua proximidade a Província de Tete.
Mafuwe é praticado por homens e mulheres das mais variadas idades30 sendo
que, antigamente, era executada somente em cerimónias fúnebres (nkawa) e de
pedido de chuva (kuteta madzi) e actualmente verifica-se igualmente nas
cerimónias de recepção de dirigentes, cerimónias públicas, dias
comemorativos, festivais de cultura e outras festividades e celebrações.
O grupo de dança é geralmente composto por 10 a 20 elementos, dos quais
quatro homens que tocam os três batuques que acompanham a dança. Um dos
homens fica de suplente para substituir a quem sentir-se cansado ou
indisponível, os restantes elementos do grupo é constituído por cantores,
dançarinos e animadores. Destes, um é o chefe do grupo que é eleito em função
30 As crianças participam na dança somente em actos festivos, o que possibilita a sua aprendizagem, sendo que estas não podem fazer parte a quando da execução em cerimónias fúnebres,pois em sociedades africanas tradicionais a morte é considerado como algo assustador principalmente para as crianças e que geralmente não estão preparadas para lidar com o fenómeno.
117
da capacidade de criatividade e a confiança que os restantes elementos
depositam nele.
Para dançar mafuwe, primeiramente o grupo é informado sobre a necessidade
da dança, pelo chefe do grupo, sendo que, geralmente, a necessidade deriva do
propósito da ocasião a que a mesma é executada. Após informado o grupo
começa com os ensaios onde aprimoram entre outros aspectos, as canções de
acordo com o propósito em alusão.
A dança é executado com os dançarinos dispostos de forma circular,
caracterizada pelo uso do corpo seguindo movimentos estabelecidos
(coreografia) ou improvisados (dança livre), movimentando-se para o interior e o
exterior do círculo, e de frente para trás a medida que o círculo vai girando.
Para acompanhar a dança são usados e tocados instrumentos como o apito31,
chocalho32 (ngocho), batuques33, bem como palmas das mãos e dos pés.
Actualmente os praticantes podem executar dança usando uniforme, algo que
em tempos não acontecia. Normalmente o facto acontece quando se trata de
um grupo para se apresentar durante a recepção de dirigentes, festivais de
cultura ou em cerimónias oficiais, porém, não se restringe a execução da
mesma sem necessariamente precisar de uma indumentária específica, como
aliás acontece normalmente em cerimónias fúnebres ou recreação. O uniforme
é composto geralmente por capulana, blusa e lenço para as mulheres e calças,
camisa e chapéu para os homens, da mesma cor para ambosos sexos.
Como fizemos menção da variedade de conteúdo das canções, de acordo com a
ocasião, eis alguns exemplos:
No ritualfúnebre canta-se wassarakuronga kokoriko jongwe, a letra pede
aos presentes, principalmente aos familiares para chorarem pelo ente querido,
deixando de parte a identificação de culpados pela morte, uma característica
típica das sociedades africanas em caso de morte. Neste ritual, quando trata-
31Usado por um dos tocadores de batuques para orientar o grupo. 32Instrumento feito de cabaça ou lata que, no seu interior se introduzem pedras ou algumas sementes que, agitando, produzem um som que acompanha outros instrumentos tradicionais. 33Comummente três, sendo: kabidibidi, batuque pequeno que se toca com duas baquetas;djenje, batuque médio que se toca com duas baquetas e constitui o batuque sobre o qual se assenta a dança, porque todos os passos importantes são determinados polo som produzido por ele e mutunda, batuque maior que se toca com uma mão e uma baqueta.
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sede um defunto no qual se aguarda pela chegada dos membros da família
para o enterro, a dança pratica-se enquantose aguarda o enterro, sendo que,
depois do enterro ela não é executada. O toque do batuque kwenje é usado
para anunciar a morte (kuzimbula nkhawa) na comunidade.
No ritual de chuva, canta-se kuteta madzi (pedir água aos espíritos), trata-se
de uma canção de pedido de chuva aos espíritos, para que os filhos não
morram de fome. Neste ritual participam todos os anciãos e membros
reconhecidos da comunidade para realizar a cerimónia e, a dança acompanha
o ritual.
Em cerimónias oficiais ou públicas, dias comemorativos, festivais de cultura e
outras festividades e celebrações o conteúdo das canções enaltece os feitos dos
dirigentes nas mais variadas esferas da vida e versam a respeito da ocasião e
do dia-a-dia da sociedade.Aspecto frequente em quase todas essas ocasiões é a
evocação durante os cânticos dos espíritos nyangulo, considerado guardião da
comunidade.
Letras e canções
Apresenta-se abaixo algumas letras das canções entoadas a quando da prática
da dança mafuwe em língua local ci-barke, seguida da sua tradução em língua
portuguesa:
Wassossera kulonga
Hia há hie hie hia é, Hoie hoie Hie hie hiaenda, hoie hoie Hie hie hiaenda Wassossera kulonnga Hie hie kulonga sinakufuna ndaitaine Hoie hoie hoie Hía
Hoie hoie hóoieee Wassossera kulonga Hié kuronga sinakufuna ndaitaine Hoie hoie Ihóie enda Hoie hoie Ihóiene nda enda Wassossera kulonga Hié kuronga sinakufuna ndaitaine
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Hoie hoie Ihóie enda Hoie hoie Ihóiene nda enda Wassossera kulonga
Tradução em língua portuguesa
Provocaste barulho para discutir Provocaste barulho
Mas eu não gosto de discutir Eu não gosto não Mas criaram condições para discutir
Criaram condições para discutir
Ndadhawa
Ndadhawa ndatukanyonyo ndiaripe He hé hé Ndadhawa He hé he Ndadhawa Ndadhawa ndine Ndadhawa ndaluka dololawe ndiaripe He hé he Ndadhawa He hé he Ndadhawa Ndadhawa ndine Hia hia hiii, hie hie He hé he Hhie He hé he Hie hie Ndadhawa ndine…
Tradução em língua portuguesa
Falhei Eu falhei e deixem me pagar pelos meus erros
Falhei e reconheço que falhei Falhei e preparei mal a bebida do dono E deixe me que pague pelos meus erros
Falhei, falhei e falhei Eu que falhei e reconheço que falhei
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Dança Kunumbira
Também designada kwinimbira, é uma dança praticada na zona Norte da
Província de Manica, com enfoque para os Distritos de Báruè e Guro, desde os
tempos imemoriais e transmitido entre gerações. Trata-se de uma dança
essencialmente espiritual e devido a globalização ela vem sofrendo
trasformaçõesque faz com que, actualmente ela não seja praticada como
antigamente.Ofacto de muitas pessoas professarem o cristianismo, faz com que
elas deixem de lado determinados hábitos e costumes que entram em
contradição com o professado.
A dança é praticada a qualquer momento do dia ou do ano, desde que haja
necessidade tanto nos momentos festivos como de tristeza. Constituem
mementos festivos o convívio ao nível comunitário, comemoração de datas
festivas, festivais de cultura, recepção de um filho que estava ausente durante
muito tempo (geralmente vido do estrangeiro), o reencontro de amigos que há
bastante tempo não se viam e em tempos ela era praticada também quando na
adolescência as raparigas ainda virgens apanhavam a primeira menstruação
(chinamwali). Constituem momentos de tristeza as cerimónias fúnebres e
consulta aos espíritos para a resolução de problemas que afligem a
comunidade.
Dias antes da execução da dança, procede-se a identificação do local e faz-se a
devida preparação (ensaios). Caso motivo da execução for um falecimento, a
preparação e a organização é imediata, mediante a sensibilização da
comunidade sobre o sucedido.
Por motivos espirituais, a dança é executada quando um indivíduo encontra-se
doente e a família vai a procura de mecanismo para solucionar o problema de
saúde, acabando muitas vezes, por dirigir-se a um curandeiro como é costume
nas sociedades africanas tradicionais. Consultado o curandeiro, em muitos
casos, este informa que trata-se de uma doença cujas causas são espirituais.
Para curar a doença o curandeiro informa da necessidade de se preparar uma
bebida (doro), para oferecer o referido espírito causador da doença para que o
doente melhore. Preparada e pronta a bebida, estende-se uma esteira e por
cima desta coloca-se uma bilha (nkali) de bebida tapada com prato de madeira
(ndiro) onde coloca-se um pouco de farinha. De seguida, o pai do doente tira o
prato de madeira e leva a farinha para espalhar em redor da bilha.
Posteriormente, o pai leva uma cabaça (nkombo) e entrega ao doente em caso
deste ser homem e este por sua vez tira a bebida da bilha e vai colocando em
121
pequenas cabaças (nkakasi). Se a doente for uma mulher, é o próprio pai ou
um dos irmãos da doente que se responsabilia em colocar a bebida nas
cabaças. Enquanto se coloca a bebida nas pequenas cabaças, o pai vai
proferindo algumas palavras para os espíritos dizendo: “Ona sekuru
umulekelele mwana, mbumba yako ykhale bwino”, que traduzido em língua
portuguesa significa: “veja vovó, liberte a criança da enfermidade para que a
tua família viva bem” nesse processo costumam estar presentes outras pessoas
comovizinhos (sahwiras) que não sendo da família, participam no acto para
ajudar a família. No momento em que as palavras são proferidas evocando os
espíritos dos avôs do doente, as mulheres idosas vão jubilando como forma de
enfasear as palavras.
Depois tira-se a esteira por onde estavam sentados no momento de invocar os
espíritos e tapam a bebida nas pequenas cabaças. O pai da casa tira uma bilha
de bebida para entregar os sahwiras como forma de lhes agradecer pela ajuda
prestada durante a cerimónia. Enquanto os sahwiras bebem, prepara-se uma
refeição (makumzu) para os presentes.
Consumida a refeição, segue a execução da dança que é interrompida
pararetirar-se a bebida colocada em pequenas cabaças. Em seguida vai-se
buscar uma bilha de bebida para junto das pequenas cabaças e os
participantescomeçam a cantar, segundo os nossos entrevistados, para
despertar os espíritos (kuthimulawazymu) por formas a lhes mostrar a casa e
os membros da família a serem concedidos protecção. Os sahwiras tiram a
bebida das pequenas cabaças e vão bebendo e, de forma imperativa vão
proferindo palavras aos espíritos, persuadindo-os para que não deixem a
família sem protecção, tudoacompanhando ao som de batuquese da dança.
A dança é executada por homens e mulheres de todas as idades, sendo que as
crianças não podem fazer parte em caso de cerimónias fúnebres pelos mesmos
motivos referidos no concernente a dança mafuwe.
Os dançarinos, homens que tocam os batuques34 (ngoma) e os assistentes
fazem parte do espectáculo. Os homens que tocam os batuques ficam numa
linha recta, enquanto os dançarinos e assistentes ficam frontais aos homens
que tocam batuques, formando um semicírculo.
34 Usam-se quatro batuques: kabidibidi, batuque pequeno de som agudo, é o primeiro a ser tocado depois que as mulheres começam a cantar; kalipikalipi, que segue ou responde ao kabidibidi; mpange, sequencia os dois anteriores e djenge que é o último a ser tocado e é a partir deste que os dançarinos começam a exibir as suas habilidades. Além dos batuques existem as baquetas (miumbo/miridzo), que se usam para tocar batuques, sendo que a pessoa que começa a cantar designa-se por nyemwzi, que pode ser uma mulher ou um homem e o homem que começa a tocar o batuque designa-se por santhemba.
122
Os passos são executados com um ou mais elementos do grupo dirigindo-se
para o interior do palco (espaço entre os homens que tocam batuques e os
dançarinos e assistentes) onde, ao ritmo dos batuques e do batimento das
palmas das mãos, vão exibindo as suas habilidades, depois saem e entram
outros elementos do grupo e assim sucessivamente até completar todos os
elementos.
Não existe uma indumentária específica para a execução da dança, pois ela
têm variado, tanto com o tempo assim como a possibilidade e ocasião, podendo
dançar-se usando saia, blusa, pantalonas e lenço para as mulheres e calças,
camisa e chapéu para os homens. Em alguns casos acrescenta-se a estas
roupas caso houver uma saia de folhas de palma (ngwaiawaia/muchindo),
chocalhos dos pés (ntsikaw), chapéu de palha (heti ya micheu) e pele de macaco
(kanda la bongwe). Tanto nas cerimónias fúnebres como festivas, a forma de
dançar é a mesma, diferenciando somente o conteúdo das letras e canções.
Letras e canções
As letras das canções que acompanham a dança kunumbira vão de acordo com
evento em alusão. Por exemplo, a canção “dzidzi ningabvironga
atiwaipankanwa” que numa tradução simplista em língua portuguesa quer
dizer “se eu falar isso, dizem que falo demais”, é uma canção que retrata vários
erros cometidos pelas pessoas na comunidade e, quando as outras pessoas
tentam aconselhar consideram-nas de fofoqueiras.
A canção “chulenimai chidamukakale” retrata a indignação pela morte de uma
criança ao invés de uma pessoa adulta, é uma espécie de acusação a alguém
fectícia, supostamente responsável pela morte. Ela é cantada pelos sawiras,
que o fazem zombando.
“Ndekerie zadinyanya pamwi”é uma canção que faz menção a alguns chefes de
famílias que ficam todo tempo a murmurar ou resmungar a respeito das
adversidades da vida, criando condições para que algumas pessoas de má fé
como feiticeiros se aproveitem da situação para criar tragédia na família que,
depois responsabiliza o chefe da família como sendo o culpado pelo facto do
seu resmungo.
Musica Tradicional em língua ci-barke
Chuleni mai
Mbachule, é é é, mbachule
123
Chidamukakale, mbachule é é é, mbachule
Chuleni kani chuleni, mbachule é é é, mbachule
Tradução em língua portuguesa
Que seja morta
Que seja morta sim, sim, que seja morta
Que seja morta embora já tenha ressuscitado, que seja morta
Há bastante tempo que comete barbaridades contra a familia
Mas que seja morta.
Musica Tradicional em língua ci-barke
Ndekerie
Ndekeri ndekeriee wekha
Ndekeire muantandaza mwana wekha
Ndekerie ndekerie wekha
Ndekerie zadinyanya pamui wekha
Ndekerie ndekerie wekha (3)
Watsikana muampereka mwanai wekha
Ndekerie ndekerie wekha
Ndekerie zadinyanya zino wekha
Tradução em língua portuguesa
Por causa de todo momento estar a resmungar
Por causa disto entregaste sozinho a criança aos praticantes do mal
Isso o que fizeste sozinho por falar demais todos os dias
Resmungar está demais aqui em casa
Senhoras, entregaram sozinhas estas crianças por falarem demais
Falar demais trás problemas em casa
124
Dança Mangoni
Originária do grupo étnico dos falantes deci-barke, ela é praticada na maioria
das vezes por pessoas reencarnadas por um espírito não maligno, designado
“gamba”, levado pelo chefe da família num curandeiro para a protecção desta
contra diversos males (doença), que depois de terminar com a sua missão
precisa de ter uma família e um lar para descansar.
A dança Mangoni estabelece uma relação entre o mundo visível e invisível onde
através dela, as pessoas acreditam que os espíritos resolvem os seus
problemas, ajudando a solucionar as suas preocupações principalmente no
tratamento de doenças. Actualmente ela é igualmente praticada como uma
dança recreativa sem necessariamente estarem presente pessoas reencarnadas
de espírito, tal é o caso de festivais da cultura. Como dança espiritual, ela é
acompanhada pelo consumo de bebida tradicional.
Uma vez o espírito trazido a casa, com o passar dos anos, ele reencarna em
alguém da família (geralmente uma menina) fazendo-a adoecer, e os pais da
menina na tentativa de solucionar o problema, se dirigem a um curandeiro
para saber as razões que estão por detrás do adoecer da menina. Chegado ao
curandeiro, o espírito reencarna primeiramente no curandeiro e começa a
explicar os motivosdo adoecer da menina, a medida que pergunta aos
presentes se não o reconhecem. O espírito explica a sua origem, identifica o
membro da família que teria sido o responsável em o levar até a casa destes e
os motivos pelo qual faz adoecer a menina, referindo geralmente estar cansado
de viver no mato e ter já feito o trabalho pelo qual foi buscado e que ele precisa
ter uma esposa e uma casa naquela família.
A família procura saber o que o espírito deseja que seja feito para que a menina
melhore. O espírito recomenda-lhes que preparem uma bebida (dhoro) e lhe
toquem batuques, para nesse processo reencarnar-se na menina enferma,
passando a ser considerado genro da casa, mesmo que ela seja casada com
alguém.
Imediatamente a família começa com os preparativos do fabrico da bebida,
iniciando com o seguinte ritual: ainda em casa do curandeiro, a pessoa
possuida pelo espírito entra numa casinha onde se realizam as consultas,
acompanhada do seu esposo caso tenha ou seu pai ou um tio paterno, busca
um valor de até 10 meticais e coloca no prato tradicional feita de madeira
(ndiro), batendo as palmas, o acompanhante profere as seguintes palavras:
“tirikukudai sekulu”, que significa “estamos a lhe precisar vovó”, acrescenta
dizendo “tirikuda kuita dhoro”, que traduzido “queremos fazer bebida”.
125
Oespírito responde que ouviu e, procura saber para quando está agendada a
cerimónia, o acompanhante responde consoante o planificado.
Preparada e pronta a bebida, a família da pessoa possuida tira um valor de 1 a
2 meticais e encarrega um membro da família para fazer chegar o valor em
casa de determinadas pessoas vizinhas, geralmente pessoas possuidoras de
espíritos e praticantes da dança. Como forma de as convidar, o encarregado
pelo valor chegado a casa destas e uma vez atendida, pede um prato e coloca
nele o valor, dizendo que foi enviado pela família para vir a esta casa porque
existe Mangoni dizendo o nome da família, o local, o dia e a hora em a dança
será executada.
Feito isto, o convidado compreende tratar-se da dança e, no final da tarde,
depois do jantar, prepara a sua pasta onde coloca a indumentária35 necessária
para a execução da dança e na hora combinada dirige-se para a casa da pessoa
que a convidou. Chegado, os convidados entram numa casa, sentam-se nas
cadeiras e tocando chocalhos (ngocho) esperam até ser reencarnados pelos seus
espíritos, juntamente com o espírito da casa. Depois de todos eles estarem
reencarnados, o espírito da casa pede um prato de madeira (ndiro), onde
coloca-se um valor monetário e diz as presentes: “eu é que vos chamei porque
tem bebida para divertirmos”, todo este processo acontece enquanto os
batuques (ngoma)36 e os assistentes já estão por fora, prontos para a dança.
Depois, o espírito de casa é dito pelo sogro para lhe mostrar as bilhas de
bebida, o espírito leva consigo os colegas de dança até ao local, e o sogro diz:
“genro, a bebida que te preparei é esta, se está boa ou não você é que vai dizer
quando tomar, fizemos isso para que mates a sede junto com os teus amigos”. O
genro sai e vai ao recinto da dança, junto dos colegas, sentam-se nas cadeiras
para começarem a dançar e beber. Note que o genro aqui referido, é o espírito
que se reencarna na mulher e a faz adoecer a mesma a qual o espírito a
considera de esposa.
35 Lenço vermelho (nguwo ishawa), capulana branca (nguwo ishena), cintos de pano vermelho e branco
(micheka ishawa na ishena), colocados de forma diagonal sobre os ombros. Incluindo ainda amuleto
(nkhambi), cesto tradicional onde fica todo o equipamento do reencarnado ou da reencarnada (thundu) e
bengala (ndonga).
36 Kabidibidi, batuque de tamanho menor, é o primeiro a ser tocado usando duas baquetas (timiti); djenje, de
tamanho maior, tocado a seguir o Kabidibidi usando duas baquetas e mpange, de tamanho médio, é o último a
ser tocado, e o principal visto ser a partir do seu som que se direcciona todos os passos, ele é tocado usando
uma baqueta e a mão.
126
A dança pode ser executada a qualquer época do ano, por um número
indeterminado de executantes constituido por homens e mulheres adultas,
desde que haja necessidade para tal, enquanto os mais novos somente
observam.
Os homens que tocam batuques ficam numa linha recta e frontais aos
assistentes, formando um semicírculo entre eles e os reencarnados ficam do
lado esquerdo dos homens que tocam batuques, porém, separados por uma
distância de um a dois metros dos assistentes. No palco da dança, entra uma
pessoa por vez, enquanto nos arredores ficam os assistentes ou espectadores
que também podem acompanhar os dançarinos.
A dança é executada fazendo movimentos que consiste em bater os pés sobre o
solo de forma alternada (direita e esquerda e assim sucessivamente) e de trás
para frente duas vezes e, a terceira vez vai dançando alternado os passos no
mesmo lugar e, no final vai tocar o homem que toca mpange como forma de
terminar. Depois entra outro elemento do grupo e vai se repetindo até que
todos possam exibir as suas habilidades.
As canções retratam vários conteúdos da vida humana, como por exemplo, a
canção com a letra “adabala oi oi ndasirira” faz alusão aos que nasceram seus
filhos e que estão bem de saúde.
Os assistentes que acompanharem os reencarnados, no final podem deixar um
valor caso tiverem, facto que mesmo assim não os impede de dançar.
Geralmente a dança começa a ser executada ao anoitecer até ao amanhecer do
dia seguinte e por volta do meio meio-dia, o reencarnado da casa informa os
colegas para descansarem. No entanto, antes devem-se libertar do espírito do
corpo (kunyaula) para depois tomar alguma refeição (almoço) na companhia
dos assistentes. Para se libertar dos espíritos, os reencarnados entram dentro
de uma casa onde levantam os braços e gritam intensamente até que os
espíritos saiam.
Caso ainda exista bebida, depois da refeição os homens reencarnados vão para
dentro da casa para reencarnarem-se novamente e regressam ao palco para
continuarem a dançar e a beber.
No final, o mesmo espírito da casa informa aos demais espíritos que já podem
ir embora, repetindo o processo anterior e as pessoas (kunyaula) retomam ao
seu estado normal.
Já no seu estado normal, o sogro do reencarnado da casa informa aos demais
que “o espírito disse para entregar essa bebida, o que havia aqui já acabou”.
127
Trata-se da bebida guardada anteriormente pelo sogro em uma bilha para este
preciso momento, esta bebida deve ser consumida pelos dançarinos que depois
devem dirigir-se para suas casas.
Observe que, quando a pessoa da família ora reencarnada falece, o mesmo
espírito procura outra pessoa da mesma família para se reencarnar, por
iniciativa da família ou do espírito tal como fez com a outra pessoa, isto é,
fazendo-a adoecer.
128
Ngano
129
Ngano é o termo que em ci-barke significa acto de contar estórias, cujo
objectivo é educar e recrear. A manifestação é executada nos meses de Junho a
Outubro do ano, período em que se realiza a colheita nas machambas e tido
como de pouca actividade agrícola, geralmente, nas horas nocturnas37, em
grupos a volta da fogueira, onde os idosos (avós) transmitem ensinamentos aos
mais novos (netos).
Comummente os contos possuem validade moral que são transmitidos a
sociedade. Trata-se de uma espécie de conselho disseminado pelos mais velhos
para conscientizar os mais novos sobre uma determinada conduta que fere os
princípios de convivência idealizados pela comunidade. Neste caso, os contos
baseiam-se nos provérbios comum, como a exemplo: “quem tudo quer, tudo
perde”.
Os contos podem ser apresentados de duas formas: através de narração ou
canto. Estas duas formas de apresentar os contos podem ser feitas em
simultâneo no mesmo conto. É uma manifestação de grande valor visto que
transmite conselhos e ensinamentos, tornando as crianças mais habilitadas
para a vida e distinguindo o bem do mal. Neste diapasão, os contos sempre
fizeram parte da educação tradicional e informal das sociedades com destaque
para as africanas, desde os tempos que já lá se vão.
Nos dias de hoje esta manifestação tem estado a perder o seu lugar, resultado
da globalização e aparecimento de outras formas de diversão das crianças
como, a televisão e jogos electrónicos, só para citar alguns exemplos38.
As fontes orais não têm memória de quando é que os contos começaram a ser
contados ao nível daquela localidade, sabendo apenas que estes vêm sendo
praticados desde os tempos passados, aquando do surgimento da humanidade,
com propósito de educar a sociedade sobre os hábitos e costumes aceites por
eles.
A seguir são apresentados alguns contos contados na Localidade de
Nhassacara no processo do inventário:
37 Há uma crença local segundo o qual, os contos só podiam ser partilhados durante a noite porque se o
fizessem durante o dia corria-se o risco de desaparecer.
38 Isto poderá contribuir para o seu desaparecimento ao longo do tempo e na degradação de valores morais.
130
As escolhas da vida
Era uma vez, um rapaz que pretendia casar-se com uma rapariga.
Num belo dia de inverno, ele saiu de casa para ir apresentar-se aos sogros,
quando lá chegou, o sogro lhe pediu para arrancar frutas silvestres
denominadas ntancha.
Ao subir na árvore, alcançou um ramo seco, entretanto, na mesma altura o
cinto rebentou-se e as calças começaram a cair. O ramo seco também começou
a partir-se devido ao peso dele. O facto preocupou ao genro porque, por um
lado, tinha que pegar as calças para não caírem e por outro, tinha o ramo que
estava prestes a partir-se.
A sogra notando a movimentação estranha, gritou em voz alta “segure a coisa
que vai te salvar”. Com base nesta alerta, o rapaz pegou no ramo seguro mais
próximo e salvou-se da queda.
Moral da história: Durante uma aflição é necessário escolher a melhor opção
de salvação.
(Patrício Julai Omexe, entrevistado em Junho de 2015, Localidade de Nhassacara,
Distrito de Báruè)
131
Um homem e a sua esposa em tempo de fome
Era uma vez, um homem e uma mulher que encontravam-se de viagem num ano de
fome. O homem levava uma casca de árvore (mbende) para colectar mel. Andando, ao
olhar para cima viu abelhas entrando e saindo da colmeia.
O homem subiu na árvore e tendo se assegurado num ramo seco, acabou caindo. Ao
cair, deparou-se com uma gazela (nhasa) que por alí passava, rapidamente procurou por
uma pedra para matar a gazela e acabou pegando em um cágado (kamba), depois de
descobrir que se tratava de um cágado, pensou rapidamente em cortar um pau para
fixar o cágado para não mover-se e fugir. Enquanto procurava o pau, descobriu um
ninho com ovos de galinha-do-mato (nkanga). Ao ver os ovos, surge-lhe uma ideia de
procurar uma corda para montar uma armadilha (kwadira) para capturar a galinha e
levar consigo os ovos para servir de alimento. Desta feita, enquanto procurava a corda se
deparou com um elefante (nzou) morto, como se tratava de um animal maior, a tradição
local exigia que antes de despedaçar o animal, devia-se informar o Régulo sobre o
sucedido. Assim, o homem dirigiu-se a casa do Régulo (Nyakwawa).
Quando chegou na casa do Régulo, encontrou este na companhia de outros membros a
tomarem uma bebida tradicional, logo que chegou, o Régulo orientou para que lhe
servissem a bebida.
Os indicados para servir a bebida, viram que no recipiente da bebida apenas existiam
sobras (massesse). Eles pediram que o homem entrasse no interior da casa para levar
um saco onde pudessem coar as sobras de modo a poder ser consumida. Quando o
homem entrou no interior da casa encontrou uma senhora que estava a cozinhar, esta
por sua vez, pediu ao visitante para esperar pelo almoço, ao que ele obedeceu. Vendo
que estava a perder muito tempo a espera da refeição, o homem saiu para fora para
receber a bebida. Ao sair, encontrou enquanto a bebida já havia acabado. O homem logo
pensou, “para não perder tempo, não aviso ao Régulo e retorno para encontrar a carne do
elefante e levar a casa”.
Quando chega ao local, encontra enquanto a carne do elefante havia apodrecido. Deste
modo, o único local próximo seria recolher os ovos da galinha-do-mato. Quando lá
chegou encontrou apenas as cascas porque os pintos já haviam sido gerados e a galinha
lhes havia levado. Voltando para levar o cágado, este já havia desaparecido, quando
tenta olhar para ver a gazela, esta também já não estava por perto. Desta feita, não
existindo o mel, decide pegar a sua mulher e voltar para casa, esta também já não
estava no local devido a longa espera a qual havia sido submetida pelo marido.
Moral da história: Quando Deus lhe dá algo, em caso de necessidade é sempre
aconselhável pegar a primeira oportunidade que lhe aparecer em frente, e nunca querer
pegar em todas, sob pena de perder tudo como reza um velho ditado que “quem tudo
quer, tudo perde”.
(Kenneth Sarukato, entrevistado em Junho de 2015, Localidade de Nhassacara, Distrito
de Báruè)
132
A menina que recusava o casamento
Era uma vez, uma menina em que os pais sempre lhe aconselhavam para que
escolhesse no meio de muitos jovens, um para ser seu noivo, mas ela sempre
rejeitava. Depois de muito tempo, muitos jovens tentarem casar-se com ela e
não conseguiram. Desta feita, apareceu um macaco que quis experimentar
casar-se com a menina.
O macaco bem vestido e disfarçado chegou à casa dos pais da menina como um
jovem que pretendia casar-se com a menina, ao que lhe foi aceite pela moça.
Depois de alguns dias e numa bela tarde, a moça precisava de preparar a
refeição, entrou dentro da cozinha e o macaco ficou por fora da casa com os
cunhados. Os cunhados depois de uma atenciosa observação viram que o
cunhado deles tinha a cara muito escavada e, admirados perguntaram ao
cunhado: “cunhado, porque tens a face muito escavada?”. Em resposta ele diz:
“antigamente na guerra dos Gouveia espreitava-mos nfukadzy e depois de
acabar a guerra fiquei assim, buscar um enxó para me enxoar não é possível e
pode doer, por isso ficará assim”.
Em seguida observaram uma outra anomalia no cunhado deles e fizeram lhe
seguinte pergunta: “cunhado, porque tens tantos pelos assim?”. Ele respondeu
dizendo: “isso foi antigamente no tempo da guerra dos Gouveia em que
vestíamos as peles de animais e depois que terminou a guerra para tirarmos
ficou impossível, mesmo se querermos queimar vai doer por isso fica assim.” Não
demorou muito tempo e os cunhados viram outra anomalia e perguntaram ao
cunhado:“porque tens a nádegas avermelhadas?”. O cunhado respondeu: “isso
também foi no tempo da guerra dos Gouveia em que sentávamo-nos por cima dos
tomates, terminada a guerra as nádegas acabaram ficando desta maneira e
para raspar vai doer, por isso vai ficar assim”.
Por fim os cunhados viram que na realidade não se tratava de uma pessoa mas
sim de um macaco. O macaco depois de perceber que as perguntas dos
cunhados eram demasiadas, sentiu que o haviam descoberto que não era
humano nenhum e de imediato entrou pelo mato dentro e nunca mais voltou.
Moral da história: Nunca esperem pelo príncipe encantado do imaginário para
concretizar o seu casamento.
(Kenneth Sarukato, entrevistado em Junho de 2015, Localidade de Nhassacara, Distrito
de Báruè)
133
134
Rito de Nascimento (Kubarwa kwemwana)
Kubarwa é um verbo que significa nascer na língua Barke. Para este grupo, o
nascimento é um evento repleto de significados, não só por ser um facto
biológico, mas também por ser uma representação da forma através da qual as
pessoas se relacionam e desenvolvem diferentes actividades sociais, ou seja,
pode ser considerado ritual de passagem. No contexto Barke, o nascimento é
uma festa por tratar-se de um acto que perpetua a espécie humana, por isso
envolve um conjunto de rituais cercados de crenças e tabus.
De acordo com Acker et al, (2006), a concepção de gravidez e o parto são
alguns dos fenómenos que ocorrem na vida da maioria das mulheres. Este
fenómeno sofre influências sócio-culturais do meio. Tais regras especificam o
local apropriado para ocorrência do parto, determina as pessoas que podem
assisti-lo, indicam o comportamento mais apropriado à mulher no processo e
até a forma de reagir ao nascimento de um bebé.
O nascimento é um evento carregado de significados e tratado
comportamentalmente variável nos diferentes grupos étnicos, raciais, religiosos
ou mesmo classes sociais, marcadas por múltiplas e diferentes culturas.
Entre os barkes, o nascimento de uma criança é um acontecimento de grande
importância. Um filho para a família significa esperança da continuidade da
vida que iniciou com os seus antepassados, por isso, o nascimento de uma
criança é sinónimo de alegria. Os filhos garantem um prestígio, isto é, quanto
mais filhos tiverem, mais aliados terá para a vida social e económica. Um
homem que tem muitos filhos não tem que contratar mão-de-obra para
realização das suas actividades, pode dispor do trabalho de muitos braços em
seu benefício. Neste contexto os chefes das unidades da família, os maridos,
controlam a sexualidade, estabelecendo as regras e formas de comportamento
sexual. Enquanto a mulher, tem a função de reprodutora.
Por este motivo, a infertilidade pode levantar problemas no relacionamento
conjugal porque uma das expectativas mais importantes do matrimónio são os
filhos. Antigamente quando um homem não conseguia fazer filhos (ngomwa),
podia se manter no matrimónio com possibilidades de contratar secretamente
um irmão para fazer os filhos em seu nome. O mesmo já não acontecia com a
mulher. Se ela é estéril, geralmente o marido casa outra mulher ou em
algumas vezes é expulsa do matrimónio. Este facto acontece porque, a forma
de descendência do povo Barke é patrilinear, isto pressupõe que a herança seja
transmitida pelo pai, isto é, a filiação é sempre consanguínea.
135
O rito associado ao nascimento tem uma tendência de variar ao longo do
tempo, acompanhando o dinamismo da cultura e a difusão de várias culturas,
a luz da globalização.
Na Localidade de Nhassacara, torna muito difícil afirmar o período do
surgimento de rito de nascimento por falta de registos, mas a realidade que se
vive é de que, os procedimentos vêm sofrendo algumas mudanças na medida
que essa comunidade acomoda o desenvolvimento sócio-económico do país.
Com o desenvolvimento e expansão da medicina convencional, os partos na
sua maioria passaram a ser realizados nos Centros de Saúde sob todos os
cuidados sanitários. Devido a conscientização sobre os meios de contaminação
do HIV/SIDA, nota-se o recrudescimento do uso de lâminas para o corte do
cordão umbilical. Por outro lado, as mortes maternas infantis associadas aos
partos fora das unidades sanitárias fazem com que a aderência aos partos
institucionais aumente.
Antigamente, para a contagem do tempo de gravidez usavam-se nós em corda
ou capulana. Actualmente, a contagem é facilitada pelas consultas pré-natal
que facilmente controla o tempo de gestação.
No caso dos partos realizados fora das unidades sanitárias, os procedimentos
de nascimento são baseados nos conhecimentos tradicionais da mulher.
Apesar dos esposos terem palavra sobre a descendência dos seus filhos, todos
cuidados pré-natais e pós-natais ficam ao cargo das mulheres, geralmente
idosas com muita experiência no tratamento da gravidez e do parto.
A gravidez (Pamuwiri)
Para que uma criança nasça saudável e útil para a sociedade, ela deve passar
por muitos rituais, desde o aparecimento de sinais da sua presença no ventre
da mãe. A mulher quando desconfia que está grávida, ou seja, falha a
menstruação, ela comunica a sua a tia (irmã do pai), ao marido ou aos
parentes de sexo feminino de confiança com quem tem mais afinidade. Em
alguns casos, são as mulheres experientes que descobrem o estado de gravidez
devido as características e sintomas que ela apresenta, depois de conversar
com ela, orientam-lhe para informar o marido.
Depois da mulher ter a certeza que de facto está grávida, ela informa ao seu
marido. Em todos casos, as mulheres mais velhas e experientes chamam-na
136
para procurar saber pelo tempo da gravidez, tendo em conta o mês em que a
falha da menstruação teve início. A partir desta altura, iniciava-se a contagem
dos meses por meio de nós feitos em uma corda ou pano. De seguida,
solicitam-se idosas/anciãs experientes no processo relacionado com a
maternidade para fazerem o acompanhamento em todo o período de gestação.
Daí em diante, as idosas passam a manter contactos frequentes com a futura
mãe, a quem vão dando conselhos sobre todo o processo de nascimento.
Durante este período, o casal deve observar as seguintes normas estabelecidas
pela tradição para que o parto seja fácil: as relações sexuais devem ser
mantidas até, aproximadamente dois meses antes no nascimento do bebé
(sétimo mês), caso ultrapassar este limite, acredita-se que a criança poderá
nascer com dores de cabeça (tsvoma) ou mesmo morrer; durante o período de
abstinência, os futuros pais devem continuar dormindo na mesma esteira
porque eles devem transmitir o calor paterno ao filho no ventre.
No seio dos barkes existem alguns tabus e mitos relacionados com alguns
alimentos durante a gravidez, são eles:
Carne de cágado: quando consumida, a criança demora sair do ventre
da mãe, imitando os movimentos da cabeça deste animal quando está
em movimento.
Carne de porco: quando consumida, a criança ao nascer não irá
chorar, permanecendo como morta.
Refresco de marca coca-cola: quando consumido, a criança ao nascer
terá problemas respiratórios e, ao chupar leite da mãe este sairá pelas
narinas.
Banana: mulheres grávidas não podem consumir, sob o risco de
verem o cordão umbilical demorar cair.
Naturalmente que, o tempo de gravidez é considerado uma situação de crise
que só pode ser ultrapassada com o parto. Todavia, entre os barkes de
Nhassacara, a gravidez não é considerada doença, por isso, a mulher grávida
continua exercendo as suas actividades normalmente, porém, com muitos
cuidados devido ao seu estado frágil. Durante este período, caso ela não se
sinta bem, aplicam-se medicamentos tradicionais de origem vegetal tendo em
conta os seus sintomas.
137
Rituais de nascimento
Quando a mulher sente dores de parto, informa ao seu marido, e este por sua
vez dá notícia a sua mãe. A sogra ao perceber do estado da nora, procura
confirmar se de facto a nora já se encontra no tempo para o parto, podendo
conferir na base dos métodos de contagem adaptados, referidos anteriormente.
Confirmado o facto, a sogra da parturiente solicita a parteira tradicional
(Nyamwino), geralmente de idade avançada e experiente, a quem comunica
sobre o caso.
Da seguida, prepara-se uma palhota onde vai decorrer o parto e a Nyamwino
leva um almofariz (Banda) para dentro da casa para servir de suporte para a
parturiente apoiar a sua coluna durante o parto. Neste acto geralmente
participam duas parteiras, uma principal, quem recebe o bebé e corta o cordão
umbilical, e outra auxiliar, que serve para, entregar lâmina, corda, água, etc.,
durante o parto. As parteiras devem ser senhoras idosas (mbuya) na fase de
menopausa, porque, na tradição local, garantem a segurança e saúde da
criança, visto que estas senhoras já não mante relações sexuais com os
maridos “mulheres frias” como fazem mulheres na fase de procriação “mulheres
quentes”.
No parto, caso as parteiras verifiquem que a abertura do útero é insuficiente
para a saída do bebé, prepara-se um medicamento na base de raízes de
plantas, denominadas localmente por muroro, mutamba ou rekerera,
esmagadas e mergulhadas em água. A mistura serve para fazer massagem em
volta do útero com a finalidade de proporcionar uma maior abertura e
facilidade durante serviço de parto. O sinal esperado que garante que o bebé
nasceu com vida, é o seu primeiro choro.
Logo que a criança dá o primeiro grito, ao tossir, recolhe-se a saliva e esfrega-
se no útero da mãe para evitar males, como epilepsia. A Nyamwino principal
corta o cordão umbilical com casca de caniço de mexoeira (sekenenza), usando
lâmina em alguns casos. O passo subsequente consiste em dar o primeiro
banho ao recém-nascido imediatamente após o grito (rito de purificação) com
água preparada logo depois do parto. A água do banho não pode se preparar
antes do nascimento do bebé porque dá se a possibilidade do bebe morrer no
decorrer do parto.
No princípio da noite ou madrugada do dia seguinte, na perpectiva de fugir aos
olhos dos demais, leva-se a placenta (chawakulo) para enterrar profundamente
na lama das margens do rio, porque, de acordo com a tradição local, a frescura
138
do local transmitirá uma tranquilidade no recém-nascido. Enquanto isso, parte
das primeiras fezes é amarrado em um nó da capulana da mãe, até o momento
da queda do resto do cordão umbilical do recém-nascido.
A seguir, a mãe do bebé deve revestir o chão da palhota onde decorreu o parto
com barro preto retirado das margens do rio. Trata-se de um ritual de
purificação que tem a função de criar no homem (pai de bebé), o desejo de
voltar a sua casa depois do parto e continue a comportar-se como homem, pois
o cheiro produzido durante o parto pode espanta-lo.
Depois, a parteira prepara um medicamento que serve para evitar a cegueira
nela, trata-se da junção de água e sangue de galinha, extraído a partir do corte
de um dos dedos da galinha para lavar cara das parteiras. Neste processo, a
galinha pode ser morta ou não.
A primeira pessoa a ser informada pela parteira tradicional sobre o nascimento
do bebé é o pai. Esta comunicação vai depender do sexo do bebé sendo que, o
nascimento de um rapaz a Nyamwino profere as palavras: “kwabarwa mupare”
que significa “nasceu um rapaz” e quando for uma menina informa-se que
“kwabarwa musikana” o que traduz-se em “nasceu uma mulher”. Tomando a
boa notícia, o pai leva a informação para os seus pais.
A comunicação sobre o nascimento do bebé aos familiares posicionados no lado
de fora é feita por meio de um acto codificado. Para tal, a responsável pelo
parto, posiciona-se na porta da palhota onde ocorreu o parto e começa a
jubilar. O jubilar é feito uma vez, caso se trate de nascimento de uma mulher
e, duas vezes, caso se trate de um homem. O jubilar uma vez, significa que
nasceu um bebé que no futuro vai sair da sua família para outra, enquanto, o
jubilar duas vezes tem o significado de ter nascido um bebé que se tornará
dono da casa e que vai garantir a continuidade da linhagem.
Terminada esta parte, os procedimentos relacionados ao parto chegam ao seu
fim, porém o bebé ainda não pode ser visto. Contudo, como sinal de
agradecimento devido ao sucesso do parto, a família oferece a parteira
principal, a galinha usada no tratamento contra a segueira e outros produtos,
dependendo das possibilidades do pai do bebé.
O bebé só pode ser visto depois da queda do umbigo, aproximadamente uma
semana depois de nascer. Nesta ocasião, os membros da família entregam
algumas ofertas, que tem o significado de parabenizar o casal por ter gerado
mais um membro para a família.
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Rituais de agregação
No período entre o nascimento e a queda do cordão umbilical, o bebé não deve
sair de dentro da palhota, enquanto isto, várias normas devem ser cumpridas
para que o bebé torne-se mais forte e saudável, são elas:
Evitar a entrada na palhota, de casais que se envolveram em relações sexuais e
as mulheres que estejam de menstruação, em ambos casos, considerados
quentes e que podem provocar infecções na criança.
A mãe do bebé não é digna de preparar refeições para o seu marido, porque
segundo a tradição, pode provocar enjoos ao marido devido ao cheiro pós parto.
Nos primeiros momentos da vida do bebé, a mãe deve tomar banho apenas
durante o dia e não deve ser vista por homens, sempre que for tomar banho, no
regresso, ao chegar na porta da casa, não pode sacudir os pés batendo-os
sobre o chão, isto para evitar que no futuro a criança não sofra de hérnia
(phudzi).
O mamilo da mãe nunca pode tocar no sexo da bebé, sob o risco de torná-lo
estéril.
A primeira vez que o pai pega no bebé, depois da queda do cordão umbilical,
deve também segurar uma flecha ou arco, caso seja um homem, sinal de que o
menor deve prosseguir com actividades do pai, enquanto se for rapariga deverá
segurar uma cabaça significando que ela deverá prosseguir com actividades da
mãe, que se resume em servir a família.
A parteira ou conhecedores da medicina tradicional (curandeiros) devem
preparar um amuleto (matubo), isto é, cordão com medicamentos para colocar
na cintura e no pulso do bebé. O amuleto serve para proteger a criança de
epilepsia ou de sustos frequentes, caso seja tocado por indivíduos quentes.
Este amuleto também serve de protecção de males no caso dos progenitores
retomarem relações sexuais. Geralmente, têm sido antecipados caso se trate de
um homem polígamo.
Caído e cicatrizado o umbigo, este deve ser enterrado em terra húmida,
geralmente nas margens do rio, porque crê-se que o ambiente fresco, contribui
para a tranquilidade do bebé.
Parte das primeiras fezes da criança, amaradas na capulana, é usado para
fabricar um outro amuleto que deve ser colocado no pescoço. Para tal, o
140
curandeiro leva as fezes, junta com o cabelo da parte frontal e traseira do bebé,
e coloca no lado aberto do extremo da pega da cabeça (kombokombo) e mistura
a um medicamento tradicional. Depois fecha-se o lado aberto do kombokombo
com cera de abelha, formando um amuleto (madjango), que com apoio de uma
corda coloca-se no pescoço da criança para evitar doença de susto (chikakati).
O madjango pode servir para várias crianças até que, um dia venha a cair e
não se possa apanhar. Caso nasça outra criança, repete-se o processo.
O resto das fezes amaradas na capulana deve ser exaguadas. Para tal, coloca-
se a capulana na água, na medida em que vai-se lavando, chegará o momento
em que o nó vai desatar-se e as fezes escorrerão com a água.
A seguir, prepara-se um medicamento tradicional na base de mexoeira
humedecida e moída (mukalairo) na pedra (nkuyo) para uma espécie de
baptismo de geração. O medicamento é colocada na boca da criança por
acreditar-se que a criança tornar-se-á mais concentrada e terá o controlo das
palavras que for a proferir.
Entre os barkes de Nhassacara não existe um ritual de atribuição de nome, no
geral é o pai do bebé que dá nome depois da queda do cordão umbilical.
141
Rito de Casamento (Kurora)
Kurora significa matrimónio ou casamento na língua ci-barke. No seio da
comunidade de Nhassacara, trata-se de um conjunto de rituais com a
finalidade de unir indivíduos de sexos e grupos diferentes de modo a garantir o
futuro da linhagem.
Casamento é uma instituição social que visa estabelecer vínculos de união
estáveis entre o homem e a mulher, baseados no reconhecimento do direito de
prestações recíprocas de comunhão de vida e de interesses, segundo as normas
das respectivas sociedades. Não se trata de um tipo de partilha qualquer,
deixado ao livre arbítrio e inclinações dos intervenientes, mas de uma
comunhão de interesses mútuos. (Martínez, 2009 ː121).
O casamento constitui uma etapa fundamental no ciclo da vida, visto que
envolve a mudança de residência e de família por parte de um dos cônjuges.
Estes ritos de casamento fazem parte de um processo que pode durar anos. É
algo que em simultâneo surge como um acto de ordem político, económico e
social.
Nas sociedades tradicionais, a idade adulta é caracterizada pela formação da
família, por via do casamento tradicional. Casamento tradicional refere-se ao
matrimónio celebrado entre os familiares dos noivos e consiste na observância
de regras e procedimentos tradicionais para a sua legitimação.
Segundo Rivière, (2007), esta aliança matrimonial condiciona os processos de
filiação, de residência, de apelido, de herança, de atitude e abre caminho à
procriação legítima no grupo conjugal. Por isso, entre as realizações da
sociedade tradicional em Moçambique, a mais importante de todas é o
casamento (Cipire, 1996:49). Portanto, casamento é considerado uma prática
de grande valor cultural no seio das comunidades, visto que, a existência da
espécie humana e a manutenção do seu costume está condicionado ao
nascimento de mais membros.
Na maioria das regiões do mundo, o casamento tem por base a celebração do
conceito de família através da união de duas pessoas, a junção de duas
famílias e por vezes até de tribos. Tal como no resto do mundo, o casamento
em África é um acontecimento que envolve a família e a junção de famílias.
Existem muitas tradições diferentes relativas ao casamento. Contudo, existe
algo em comum, a noiva tem sempre um papel especial, sendo sempre tratada
com respeito por ela significar uma nova possibilidade de dar continuidade a
linhagem. Uma vez realizado o casamento, forma-se uma família vivendo, cada
um cumprindo com a sua obrigação. Através do casamento, a sociedade chega
142
ao futuro, perpetuando a eterna permanência dos povos por meio dos seus
costumes e tradições.
No grupo etnolinguístico Barke, o casamento é patrilinear, isto é, a herança dos
bens se transmite directamente ao filho (homem). Este sistema considera o
casamento como troca de serviços entre duas famílias pertencentes a clãs
diferentes. Um dos lados das famílias cede a capacidade procriadora de um seu
membro feminino, e como forma de compensação, a outra parte recebe valor
monetário, produtos ou animais que variam em função da capacidade da
família interessada. De referir que neste grupo, com o casamento a mulher é
retirada do seu convívio familiar para ir viver na casa da família do marido,
condição que também referencia Cipire (2007:49) ao definir o casamento
ulorilocal.
De forma geral, os procedimentos que envolvem o rito de casamento continuam
os mesmos, porém, os bens que são exigidos para compensação pela filha
deixaram de ser simbólicos, passando a satisfazer necessidades económicas da
família da rapariga e adequados a realidade presente. Por exemplo,
actualmente para o lobolo, é comum solicitar-se casacos, sapatos, vinho,
valores monetários avultados, etc., itens que em tempos não existiam.
Quanto a transmissão dos procedimentos relacionados ao matrimónio, o
principal método usado é mediante a participação na realização do ritual do
casamento. Porém, nos rapazes o conhecimento é transmitido dos mais velhos
(pais, tios, avos, anciãos), durante os ritos de iniciação masculinas, aquando
da realização das actividades masculinas e nas lareiras nocturnas. Enquanto
para as mulheres, o conhecimento é transmitido pelas tias, avós e anciãs,
durante os ritos de iniciação femininas e poucas vezes pelas mães, durante o
momento em que praticam actividades agrícolas, ao cuidar dos mais novos e
principalmente quando se dirigem ao rio para buscar água.
Rituais de casamento
Os rituais de casamento legitimam a mudança de estado dos cônjuges e cria
laços jurídicos, sociais e económicos entre os grupos de filiação do marido e da
mulher. Estes são dinâmicos tendo em conta o contexto sociocultural e
económico das famílias envolvidas. Na comunidade de Nhassacara, existem
elementos básicos para a realização do casamento. Para começar, o casamento
deve ser realizado entre indivíduos de famílias diferentes. O protagonismo das
negociações é deixado a cargo dos padrinhos e tios paternos de ambos os
noivos, sendo que os pais participam de forma indirecta. Em quase todo rito de
143
casamento, a família do rapaz (mupare) é quem deve se deslocar a casa da
rapariga (musikana).
Os procedimentos referidos são uma prática antiga, sabendo-se apenas que foi
herdada dos antepassados e continuada pela comunidade ate os dias de hoje.
Todas estas etapas do rito do casamento Barke são antecedidas por pagamento
de valor monetário simbólico (bano) para início do diálogo e acompanhadas por
simbolismos de carácter compensatório aos pais da rapariga ou dote. De
acordo com Rivière (2007:72), quando uma mulher é compensada por símbolo
reconhecido ou dote (vaca, objectos, soma em dinheiro, etc.), é considerada
troca indirecta. Esta compensação é frequentemente paga em prestações,
podendo incluir os trabalhos prestados pelo noivo e tem valor de prova de
aliança.
O dote comporta duas partes, a saber: a parte paga aos pais da noiva que
constitui para eles uma indemnização pela privação dos serviços agrícolas e
caseiros que a filha desempenharia, caso ficasse com eles, é também o preço de
cedência de um poder legal e sua transferência para o marido; e a parte
entregue à esposa, que deve ser entendida como um testemunho de amor.
A escolha do cônjuge
Nas sociedades tradicionais, a escolha do cônjuge pertence aos membros mais
influentes dos grupos de parentesco respectivos, todavia, a forma como se
efectua pode variar de acordo com os interesses da família. Entre os barkes de
Nhassacara, o rapaz é o responsável na identificação da rapariga com a qual se
pretende casar. Esta escolha assenta-se na origem, nas suas qualidades e
conduta social. Para tal, a observação é feita desde cedo na medida em que vão
convivendo com ajuda directa da sua tia (irmã do pai) e indirecta dos pais.
Identificada a rapariga pretendida, de princípio, uma menina com boa conduta
social, o rapaz informa a sua tia, irmã do pai, que por sua vez passa a
informação aos pais de modo a procurar um padrinho (Samukulo), geralmente
um tio ou vizinho de confiança e de prestígio no seio da comunidade,
sobretudo, um bom negociador, para estar em frente do processo do
casamento.
Sem alongar muito tempo, num intervalo de aproximadamente uma semana, o
rapaz deve preparar e entregar algum valor monetário e capulana ao Samukulo
que deve levar a casa da rapariga, a fim de dialogar com os pais dela. O
portador do recado desloca-se primeiramente a casa da tia da rapariga para
144
informar sobre a pretensão do rapaz e, que brevemente poderá visitar a casa
dos pais da rapariga a fim de negociar. Esta tia tem obrigação de informar aos
futuros sogros do rapaz, de modo que esses tenham conhecimento da vinda do
Samukulo.
Ao chegar, antes de entrar no recinto, o Samukulo deve pedir permissão para
entrar batendo palmas ritmicamente, símbolo de respeito. No recinto, porém,
antes de entrar no interior da palhota, é lhe servido uma esteira para se sentar
e cumprimentar os familiares da rapariga. Depois de cumprimentar, o enviado
pede para entrar dentro da palhota para um diálogo. Antes porém, os
familiares da rapariga colocam um prato de madeira (ndiro) para que o
padrinho pague o bano.
Nessa altura, o pai da rapariga orienta a sua esposa para que estenda uma
outra esteira no interior da casa, e depois, convida o Samukulo a entrar. Na
porta da casa, antes de entrar, o Samukulo deve repetir o batimento de palmas
enquanto um dos membros da família da rapariga coloca novamente um prato
de madeira para o Samukulo colocar o bono que vai permitir o início do diálogo.
O Samukulo informa a tia, irmã do pai (Samukazi ou yaya), sobre o rapaz que
ele representa e que pretende casar-se com a sobrinha dela. Neste primeiro
contacto com a família da rapariga, o Samukulo leva consigo uma capulana e
dinheiro entregues pelo rapaz para o ritual designado rubato. Dada a
informação, a Samukazi chama a menina para perguntar se conhece o rapaz e
se pretende casar-se com ele. Nessa altura os pais da rapariga ficam no recinto
aguardando pela novidade.
Na família da rapariga, a Samukazi, a primeira a ser informada sobre a
pretensão do rapaz por intermédio do Samukulo, a prior, é quem participa na
escolha do rapaz e opina sobre a escolha do rapaz, tendo em conta a conduta
social e condição económica do pretendente. De seguida a Samukazi convida a
sua cunhada, mãe da rapariga para se dirigir ao interior da palhota onde lhe
informa que a filha já tem um homem que pretende casá-la. Depois de ouvir a
novidade, a mãe da rapariga chama o seu marido (pai da rapariga) para dentro
da palhota, onde lhe comunica que a Samukazi diz existir um rapaz que
pretende casar a sua filha. Por sua vez, o pai questiona a filha se gosta do
rapaz. Caso goste, ela responde positivamente, batendo palmas.
A partir do momento em que a rapariga aceita o rapaz, a capulana e o dinheiro
ficam para ela como símbolo de compromisso de matrimónio. A informação
circula na comunidade e os vizinhos, sobretudo os rapazes ficam a saber deste
145
estado passando a respeitá-la. É neste primeiro encontro que se estipulam as
necessidades do dote (Phaza Mpete), que é uma lista de necessidades que pode
ser em animais, dinheiro, roupa, trabalho, etc. Para a família da rapariga,
trata-se de uma compensação para os que tenham colaborado na educação da
rapariga e pela perda dos serviços do seu membro feminino, enquanto para a
família do rapaz é demonstração de amor e garantia contra o divórcio.
No regresso, o Samukulo informa ao rapaz e sua família sobre o encontro, de
modo que estes organizem o Phaza Mpete.
O dote (Phaza Mpete)
O Phaza Mpete é uma compensação matrimonial a pedido da família da noiva,
geralmente paga na totalidade ou em prestações pelo pretendente (rapaz) à
noiva e seus pais. Por um lado, tem o valor de prova da aliança, por outro, tem
o significado de indeminização aos pais da rapariga devido a privação dos
serviços agrícolas e caseiros que a rapariga desempenharia se estivesse na casa
deles.
Entre os barkes de Nhassacara o Phaza Mpete é constituído por valor
monetário, presentes (roupa, sapatos, colares, chapéu, sabão, pomada,
perfumes, brincos, anéis etc.), bebida, animais (galinhas ou gado) e pode
incluir prestação de serviço pelo noivo.
Quando o noivo estiver pronto, ou seja, tudo o que esta na lista for comprado e
organizado, programa-se a segunda visita do Samukulo à casa da noiva. O
rapaz com auxílio dos seus pais faz a entrega do Phaza Mpete ao Samukulo e
este por sua vez desloca-se novamente para a casa dos pais da noiva para
proceder a entrega. Os produtos são amarrados em uma capulana e levados a
casa da rapariga. Ao chegar, deve bater palmas pedindo permissão para entrar
no recinto e dentro da casa. O pai, a Samukazi bem como o Samukulo devem
entrar para o interior da palhota deslocando-se de cócoras, significando
respeito. No interior da palhota, o Samukulo passa a apresentar os pedidos um
por um, de acordo com a lista, e em alguns casos, revela o valor da aquisição.
Depois da família da rapariga receber o pedido, é informado ao Samukulo para
comunicar ao noivo para reunir, 2 esteiras (mpassa) uma para a mãe e outra
para a rapariga, uma galinha (nkuku) e dinheiro. A aquisição destes produtos é
que condiciona o acesso e consequente apresentação do noivo na casa dos
sogros.
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Reunidos os produtos exigidos, o Samukulo desloca-se a casa da família da
noiva para proceder a entrega e marcar a ida do noivo. Terminado a entrega
dos produtos, os sogros confirmam a recepção e dão aval para que o genro
passa frequentar a sua casa.
Ao regressar, o padrinho informa ao rapaz e sua família que foram bem
recebidos e que o noivo pode passar a frequentar a casa da noiva. Este acto
deve ser efectuado durante o período da tarde, porque no princípio da noite do
mesmo dia, o noivo deverá dirigir-se a casa dos pais da sua noiva a fim de
apresentar-se.
A apresentação do rapaz (Auya Kusonekera)
No mesmo dia que o Samukulo informa sobre a necessidade do rapaz ir
apresentar-se, o rapaz deverá deslocar-se a casa da noiva, processo localmente
designado “Auya Kusonekera” que significa “veio apresentar-se”. A deslocação é
feita sozinho ou na companhia de um amigo, caso seja conhecido
informalmente pelos pais da noiva ou com o Samukulo, no caso contrário.
Ao chegar, ele deve posicionar-se na parte exterior do recinto da casa, batendo
palmas de forma rítmica, sinal de respeito que serve para avisar sobre a
presença de alguém que pede para entrar. Nos mesmos modos, os pais da
rapariga respondem autorizando a entrada do rapaz, primeiro são palmas do
pai e a seguir da mãe. Logo depois, a rapariga junto aos seus irmãos são
orientados para entrarem dentro de casa com o noivo.
Neste acto, a noiva deve ir buscar água para servi-lo como gesto de boas vindas
e, de seguida, deve colocar uma esteira no interior de uma palhota, por onde é
convidado o noivo para entrar e se acomodar. Nessa altura, a sogra e a noiva,
passam a empenhar-se na preparação da refeição para o genro (mukwambo).
Pronta a comida, deve-se colocar no prato de madeira (ndiro) e a noiva
encarregue de levar para o interior da palhota, onde se encontra o noivo.
Diante da comida, o noivo deve bater palmas a pedir que a noiva abra as
tampas dos recipientes da comida. Aberta as tampas pela noiva, ambos
começam a comer.
Terminado de comer, o noivo deve tirar algum valor simbólico para colocar no
prato como forma de agradecer a sogra pela comida. A noiva leva o prato com
dinheiro e entrega os pais. A seguir, o noivo deve tirar um outro valor que, por
meio da noiva, deve ser entregue a tia, cujo símbolo é de pedir permissão para
que a noiva se cubra sobre o mesmo lençol com ele. Aceite o valor, a Samukazi
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autoriza, porém, condicionando que os dois não podem manter relações
sexuais durante a noite. Para tal, a noiva é obrigada a usar uma capulana
amarrada em forma de calção (timbila) para se proteger das prováveis
tentativas do noivo.
No dia seguinte, ao acordar, o noivo deve bater palmas em jeito de saudação e
agradecimento pela noite proporcionada, enquanto isso a noiva aquece água
para ele tomar banho. Tomado o banho, o noivo deve tirar um valor simbólico
para agradecer aos sogros pela água quente. De seguida o noivo se dirige a
mata para buscar lenha. Esta deve apresentar um bom acabamento estético, o
que demonstra habilidade e nível de perfeição do homem no exercício das suas
actividades. A lenha deve ser em número par, cerca de 12, trata-se de uma
prática antiga que não se conhece de concreto o seu significado, porém,
acredita-se que o número par, traduz o facto da vida ter sentido à dois,
principalmente entre os casados. Esta lenha deve ser entregue aos sogros.
Por sua vez, os sogros matam uma galinha para preparar refeição do genro.
Este acto é um simbolismo para informar ao genro que as portas da casa estão
abertas para o novo membro da família. Antes que o genro inicie a comer, deve
tirar uma perna (mwendo) e pescoço (musogorera) para o sogro, a asa para a
Samukazi, o peito (chigambekambe) para os rapazes da casa e a coluna (chitoto)
para a sogra. Trata-se de partes que tradicionalmente devem ser consumidas
por estes membros, dentro da hierarquia alimentar de uma família. Esta oferta
é símbolo de respeito à família da noiva. Todavia, todos os pedaços servidos são
devolvidos ao genro, como um símbolo de retribuição do respeito ao genro pela
família da noiva. Durante o consumo, o genro não pode partir os ossos da
galinha, uma vez ao fazer significaria desrespeito. Terminada a alimentação, as
partes da galinha que sobrarem devem ser colocadas num pau, em forma de
espetada, localmente designado por mpani.
No mesmo dia, a quando do regresso do noivo à casa da sua família, a noiva
acompanha-o e durante a despedida, entrega o mpani. O mpani deve ser levado
para ir apresentar ao Samukulo, o qual deve tirar parte desta e deixar a outra
para ser levado aos pais do noivo. Em todos estes momentos ele informa que se
trata de galinha que os sogros prepararam para ele. Este acto significa ufunde,
que refere-se a manifestação de respeito dos sogros ao genro.
Entrega da noiva (Kuperekera musikana)
Todo o ritual de casamento explicado anteriormente realiza-se na casa dos pais
da noiva. Portanto, não é nesta família onde o casal passará a viver. Em
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Nhassacara, a mulher é retirada da sua família para ir viver na casa da família
do marido.
Depois da primeira noite em que os noivos passam juntos, o noivo regressa a
casa dos seus pais onde deverá preparar e entregar ao padrinho, um valor
monetário para encaminhar aos sogros para um procedimento ritual
denominado “tinampepo” o que significa “sentimos frio”, ou seja, “preciso de
levar minha mulher à casa para me aquecer”.
Em resposta ao tinampepo, os pais da noiva condicionam a ida da sua filha à
casa do noivo mediante abertura de uma machamba (tema) ou pagamento de
valor monetário. A abertura da tema é um acto que visa não só exibir força,
mas também demonstrar que a noiva não irá sofrer de fome quando estiver no
lar, porque o marido sabe trabalhar a mata para cultivar ou produzir. Portanto,
é uma garantia dada aos sogros de que o genro será capaz de sustentar a
esposa através de actividades agrícolas. Caso não tiver tempo, o genro pode
deixar um valor monetário para a abertura tema por terceiros.
Aberta a machamba ou pago o valor solicitado, passado cerca de duas semanas
no máximo, a família da noiva prepara os utensílios usados na cozinha,
nomeadamente, um cesto com farinha (tengu reufu), um casal de galinhas
(nkuku), bandeja de madeira (phandira), vassoura (mutsvetsve ou mutsvairo),
peneira (chissero), panela de barro (chikalango ou nkali) e outros para a entrega
da noiva no seu novo lar. De referir que o galo pode ser usado para qualquer
festividade enquanto a galinha deve ser criada para mostrar a fecundidade
feminina.
Reunido o necessário, é chamado o Samukulo e alguns membros da família do
noivo, para irem buscar a noiva. O Samukulo, ao chegar à casa da noiva e
saudar, é entregue um rapaz (mpombo) e uma menina (ntena), irmãos ou
primos da noiva para acompanharem-na a casa do noivo. A ntena carrega a
nkali, o mpombo carrega phandira enquanto a Samukazi carrega tengu reufu.
Os restantes membros que forem acompanhar ajudam no que for necessário e
durante esta deslocação, a noiva é coberta por capulana enquanto os familiares
jubilam.
Ao chegar próximo da casa do noivo, a noiva é deixada e os acompanhantes vão
informar aos familiares do rapaz sobre a chegada da nora. Por sua vez, os
familiares do rapaz enviam alguns dos seus membros para irem buscar a nora.
A nora só pode ser descoberta mediante o pagamento de um valor monetário.
Na casa do noivo, a ntena e mpombo devem permanecer por um curto período
de tempo, nessa altura, os pais do noivo devem preparar farinha de mapira (ufu
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wamapira), 2 aves (galinha e galo) para que a ntena e mpombo levem para os
pais da nora, trata-se de um gesto que significa boa recepção e agradecimento
pelo novo membro da família. Esta entrega é feita durante o período da tarde.
Todas etapas do matrimónio que explicou-se até este momento, os noivos ainda
não se conhecem sexualmente, tudo isto por causa da virgindade ser uma
componente e condição primordial para casamento tradicional.
Preocupados com o sucesso da sexualidade dos recém casados, a tia do rapaz e
algumas idosas convidam a Samukazi da noiva para submeterem a rapariga a
um ritual que consiste em transmitir ensinamentos sobre a vida conjugal e o
comportamento sexual, a fim de desenvolver nela o espírito de uma pessoa
adulta e com capacidade de criar um clima saudável no seu lar.
Para tal, leva-se a noiva, independentemente do seu consentimento, mesmo
que seja forçada, para dentro de uma palhota onde permanece durante dois
dias para aprender conteúdos de como tratar o marido e os familiares dele,
ritual denominado kutimbwa.
Durante estes dois dias, sempre que a noiva pretender sair da palhota, para a
casa de banho, ou por outras necessidades, no pátio deverá deslocar-se de
cócoras enquanto bate palmas, depois de alguma distância, levanta-se e se
dirige a casa de banho, o mesmo processo deve ser repetido durante o seu
regresso. Trata-se da demonstração de submissão ao esposo e sua família.
Passados os dias do ritual com a noiva, é a vez do noivo ser submetido a um
procedimento ritual pelos mais velhos (anciãos) onde é incentivado a preparar-
se para a primeira relação sexual com a esposa. Neste processo, é instruído a
colocar um lençol branco na esteira que servirá para provar se a sua esposa
era virgem (nyamwali) ou não.
Naturalmente, depois de preparar o casal para a primeira relação sexual, estão
reunidas condições para a consumação do matrimónio ou seja, o teste de
virgindade (chinyamwali). Na noite imediatamente a seguir, é a vez do casal
implementar os conhecimentos transmitidos sobre sexualidade.
Na manhã seguinte, a rapariga acorda cedo, varre o pátio e aquece água para o
seu marido e os homens da família lavam a cara ou tomarem banho. Enquanto
isso, a tia do rapaz pede ajuda a Samukazi da rapariga para irem examinar a
virgindade da nora. O teste consiste em entrar dentro da palhota e verificar a
esteira e o lençol branco estendido durante o acto sexual. Nesta altura os
familiares mantêm-se do lado de fora a espera de notícias, visto que o respeito
dado a mulher no casamento tradicional geralmente é condicionado pela
virgindade.
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A madrinha da noiva é encarregue de levar a informação do estado de
virgindade (lenço ou esteira) aos presentes, à família e aos pais da rapariga.
Quando for virgem (lençol e/ou esteira com manchas de sangue) as famílias
começam a rejubilar cantando e batendo palmas, enquanto vão decorrendo
ofertas. No geral, as canções comportam letras de carácter educativo
relacionado com a importância da família, por exemplo, é repisado que os
recém casados não devem comer sozinhos mas sim partilhando com as
famílias.
Chegado a este momento, caso a rapariga seja encontrada virgem, a madrinha
e outros membros da família da noiva regressam para casa muito alegre, com
pedaço de galinha cozida e dão relatório aos pais da rapariga sobre toda
cerimónia da entrega da filha ao genro. A partir deste momento, o genro toma
posse da esposa e passa a controlar a vida sexual do casal. Nesta comunidade,
para dar notícia da virgindade aos pais da noiva, a Samukazi leva uma peneira
com farinha onde é colocado um ovo cheio, quando for virgem e caso contrário,
coloca-se um ovo vazio.
Tendo sido provado que a rapariga é virgem, os pais dela exigem o pagamento
de virgindade, localmente designado mabatiro. Para tal, o padrinho do rapaz
entra em contacto com a família da rapariga de modo a fornecerem a lista dos
itens necessários, geralmente composta por valor monetário (varia de família
para família), bebidas alcoólicas, animais (bois, cabrito e galinhas), roupas,
sapatos e, até colares.
Caso a noiva não seja encontrada virgem, o mabatiro não é pago, dado que,
nestas condições a noiva não têm valor sociocultural e, portanto, os seus pais
não são dignos de receber qualquer compensação por ela. No entanto, a
manutenção do laço dependerá do consenso entre o noivo e sua família.
Pagamento da virgindade (Mabatiro)
Depois de algum tempo de convivência do casal, de preferência quando a
esposa estiver grávida, deve-se formalizar o laço matrimonial por meio do
mabatiro. Como é sabido, a família tem origem no casamento e a principal
função é a procriação, o garente da continuidade da linhagem. Para tal, o casal
e a família do marido devem deslocar-se a casa dos sogros para realizar o
mabatiro. No entanto, deve reunir-se o seguinte: manta, calça, camisa, sapato,
gravata, chapéu e casaco para o sogro e pano, colar, enxada e esteira para a
sogra.
151
Os recém casados também devem levar um valor monetário, 50,00Mt cada um.
A mulher deve entregar o valor a sua mãe e o homem deve entregar ao seu
sogro. Por um lado simboliza agradecimento e por outro, existe um mito
segundo o qual, caso não se entregue este valor, os sogros podem apanhar
tuberculose.
Como forma de agradecimento e tornar a cerimónia mais alegre, os pais da
esposa preparam bebida tradicional para consumir com a família que
acompanha o genro. Entre os barkes de Nhassacara, o mabatiro tem três
funções, a saber: legitimar o casamento; gesto de gratidão do marido por tudo
que os pais da esposa tenham feito para garantirem um crescimento não
correcto da rapariga e; compensação pela perda da filha, para outra família.
Este ritual dá por consumado o matrimónio, porém, a esposa é entregue
parcialmente ao esposo e família enquanto se aguarda pelo pagamento do
lobolo.
Lobolo (Chuma)
O Chuma é a última etapa do matrimónio e, tradicionalmente, reveste-se de
elevada importância económica e social. Nas comunidades tradicionais, a
mulher é considerada um valor devido ao serviço que presta na casa da sua
família. Assim sendo, quando ela se casa, abandona a sua família e
acompanha o seu marido, em seu lugar deve ficar o lobolo. O lobolo também
serve de protector da mulher e dos seus filhos em caso de uma fatalidade que a
deixe sem recursos. Uma mulher casada e com filhos, em caso da morte do seu
marido, passa a ser um encargo para a família onde vive, neste caso, ela
apenas sente-se protegida pelo facto do lobolo ter sido pago.
Na comunidade de Nhassacara, o rito de casamento só termina com o
nascimento de filhos e, dependendo do número, cobra-se lobolo por cada um
deles, no quantitativo que varia entre 1.500,00 a 2.000,00Mt. Com o lobolo, o
homem consolida todos direitos sobre a mulher e os filhos tidos por ela.
Geralmente o ritual é praticado depois de gerado o último filho do casal e
marca o fim do ritual de casamento.
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Rito de morte (Rufu)
Na comunidade de Nhassacara Rufu significa o desaparecimento físico de um
indivíduo que jamais voltará, o qual deve ser enterrado numa cova ou caverna.
Porém, considera-se um momento importante porque acredita-se que o
indivíduo transita do mundo dos vivos para o mundo espiritual ou ancestral,
que em muitos casos, torna-se protector da família ou comunidade. Neste
grupo étnico, a morte sempre foi um mistério com repercussões diferentes para
os viventes, por considerarem um fenómeno complexo e inexplicável que afecta
a vida da comunidade.
A vida de qualquer ser vivo termina com a morte. Trata-se de uma Lei da
natureza, traduzida em, “tudo que tem princípio tem fim”. Entre muitos
africanos, a morte de um membro da família, por um lado, constitui angústia,
mas por outro, crê-se que possibilita a transição para espírito. Por sua vez, o
espírito do falecido servirá de guardião da família. Por isso, a morte é
acompanhada por muitos rituais.
A morte aparece como uma porta que se abre para o triunfo da vida que
germinou no nascimento e, deve atingir a sua plenitude no estado de espírito.
Pela morte, os barkes nascem de novo. Esta morte é considerada como uma
suprema iniciação da existência espiritual.
Considera-se que a vida do além é semelhante à vida visível, existindo uma
série de relações entre os defuntos e os vivos. Entre estes dois mundos, visível
e invisível, estabelecem-se relações de interdependência, onde os vivos
precisam de dádivas, e os mortos dos sacrifícios. Ambos possuem sentimentos
e reagem perante os acontecimentos, por isso, devem ser respeitados consoante
a sua importância social e o seu procedimento moral.
Os vivos têm a obrigação de satisfazer todas as vontades dos espíritos dos seus
antepassados em troca de protecção, saúde, fertilidade dos campos e sucessos
nos seus empreendimentos. Por este motivo, a morte é um momento muito
marcante para a comunidade de Nhassacara e, é concebida como a passagem
da pessoa para outro estado de vida diferente da que o homem tinha antes da
morte. Esta transição do mundo dos vivos para o mundo dos mortos é
assinalada pelos rituais de passagem. Acredita-se que estes rituais têm o poder
de afastar os espíritos malignos na povoação. O não cumprimento, rigoroso e
criterioso, das normas estabelecidas nos rituais pode trazer implicações como
doenças, mortes, entre outras.
153
Através destes rituais procura-se restabelecer uma ordem social quebrada,
obter purificação, reparação das culpas, manifestação de dor e sacrifício
mediante as orações, cânticos e representações.
Todavia, importa referenciar que os rituais fúnebres e tabus associados tem
sofrido algumas alterações consoantes as virtudes sociais da actualidade. Ora
vejamos, no passado as crianças não podiam ver e nem fazer parte das
cerimónias fúnebres, mas nos dias de hoje, verifica-se a presença de crianças
nos funerais.
Actos da herança que consistiam na viúva ser entregue para casar-se com um
dos irmãos do falecido, tende a desaparecer devido as doenças de origem
sexual. A população já tem a noção de que se a viúva estiver infectada, ou por
outra, se o irmão herdeiro estiver infectado, a doença pode alastrar-se pela
família.
A quando da abertura da cova, no final, fazia-se um túnel onde se depositava o
caixão e depois tapava-se com pedra, actualmente, apenas se abre uma cova
rectangular e simples para depositar o caixão visto que o modelo antigo
mostra-se muito trabalhoso.
Com o aparecimento de novas tecnologias que trabalham a madeira, muitas
famílias se esforçam em adquirir caixões feitos de madeira ao invés de caniço
(khangala).
O respeito dado às estruturas sociais tradicionais também se manifesta nos
procedimentos de Rufu actualmente, porém, nota-se uma ligeira variação nos
rituais de crianças, homens adultos, mulheres adultas e chefes tradicionais,
pese embora, existe alguns aspectos comuns para todas as camadas.
O período que antecede a morte de um adulto
Quando uma pessoa se encontra gravemente doente, reúnem-se os familiares
para informa-los sobre a situação. A partir deste momento os familiares
passam a visitar o doente frequentemente, enquanto os mais próximos (filhos,
irmãos, etc.) passam a dormir na casa do doente. Quando se nota que já não
existe esperança de vida, maior número dos membros da família passam a ficar
permanentemente com o doente para fazerem companhia, enquanto se
despedem dele.
Em simultâneo, os familiares vão dirigindo-se para os curandeiros e profetas
na tentativa de procurarem saber se a causa da doença é dos espíritos da
154
família (wadzimu), de espírito reivindicativo pelo facto de o doente ter morto
alguém (ngozi), da feitiçaria ou ainda pode se tratar de uma morte natural que
vem de Deus (Mwari).
No momento da debilitação, o doente aproveita a presença dos familiares para
informar sobre o destino dos seus bens e da sua família. Geralmente faz a
entrega da sua família aos cuidados do irmão ou irmã da sua confiança, este
que terá que cuida-los em caso da morte.
Quando se trata de uma mulher a beira da morte, o genro deve deslocar-se à
casa dos sogros para informar sobre a situação. Para tal, deve levar um valor
simbólico (mutete) 39 que serve para dar informação da situação. Os sogros
apercebendo-se da situação, vão imediatamente com o genro ao encontro da
sua filha. Chegado a casa do genro, os sogros podem para levar a filha para
sua casa, de modo a procurarem saber as causas da doença, nos mesmos
termos realizado aos homens.
Observando-se que não há esperança de vida, estando na casa dos pais, estes
chamam o marido para acompanhar os últimos momentos da vida da mulher.
Depois da morte, caso se trate do genro que tenha pago o lobolo, pergunta-se
onde pretende deixar os filhos, seja com os sogros ou pretendem leva-los. Se
tratar-se de genro que não tenha pago lobolo, poderá faze-lo sob pena de
perder o direito sobre filhos. O processo é o mesmo, caso a mulher tenha
morrido na casa do seu marido.
Rituais de morte de um adulto
A confirmação da morte de alguem é feita mediante a colocação da mão sobre o
coração para verificar a os batimentos cardíacos. Este acto fica ao cargo de um
familiar próximo que pode ser a esposa, esposo ou um vizinho de confiança.
Identificado que já esta morta, antes do primeiro grito procura-se um indivíduo
idoso e experiente para orientar a cerimónia fúnebre, designado localmente por
Sahwira que, antes, deve fechar os olhos do cadáver. Se for uma mulher
procuram-se dois Sahwira (mulher e homem), a mulher trata dos assuntos em
casa enquanto o homem, orienta os processos no cemitério. A partir de então,
pode-se dar o primeiro grito.
39 Simbolismo para inicio de conversa com pessoas que se deve respeito.
155
No quarto onde o defunto estiver, procura-se um canto onde se coloca uma
esteira e sobre ela, o cadáver é coberto por um pano preto ou branco. Trata-se
de cores que simbolizam a morte. Normalmente o preto usa-se para cobrir o
cadáver e o branco para envolver o caixão. No canto onde se coloca o corpo, a
parte frontal do corpo deve estar virada para o Oeste, por se tratar do lado
onde o sol se põe.
Conservado o cadáver, o passo subsequente constitui em enviar um
mensageiro para informar ao Régulo (Nyakwawa) mediante o simbolismo
mutete, de modo que o Régulo autorize o uso do batuque. Em simultâneo leva-
se a informação aos familiares mais próximos. Depois da chegada dos membros
da família com poder decisivo, fazem-se concertações de procedimentos e
decidem dispor informação aos restantes membros da comunidade. O aviso é
feito mediante o toque de um batuque (ngoma). Todos os membros da
comunidade que ouvirem o som do batuque, não terão dúvidas alguma que
trata-se de falecimento.
Enquanto isso, vai se esperando pela chegada dos membros da família que
vivem mais distante. Logo que chega o primeiro irmão do defunto, quando se
trata de é um homem, toca-se batuque para informar aos presentes da chegada
de um membro importante. Depois, as senhoras presentes começam a chorar
como sinal de transmissão de pêsames.
O (a)Sahwira toma decisão, junto dos familiares do defunto para o início do
banho. Para tal, ele pede apoio de alguns membros da família do (a) malogrado
(a). O banho dá-se no local da morte e acontece em dois momentos, logo depois
da morte e pouco antes de colocar-se no caixão. O banho é, basicamente,
limpar o cadáver com um pano húmido. Depois do segundo banho, reúnem-se
os famílias e o (a) Sahwira procura saber pela roupa que malogrado (a) mais
gostava ainda em vida, é esta roupa que o/a devem vestir.
Na medida em que vão chegando mais mulheres na casa onde se encontra o
cadáver, solidarizam-se com a família através do choro. Depois de algum
tempo, retiram-se e vão juntar-se às outras que estão a preparar os alimentos,
de forma a permitir que às pessoas que vão chegando tenham espaço para
prestar solidariedade a família do falecido.
A morte nesta comunidade é associada ao tabu segundo o qual, dentro da casa
onde decorre o velório não é permitido exercer qualquer actividade doméstica
com destaque a preparação de alimentos. Para tal, as mulheres responsáveis
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para preparar as refeições fazem-na no quintal de uma outra casa distante
para não interferir no velório.
No velório, fica permanentemente a viúva, no caso do falecido ser um homem.
A Sahwira e familiares femininos próximos ficam próximo do corpo e, todos
com lenços na cabeça e cobertos de capulana.
Depois de concentrar um número significativo de familiares, os membros mais
influentes (pai, tios, avó, etc.) decidem sobre a data e hora do enterro.
Geralmente, os adultos são enterrados um dia após a morte enquanto as
criaças podem ser enterradas no mesmo dia. No caso da mulher, o atraso pode
estar condicionado pela espera dos seus pais. A passagem de uma noite do
defunto, deve-se ao facto dos adultos precisarem despedir-se da sua casa.
Durante a noite as pessoas cantam e dançam mafuwe ou chiwere (danças
tradicionais) que pelas suas letras e melodias, simbolizam o choro e sentimento
por uma perda irreparável. Enquanto se dança no quintal, as pessoas vão
lançando milho e mapira. Este ritual tem o significado que o morto deixou de
comer tais produtos, no entanto, passará para o estado de espírito onde terá
outra forma de alimentar-se.
Abertura da cova
Uma equipa previamente seleccionada e encabeçada pelo Sahwira, desloca-se
ao cemitério a fim de abrir a cova da sepultura. Antes de entrar no recinto do
cemitério, o Sahwira lança uma pedra para o interior do cemitério para pedir
licença aos espíritos dizendo: viemos com um hóspede, pedimos que o cuidem.
Depois de entrar, um membro da família é encarregue de demarcar o local
onde será aberta a cova.
O Sahwira participa orientando a demarcação que deve iniciar-se do lado onde
ficara a cabeça e terminar pelo lado dos pés, na mesma ordem que se verifica
no parto. No entanto, a cova é aberta de maneira que a cabeça fica voltada
para o Oeste (onde o sol se põe) porque reza a tradição local que os
antepassados vieram deste lado, enquanto os pés ficam virados para o Este
(onde nasce o sol). A cova tem o formato de um cubo em que o comprimento
vária em função da altura do cadáver, a largura deve permitir a movimentação
enquanto se deposita o caixão e a altura gira em torno de 1 á 1,5 metros.
Enquanto abre-se a cova no cemitério, em casa trata-se de colocar o corpo no
caixão, de modo que logo que vier a informação do fim da abertura da cova, o
157
corpo possa ser transportado de imediato para o cemitério. Quando as horas
para o enterro são escassas, somente vai uma pessoa para casa informar que a
cova já está pronta. Caso haja tempo suficiente para o enterro ser executado,
os que fazem a abertura da cova podem voltar a casa do falecido e, juntamente
com os demais passarem a refeição, depois disso é quando vão ao enterro.
Ida ao cemitério e sepultura
A retirada do caixão do interior da casa para o cemitério segue alguns
procedimentos, a saber: primeiro, devem ser retiradas todas as crianças para
que não vejam o caixão, de seguida, ao retirar o caixão da porta de casa, deve-
se contornar a casa com o caixão no sentido horário ou anti-horário,
dependendo do lado onde se encontra o cemitério, assegurando que depois de
dar-se a volta, o caminho a tomar deverá ser sempre para frente e nunca para
trás. Trata-se de um ritual cujo significado é, despedir-se da casa, tanto
quando se trata de um homem como para mulher.
O caixão é carregado pelo Sahwira e demais familiares e vizinhos. Durante a
ida ao cemitério, os familiares vão em frente, seja pai ou filho, que deve servir
de guia, de seguida vem a urna e no final os demais elementos da comunidade.
Durante este percurso, o Sahwira vai orientando as substituições dos que
transportam a urna.
Antes de entrar no cemitério, as pessoas param e descarregam o caixão. O
Sahwira leva uma pedra novamente e lança para o interior, cujo significado é
avisar os espíritos sobre a vinda de uma visita. Estando todas as pessoas
sentadas no chão, batem palmas ritmicamente designadas makupswi (junção
dos dedos das mãos formando uma concavidade entre as mãos e tirar um
som). Enquanto isso, o chefe da cerimónia vai fazendo pedido aos espíritos
dizendo: “tirikukumbira kupinda mukatimo” que, em português significa:
“estamos a pedir entrar lá dentro”.
Chegado no local da sepultura, o caixão é descarregado, o Sahwira com ajuda
de uma pessoa, de princípio o genro, entram na cova para receber o caixão.
Enquanto isso, os familiares vão proferindo as seguintes palavras: se a sua
morte foi por Deus, você é quem sabe, se for por uma pessoa, então terás que
ajustar a conta.
Os que estiverem fora da cova levam uma esteira e a dividem em duas partes
iguais, dando um pedaço para os que estiverem na cova para estenderem antes
de se colocar o caixão. Depois, duas ou quatro pessoas que estiverem fora da
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cova levam o caixão para entregar o Sahwira que está na cova juntamente com
um acompanhante. Ao recebem o caixão, colocam-no por cima do pedaço da
esteira e, por cima colocam o resto da roupa do falecido de forma organizada e,
voltam a cobrir o caixão com outro pedaço de esteira e saem da cova. A esteira
simboliza descanso tranquilo, enquanto a roupa enterrada serve para acabar
com vestígios do falecido.
Depois disso, o Sahwira leva uma pá e com ela uma quantidade de terra, para
os familiares colocarem a terra na cova, enquanto cada membro da família
expressa os seus sentimentos dizendo: “famba bwino, ife tichakutewera, tisiyeni
tikale bwino”, que traduzido significa: “ande bem, nós havemos de lhe seguir,
deixe-nos ficar bem”.
Nesta mesma altura, alguns familiares vão deitando areia ao interior da cova,
enquanto vão mencionando nomes dos familiares que por diversos motivos não
puderam participar no funeral, simbolismo que serve para lhes livrar de azares,
depois dos familiares, outros membros da comunidade também depositam
areia no interior da cova. Feito enterro, o Sahwira chama os sobrinhos e genros
da falecida ou do falecido para varrerem em volta da campa de modo a apagar
todas pegadas. Para tal, fazem-na de frente para trás, na medida que todos vão
se retirando.
Período após sepultura
Na saída do cemitério, todos os participantes da cerimónia do enterro devem
retornar a sentar-se no local que haviam sentado antes da entrada ao
cemitério, onde batem as palmas, enquanto o Sahwira dirige-se aos espíritos
dos antepassados dizendo “tirikuenda, khalani bwino muchiwona m’bale wasu”,
o que significa “já vamos, fiquem bem a velar pelo nosso irmão ou familiar”.
Enquanto isso, as pessoas que ficaram na casa do falecido levam água, sal e
fogo e colocam no caminho nas proximidades da casa do falecido, por onde
virão os que estão no cemitério. Ao chegar neste local, cada participante terá
que lavar as mãos com a água, saltar o fogo e levar um grão de sal tanto para
mastigar como para esfregar pelo corpo. Esse acto serve para evitar que
apanhem tuberculose (chakolo). Crê-se que comer na casa do defunto e sair
sem fazer este acto de purificação, pode trazer consequências desagradáveis.
Chegado à casa do falecido ou da falecida, encontra-se a comida já preparada e
pode-se consumir. Depois disso, o chefe da cerimónia poderá passar a noite na
casa do falecido, e no dia seguinte muito cedo, juntamente com os genros e
159
sobrinhos, viúva ou viúvo, do falecido (a) vão ao cemitério para ver o estado da
campa, visto acreditar-se que o falecido (a) pode transformar-se em leão
(Mbondoro) ou hiena (Tika), ou ainda ser desenterrado pelos feiticeiros.
A transformação para estes animais, acontecia com frequência no passado,
para o caso de indivíduos que em vida praticava a feitiçaria. Os familiares
usavam esta ida para confirmarem o facto. Caso houvesse essa transformação,
o sinal era encontrar na campa, pegadas ou um gato pequeno com aspecto
debilitado. Nestes casos, quando se chegava à casa, devia-se chamar-se um
curandeiro para proceder a consulta e tratamento. Com base nessa consulta,
podia-se aferir que a pessoa tinha tendência de se tornar curandeira ou tinha
dividas não pagas.
Para identificar o tipo de animal para o qual se transformou, colocava-se um
cabrito nas proximidades do túmulo no final do dia e no dia seguinte volta-se
para ver. Caso não encontrasse o cabrito, podia-se assegurar que se tratava de
um leão. Neste caso também voltava-se ao curandeiro para aferir se o lêao
(Mbondoro) é bom (espírito protector) ou não (espírito maligno).
Nos casos em que o falecido não tenha pago o dote, a sua família é cobrada a
pagar, quer seja em dinheiro, quer seja em animais. No caso contrário, a
família do falecido apodera-se dos bens (incluindo os filhos).
No terceiro dia, muito cedo, o Sahwira acorda, varre todo o quintal e apaga o
fogo, retira as cinzas e vai deitar na lixeira. Neste momento os familiares do
falecido preparam refeição, uma galinha e actualmente acrescentam dinheiro
que varia entre 100 a 200Mt ou mais dependendo das possibilidades da
família. Depois dele comer, a galinha e o valor monetário dá-se ao Sahwira em
jeito de agradecimento pelos seus préstimos e o dizem: o trabalho que tinha
aqui já terminou. Feito isto, ele já pode ir embora e deve levar também consigo a
faca usada para matar animais consumidos durante o falecimento, porque
segundo os locais, serve para evitar que as crianças desta família adoeçam.
Ritual de esteira (Bondwe)
Tratando-se de um genro (viúvo), que tenha apresentado um bom
comportamento durante a convivência com a mulher em vida, se os sogros
terem uma filha solteira, poderá oferece-lo para substituir a irmã. Porém, todos
pagamentos relacionados ao matrimónio deverão ser feitos. Esta substituição é
designada esteira (bondwe), que tem o significado de substituição de esteira ou
cama que desapareceu fisicamente.
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Purificação (Kupitakufa)
No sétimo dia, depois da morte do homem, realiza-se um ritrual de purificação
da viúva (Kupitakufa), que consiste em manter relações sexuais com o
cunhado, irmão do falecido, a partir deste acto, ela já estará pura e apta para
retomar a actividade sexual. Actualmente com elevado índices de doenças
sexualmente transmissíveis, este ritual foi substituído pelo uso de um pilão
tratado, anteriormente por um curandeiro. No entanto, a viúva passa a noite
na cama com o pilão ao seu lado e no dia seguinte, ao acordar, deve revestir o
chão da casa com barro preto extraído nas margens do rio.
Quando for uma mulher a falecer, a cerimónia é feita com a filha de casa. Ela
deve fazer um tratamento com o marido na base de medicamento tradicional.
Morte de uma criança
Considera-se criança, neste espaço, todo o indivíduo que ainda vive sob
cuidados dos seus pais e que ainda não se casou, independentemente da sua
idade. Quando esta morre, o primeiro passo consiste em chamar os sogros
(pais da mulher), antecedido pelo pagamento do mutete.
Os procedimentos funerais das criaças não envolvem o Sahwira e nem se toca
batuque. O aviso sobre o acontecimento é feito por meio de enviados, porque
acredita-se que estes não se trasformam em espírito.
No velório, o cadáver fica sob cuidados da mãe. Em todos os casos, as figuras
principais são acompanhadas pelos membros da família mais próximos, para
cuidar e ajudar em caso de necessidade. O funeral pode ser realizado no
mesmo dia, visto que não tendo família criada e casa própria, não tem o que
despedir-se.
Morte de chefe tradicional
Quando um Régulo (Nyakwawa) fica doente, a informação é dirigida apenas
aos familiares mais próximos. Estando a doença a tornar-se grave, surge a
obrigação de informar ao espírito dos antepassados (Mbondoro), visto tratar-se
de estrutura ungida pelo mesmo Mbondoro. Para tal, é orientado um enviado
(Sanondo) a entrar em contacto com o representante espiritual, no caso
concreto de Nhassacara, o espírito Mbondoro é representando pelo
Nyamukutcho, este último, por vias mágicas comunica a situação aos espíritos
dos ancestrais.
161
Os ancestrais através de Nyamukutcho vão ao encontro do Nyakwawa para
acalma-lo dizendo que, a morte que se aproxima trata-se de planos dos
antepassados, os quais têm uma missão para ele, depois de transitar para a
vida espiritual.
Durante os momentos finais de vida, ele apenas se refere sobre a divisão dos
seus bens, enquanto a questão de herança do trono, será definido pelos
espíritos. De modo a garantir o secretismo da morte do Régulo, no momento
em que encontra-se gravemente doente, ele é retirado da sua casa e levado
para um local distante designado chitsare para o esconderem da comunidade.
Este procedimento também é feito em caso de morte repentina.
Quando morre, o Sanondo dirige-se de novo ao Nyamukutcho para informar
sobre o sucedido. Tomado conhecimento, ele comunica aos espíritos e depois
dirige-se a casa do falecido a fim de orientar as cerimónias.
Nos primeiros dias, depois da morte do Régulo, não se dá a conhecer a
comunidade sobre o sucedido, só depois de aproximadamente uma semana (5
ou 6 dias) é que a comunidade passa a saber da morte. Enquanto isto, o corpo
passa por um processo de secagem por meio de fogo, preparado numa
montanha (mawiro).
O enterro do cadáver do Régulo conciste em deposita-lo na caverna de uma
montanha e depois tapá-lo com pedras. A posição do corpo é colocada de modo
que a cabeça fica voltada para o Oeste. Este enterro é apenas participado pelo
Sanondo e os Pfumos (chefes das povoações).
Depois do enterro, a comunidade passa a ter informação através do Sanondo
que toca batuque, nas primeiras horas da madrugada, 5 a 6 vezes, produzindo
um som lento que desperta comoção e sentimento para os que ouvem. Logo
depois, a comunidade reúne-se na casa do falecido para dançar mafuwe.
162
Rito de chuva (Kuteta madzi)
Kuteta madzi significa pedir chuva na lígua local, pedido este dirigido aos
espíritos. Trata-se de um ritual na comunidade de Nhassacara, caracterizado
por preces aos espíritos da linhagem Chivembe do totem Nyankulo. Para o
efeito, todas as famílias devem organizar-se para dar a sua contribuição
(dinheiro, animais, cereais, etc.) para a realização do ritual. Esta cerimónia é
realizada quando se nota indícios de falta de chuva nos meses de Novembro ou
Dezembro.
A chuva é fundamental para os povos de todo mundo. Sem ela não há vida na
terra. A existência dos seres vivos como plantas, animais, ser humano
incluindo o rio e lagos é fundamentada pela existência da chuva. Quando
chove, a população fica descansada, no caso contrário constitui uma grande
preocupação.
Os pedidos de chuva aos espíritos são praticados desde a antiguidade em
muitas sociedades tradicionais do mundo, a título de exemplo, os índios,
egípcios, maias e astecas. Muitos deles usando danças especiais para pedir
chuva na época da colheita.
Em Moçambique, a agricultura é a principal actividade produtiva das
comunidades tradicionais. Desde os tempos remotos, usa-se os meios
empíricos que dependem da natureza e da mitologia. Estas sociedades
praticam diversas culturas de acordo com o clima. A produção agrícola é feita
predominantemente em condições de sequeiro, nem sempre bem sucedida,
uma vez que o risco da perda da colheita é alto devido a falta de humidade no
solo.
Na comunidade de Nhassacara quando não chove, os mais velhos ficam
preocupados porque a produção agrícola, principal fonte de sobrevivência, pode
ficar comprometida e a fome poderá assolar a comunidade. De acordo com a
crença local, antes dos efeitos das mudanças climáticas que verica-se
actualmente, basicamente a chuva não caia devido a violação de tabus,
nomeadamente, fazer relações sexuais nas matas, lavar utensílios domésticos
directamente aos rios, abate indescriminado de árvores em locais sagrados ou
então devido ao facto de não terem agradecido aos espíritos dos antepassados
pela boa colheita, aquando da queda regular de chuva na época agrícola.
No entanto, para pedir a chuva aos espíritos, deve-se realizar uma serie de
rituais de modo que a chuva caia. Esses rituais de pedido de chuva são
dirigidos pelos chefes tradicionais, por tratarem-se de guardiões das terras e
163
por possuirem mecanismos de comunicação com os espíritos dos
antepassados.
Não existe registo certo de quando esse rito começou a ser praticado. No
entanto, a prática é antiga no seio dos barkes de Nhassacara, iniciado na época
dos seus antepassados, desconhecendo ao certo a verdadeira origem. Com o
tempo, as causas da falta de chuva, que antigamente apenas responsabilizava-
se a violação de tabus, são atribuidas as mudanças climáticas.
A transmissão dos procedimentos rituais é feita dos mais velhos da linhagem
dos chefes tradicionais (Mbondoro, Régulo, M`fumo, Ancião) aos mais novos,
privilegiando a família dos Régulos previamente seleccionados, que participam
em todas etapas, garantindo assim a continuidade desta prática.
Antecedentes do ritual
Quando se nota a falta de chuva, devido a intensificação das reclamações no
seio da comunidade, os Anciãos comunicam aos M`fumos (chefes tradicionais
do 2˚ Escalão, geralmente netos ou sobrinhos do Régulo), estes vão informar ao
Régulo (Nyakwawa) sobre a preocupação, que por sua vez, vai informar ao
Nyamukutcho, comummente designado por Mondoro (leão), neste caso, figura
carnal que representa o espírito de Mondoro em Nhassacara.
Ao chegar em casa de Nyamukutcho, o Nyakwawa deve bater as palmas
ritmicamente e, quando estiver diante da figura, deve bater palmas duas vezes
como saudação, proferindo os seguintes dizeres: “vovó, o meu problema é de
água, não está a chover e os seus netos vão morrer”. Este Mondoro, com dotes
espirituais para invocação, reencarna os espíritos para poder comunica-los
sobre a preocupação da comunidade e a pretensão de realizar o rito de chuva.
Os espíritos dos antepassados por via do Mondoro comunicam ao Nyakwawa
sobre as necessidades da realização de um culto, reunindo basicamente
produtos como mapira, farinha de milho, mexoeira, galinha, cabrito, boi, etc.,
para alimentação durante as cerimónias.
A partir deste momento, o Mondoro se prepara para o culto, enquanto ao
Nyakwawa, cabe organizar a comunidade e o grupo de dança mafuwe para o
ritual, pois o rito de chuva deve envolver todas as famílias da região. Para a
informação abrangir toda a comunidade, o Nyakwawa responsabiliza os seus
M`fumos para convocarem os membros da comunidade, nos seguintes termos:
Há falta de chuva por termos violados os princípios dos nossos antepassados,
por isso, temos que fazer a cerimónia de pedido de chuva. Para tal, temos que
164
contribuir em produtos, tanto para preparar comida como para bebida (farinha
de milho, mapira, mexoeira, galinha, cabrito, boi, lenha, tabaco, etc.). Os
M`fumos são responsáveis em recolher os produtos e encaminhar a casa do
Nyakwawa.
Tratando-se de uma área geográfica relativamente maior, não se realiza apenas
uma única cerimónia. Ao nível de cada povoação são organizadas cerimónias
de modo a cobrir toda a região de Nhassacara. Enquanto no Nyakwawa
decorre a cerimónia principal, nas povoações, os M´fumos realizam rituais
similares. Em todos casos, há equipes seleccionadas que dirigem-se aos locais
apropriados para a realização do ritual de chuva.
Antes da data da realização do ritual, são seleccionados homens e mulheres
idosos para irem fazer limpeza nos locais designados por Towe (árvore
frondosa) onde habitualmente realiza-se o rito de chuva. Geralmente, o local é
no interior da floresta, na sombra de uma árvore de copa grande onde acredita-
se que os espíritos dos seus antepassados jazem. A limpeza consiste,
basicamente, em varrer e substituir a água contida nas três bilhas previamente
depositadas em baixo da árvore, a saber: uma que representa a terra, a
segunda os espíritos dos antepassados para onde se dirige a mensagem e a
última representa a figura tradicional suprema, o Nyakwawa. De referir que
nos Towes dos M`fumos não se depositam bilhas.
No dia das preces ninguém deve realizar outra actividade económica, sob pena
de comprometer o sucesso do pedido de chuva dirigido aos espíritos. O
cancelamento da actividade laboral é sinónimo de tristeza e preocupação, esta
forma de comportar-se também entristecem os espíritos dos antepassados
(Mondoro), de modo que façam chuver mediante o seu choro, visto que, nesta
sociedade acredita-se que os espíritos façam chuver quando estiverem
entristecidos.
Este rito é praticado em dois momentos, um dos quais, no local dos espíritos
onde se dirigem as preces, e o outro, na residência do Nyakwawa. A ida ao
local do pedido é feito por um grupo de indivíduos, parte destes permanecem
na parte exterior e uma parte restrita de indivíduos previamente seleccionados
entram ao local da cerimónia, enquanto na casa do Nyakwawa, a celebração
abrange todos os estratos.
165
Preparação da bebida
A bebida usada durante a realização do ritual é fabricada na base de mapira
proveniente das contribuições da comunidade e é designada nkatu ou badwe.
Para tal, faltando cerca de uma semana da data marcada para a cerimónia, o
Nyakwawa solicita para sua casa, um número significante de mulheres
experientes no preparo da bebida tradicional de mapira para iniciarem com o
processo de fabricação.
No entanto, leva-se a mapira em recipientes abertos (cestos, peneiras) para um
local próximo da casa do Nyakwawa, onde se vai fazer pedido e entregar todo
processo de preparação de bebida aos espíritos. Ao chegar, deixam-se os
recipientes no chão e o Nyakwawa dirige as preces aos espíritos dizendo:
estamos a preparar a cerimónia de chuva, pedimos que tudo corra bem e que
caia uma chuva não destruidora.
Os recipientes com mapira são deixados no local durante a noite enquanto
espera-se que uma chuva caia para molhar e humedecer a mapira. Caso a
chuva não caia, retorna-se ao Mondoro a fim de consultar os motivos de modo
que as falhas sejam corrigidas e o processo reinicie, porém, casos destes
raramente acontecem.
Molhada a mapira, no dia seguinte é levada para conservar em um dos
alpendres da casa do Nyakwawa, onde se espera até germinar, isto é, início do
processo de fermentação. A semente germinada é triturada e moída no
almofariz ou mesmo na pedra de modo a obter a farinha, enquanto isso, o
outro grupo coloca tambores de água ao lume para aquecer. Depois mistura-se
a farinha à água quente e vai-se mexendo até obter uma mistura homogénea e
densa (papa).
Parte dos produtos recolhidos são usados para confeccionar comida das
preparadoras da bebida, visto existir um tabu local segundo o qual, as
senhoras envolvidas no preparo da bebida não podem abandonar o local de
trabalho sub risco de envolverem-se em relações sexuais com os seus maridos,
o que pode resultar na deterioração da bebida, até mesmo da cerimónia.
Depois da papa cozer, tira-se e distribui-se em recipientes de barro para
arrefecer e consolidar o fermento (mussunga), num processo que pode durar
mais de um dia. No dia seguinte, prepara-se outra papa de farinha de mapira,
desta vez, usando mapira que não tenha passado pelo processo de germinação.
É esta papa que depois de cozer, parte dela é retirada e arrefecida para
produzir o chamando pombe doce (paratsute), que é servido a crianças durante
a cerimónia.
166
Parte do pombe doce deixado no tambor é colocado fermento e continua com a
fervura até a mistura completa. Depois de tirar do fogo e arrefecer e está pronta
para ser consumida.
O ritual
No dia da cerimónia, nas primeiras horas da manhã ou final da tarde, o
Mondoro, o Nyakwawa, os idosos (homens e mulheres), por sinal os indicados
para a limpeza e duas crianças (rapaz e rapariga), dirigem-se ao Towe,
acompanhados por alguns membros da comunidade.
O Mondoro, por via de reencarnação dos espíritos, garante a comunicação entre
o mundo dos vivos e dos antepassados durante o culto. É ele que leva e usa o
tabaco para se esfregar na cara de modo a acalmar os espíritos, enquanto o
Nyakwawa ou um idoso por ele indicado é encarregue de dirigir as preces.
As idosas auxiliam nas tarefas relacionadas com o ritual no Towe. São elas que
transportam o recipiente contendo a bebida para os espíritos. A bebida levada
ao Towe é numa quantidade simbólica e deve ser transportada em panela de
barro.
As crianças levadas ao Towe, são as que ainda não iniciaram com a actividade
sexual, por isso são consideradas “frias” ou dignas para participarem
activamente no ritual. A rapariga é quem transporta a cabaça (ntiko) usada
para servir a bebida aos espíritos e o rapaz deposita a farinha enquanto
dirigem-se preces aos espíritos. Esses menores devem ser transportados na
escota durante toda a caminhada ao local das preces. De referir que na
comunidade de Nhassacara, todo o pedido dirigido aos antepassados, é
antecedido por oferta de um valor monetário simbólico, denominado bano.
Antes de chegarem ao local, o grupo sentam-se no chão, em baixo de uma
pequena árvore para baterem palmas num ritmo típico que simboliza pedido de
permissão aos espíritos para acederem ao Towe. Os membros da comunidade
que acompanham a equipa seleccionada para realizar o ritual, deve
permanecer neste local, enquanto o grupo destacado continua até ao local das
preces.
Chegados ao Towe pedem novamente permissão aos espíritos com palmas, de
seguida os presentes despem o tronco, traduzido em tirar blusa e camisa. Ao
homem confiado em dirigir o ritual, colocam-lhe uma capulana branca para
cobrir o tronco que, de acordo com a crença local, trata-se da cor preferida dos
espíritos e facilita o contacto e obtenção de bênção dos mesmos. As idosas
mantém-se com o peito fora enquanto cantam e dançam escandalosamente
167
com intuito de entristecerem os espíritos dos antepassados, de modo a fazerem
cair a chuva.
Depois limpa-se o chão e o orientador do ritual vai depositando o tabaco no
chão enquanto profere pedido aos espíritos nos seguintes termos: estamos com
fome; olhem para nós, os seus filhos querem água, pedimos para não trazer
chuva destruidora mas que caia bem.
As preces aos espíritos devem ser feitos enqunto decorrem oferenda aos
defuntos e aos bons espíritos. As crianças são as primeiras a depositar a
bebida seguida dos outros. Durante o ritual, para além de evocar-se o espírito
Mondoro, são também evocados outras almas de defuntos, na medida em que
vai-se depositando a bebida nas panelas de barro. Um aspecto importante é
que, enquanto se oferece a bebida aos espíritos, um dos anciões de confiança
do Nyakwawa, pode arrancar a cabaça e consomir a bebida, cujo simbólismo
consiste em enfurecer e entristecer os espíritos.
Quando a equipe volta ao local onde ficou parte do grupo inicial, canta-se e
dança-se pelo menos uma ou duas canções de mafuwe, com letras que
traduzem tristeza. Antes do regresso a casa, sentam-se no chão de novo sobre
a árvore, batem-se palmas e o responsável pelo ritual diz: já estamos a ir,
respondam-nos o pedido porque o sol está demais.
Caso as preces tenham sido aceites, a chuva cai imediatamente após o ritual
ou enquanto regressam a casa do Régulo, onde terá lugar a continuação do
rito. Entre os barkes de Nhassacara, os espíritos Mondoro fazem cair a chuva
como forma de purificar os pecados cometidos pelo seu povo.
Na casa do Régulo
Naturalmente que na casa do Régulo, parte dos membros da comunidade fica a
preparar alimentos para serem consumidos, enquanto consome-se a bebida
tradicional. Esta etapa do ritual é reservada para todos estratos da
comunidade e não tem qualquer restrição e nem regras. Vezes há em que a
chuva inicia a cair durante a confraternização na casa do Régulo. Mesmo
assim, a cerimónia continua.
Quando não cai a chuva depois do pedido, o Régulo vai ao encontro do
Mondoro, para procurar saber sobre as razões. Em função da resposta dos
espíritos, procedem-se as orientações para que possa chover.
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No entanto, a comunidade bebe, come e dança mafuwe num ritual que pode
decorrer a noite toda até o dia seguinte, numa clara manifestação de alegria
pela satisfação das suas súplicas.
169
Bibliografia
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VALOI, Alberto et al. Algumas danças praticadas na província de Gaza. Maputo.
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Lista de Entrevistados
Nº Nome Idade
1. Rosimer Samsone 42
2. Miricina Damião 72
3. Mide Rewane 33
4. James Lezane 48
5. Teresinha Makaza 52
6. Essita Dapissone 65
7. Elisa Andicene 54
8. Alesta Lezenesse Nhancolesse 56
9. Albertino Laete 52
10. Laurinda Beula 37
11. Maria Beula 41
12. Paissone João 84
13. Vasco Pita Jombo 62
14. Juvêncio Mafiquene 47
15. Ramiosse Posse Dias 31
16. Inácio João Quimbine 35
17. Romão Luís Jó 27
18. Luís Lossi 67
19. Augusto Matinote 43
20. Orlando Rosário 36
21. João Soromone Lupia 37
22. Manuel Correia Bobo 42
23. Luísa Pita Semeria Sem informação
24. Lassina Jó Samanhanga 81
25. Gazirina Nguiraze Samanhanga 79
26. Jessica Massimbayacowa 73
27. Joana Joanete 71
28. Lúcia Bocosse 58
29. Keneth Dique Saroncatho 91
30. Cedista Goliate 56
31. Manuel Campira Nhumba 61
32. Maurício Dausse Nhatulo 49
33. Paulina Mirione Chequete 32
34. Marora Jasse 66
35. Quedi Timozo 62
36. Armando Sacanhare 60
37. Milione Chiequete 78
38. Joana Joaquim 75
39. Manuel Jairosse Xavier 60
40. Deniasse Matimba Cassindi 76
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