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Soraya Silveira Simões - Conversas de Cozinha. Considerações sobre a Sociabilidade Feminina num Conjunto Habitacional da Zona Sul do Rio de Janeiro
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CONVERSAS DE COZINHA:CONSIDERAES SOBRE A SOCIABILIDADE FEMININA
NUM CONJUNTO HABITACIONAL DA ZONA SUL DO
RIO DE JANEIRO
SORAYA SILVEIRA SIMES1
1 INTRODUO2
Uma emoo sempre uma aventura coletiva. Esse entendimento, funda-
mentalmente pragmtico, a base do argumento deste captulo. No h emoo
capaz de mobilizar pessoas, seja em aes individuais ou coletivas, seno aquelas
ressonantes. Do contrrio, diz-se logo tratar-se de louco, profeta ou visionrio aque-
le que sente, lembra e se mobiliza sozinho, desimpedido de qualquer comoo.
A emoo deve, assim, ser formada, esclarecida, definida, canalizada, situada
para ser compartilhada, compreendida. Para isso, h procedimentos. E o prprio
conceito de sociedade pode e deve, aqui, ser interpretado como sendo o seu
conjunto.
Alm de um repertrio de procedimentos de formao e socializao, uma
sociedade tambm se revela a partir de um acervo de lembranas, de uma memria
coletiva que se cultua e cultiva atravs da arte narrativa. Esta, por sua vez, exige um
pblico que saiba ouvir para captar os seus mais variados tempos e movimentos. E
precisamente este pblico, com o seu saber e as circunstncias de sua formao, o
objeto de nossa ateno. Pois quem conta uma histria o faz para um ouvinte quali-
ficado do qual se espera entender as razes do narrador.
Histrias, afinal, mobilizam as pessoas, lembra o jurista Wilhelm Schapp em
seu estudo sobre as narrativas. E uma histria bem contada, isto , que tenha captu-
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CONVERSAS DE COZINHA
rado a ateno imaginativa dos seus ouvintes, faz de cada um deles candidato a
recont-la, complementam Mello e Vogel (2000), autores que reconheceram a
importncia do legado sobre as narrativas deixado por Schapp.
Neste processo de se contar e ouvir histrias ganha forma um tipo especfico
de organizao social da experincia da qual decorre o postulado segundo o qual
no h nem pode haver narrativa desinteressada (ibid.). A narrativa, portanto, tem
sempre um destinatrio que ajudar o narrador, por sua vez, a dar certos contornos,
certos modos de dizer uma histria para que esta, suscitando a empatia, torne
comunicvel a experincia complexa (ibid.). Para que as histrias, entretanto, al-
cancem esse estado timo de comunicao, preciso, ainda, que saibamos o lugar e
o momento mais adequado para que elas sejam contadas de maneira apropriada para
a boa compreenso da audincia.
Antes do que e por que nos lembramos, importa, aqui, como nos lembramos.
Com esta abordagem original, proposta por Halbwachs, em 1925, situamos a possi-
bilidade da anamnese e, portanto, da memria e dos sentimentos em um quadro
social, deslocando o foco de um indivduo em particular e da sua subjetividade em
direo a um sujeito que lembra e sente a partir de um dado contexto onde encontra
as condies necessrias para o enquadramento do vivido. Ao perguntar como nos
lembramos, restitumos memria e histria individual ou coletiva, tanto faz
sua mais notvel potncia: a j citada organizao social da experincia. Aqui, lem-
branas, histrias e, por conseguinte, emoes dependem de seus respectivos qua-
dros como condies incontornveis para a produo de um passado, mas tambm,
e sobretudo, de modos de sentir que se manifestam e se perpetuam no presente.
As narradoras e as ouvintes das histrias que vamos agora conhecer so parte
de um contexto urbano onde seus casos ganham vida e sentido especial. Flexiono
aqui o gnero as narradoras e as ouvintes , pois estas histrias, do modo como so
contadas e interpretadas, revelam alguns dramas constitutivos do universo feminino
e, mais precisamente, dessas habitantes da cidade que tm em comum no somente
papis sociais so mes biolgicas e adotivas, esposas, mulheres, trabalhado-
ras etc. , mas tambm o endereo o conjunto habitacional Cruzada So Sebasti-
o do Leblon e as experincias que ali encontram lugar.
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SORAYA SILVEIRA SIMES
2 O LUGAR
A Cruzada, nome como hoje chamam o Bairro So Sebastio do Leblon,
foi construda nos anos 1950, s margens da lagoa Rodrigo de Freitas, pela associa-
o catlica Cruzada So Sebastio, fundada por Dom Hlder Cmara. Com o apoio
dos governos municipal e federal, a iniciativa pretendia urbanizar todas as favelas da
ento capital federal em um prazo de dez anos e com isso fazer face poltica de
remoo de favelas que j se anunciava (Simes, 2008; Slob, 2002).
A favela da Praia do Pinto, extinta nos anos 1960 por obra de um incndio, foi
a primeira beneficiria das obras de urbanizao da Cruzada. Hoje, cinquenta anos
depois de deixarem os barracos para residirem nos apartamentos dos dez prdios,
erguidos pela Cruzada entre a lagoa e a praia do Leblon, os moradores se veem
ainda hoje constrangidos, em diversas situaes cotidianas, por terem seu endereo
associado favela. Por conta disso, lhes negam empregos ou lhes reservam lugares
subalternos. A caridade da Igreja, a responsabilidade social das empresas ou a re-
presso policial atualizam, a todo instante, os limites que renem esses moradores
em uma populao.3 Os jornais de grande circulao reforam os esteretipos
veiculando notcias que tm na Cruzada um nico cenrio: o de batidas policiais e
reduto de bandidos (Cf. O Globo, 2004). Como se no bastasse, as dvidas de
IPTU, tambm noticiadas nas manchetes dos jornais (Ver O Globo, 2007 e Simes,
2008),4 de tempos em tempos reacendem o fantasma da remoo que, entre os
anos 1960 e 1970, impulsionou a maior dispora compulsria de moradores da cida-
de, removidos das favelas, sobretudo daquelas situadas na Zona Sul do Rio, para
conjuntos habitacionais situados nas periferias da cidade.
Portanto, o nivelamento condicionado pela perspectiva da pobreza ainda
hoje associada ideia de favela e, por conseguinte, da dvida torna indistinta,
muitas vezes, a heterogeneidade existente entre os moradores da Cruzada e as
relaes estabelecidas entre esses e os demais moradores do bairro. Instala-se o
sentimento de usurpao de suas caractersticas singulares e de todo o esforo inves-
tido cotidianamente na conduo de suas vidas pessoais. Os esteretipos que pulu-
lam no imaginrio urbano carioca restituem, entre os moradores da Cruzada, a
ambiguidade da falsa homogeneidade, situando o complexo de relaes entre vizi-
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CONVERSAS DE COZINHA
nhos, condminos, parentes e amigos naquele sistema mais amplo, representado
pelo bairro do Leblon, ou, ainda, pela Zona Sul do Rio de Janeiro.
De acordo com uma pesquisa realizada pela Companhia Estadual de Habita-
o (CEHAB), em 2000, 39,35% das famlias que se mudaram da favela para os
apartamentos permanecem na Cruzada; 32,26% compraram o imvel regularizado
de terceiros. Do total de 71,61% de proprietrios, 63,87% residem h mais de 25
anos no local. Os imveis em situao de aluguel somam 9,03% e 15,49% o
universo das ocupaes consideradas irregulares e tambm nestas duas ltimas ca-
tegorias encontram-se pessoas que viveram ou tm parentes que vieram da Praia do
Pinto.
Muitas so as associaes existentes no conjunto e o levantamento feito pela
CEHAB mostra que 17,42% dos moradores exercem atividades no seu condomnio
e/ou na Associao de Moradores; 50,70% participam de grupos religiosos, 33,80%
de grupos esportivos, 5,63% de grupos recreativos e 5,63% de grupos culturais.5 Nos
apartamentos tambm so oferecidos servios dos mais variados tipos, em sua mai-
oria prestados por mulheres e voltados para o pblico feminino. Depiladoras, mani-
cures, cabeleireiras especializadas em penteados afro, vendedoras de cosmticos,
roupas, doceiras, rezadeiras e explicadoras vendem seus servios anunciando-os em
cartazes afixados nas paredes e entradas dos prdios. As penses tambm esto
espalhadas em quase todos os blocos, especialmente nos primeiros,6 e atendem,
para almoo e jantar, os trabalhadores da regio. Tambm elas so administradas, em
sua maioria, por mulheres que so auxiliadas, no atendimento e na cozinha, por
parentes.
A intensidade com que as pessoas participam da vida umas das outras, seja
cedendo panelas, emprestando alimentos, vendendo produtos ou prestando servi-
os, acolhendo em suas casas filhos, netos ou sobrinhos de parentes e vizinhos, , por
isso, significativa. Alm disso, o exguo espao de cada unidade propicia a extenso
da casa para alm de suas fronteiras, fagocitando corredores e reas adjacentes.
Plantas, bicicletas, roupas, papagaios, crianas com seus brinquedos so presenas
constantes nos corredores. Portas e grades nos corredores marcam as delimitaes
estabelecidas pelo constante uso privado de reas comuns. Nos peitoris, tapetes
estendidos e, vez por outra, um colcho para secar ao sol. As portas e janelas frequen-
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SORAYA SILVEIRA SIMES
temente abertas dos apartamentos permitem que o olhar vagueie das escadas e
corredores dos prdios vizinhos e invada o ambiente domstico.
Para a intensificao desse arranjo e para a configurao da ideia de vizinhan-
a, outros dados tambm colaboram. Nas genealogias abaixo podemos ver o cresci-
mento e a permanncia das famlias nos prdios da Cruzada. Embora a estatstica
mostre que apenas 39,35% destas que vieram da favela tenham permanecido no
conjunto, importante ainda considerar as configuraes que uma famlia nuclear
assume, seja na sua forma estendida, seja atravs das adoes de filhos de vizinhos
ou mesmo de senhoras de idade.7 Essas redes de parentesco nos permitem no s
acompanhar e remontar ponto a ponto os laos de reciprocidade que envolvem todo
o circuito das trocas no local, mas tambm considerar com mais vagar e refletir sobre
as comodidades viabilizadas pelos bens (donativos materiais e simblicos) que cir-
culam entre seus componentes, alm de verificar como e at que ponto uma face
dos conflitos da comunidade se articula com uma suposta transposio da
moralidade privada para o gerenciamento do pblico.
No primeiro diagrama, vemos a concentrao da famlia de Ego numa mes-
ma unidade da Cruzada. Essa convivncia em um conjugado de exguos 18m os
obriga a criar estratgias para o uso do espao e do tempo de permanncia no apar-
tamento, tal como sistemas de rodzio para o descanso e o banho, por exemplo, alm
de uma separao bastante singular dos esquemas de privacidade conjugal ou mes-
mo celibatria.
GENEALOGIA 1
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CONVERSAS DE COZINHA
O segundo diagrama tambm apresenta grande concentrao de parentes de
Ego nos prdios do conjunto, alm destes estenderem-se para as favelas prximas e
encontrarem-se ainda na Zona Oeste da cidade, para onde foram transferidos outros
tantos moradores da favela Praia do Pinto.
GENEALOGIA 2
A1 av (mora na Cidade Alta, em Cordovil)
A2 av (Bloco 7)
B1 irmo (falecido)
Ego (Bloco 7)
B2 irm (Bloco 7)
B3 cunhado (falecido)
B4 irm (Bloco 7)
B5 cunhada (mora no exterior)
B6 irmo (falecido)
B7 (Bloco 1, madrinha de D1 junto com Ego)
B8 (Bloco 4, madrinha de C4)8
C1 sobrinha (Bloco 7)
C2 marido de sobrinha (Bloco 7)
C3 sobrinha (Bloco 7)
C4 sobrinho (Bloco 7)
C5 sobrinho (Bloco 7)
C6 sobrinho (Bloco 7)
C7 sobrinha (Bloco 7)
C8 sobrinha (Bloco 7)
D1 sobrinha neta (Bloco 7)
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SORAYA SILVEIRA SIMES
A localizao dos membros citados na segunda genealogia mostra ainda que
todos moram em casas pertencentes ou geridas por mulheres, quando no moram
ss. Netos e filhos residem com as avs. O pai de Ego, assim como os quatro filhos
do seu segundo casamento, embora more na Rocinha, vive na Cruzada, domnio
de sua ascendncia materna. O mais importante em todo esse esquema de relacio-
namento a separao entre o grupo familiar materno e o paterno. No grau dos avs,
sejam pais da me ou do pai, Ego apresenta seus cognatos a partir da ascendncia e
descendncia das avs, talvez porque a partir desta gerao com a qual ainda se
convive tenham sido elas as provedoras das geraes posteriores. Isto, no entanto,
apenas uma conjectura, ainda que plausvel.9
MATERNO
A1 Tatarav
A2 Tatarav (ficou em Minas Gerais)
B1 bisav
B2 Bisav
C3 tia-av
C5 av (mora no bloco 7)
D5 Me (falecida)
D7 Tia (nasceu na Cruzada)
D9 Tio (mora na Cruzada)
D13 Tio (mora no bloco 7 com C5)
Ego (mora sozinha no bloco 2/410)
E9 irm (mora no centro da cidade)
E10 irmo (mora na Cidade de Deus)
E11 primo
E12 prima
E13 prima
E14 primo
E15 primo
E16 primo (mora no bloco 9 com a av materna)
E17 prima (mora no bloco 7)
PATERNO
C1 Av
C2 Av (mora no bloco 1)
D4 Pai (mora na Rocinha)
D2 Tia (mora no bloco 1 com as
filhas E2 e E3 e o neto F1)
E1 marido da prima (mora na
Cruzada)
E2 prima (mora no bloco 1)
F1 filho da prima (mora no bloco
1)
E3 prima (mora no bloco 1)
E4 filho do pai (mora na Rocinha)
E5 filho do pai (Rocinha)
E6 filho do pai (Rocinha)
E7 filho do pai (Rocinha)
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CONVERSAS DE COZINHA
A partir dessa breve exposio do parentesco, dos laos de compadrio e do
acolhimento de pessoas (jovens ou idosas, nascidas e criadas no conjunto ou
imigrantes recm-chegados) nos apartamentos da Cruzada, que ali, do mesmo
modo como em Tikopia, ningum fica sem parente.10 Ser afianado moralmente,
seja atravs do acolhimento espordico ou constante, por pessoas (sobretudo mu-
lheres, chefes de famlia) reconhecidas pela comunidade de vizinhos, pode ser
muitas vezes determinante para a vida pblica do novo morador.
Entre os moradores da Cruzada, possvel notar a significncia dessa espcie
de matrilinearidade. O fenmeno sensvel em muitas outras localidades ditas de
baixa renda, mas enveredar por essa pista significa esvaziar o seu contedo local,
pois, conforme dizia Firth e, depois dele, Clifford Geertz, como sempre, o contex-
to suficiente para dar o sentido (idem: 356) que de fato interessa, especialmente
ao etngrafo.
3 SOCIABILIDADE FEMININA
Sociabilidade, conforme a definio de Simmel, a forma ldica da sociao,
que, por sua vez, a forma pela qual os indivduos se agrupam em unidades que
satisfazem seus interesses. A importncia das interaes que ganham a forma
sociativa reside no fato de que elas conduzem o homem a viver com outros homens,
agir por eles, com eles, contra eles, organizando, deste modo, de maneira recproca,
as condies necessrias para que ele influencie os outros e seja por eles tambm
influenciado (Simmel, 1983).
importante, ainda, esclarecer que ldico, na lngua portuguesa, algo que
se faz por gosto, sem outro objetivo que o prprio prazer de faz-lo. O antepositivo
lud(i)-, possui como acepes possveis a noo de jogo, divertimento, re-
creao, recreio, folga; mas tambm joguete, insulto, zombaria, ultra-
je. Supe divertir-se, gracejar, fazer festa; ou, em outro sentido, jogar
com, fazer conluio, ludibriar. Todas essas acepes so contempladas pelo
ingls to play: representar, brincar, jogar.
Sociabilidade, como figura em dicionrios da lngua portuguesa, , por sua
vez, uma caracterstica do que socivel, um prazer de levar a vida em comum,
uma inclinao a viver em companhia de outros, uma aptido para viver em
sociedade, uma socialidade. O antepositivo soci-, presente em todos esses
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SORAYA SILVEIRA SIMES
termos, significa que acompanha, possuindo tambm, como acepo, as ideias de
aliado e de companheiro.
O que importa para os nossos propsitos, entretanto, ressaltar o carter
fundamental e estratgico dos vnculos, constantes ou efmeros, do estar juntos para
este conjunto de mulheres que tm em comum alguns papis sociais, a condio de
serem migrantes (que um dia chegaram ao Rio de Janeiro, indo morar na favela da
Praia do Pinto) ou filhas de migrantes e o endereo.11
Portanto, chamo de sociabilidade feminina o tipo de sociao, de interao
cotidiana, que tem lugar nos apartamentos sobretudo nas cozinhas, ou seja, no
domnio da casa, da domesticidade, do foyer proeminentemente regido pelas mu-
lheres e atravs da qual se transmite e se adquire uma srie de medidas fundamen-
tais para a exposio adequada de si no mundo exterior a partir da perspectiva das
mulheres. Ressalto, desde j, que o tpico que permeia e amalgama esta sociabili-
dade , contudo, a convivncia. Para fins estatsticos, convm ainda dizer que oito
dos dez prdios do conjunto so administrados por sndicas e que a Associao de
Moradores foi, at incio de 2009, presidida por uma mulher, apoiada pela chapa
Mulheres em Ao. Alm disso, 59,35% das famlias residentes na Cruzada So
Sebastio so chefiadas pelas mulheres, enquanto 40,65% o so pelos homens.12 Ou
seja, um nmero considervel de conflitos coletivos e domsticos administrado
por mulheres.
O acesso, entretanto, a esse tipo de sociabilidade que qualifico de feminina
franqueado pela cozinha, esse lugar, por excelncia, do fazer. Mas, de um fazer
repetitivo, banal, como assinala Sefarty-Garzon (2003). So estas qualidades de um
fazer constante, justamente, as que fazem da cozinha uma oficina que em nada deve
quela do alquimista. Ambas so da ordem da transformao. Do cru e do cozido, do
estranho e do hspede, do prescrito e do interdito, do sujo e do limpo, da pedra
filosofal para se converter algo ordinrio em objeto de grande valor. A cozinha,
recinto de entrada cotidiana das casas ocidentais, ope o estado de natureza ao
estado de cultura. E, se nela se elabora o alimento, elaboram-se, tambm, nesse
local marcado pela oralidade, as solues para os problemas da vida e da alma. Na
lngua portuguesa, o prprio verbo comer advm da ideia de comensalidade (com +
edre), que, por sua vez, implica o hbito de frequentar a casa de e comer junto com
aqueles que nela habitam.
58
CONVERSAS DE COZINHA
Comer junto, conversar. A cozinha o lugar desse duplo prazer, lugar dessa
oralidade que toma inmeras formas e se exprime de maneira irredutvel atravs
dos mltiplos e minsculos imperativos do gosto pessoal, do estilo prprio de fazer
a cozinha, de comer e de falar (ibid.: 171). O bal de gestos, encenado por quem se
ocupa da preparao do alimento na cozinha, levanta odores e sabores. Ao seu redor,
uma melopeia convidativa se precipita diante do recm-chegado, envolvendo-o de
modo sutil nessa hospitalidade to significativa de uma casa, composta de dimen-
ses sensveis ao olfato, ao paladar e ao tato, todos esses sentidos frequentemente
eclipsados pelo imprio da viso.
Como que desprovido de uma face visvel, pblica, o tipo de trabalho que se
exerce na cozinha para a manuteno dos corpos da famlia parece cair fora do
campo de uma produtividade visvel, valorizvel (Giard, 1980).
Mas as mulheres para cujas casas se dirigem outras mulheres tm ou j tive-
ram a oportunidade de mostrar, publicamente, algumas de suas qualidades, especi-
almente as morais. So sndicas, barraqueiras,13 atuam em frentes coletivas, diri-
gindo a Associao de Moradores da Cruzada, o Conselho de Sndicos, o Clube das
Mes; criaram a creche e outras associaes polticas, esportivas ou sociais no con-
junto; ocupam-se com o prximo e com o bem comum14 e so chamadas pelos
demais moradores de fundadoras, categoria local para a ideia de velha guarda.
Aqui, porm, trata-se de uma categoria flexionada no gnero feminino. So mulhe-
res; mes, sobretudo, que vieram removidas da favela da Praia do Pinto para os
apartamentos da Cruzada So Sebastio conjunto que, ao contrrio do que ocorre
com as favelas, tem uma data precisa de fundao e que, hoje, so uma espcie de
relicrio dessa experincia nica e original que a Cruzada So Sebastio proporcio-
nou aos favelados da ex-capital federal. So, enfim, pessoas que guardam uma me-
mria coletiva e que estabeleceram localmente uma identidade pblica da qual
emana o seu poder e autoridade.
Soninha barraqueira e mora no primeiro bloco da Cruzada So Sebastio,
onde ficam os apartamentos menores, conjugados. Ali, o nico cmodo congrega
inmeras atividades femininas em um mesmo momento. Nesse gineceu vesperti-
no, suas parentes, amigas e vizinhas se renem para a realizao das tarefas. Se
Soninha precisa aplicar a henna nos cabelos, sua irm, que mora no bloco 3, quem
vem lhe aplicar o produto. Munida de luvas e pincel, forra o cho com jornal de
59
SORAYA SILVEIRA SIMES
modo a preservar o piso claro dos respingos negros. A amiga Daisy, moradora do
bloco 2, nesse momento, prepara-lhe a comida e, entre um tempo e outro de coco,
vai at o trreo levar ou trazer contas para pagar. A irm sai para o trabalho e uma
vizinha chega para substitu-la, trazendo consigo outro produto para finalizar o trata-
mento dos cabelos de Soninha.
Nesse intervalo, ela pega o celular e telefona para o filho. Quer saber se ele
est com todos os seus documentos. Na ocasio, explica que sempre lhe faz a mes-
ma pergunta, pois tem conscincia de que na cidade em alerta, como anda o Rio de
Janeiro, a cor um problema. A discriminao que podem vir a sofrer encontra-se
intrinsecamente associada ao contexto urbano especfico em que vivem.
Em outra vez, quando no carecia de cuidados com a esttica, as amigas
presentes em sua casa apenas apreciavam a conversa e a cerveja gelada. Passamos a
tarde na prosa, sem outro servio que pudesse ausentar uma das convivas, ainda que
por alguns instantes. As idades variavam entre 18 e 56 anos. Mas a tpica afirmada e
reafirmada concernia ao universo feminino. Ou melhor, ao universo do cuidado
feminino: era a famlia, filhos, maridos, namorados, afetos, convivncias possveis,
impossveis, problemticas. Tudo sempre entremeado por palavras de estmulo,
esperana, as coisas ho de se resolver.
Na casa de Dona Teresa, moradora e ex-sndica do bloco 9, soube que sua
nora havia perdido a me. O desconsolo era ainda maior, pois a nora no morava
mais na Cruzada. H pouco tempo mudara-se com o marido, filho de Teresa, para a
Zona Oeste da cidade, lugar distante e que ainda hoje sofre com a restrio de
horrios dos transportes. Quem que vai cuidar dela? No tem ningum por perto
nem para lhe fazer um mingau! Ela precisa de algum que cuide dela nessa hora, ela
no pode deixar de comer. Tem que comer!
Especialmente durante um momento de fragilidade, alimentar algum
persuadir esse algum. ter um olho no padre e outro na missa, um no sacristo,
outro na sacristia, como diz Dona Teresa. Ou seja, transport-lo, por meio das
palavras, a um momento futuro e luminoso, faz-lo perceber que um momento
diferente do outro, tudo acaba, tudo se transforma, enfim, entret-lo e seduzi-lo com
a esperana enquanto se mantm os olhos atentos ao ato daquele que necessita de
cuidados. H momentos como este, em especial, em que comer depende pratica-
mente da conversa. Pressupe, portanto, um que fale para um outro que escute.
60
CONVERSAS DE COZINHA
Em seu apartamento no bloco 6, Danusa, senhora muito ativa, vendedora de
cosmticos, recebe a jovem desiludida. Descobriu recentemente uma amante do
marido. A cada novo dia ela traz novidades sobre o sentimento perturbado que a
move ultimamente. Conta o que fez, o que procurou, o quanto se exps, o que ainda
vai fazer se.... A cozinha da senhora vendedora de cosmticos transforma-se ora
em uma espcie de confessionrio a moa lhe conta atitudes que ela mesma
condena, e se arrepende , ora em consultrio psicanaltico em sua narrativa, ela
tenta elaborar o que se passou e mobilizar a ouvinte na tentativa de, juntas, encon-
trarem uma soluo. Nesse depsito de palavras expurgadas a dona da casa, enfim,
cumpre a funo de acompanhar, atravs do relato, cada passo dado pela jovem
martirizada pela dor da traio.
As mulheres mais jovens ou que tm a vida sexual ativa so as que alimen-
tam essa sociabilidade com suas narrativas. Seus dramas so material de trabalho
e sero interpretados durante o preparo da comida ou do caf. A anfitri, em torno da
qual essas rodas se formam, portadora da palavra central e mestre na arte do
contraponto. As idosas da audincia, vizinhas e comadres vez por outra presentes,
em geral, aquietadas pelo tempo de vida, ouvem e manifestam o que pensam a
respeito, esboando-o pelo movimento da face. Sobrancelhas sobem e descem, os
olhos arregalam, procuram outros olhos cmplices, a boca se estica ou se comprime.
Dependendo da narrativa do dia e da variedade etria das que acompanharo a
histria, uma cozinha se transforma em um manancial de sensibilidade histrinica.
o momento ideal para se adquirir conhecimento sobre a moral, a crtica, a tica, o
clmax e outros parmetros da gramtica dos sentimentos, e tambm sobre as
fisionomias que constituem modos de enunciao das inmeras gradaes entre o
acordo e o desacordo a respeito do que se conta.
Viria dessa forma de socializao na vida moral o sentido profundo da voz
passiva ser nascido e criado, expresso com que, comumente, moradores do con-
junto se apresentam quando pretendem realar certas qualidades morais?
A hospitalidade que encontramos nessa sociabilidade feminina equivale,
em uma dada proporo, quela caracterizada pelo trabalho dos terapeutas da
Alexandria multicultural de Flon. Contemporneo de Cristo, esse judeu hermeneuta
das Escrituras, junto com o seu grupo, trabalhava pela sade do corpo e da alma e,
assim, pela salvao e cura do Ser.
61
SORAYA SILVEIRA SIMES
Soteria, palavra grega que exprime tanto sade quanto salvao, se faz poss-
vel, segundo os terapeutas, atravs do dom da escuta e do domnio da palavra. Ela,
a palavra, a chave para a interpretao da condio humana.
Flon, enraizado na tradio judaica, mas inteiramente aberto contribuio
esttica e filosfica dos gregos, entendia que o homem est condenado a interpre-
tar (Leloup, 2004). E nisso, exatamente, que reside a sua liberdade. Interpretar
o jogo levado a srio pelos hermeneutas; o exerccio necessrio para conduzir a vida
da melhor ou pior maneira possvel.
O terapeuta no cura. Ele cuida. na figura do cozinheiro e do tecelo que,
em Grgias, Plato qualifica o therapeutes somatos, aquele que cuida do corpo.
Therapeutes possui, de fato, dois sentidos fundamentais: servir, cuidar, render cul-
to e tratar, sarar (ibid.: 24). O corpo cuidado quando a alma, divindade que o
habita, bem cuidada, quer dizer, cercada de um culto sincero que a mantenha
protegida das imagens e das palavras (logoi) que possam lhe fazer adoecer. O
terapeuta quem cuida da tica, isto , quem zela pela direo do desejo a fim de
ajust-lo para um fim adequado ao ser que se encontra desorientado em suas paixes
e apegado a uma ideia (Flon apud Leloup, 2004: 36).
As mulheres em torno das quais se organiza a sociabilidade feminina na
Cruzada So Sebastio cumprem um papel semelhante. So hermeneutas da convi-
vncia nesse justo sentido: ao escutarem os pequenos dramas cotidianos das que as
visitam e colocarem em circulao, na oralidade praticada em suas cozinhas, suas
medidas a propsito de cada tema, elas as conduzem apreciao de um novo
quadro diferente daquele presente, motivo de suas angstias e inquietaes.
Como ensina Plato, a quem Flon apreciava, o terapeuta no cura ele
cuida. Saber ouvir cuidar da palavra. E sobre isso importante lembrar a observa-
o feira por Rebeca, senhora romena, que h alguns anos mora na Cruzada e
vizinha de Dona Teresa: Minha vida aqui dentro mudou muito quando aprendi a
ouvir o que Teresa me dizia.
4 MIGRAO E ADAPTAO: DUAS TPICAS INCONTORNVEIS PARA UMAETNOPSIQUIATRIA
Em um estudo publicado em 1996, Ferreira (1996, apud Prado, 1998) consta-
tou que no Rio de Janeiro grande parte das internaes psiquitricas se davam com
62
CONVERSAS DE COZINHA
pacientes migrantes, que sofriam a perda de seus referenciais culturais e quepassavam por um processo particularmente adverso e agressivo de aculturao,levando-os muitas vezes a descompensaes psicticas. Ento, corriam o risco dese verem psiquiatrizados, j que sua situao existencial carecia de compreensoe eram desconsiderados seus valores culturais em choque com a cultura na qualestavam inseridos e que tendia a desqualific-los e denegri-los, fazendo com que aperda de referenciais identificatrios valorizados se acentuasse ainda mais.
Em 1979, na Frana, o Servio de Psicopatologia do Hospital Avicenne de
Bobigny passou a oferecer uma terapia nova, chamada, ento, de etnopsiquiatria.15
Seus pacientes eram, em sua grande maioria, originrios do Magrebe, da frica e das
Antilhas, e sofriam as dificuldades de adaptao sem responderem positivamente
ao tratamento teraputico tradicional.
Esta nova abordagem teraputica, segundo Prado, passou a ressaltar o valor
dos recursos teraputicos das sociedades ditas tradicionais (Prado, 1998: 121), con-
siderando, como um de seus enunciados tericos fundamentais, que a psicoterapia,
em senso estrito, no existe (ibid.: 122). Seguindo o mesmo pressuposto dos
terapeutas contemporneos de Flon, habitantes da Alexandria multicultural da era
crist, o que existe so, pois, autoterapias suscetveis de serem deslanchadas por
indutores ou operadores (ibidem), o que, enfim, traz luz a importncia da
interao teraputica e, com ela, modificaes tcnicas considerveis no modo de
acolhimento dos pacientes.
O atendimento etnopsiquitrico feito em grupo de diferentes origens
culturais, como sublinha Prado, mas todos profissionais: mdicos, psiquiatras, psi-
clogos, antroplogos, assistentes sociais e/ou outros profissionais que por alguma
razo estejam envolvidos com o caso (ibid.: 123). No entanto, a autora assinala que
deste grupo devem participar pessoas que partilham do mesmo grupo tnico do
paciente ou que conheam o seu contexto de vida cotidiana, ou seja, as grandes
expectativas, as rupturas e os confrontos de valores prprios da experincia de mi-
grao e, por conseguinte, de adaptao (ibid.: 126).
Prado observou ainda, em sua experincia em etnopsiquiatria no contexto
urbano carioca, que o atendimento funcionava at o momento de se propor uma
prescrio. A partir da os pacientes abandonavam a consulta. Isso a levou a conside-
rar que as prescries no se mostravam convincentes, pois condensariam no ime-
diato de sua representatividade a ambiguidade do processo transferencial (ibid.:
127). A narrativa do paciente e seu modo de interagir com o terapeuta seriam, por
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SORAYA SILVEIRA SIMES
assim dizer, interrompidos por uma prescrio. Esta antecipao, partindo do
terapeuta, jogaria por terra a eficcia teraputica, que , fundamentalmente, a ca-
pacidade de contatar e de dar sentido s vivncias, psquicas e culturais, deslanchando
a possibilidade de elaborao (ibid.: 129) do vivido pelo prprio paciente, atravs
de suas narrativas.
Quando Dona Teresa veio para o Rio de Janeiro, com apenas 14 anos, em
1952, os sintomas que sentiu to logo veio morar na favela da Praia do Pinto foram
diagnosticados por um mdico como depresso. At hoje, quando discorre sobre sua
chegada ao Rio de Janeiro, vindo de Guaraciaba, interior do Cear, Dona Teresa
contrape a lama que encontrou na favela da Praia do Pinto com o terreiro bem
varrido e arejado sombra de rvores frutferas de sua casa cearense.
A romena Rebeca, por sua vez, no partilha de um passado vivido na favela
da Praia do Pinto, lugar de onde vieram a maior parte dos moradores dos prdios da
Cruzada So Sebastio do Leblon. Mas, como muitos de seus vizinhos, encontrou
em um ncleo residencial dito de baixa renda a possibilidade de morar na cidade,
sobretudo em um bairro bem equipado e, portanto, valorizado, aps empreender
uma viagem migratria igualmente provida de muitas vicissitudes e adversidades.
Rebeca hoje est com 61 anos e chama algumas senhoras da Cruzada pelo apelido
carinhoso de mezinha. Estas senhoras, segundo conta, a ajudaram a adaptar-se no
conjunto, inclusive dando conselhos. Antes de ir morar na Cruzada, Rebeca mo-
rou em um conjunto residencial vizinho o Conjunto dos Jornalistas , mas,
embora contemporneo daquele construdo pela Igreja, o Jornalistas, como hoje
chamado, foi erguido com os fundos de um dos Institutos de Aposentadoria e Pen-
ses (IAPs)16 que beneficiavam categorias profissionais. A mudana do Jornalistas
para a Cruzada transformou a sua vida de maneira incomensurvel. Muitas de suas
clientes Rebeca esteticista e cabeleireira recusaram-se a entrar em seu novo
local de moradia. Na Cruzada, muitas suspeitas recaram sobre a mulher que des-
ceu do Jornalistas para a Cruzada. A estrangeira se viu ainda mais s, sem os filhos,
sem o marido e, por fim, sem as clientes. Por isso o termo mezinha, j que com
essas protetoras aprendeu a observar mais do que se expor em conversas na rua.
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CONVERSAS DE COZINHA
5 CONSIDERAES FINAIS
Essa vai ser difcil consertar. Com tal observao Dona Teresa sur-
preendeu a etngrafa, que j vinha elaborando o presente texto, durante uma con-
versa certa tarde em sua cozinha, a respeito da moa, proveniente de Goinia, h
meses acolhida em sua casa. A moa trabalhava como empregada domstica em um
dos prdios do entorno e, por indicao de outras mulheres, voltou a procurar Dona
Teresa, pedindo-lhe acolhimento. Estava com srios problemas relacionados a be-
bida, e h pouco havia sido dispensada do servio pela namorada do seu patro.
O acolhimento de mulheres, feito por outras mulheres em torno das quais e
em cujas cozinhas esse tipo de sociabilidade se constitui, aparecia mais uma vez
como um procedimento bastante difundido entre as populaes urbanas de baixa
renda.17 E isso por diversas razes que so comumente atribudas (e reduzidas) a
uma mera necessidade de ajuda mtua na prestao de servios domsticos. A pes-
quisa emprica, no entanto, nos mostra que este tipo de acolhimento feminino, que,
conforme vimos, ocorre sobretudo nas cozinhas desse conjunto habitacional, possui
a dimenso de uma propedutica, de uma instruo, de uma preparao para a plena
compreenso, neste caso, dos meandros da vida social local.
Assim, este acolhimento, seja por momentos breves de conversa, seja por
uma frequncia de coabitao no mesmo espao domstico por dias ou at mesmo
meses, revela-se plenamente na sociabilidade da cozinha. Esta , ela mesma, uma
tcnica, um mtodo, um modo de proceder que define, atravs desse contar e ouvir
histrias privadas em ambiente privado, quais so os problemas, os papis e os
comportamentos observados pelas mulheres e, com eles, os sintomas que podem
anunciar os desdobramentos positivos ou negativos de cada caso narrado.
Talvez seja importante tambm considerarmos o significado mesmo da pala-
vra acolher, aludindo a refgio, proteo e conforto fsico e moral (Cf.
Houaiss). Alm disso, seu antepositivo, cuja origem est no verbo latino lego, pos-
sui como derivados collgo, de onde provm o verbo acolher, mas tambm o verbo
escolher e o substantivo cole(c)tivo; e dilgo, que significa amar com escolha,
considerar, honrar, gostar; enfim, dileo, diligncia. Todas essas noes
sustentam uma identificao entre essas pessoas que exercem funes semelhantes
no mbito da vida domstica, mas tambm no espao social e moral da vida comu-
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SORAYA SILVEIRA SIMES
nitria que partilham enquanto habitantes do mesmo conjunto habitacional, ou da
mesma vizinhana.
Outro fator relevante que todas essas mulheres que conhecemos, e que
acolhem outras em suas casas, so devotas de alguma f e frequentam igrejas
majoritariamente a catlica. O vis atravs do qual se interpretam as narrativas
veiculadas nas cozinhas, com isso, no isento da lgica regida pelos credos. Da a
ideia de cura, ou de restabelecimento, ou restaurao de um fluxo de vida inter-
rompido ou impedido pelos problemas identificados ou redefinidos pela prtica
narrativa em curso nesses encontros privados.
Ao recorrerem s casas dessas mulheres, cuja capacidade interpretativa se
legitima de vrias maneiras, especialmente pelos papis que tm a oportunidade de
desempenhar publicamente no mbito da comunidade, aquelas que a elas recorrem
afligidas por problemas financeiros, afetivos, instabilidade na famlia e, nesse as-
pecto, pelas hesitaes experimentadas na educao dos filhos, acreditam na efic-
cia teraputica da conversa, mas de um tipo de conversa cujo interlocutor pessoa
em quem se confia. E se, como dissemos, a f elemento presente, sugerimos que
nos casos que pudemos observar ela um dos fatores determinantes mais proemi-
nentes, para essas hermeneutas da convivncia, na prescrio de medidas a serem
tomadas.
Emoes so antes experincias do que objetos prprios e delimitados, como
William James props compreend-las. So fluxos que nos arrebatam e nos unem
em um mundo social no qual existimos. O tratamento dos anseios femininos, defini-
dos em um contexto social e urbano preciso, atravs de uma sociabilidade levada a
termo em mbito privado e domstico , em ltima anlise, um modo de adminis-
trar problemas coletivos, at mesmo pblicos, de uma perspectiva particularssima
preservada nos exguos quatro ou cinco metros quadrados das cozinhas dos aparta-
mentos de um conjunto habitacional na Zona Sul do Rio de Janeiro.
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NOTAS1 Doutora em Antropologia e pesquisadora associada ao LeMetro/IFCS-UFRJ e ao CLERS/Universit de Lille 1.2 Uma primeira verso desse captulo foi tambm publicado na Revista Comum n. 31, 2008-2009.3 Segundo dados do censo demogrfico do IBGE, obtidos pelo Sistema Morei, do InstitutoPereira Passos, em 2000 a populao do Leblon era de 46.670 habitantes distribudos em18.004 unidades residenciais, das quais 50% eram ocupadas por at duas pessoas e quase 60% deseus responsveis ganhava mais de 15 salrios mnimos. Alm disso, cerca de 75% dos responsveispossuam curso superior e apenas 967 pessoas no eram alfabetizadas, sendo que 468 tinhamentre cinco e nove anos. O apartamento, como j podemos supor, a unidade residencial quepredomina no bairro e em toda a Zona Sul da cidade. No Leblon so 17.447 unidades destetipo, e, do total de domiclios, 12.320 so propriedade de seus residentes. A maior parte dosresponsveis por cada unidade domiciliar tem entre 40 e 69 anos, e o nmero daqueles commais de 70 anos superior aos que esto entre os 20 e 39 anos. Neste universo, os 2.957
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CONVERSAS DE COZINHA
moradores da Cruzada So Sebastio representam uma populao de baixa renda e de baixaescolaridade, constituda majoritariamente por jovens e negros, exercendo servios de baixaqualificao e apresentando ndices de at 60% de desemprego. Esses dados so apresentadosem um artigo eletrnico por Ribeiro, Cruz e Maberla que se referem ainda categoriadesocupao, sem oferecerem, no entanto, maiores esclarecimentos sobre essa utilizao. Ja amostragem feita pela CEHAB-RJ em 155 apartamentos (16% do total) indica que 39,56%dos moradores tm situao empregatcia com vnculos; 26,45% so aposentados e 11,61%intitulam-se donas de casa. As demais situaes encontram-se dispersas. Ver Ribeiro et alli eMascarenhas (2005).4 Ver especialmente O Globo do domingo, dia 13 de fevereiro de 2007, cuja manchete,supostamente comemorativa dos 50 anos do conjunto Cruzada So Sebastio, noticiava: Umailha que destoa na Zona Sul: Cruzada So Sebastio faz 50 anos com um problema: a dvida doIPTU pode levar 676 imveis a leilo. Uma anlise etnogrfica do impacto dessas notcias estem Simes, 2008, sobretudo na terceira parte da tese.5 A pesquisa no define a distino entre os grupos recreativos e culturais, mas, em umaconversa com o ex-presidente da Associao de Moradores, foram enumeradas as seguintesassociaes locais (esportivas, religiosas e sociais): o Clube da Malha; o Liverpool e o Grmio,os dois times de futebol; o Grupo Evanglico da Cruzada; a ONG Vivendo em Graa; o Grupode Senhoras e os extintos Clube das Mes e Bloco Carnavalesco Baba do Quiabo, alm doConselho de Sndicos e, claro, a Associao de Moradores.6 Nos blocos 1, 2 e 3 da Cruzada ficam os apartamentos conjugados, de 18m. Em relao aosoutros sete blocos, constitudos por apartamentos de sala, um ou dois quartos, banheiro ecozinha, os trs primeiros apresentam um grande nmero de locatrios, e as penses tambmfuncionam majoritariamente em apartamentos alugados.7 A circulao de pessoas, sejam jovens ou idosas, na forma de adoo, prtica bastantedifundida entre famlias vizinhas, residentes no conjunto. A trajetria residencial, da favelapara os apartamentos, e a experincia partilhada durante o perodo de remoo de favelas asrene, em parte, em torno de um mesmo acervo biogrfico. Essa memria, e o acolhimentodeste acervo na forma, tambm, das adoes de pessoas idosas, parte da pesquisa dedoutorado da autora. Ver Simes, 2008.8 Todos os moradores citados que habitam o bloco 7 residem no mesmo apartamento.9 Para uma anlise mais completa dessas e de outras genealogias de moradores do conjunto, verSimes, 2008.10 Firth, em sua monumental etnografia Ns, os tikopia, trata das categorias locais utilizadaspara a incorporao de homens e mulheres dentro da nomenclatura de consanguinidade econsidera que esse tipo de mecanismo terminolgico, que no permite que o parentesco fiquevago, mas o mantm ntido e preciso, expressa, sobretudo, que as pessoas no so apenasparentes umas das outras, no importa quo distantes sejam; so sempre uma espcie definidade parente, pronto a assumir as funes recprocas apropriadas com os outros, em respeito a seuparente comum (1998: 354). Tamana, por exemplo, referia-se no s ao pai e a seus irmosmasculinos, mas tambm ao marido da irm do pai. Tinana, por sua vez, destinava-se a contemplaro parentesco com a esposa do irmo da me, ou seja, a mulher do tio paterno, e com a me e asirms dela.11 O emblemtico conjunto habitacional Cruzada So Sebastio, construdo nos anos 1950 paraabrigar moradores da favela, bode expiatrio dos bairros chics da Zona Sul do Rio de Janeiro. Odrama social engendrado pelos processos de urbanizao e a sociabilidade cultivada entremulheres residentes nessas localidades visadas pela especulao imobiliria e pelo planejamentourbano so tambm elementos que o leitor encontra no artigo de Tornquist e Franzoni (2009,neste volume).12 Do mesmo modo, grande parte dos barraqueiros (ou seja, das pessoas que vendem comidae bebida na rua do conjunto ou nos halls de entrada dos prdios) so mulheres, e igualmente o
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nmero de olhos que se voltam das janelas para a rua e para os corredores tambm so femininos.13 Ver nota 12.14 No livro Les Sens du Public, M. Lecrerc-Olive faz a distino entre o bem comum, queseria uma propriedade partilhada por grupos determinados e exclusivos, e o bem pblico,que seriam bens inapropriveis, inalienveis e imprescritveis. (ver Cefai & Pasquier, 2003:31).15 George Devereux foi quem desenvolveu os fundamentos desta abordagem teraputica.Sobre isso, ver Nathan, 1998.16 Institutos esses criados por Getlio Vargas. Sobre os IAPs, ver especialmente Augusto, 1996,e Bonduki, 1998.17 O importante estudo Aspectos Humanos da Favela Carioca, realizado pela equipe deSAGMACS e publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 10 e 13 de abril de 1960, foi oprimeiro estudo a considerar esse tipo de filiao domstica nas favelas cariocas como umfenmeno sociolgico. Antes dele, somente as fichas preenchidas pelas assistentes sociaisligadas s instituies catlicas, como a Fundao Leo XIII, prestadoras de servios aosmoradores de favelas, sobretudo a partir dos anos 1940 at final dos anos 1950, apresentamdados detalhados a respeito desse tipo de acolhimento, porm tratando-os pelo vis de umadesorganizao social. Cf. a respeito, sobretudo Simes, 2008 e Slob, 2002.
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