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“Teorias a partir do Sul global”: o caso da xenofobia na África do Sul pós-apartheid
(2000 – 2015)
Felipe Barradas Correia Castro Bastos
Mestrando em História Social da África – UNICAMP
Resumo
Na virada da década de 1980 a 1990, fenômenos históricos como a queda do muro de Berlim, os processos de democratização na América Latina e o desmantelamento do regime de apartheid vêm propondo sérios desafios analíticos para a historiografia e as ciências sociais. Desde teorias que advogam a irrefreabilidade da globalização e da “modernização” do chamado “Terceiro Mundo”, de um lado, a múltiplas correntes argumentativas oriundas de contextos latino-americanos e africanos de outro, se acumulam e se embatem esforços de se interpretar realidades sociais cada vez mais globalmente integradas. O objetivo deste trabalho é refletir sobre a violência xenofóbica experienciada entre maio de 2008 e abril de 2015 na África do Sul como manifestação sintomática de tensões não-resolvidas após o desmantelamento do regime de apartheid e a ingressão da África do Sul na ordem neoliberal globalizada por perspectivas que partem do questionamento crítico do papel tanto econômico e político, mas principalmente epistêmico, das sociedades e mercados do "sul global" no mundo globalizado "pós"-colonial (COMAROFF & COMAROFF, 2010; MIGNOLO, 2008; MBEMBE, 2001). Metodologicamente, se parte da leitura e análise da cobertura jornalística internacional referente aos ataques xenofóbicos em jornais de países da África meridional e da Europa ocidental. Se busca contribuir a um debate que denuncia o aprofundamento das desigualdades sociais na sociedade sul-africana ao situá-la num processo global de precarização das relações de trabalho e de renegociações de identidades nacionais que, manifestadas sob a lógica da xenofobia, expressam contradições atuais que transcendem o próprio “sul global” (SEEKINGS, 2010; NYAMNJOH, 2006). Defende-se, por fim, que tais viradas epistemológicas a partir do sul são fundamentais para se analisar fenômenos históricos atuais e que, no limite, são as próprias sociedades do sul “pós”-colonial que possuem respostas vanguardistas a problemas vividos no hemisfério norte.
Palavras-chave: África do Sul; Globalização; Xenofobia; Teorias pós-coloniais;
Introdução:
Em maio de 2008, uma série de eventos violentos de motivação xenofóbica
em distritos de Joanesburgo, na África do Sul, atingiu repercussão internacional.
Durante a onda de protestos e violência que envolveu grupos hostis a imigrantes,
estrangeiros e as forças de segurança pública, centenas de pessoas foram
deportadas, milhares detidas e outros milhares desalojadas. A grande maioria dos
imigrantes assediados provém de outros países africanos como o Zimbábue,
Moçambique e a Nigéria, e os episódios de violência levaram à morte mais de
cinquenta estrangeiros provenientes de outros países africanos e resultaram na
destruição de centenas de casas e estabelecimentos comerciais em poucos dias1.
1 Todos dados referentes aos episódios de maio de 2008 e abril de 2015 na África do Sul foram consultados a partir de reportagens jornalísticas de diferentes jornais, como o britânico BBC, o alemão Deutsche Welle, a zimbabuana Southern Eye, a sul-africana Eyewitness News e a plataforma
Sete anos mais tarde, em abril de 2015, novos conflitos ocorreram tanto em
manifestações anti-imigração como em saques a casas e pequenos
empreendimentos de estrangeiros principalmente em cidades como Durban, capital
de KwaZulu-Natal, e os tumultos se espalharam rapidamente para outras regiões do
país como a província de Gauteng, repercutindo nas cidades de Joanesburgo e
Soweto2. Há várias críticas ao posicionamento do governo sul-africano após a nova
onda de ataques de imigrantes ao país3. Por outro lado, parece consensual de que
se trata de um perigoso “surto” de xenofobia na África do Sul, como destacam vários
noticiários internacionais.
Duas décadas após o desmantelamento do regime de apartheid –
oficialmente instaurado com a eleição de nacionalistas africâneres em 1948 e
desarticulado nos anos 1990 num processo que culmina com a eleição de Nelson
Mandela em 1994 – o que pode ser depreendido da sociedade sul-africana diante de
tais ataques xenofóbicos cujas maiores vítimas foram imigrantes do próprio
continente africano? Pensando a partir de uma perspectiva processual que atente à
consolidação histórica do Estado, da sociedade civil colonial e das relações de
trabalho na África do Sul, como podemos situar historicamente a violência de
motivação xenofóbica no país? Buscaremos argumentar que os episódios ocorridos
entre 2008 e 2015 podem ser pensados como epifenômenos em um processo muito
mais amplo de segregação institucional, desigualdade racial e subalternidade
econômica que, embora em grande medida recrudescidos durante o regime de
apartheid, permanecem profundamente problemáticos e atuais na chamada África
do Sul pós-apartheid (SEEKINGS, 2010; COMAROFF & COMAROFF, 2001).
lusófona Por Dentro da África. Para mais informações, vide http://www.bbc.com/news/world-africa-32772793, http://www.dw.com/pt/%C3%A1frica-do-sul-mobiliza-ex%C3%A9rcito-contra-viol%C3%AAncia-xen%C3%B3foba/a-18397405 e http://www.southerneye.co.zw/2015/05/01/south-africa-rounds-up-foreigners/. Acesso em 24 de junho de 2015.
2 O jornal Eyewitness News sumarizou os episódios violentos de abril de 2015 na seguinte
reportagem: http://ewn.co.za/Features/Xenophobia. Acesso em 24 de junho de 2015.
3 O descontentamento com a postura do governo sul-africano diante dos casos de violência é um dos motivos que levou o célebre escritor moçambicano Mia Couto a escrever uma carta aberta a Jacob Zuma. Vide http://www.pordentrodaafrica.com/noticias/xenofobia-carta-de-mia-couto-para-o-presidente-da-africa-do-sul. Acesso em 25 de junho de 2015.
Além disso, nesse estudo se advoga a possibilidade de se analisar a
sociedade sul-africana por novas perspectivas epistêmicas que a insiram dentro do
chamado “Sul global” – definição criada para designar e enfatizar as semelhantes
experiências históricas dos povos de países colonizados do hemisfério sul e de sua
inserção marcadamente desigual no mundo globalizado (COMAROFF &
COMAROFF, 2013; DUSSEL, MORAÑA & JÁUREGUI, 2008). Propõe-se construir
um diálogo entre teorias críticas ao ocidentalismo e a colonialidade do poder no
mundo globalizado (QUIJANO, 2008) propostas por interlocutores radicados em
países da América Latina e da África, e a experiência da violência de caráter
xenofóbico ocorrida na África do Sul no início do século XXI.
Objetivos
Tem-se por objetivo refletir sobre a violência xenofóbica sul-africana do início
do século XXI como manifestação sintomática de tensões não-resolvidas após o
desmantelamento do regime de apartheid e esboçar um diálogo entre os estudos
africanos e correntes argumentativas de outras partes do Sul global. Para tanto, este
trabalho divide-se em duas partes. A primeira, mais extensa, é dedicada ao estudo
de caso da xenofobia na África do Sul com um levantamento tanto da cobertura
jornalística da imprensa da África Meridional e da Europa Ocidental como da
bibliografia pertinente, voltada à consideração da violência xenofóbica no contexto
da sociedade sul-africana pós-apartheid. A segunda parte, de caráter exploratório,
aponta para uma discussão conceitual entre o caso em tela e um conjunto de
reflexões articuladas por teóricos latino-americanos e africanos para que se analise
a África pós-colonial de maneira crítica, na medida em que se denuncia
enfaticamente a persistência de relações e projetos tipicamente coloniais de poder
não exclusivas ao continente africano.
Resultados
No que se refere à primeira parte, as reflexões tecidas pelo historiador
ugandense radicado na África do Sul, Mahmood Mamdani, contribuem para
abordarmos por uma perspectiva crítica os eventos supracitados. A distinção feita
por Mamdani (2003) entre identidades culturais e identidades políticas, bem como a
agência e interferência do Estado (pós-)colonial na formação de ambas, destaca
aspectos fundamentais para o estudo de casos de violência política na África
contemporânea.
A inovação interpretativa fundamental na análise planteada por Mamdani está
em “reconhecer que todas as identidades políticas são historicamente transitórias e
que todas requerem uma forma de Estado que as reproduza”4 (2003, p. 51). Nessa
abordagem5, temos que as atuais manifestações xenofóbicas na África do Sul põem
em conflito identidades políticas de “autóctones” versus “estrangeiros” impostas por
intermédio da lei e da força de um Estado – este com sua historicidade própria que,
tanto no contexto sul-africano como em todo o Sul global, é decorrente da
colonização europeia. Essa perspectiva é fundamental para que possamos abordar
o problema de como essa distinção entre nativos e estrangeiros chancelada pelo
poder institucional propicia discriminações em diversos âmbitos sociais (MAMDANI,
op. cit. p. 51) que, por sua vez, estão na raiz das manifestações de xenofobia.
No caso sul-africano, mais que distinguir entre “autóctones/nativos” e
“estrangeiros”, há outro elemento histórico significativo: o Estado de apartheid. Tanto
os governos africânderes, como também em certa medida os que lhe precederam,
agiram no sentido de materializar diferenças culturais além de segregar racialmente
as populações a ele submetidas. Mamdani, diante desses fenômenos, formula o
conceito de “Estado bifurcado”: o Estado que surgiu da experiência colonial na
África, a partir das formas de dominação direta e indireta aplicadas pelos países
colonizadores, continha uma dualidade intrínseca: duas formas de poder, um na
esfera urbana e outro na rural, sob uma única autoridade hegemônica (MAMDANI,
1996, pp. 16 – 18).
4 Para a expediência deste trabalho, optou-se pela tradução livre de todas as citações diretas tiradas
de obras em língua estrangeira.
5 Contudo, para não indicar que Mamdani parta de uma perspectiva estado-centrista, é importante referir que sua problemática é posta nesses termos buscando distinguir identidades culturais consensuais (próprias aos grupos culturais) e identidades étnicas legais/políticas (chanceladas pelo Estado). Essa dinâmica fundamental é melhor apresentada no seguinte trecho: “Cuando la autoridad política y la ley que la aplica identifican sujetos étnicamente y discriminan entre ellos, entonces el grupo étnico se convierte en identidad legal y política. El grupo étnico en cuanto identidad cultural es consensual, pero cuando el grupo étnico se convierte en una identidad política, ésta es impuesta por los órganos legales y administrativos del Estado. […] Cuando la ley impone una diferencia cultural, la diferencia se materializa” (MAMDANI, 2003, p. 55).
O “Estado bifurcado” a que Mamdani se refere favoreceu historicamente a
prevalência, no mundo rural6, de “autoridades nativas” cujo poder lhes era outorgado
pelo Estado colonial de acordo com os “usos e costumes tradicionais” de cada “tribo”
– isto é, de cada grupo reconhecido como tal pelo Estado. Esse fenômeno, ao qual
Mamdani reserva um lugar central em sua obra Citizen and Subject, historicamente
conformou sociedades rasgadas e segregadas segundo critérios de raça e tribo
traçados pelo Estado em um processo notavelmente violento e autoritário cujo
legado pouco contribui, atualmente, para o apaziguamento de tensões raciais,
desigualdades econômicas e conflitos xenofóbicos na África do Sul pós-apartheid.
Essa perspectiva analítica de Mamdani nos permite apreciar um aspecto de
singular importância na irrupção da violência xenofóbica em 2015. No início do mês
de abril, a mais alta autoridade tradicional da província de KwaZulu-Natal, o rei zulu
Goodwill Zwelithini, pronunciou um discurso oficial no qual afirmou que os
estrangeiros deveriam “fazer as malas e sair do país”7 e acusou o governo sul-
africano de falhar em impedir o “influxo de estrangeiros”. A reportagem do periódico
alemão Deutsche Welle de 17/04/2015 coloca esse pronunciamento como o estopim
para a “atual onda de violência xenófoba [que] começou justamente em KwaZulu-
Natal”8. Considerando esse evento a partir da proposta de Mamdani, afirma-se que a
consolidação histórica do Estado bifurcado sul-africano desde o apartheid exigiu a
divisão da maioria não-branca em minorias compartimentadas segundo critérios de
“raça” e “tribo”. O legado institucional desse processo, contudo, “permanece mais ou
menos intacto” (MAMDANI, 1996, p. 4), e a violência desencadeada a partir do
discurso xenofóbico do rei zulu contra outros imigrantes africanos pode ser pensada
a partir desta perspectiva.
6 Inicialmente formulada à esfera rural, o poder outorgado às Black Homelands da África do Sul teve
várias repercussões na esfera urbana que culminaram em eventos contestatórios de grande envergadura à ordem imposta pelo Estado de apartheid. Vide o capítulo VII de Citizen and Subject (1996): The Rural in the Urban: Migrant workers in South Africa (pp. 218 – 285).
7 Disponível em http://www.southerneye.co.zw/2015/03/24/go-home-sa-king-tells-foreigners/. Acesso em 25 de junho de 2015.
8 Disponível em http://www.dw.com/pt/onu-diz-se-extremamente-preocupada-com-xenofobia-na-%C3%A1frica-do-sul/a-18390417. Acesso em 25 de junho de 2015.
A articulação entre o legado institucional do regime de apartheid na África do
Sul traçado por Mamdani e os episódios de abril ainda pode ser pensada por um
outro aspecto: o da raça. Achille Mbembe, filósofo e cientista político camaronês,
escreveu em 16/04/2015 que dentre os vários argumentos utilizados para justificar
os ataques aos estrangeiros, estava o de que “eles são mais escuros”9 que os sul-
africanos nacionais. A racialização da política na África do Sul, forçada sistemática e
violentamente nos quarenta anos de apartheid institucional, parece ter deixado para
trás um legado sombrio lamentavelmente atual.
Mas o relato de Mbembe a respeito dos conflitos aborda, por outro lado, o
papel leniente do governo sul-africano diante da xenofobia no país. O endurecimento
das políticas anti-imigração, constrangimentos institucionais a imigrantes
“legalizados” e a deportação de grandes números de imigrantes “ilegais” leva
Mbembe a argumentar que o governo da África do Sul é tanto cúmplice como
partícipe na violência xenófoba. O próprio presidente Jacob Zuma, embora enumere
algumas medidas tomadas em seu governo para coibir a violência, é explícito em
afirmar que “melhorará a implementação das políticas imigratórias existentes
incluindo o endurecimento do controle nos portos de entrada e fronteiras” e que
“trabalhos já começaram para rever a política imigratória do país baseados nas
experiências recentes”10. Mbembe, em relação a esse fenômeno, explica que a crise
xenofóbica na África do Sul é retroalimentada pelo surgimento de um “chauvinismo
nacional” combativo à presença de imigrantes no país.
Em um estudo anterior a essas declarações, Mbembe já havia sinalizado que
a figura do trabalhador migrante em geral e do estrangeiro em específico vinham
adquirindo grande centralidade na África do Sul pós-apartheid. Esse fenômeno,
diretamente relacionado ao “processo de globalização e suas consequências
associadas – a casualização do trabalho, a privatização dos serviços mais básicos”
(MBEMBE, 2008, p. 24), é responsável pelo aprofundamento das concentrações
desiguais renda e serviços básicos que estão em curso desde a década de 1990, de
9 Disponível em http://africasacountry.com/achille-mbembe-writes-about-xenophobic-south-africa/. Acesso em 25 de junho de 2015.
10 Disponível em http://ewn.co.za/2015/04/24/OPINION-Zuma-responds-to-Couto-open-letter. Acesso
em 26 de junho de 2015.
um lado, e pela formação de uma economia paralela não-corporativa e transnacional
com ativa participação de migrantes de várias partes do continente africano de outro.
Dessa forma, o autor incide sobre um ponto fundamental: o recrudescimento de
desigualdades sociais nas duas décadas após o fim do apartheid.
A esse respeito, os estudos do cientista político sul-africano Jeremy Seekings
são empiricamente densos e politicamente enfáticos: em suas publicações, é
proposital o emprego das vírgulas em “pós”-apartheid por ressaltar a continuidade –
senão piora – da polarização entre uma rica minoria predominantemente branca e
uma maioria quase exclusivamente negra e desfavorecida (SEEKINGS, 2010, p. 6).
Seekings busca problematizar a transição do regime de apartheid à atual
democracia sul-africana e demonstrar a persistência de índices pouco promissores
em relação ao desenvolvimento humano e redução da desigualdade social. Para
instrumentalizar sua análise, o autor esboça a estrutura de classes da África do Sul.
Comparando dados estatísticos oficiais de 1993, um ano antes da eleição de Nelson
Mandela pelo African National Congress, e de 2008, quase quinze anos após a
transição ao pós-apartheid, Seekings constata uma significativa polarização social
em curso no país. Enquanto cresceram e se consolidaram as classes superiores em
dois pontos percentuais no número de domicílios e um ponto percentual na
participação no total da renda do país [national income] (entre 1993 e 2008, de 12%
a 14% e de 45% a 46% respectivamente), cresceram significativamente tanto em
número como participação na renda as classes inferiores (de 41% a 48% e 10% a
20%, respectivamente). Essa polarização, conclui Seekings, provém do
encolhimento das classes médias, que perderam respectivamente 3% e 9% em
número de domicílios e participação na renda nacional no período entre 1993 e 2008
(SEEKINGS, 2010, pp. 6 – 8).
Estes dados fornecem subsídios para situarmos historicamente a sociedade
sul-africana pós-apartheid como profundamente desigual e acometida por altíssimas
taxas de desemprego, favorecendo a proliferação de empregos de baixa-renda do
setor informal para uma porção significativa (48%) dos domicílios sul-africanos. Esse
quadro é notavelmente desfavorável para a absorção da crescente mão-de-obra
imigrante proveniente de vários países da África na busca por melhores condições
de vida na África do Sul, tendo em vista a deterioração do mercado de trabalho que
acomete quase metade da população do país e que favorece – deve-se dizê-lo com
clareza – empregadores de classes superiores (NYAMJOH, 2006).
Na sequência, resta levantar o papel da figura do Estado-nação na formação
de identidades políticas contrapostas em “nativo” e “estrangeiro” durante a transição
do apartheid ao pós-apartheid para que se proponha o fortalecimento de debates
epistêmicos sul-sul.
Profundas transformações ocorrem no âmbito dos Estados-nação sob o
impacto da globalização e das premissas hegemônicas do capitalismo neoliberal
(QUIJANO, op. cit.). Os antropólogos sul-africanos Jean e John Comaroff ressaltam
que nesse contexto o “hífen-nação” se tornou particularmente problemático e
aspectos cruciais para a manutenção das comunidades políticas sobre as quais o
Estado se apoia – como as identidades nacionais, soberania, fronteiras e a
autoctonia – vêm sendo postos em questão. A tensão que se origina desses
questionamentos se desdobra numa situação paradoxal: os Estados-nação, diante
do laissez-faire global, devem abrir e desregular suas fronteiras para que os fluxos
de bens, investimentos, informações e tecnologias possam adentrar e produzir
riqueza e fortalecer sua economia. Mas, por outro lado, devem policiá-las e
resguardá-las para assegurar vantagens competitivas a seus mercados para atrair,
por sua vez, a tecnologia produtiva, o investimento e o tipo “certo” de migrantes
especializados e capacitados para fomentar o mercado e gerar oportunidades de
crescimento econômico (COMAROFF & COMAROFF, 2001, pp. 69 – 74).
No meio desse impasse, “uma solução que tem se apresentado tem se
baseado na autoctonia” (ibid. p. 71). Valorizar o elemento “nativo/nacional/autóctone”
é uma resposta à aparente porosidade excessiva das fronteiras nacionais nos
contextos de globalização de mercado. Em outras palavras, essa “formação histórica
instável” (ibid. p. 65, grifo no original) que chamamos de “Estado-nação” tem de
responder às pressões externas pela abertura das fronteiras ao mercado global
enquanto lida internamente com o fluxo de bens e pessoas estrangeiras. Assim, o
apelo à autoctonia, isto é, a garantia de direitos especiais aos nacionais em
detrimento dos estrangeiros, é uma resposta a várias inquietações produzidas nesse
contexto histórico. Como afirmam os autores, a autoctonia:
não é tampouco uma solução meramente estratégica que atraia apenas àqueles envolvidos diretamente com o governo; ela encontra ecos em medos populistas que são sentidos profundamente – e encontra eco também nas predisposições dos cidadãos de todos os tipos de projetar ansiedades comuns sobre forasteiros. [...] Enquanto forma de afirmação contra alienígenas, contudo, a mobilização da autoctonia parece estar crescendo em proporção direta à hifenização cindida da organização política soberana, à sua porosidade e impotência, popularmente percebidas, diante das forças exógenas (COMAROFF & COMAROFF, 2001, p. 71).
Este ponto é importante: a radicalização das identidades políticas – sob os
auspícios do Estado-nação, como afirma Mamdani (2003) – no binarismo oposto de
“autóctone” x “estrangeiro” não é apenas uma prerrogativa de Estado, mas também
corresponde a medos, interesses e anseios concretos das populações que habitam
sob sua jurisdição.
Mais especificamente em relação ao contexto sul-africano, os autores
formulam um conceito fundamental para os propósitos deste trabalho: “a política de
estranhamento na pós-colônia” (COMAROFF & COMAROFF, 2001, pp. 89 – 101).
Resumidamente, a obsessão com quem é ou não autóctone tem, por consequência,
atribuído todos os males aos estrangeiros. Os autores constatam que esse
fenômeno é uma consequência “da naturalização do fluxo da xenofobia” (ibid. p. 91),
e cria condições propícias para a “demonização, tanto por parte do Estado quanto
dos cidadãos, de migrantes e refugiados” (ibidem).
Assim é que estrangeiros – e em particular estrangeiros negros – tornam-se objeto de consternação e de contestação em toda esta nova nação, por parte, desde políticos e seus partidos, passando pela mídia e sindicatos de trabalhadores, até camelôs e desempregados. [...] A comunidade local tem atacado regularmente imigrantes e suas propriedades, os quais são forçados a viverem em ‘guetos’, tornados criminosos e bodes expiatórios (COMAROFF & COMAROFF, 2001, p. 93).
Nesse sentido, a crise do “sentimento de nação” (ibid. p. 101) alimenta o
autoctonismo e polariza as identidades políticas que, no caso em tela, desembocam
em manifestações violentas de xenofobia. A percepção do fracasso do Estado
enquanto incapaz de proteger as próprias fronteiras de “invasores exógenos” é um
aspecto fundamental no recrudescimento da violência xenofóbica primeiro por
motivar a população autopercebida/intitulada “autóctone” – em contextos onde a
xenofobia é naturalizada ou latente, como na África do Sul – a assediar estrangeiros,
tanto em 2008 como em 2015, e segundo por incentivar o Estado a tomar medidas
mais contundentes contra a imigração “ilegal”. Conforme afirmam os Comaroff, “[...]
fato de se prender imigrantes ‘ilegais’ pode ‘não reduzir o crime’. Entretanto, ele cria
sim a ‘impressão de atividade e eficiência por parte do governo, uma ilusão
‘frequentemente tão importante quanto realidade’” (ibid. p. 95).
Portanto, o chauvinismo sul-africano a que se refere Mbembe em seu relato
pode ser situado historicamente no processo mais amplo de acirramento das
identidades políticas de pertencimento ao Estado-nação diante do fortalecimento do
laissez-faire global. Toda xenofobia pressupõe uma autoctonia, e na África do Sul,
como demonstram os Comaroff, o autoctonismo vem assumindo proporções
significativas “sob a complacência da democracia” (ibid. p. 90) liberal. Mas seria essa
uma particularidade sul-africana?
Considerando uma abordagem cruzada com referências a outras regiões do
mundo que também foram submetidas à colonização por países europeus, como a
América Latina, não é possível defender um exclusivismo sul-africano. Assim sendo,
advoga-se aqui da potencialidade de se abranger o escopo teórico e argumentativo
aplicado sobre a xenofobia na África do Sul para que se possa observar
características constitutivas e comuns às sociedades ditas “pós”-coloniais.
Desde a década de 1970, surgem debates teóricos em vários campos
disciplinares na América Latina que defendem a necessidade de se rever
radicalmente os pressupostos epistemológicos e paradigmas culturais eurocêntricos
articulados nas pesquisas acadêmicas sobre o continente. Em outras palavras,
autores como Enrique Dussel, Aníbal Quijano, Walter Mignolo e mais recentemente
Santiago Castro-Gomez vêm fazendo coro à “crítica ao Ocidentalismo”, isto é, ao
emprego sistemático de categorias conceituais oriundas do fenômeno da
colonização do continente que, apesar das independências, persistem atuais na
conformação de sociedades subalternizadas face à “modernidade” das ex-
metrópoles – fenômeno este intitulado por Quijano de colonialidade do poder
(QUIJANO, op. cit. p. 181).
Em resumo, dentre as características da colonialidade das sociedades do Sul
global se destaca a vigência de uma “racionalidade eurocêntrica”, isto é, uma
“perspectiva de conhecimento que foi tornada globalmente hegemônica, colonizando
e sobrepondo outras formações conceituais anteriores ou diferentes” (ibid. p. 199).
Um dos principais conceitos expoentes dessa racionalidade é o próprio imaginário
político ocidental de Estado-nação “moderno” (ibid. p. 205) tornado hegemônico por
meio da colonização. Quijano, embora se refira à América espanhola, afirma
precisamente que “o Estado-nação começou com um processo de colonização de
uns povos sobre outros que eram, nesse sentido, estrangeiros” (ibid. p. 206). Esse
paradoxo é integralmente aplicável ao contexto sul-africano: a crise xenofóbica em
curso demonstra tensões não-resolvidas no seio de um Estado-nação que, apesar
do prefixo “pós”-apartheid, é um produto histórico da violenta colonização do
continente por minorias estrangeiras predominantemente britânicas e africâneres.
Essa postura analítica contribui para a denúncia da ideologia de “Estado-nação”
como produto histórico indissociavelmente imbricado com o processo da colonização
de povos tornados subalternos pelas sociedades “modernas” da Europa ocidental e,
portanto, característica constitutiva da colonialidade do poder ainda vigente.
Mais longe vai o antropólogo sul-africano Francis Nyamjoh ao identificar, em
seus estudos sobre a relação xenofobia/cidadania na África do Sul e Botsuana, a
“ideia europeia de Estado-nação” como uma “miragem ocidental” (NYAMJOH, op. cit.
p. 9) cuja teorização clássica – para qual é imprescindível a divisão cultural e,
sobretudo, legal entre cidadãos “nativos” a ser protegidos pelo Estado nacional de
sujeitos “estrangeiros” – é incapaz de corresponder à realidade de países cada vez
mais globalmente integrados. Definir a ideia de Estado-nação como uma ficção
decorrente da colonialidade do poder empregado pelo “Ocidente” ao “não-Ocidente”
não significa que ela seja uma mera abstração, mas sim “uma abstração concreta”
(COMAROFF & COMAROFF, 2013, p. 16) que possui efeitos e corresponde a
anseios das pessoas radicadas no sul global.
O ponto-chave dessa inflexão entre autores latino-americanos e africanos é
questionar, por meio da demonstração da procedência colonial da imaginação
política em termos nacionais versus estrangeiros, a atualidade do “telos
eurocêntrico” (ibid. p. 14) da modernidade, segundo o qual cabe a todas as
organizações políticas reconhecidas caminharem irrefreavelmente em direção à
consolidação de Estados nacionais modernos, isto é, a única unidade política tida
como válida e permitida no mundo “pós”-colonial. O que decorre dessa
argumentação é constatar que as revoluções e movimentos libertários dedicados à
eliminação do colonialismo – ou sua versão sul-africana, o apartheid – prestaram
pouca atenção a seu legado institucional que persiste “mais ou menos intacto”
(MAMDANI, op. cit. p. 6). Diante dessa perspectiva crítica, é possível argumentar
que a ascensão do partido chefiado por Mandela em 1994, responsável pelo fim do
regime de apartheid, significou “na verdade uma rearticulação da colonialidade do
poder sobre novas bases institucionais” (QUIJANO, op. cit. p. 215).
Considerações finais
A tomada de uma perspectiva crítica das heranças do colonialismo é
imperativa para se questionar a racionalidade eurocêntrica que segue hegemônica
nas relações de poder no contexto da globalização, além de ter efeitos
potencialmente enriquecedores aos estudos vindouros. Abranger o escopo teórico
tem o efeito de constatar a natureza colonial e, portanto, global da modernidade em
que os países “pós”-coloniais estão imersos e as questões com que têm de lidar –
dentre elas, a globalização, a cidadania e o pertencimento nacional. Portanto, se a
“política de estranhamento” pós-apartheid identificada pelos Comaroff é uma das
principais responsáveis pela desastrosa experiência xenofóbica na África do Sul
deste início de século, ela ocorre como tal em um mundo marcado pelas heranças
do passado colonial e pelo funcionamento do capitalismo em escala global. Para
Nyamjoh, está claro que “a xenofobia ou a obsessão com o pertencimento
atualmente evidentes na África do Sul é um fenômeno global; e coincide tanto com o
fim do apartheid e a adoção da democracia liberal como também com a crescente
celebração do capitalismo consumista global” (NYAMJOH, op. cit. p. 14).
Nyamjoh levanta questões “sobre o significado da cidadania jurídico-política
garantida pela nova constituição da África do Sul, onde as clivagens culturais e
socioeconômicas do apartheid ainda estão por serem desfeitas de modo beneficial à
maioria de suas vítimas” (op. cit. p. 15) e, por fim, declara que “[o] Estado sul-
africano não parece ter problematizado seriamente suas opções pelo livre mercado
liberal-democrata num contexto onde injustiças do passado […] anseiam por
reparação” (ibid. p. 18).
Se for possível apontar para um produto epistemológico como desdobramento
das críticas à colonialidade do poder global, poderemos aludir à necessidade de se
criar “novas plataformas epistemológicas a partir das quais novas formas de
imaginação política possam emergir e proliferar” (DUSSEL, MORAÑA & JÁUREGUI,
p. 17). Isto é, o reforço da crítica à racionalidade eurocêntrica, aqui exposta em
termos da perpetuação do legado institucional do Estado-nação na África do Sul,
abre espaço para se rejeitar o binarismo “nativo/estrangeiro” vigente em todo o
mundo globalizado “pós”-colonial.
Referências
COMAROFF, Jean; COMAROFF, John. Naturalizando a Nação: Estrangeiros, apocalipse e o Estado pós-colonial, 2001. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 7, nº 15, p. 57 – 106, julho de 2001.
COMAROFF, Jean; COMAROFF, John. Teoría desde el sur: o como los países centrales evolucionan hacia África. Siglo Veintiuno Editores, Buenos Aires, 2013.
DUSSEL, Enrique; MORAÑA, Mabel; JÁUREGUI, Carlos. Coloniality at Large. Latin America and the Postcolonial Debate. Duke University Press, London, 2008.
MAMDANI, Mahmood. Darle sentido histórico a la violência política en el África pos-colonial. ISTOR, Año IV, Núm. 14, 2003, pp. 48 – 68.
MAMDANI, Mahmood. Citizen and Subject: Contemporary Africa and the Legacy of Late Colonialism. Princeton University Press, New Jersey, 1996.
MBEMBE, Achille; NUTTAL, Sarah (orgs.). Johannesburg. The Elusive Metropolis. Duke University Press, London, 2008.
NYAMJOH, Francis. Insiders & Outsiders. Citizenship and Xenophobia in Contemporary Southern Africa. CODESRIA, Dakar, 2006.
QUIJANO, Aníbal. Coloniality of Power, Eurocentrism and Social Classification. In: Coloniality at Large […] pp. 181 – 222.
SEEKINGS, Jeremy. Race, class, and inequality in the South African City. CSSR Working Paper nº 283, November, 2010.
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