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UNIVERSIDADE DO PORTO
Mestrado Integrado em
Medicina
Hipotermia
Terapêutica Evidência científica no
neurotrauma
Rui Manuel Moreira AraújoRui Manuel Moreira AraújoRui Manuel Moreira AraújoRui Manuel Moreira Araújo
Orientador: Doutor Álvaro José Álvaro José Álvaro José Álvaro José
Barbosa Moreira da Silva Barbosa Moreira da Silva Barbosa Moreira da Silva Barbosa Moreira da Silva
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
2
Porto, 2010/2011
Conteúdo
Agradecimentos ............................................................................................................................ 3
Glossário ........................................................................................................................................ 4
Resumo .......................................................................................................................................... 5
Abstract ......................................................................................................................................... 8
Introdução ................................................................................................................................... 10
Epidemiologia do traumatismo crânio-encefálico .................................................................. 10
Perspectiva histórica da hipotermia terapêutica .................................................................... 11
Objectivos .................................................................................................................................... 13
Material e Métodos ..................................................................................................................... 13
Resultados ................................................................................................................................... 14
Fisiopatologia do traumatismo crânio-encefálico ................................................................... 15
Efeitos da hipotermia terapêutica em modelos animais com traumatismo crânio-encefálico
................................................................................................................................................. 16
Efeitos laterais da hipotermia terapêutica .............................................................................. 22
Hipotermia selectiva ............................................................................................................... 27
A evidência científica da hipotermia terapêutica nos ensaios clínicos ....................................... 29
Discussão e conclusões ............................................................................................................... 34
Bibliografia .................................................................................................................................. 37
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
3
Agradecimentos
Ao meu tutor, Doutor Álvaro Moreira da Silva, pela ajuda incansável.
À Filipa
À minha mãe
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
4
Glossário
Hipotermia (a) Temperatura corporal central < 36.0ºC,
independentemente da causa
Hipotermia induzida (a) Redução intencional da temperatura
corporal central < 36.0ºC
Hipotermia terapêutica (a) Hipotermia induzida controlada para uma
temperatura alvo, com prevenção dos
efeitos laterais
Normotermia controlada/terapêutica (a) Redução da temperatura corporal central
em doente com hipertermia para 36-
37.5ºC, com prevenção dos efeitos laterais
Hipotermia terapêutica ligeira (a) Hipotermia induzida controlada para uma
temperatura alvo de 34,0 - 35,9ºC, com
prevenção dos efeitos laterais
Hipotermia terapêutica moderada (a) Hipotermia induzida controlada para uma
temperatura alvo de 32-33.9ºC, com
prevenção dos efeitos laterais
Hipotermia terapêutica severa (a) Hipotermia induzida controlada para uma
temperatura alvo de <30ºC, com
prevenção dos efeitos laterais.
Hipotermia selectiva (b) Hipotermia terapêutica administrada
preferencialmente ao sistema nervoso
central.
(a)Adaptado de Polderman et al, 2009 (1)
(b)Adaptado de Christian et al, 2008 (2)
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
5
Resumo
Introdução: A hipotermia terapêutica (HT) tem raízes ancestrais, tendo sido utilizada
em variados contextos clínicos, nomeadamente no traumatismo crânio-encefálico. Entre
1930 e 1940, a descrição de casos de ressuscitação bem sucedida de vítimas de
afogamento com hipotermia desencadeia as primeiras investigações dos seus efeitos
terapêuticos em modelos animais. Em 1960 liderados por Rosomoff e Safar, foram
levados a cabo os primeiros ensaios clínicos em um pequeno número de doentes, com
resultados animadores. Em 1965 a hipotermia tem indicação formal em doentes com
lesão cerebral severa e diminuição do estado de consciência.
Contudo, e até 1980, o interesse na HT viria a declinar, dados os relatos do aumento do
número de efeitos laterais (em particular infecciosas). Era implicado como factor causal
a aplicação intempestiva da hipotermia (grande profundidade de arrefecimento mantido
por um longo período de tempo).
Porém, o interesse na HT recrudesce no início dos anos 80 com estudos animais, que
demonstram benefícios com hipotermia ligeira-moderada (32-35ºC) com diminuição
dos efeitos laterais. Tem-se assistido desde então ao avolumar da evidência laboratorial
em modelos animais de TCE que registam consistentemente efeitos benéficos da HT.
Os ensaios clínicos em seres humanos não conseguem concluir pelos efeitos benéficos
da HT.
Apesar da sua longa história, a HT carece, por enquanto, de indicações inequívocas no
tratamento de doentes com TCE, ao contrário de outros contextos clínicos,
nomeadamente a lesão neurológica peri-paragem cardio-respiratória. Isto decorre do
facto da evidência científica em modelos humanos com TCE ser bastante recente, e, por
essa razão, escassa, e não acompanhar os resultados favoráveis da HT em modelos
animais.
Os benefícios da HT em contexto de TCE são incertos e alvo de aceso debate entre
vários grupos de peritos. A Brain Trauma Foundation (BTF) e a American Association
of Neurological Surgeons (AANS), descriminaram a HT como um tópico prioritário na
investigação clínica, promovendo meta-análises e ensaios clínicos aleatórios em
populações humanas, de forma a actualizar as recomendações relativas à HT no
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
6
neurotrauma (24). As guidelines para a abordagem e tratamento no neurotrauma da
BTF/AANS de 2007 classificam a HT como evidência classe III, isto é, evidência
derivada de estudos de moderada e baixa qualidade, concluindo pela ausência de
indicação formal. Longe ainda de consensual, a HT no TCE continua a ser alvo de
discussão entre a comunidade científica, ilustrado por vários estudos actualmente em
curso (por exemplo, o Eurotherm 3235 patrocinado pela European Society of Intensive
Care Medicine).
Objectivos: Rever a evidência científica que suporta a indicação da hipotermia
terapêutica no doente com traumatismo crânio-encefálico.
Material e Métodos: Revisão de artigos científicos publicados em revistas referidas no
Index Medicus utilizando para tal os motores de busca PUBMED e MEDLINE OVID.
Palavras-chave: a) “hypothermia” b) “neurotrauma” c) “ traumatic brain injury” d)
“a+b” e) “a+c”. Os critérios de inclusão foram: artigos publicados até 2011; artigos
referentes à epidemiologia do TCE; artigos de revisão da fisiopatologia do TCE; artigos
referentes ao histórico do uso da hipotermia terapêutica; artigos de evidência
laboratorial de hipotermia terapêutica em modelos animais de TCE; artigos de ensaios
clínicos de hipotermia terapêutica em populações humanas com TCE; artigos de revisão
sistemática da hipotermia terapêutica; artigos referentes a hipotermia selectiva. Foram
excluídos: artigos não editados em inglês; artigos do foro pediátrico; correspondência,
opiniões de peritos e casos clínicos e estudos em curso.
Resultados: 151 artigos científicos cumpriam os critérios de inclusão. Destes: 11
(7,3%) eram referentes à epidemiologia do TCE, sendo que apenas 1 se referia à
epidemiologia do TCE em Portugal; 11 (7,3%) artigos correspondiam ao histórico do
uso da HT em variados contextos clínicos, nomeadamente no TCE; 4 (2,6%) artigos
faziam a revisão da fisiopatologia do TCE; 98 (64,9%) artigos correspondiam a
evidência laboratorial da HT em modelos animais com TCE, todos relatando benefício
da hipotermia (melhor outcome neurológico, menor mortalidade, menor extensão da
lesão histológica, menor apoptose neuronal); 11 (7,3%) artigos eram referentes à
hipotermia selectiva, relatando vantagens desta em relação à hipotermia sistémica,
nomeadamente no tempo de indução e em menores efeitos laterais; 16 (10,6%) artigos
eram relacionados a ensaios clínicos da HT em seres humanos com TCE, sendo que 4
destes correspondiam a artigos de revisão. No total foram admitidos em ensaios clínicos
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
7
cerca de 1500 doentes. A evidência laboratorial em modelos animais suporta os efeitos
benéficos da hipotermia terapêutica na cascata de eventos químicos e celulares que se
seguem ao traumatismo crânio-encefálico (nomeadamente a nível de metabolismo
cerebral, edema celular, apoptose mitocondrial, bombas iónicas, resposta inflamatória,
radicais livres, edema vasogénico, hipertermia cerebral localizada, mediadores
vasoactivos e outros). Contudo a translação destes resultados para os seres humanos não
tem sido linear. Os ensaios realizados na população humana não são conclusivos da
melhoria da mortalidade e desfecho (doravante designado por outcome) nos doentes
submetidos a hipotermia terapêutica em contexto de neurotrauma.
Discussão e Conclusões: Os benefícios em modelos animais da hipotermia no contexto
do neurotrauma estão bem estudados. As vantagens da HT em seres humanos com TCE
são difíceis de avaliar: o trauma é uma situação clínica difícil de padronizar; doente
politraumatizado sofre múltiplas intervenções o que complica a avaliação isolada de
apenas uma dessas medidas; a fisiopatologia da lesão secundária não é completamente
conhecida assim como os mecanismos celulares de apoptose; diferenças anatómicas e
fisiológicas do SNC dos animais de laboratório para os seres humanos dificultam a
transacção de resultados; desconhece-se o efeito da hipotermia terapêutica na célula
nervosa; os estudos realizados em doentes humanos com TCE são em pequeno número
e com poucos doentes (1500 doentes no total), são heterogéneos, complicando as meta-
análises com diferentes metodologias de arrefecimento e estratégias de reaquecimento,
abordagem das complicações, discriminação da temperatura basal do doente, períodos
de follow-up e de protocolo; o outcome neurológico “favorável” considerado pelos
estudos (score na escala de coma de Glasgow 4-5) não traduz um bom estado
neurológico do doente, nem nenhum estudo avalia o regresso à autonomia destes
doentes; os efeitos laterais da hipotermia não são negligenciáveis; a hipotermia selectiva
ainda que promissora tem problemas de ordem técnica graves e é ainda experimental.
Esta dissertação conclui que, não obstante o seu carácter neuroprotector, não existe
ainda indicação inequívoca da hipotermia no TCE, não podendo ser recomendado o seu
uso. Condição que poderá mudar assim que ultrapassadas as limitações apontadas aos
ensaios clínicos e ao conhecimento da fisiopatologia do neurotrauma.
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
8
Abstract
Introduction : Therapeutic hypothermia has long been used in several clinical contexts,
among which traumatic brain injury. Its use, however, in this clinical context has always
been controversial, not being so in other cases, such as hypoxic brain injury following
cardiac arrest. Hypothermia’s good results in laboratory and animal studies have failed
translation to human clinical trials, with confounding results. The Brain Trauma
Foundation and the American Association of Neurological Surgeons 2007 guidelines
have issued a Level III recommendation for optional and cautious use of hypothermia
for adults. Many trials are ongoing today (the Eurotherm 3235, funded by the European
Society of Intensive Care Medicine, for example) hoping to obtain new evidence on this
subject.
Objectives: To study the scientific evidence that supports the indications of therapeutic
hypothermia in traumatic brain injury.
Material and Methods: The search for scientific articles was done through the
PUBMED and MEDLINE OVID search engines. Key words used: a) hypothermia; b)
neurotrauma; c) traumatic brain injury; d) a+b; e) a+c. Inclusion criteria: Articles
published up to 2011; articles about the history of hypothermia; laboratory evidence on
hypothermia on animal models of brain traumatic injury; randomized clinical trials on
therapeutic hypothermia on brain trauma; review articles on therapeutic hypothermia;
articles about selective hypothermia. Articles excluded were those not written in
English, pediatric articles, opinions, correspondence, and clinical cases.
Results: 151 scientific articles met the inclusion criteria. 11 (7,3%) of these mentioned
brain trauma epidemiology, and only 1 had data concerning Portugal. 11 (7,3%)
mentioned the historical use of hypothermia; 4 (2,6%) reviewed the patophysiology of
brain traumatic injury; 98 (64,9%) articles were laboratory evidence on animal models
of brain trauma on hypothermia, all of which reported beneficts that ranged from
neurologic outcome, mortality, extension of histological injury, and neuronal apoptosis;
11 (7,3%) articles refered to selective hypothermia, reporting advantage over traditional
systemic hypothermia, with lesser side-efects; 16 (10,6%) articles related to clinical
trials of therapeutic hypothermia on human subjects with traumatic brain injury. All
studies comprised a total of 1500 patients. Laboratorial evidence supports the beneficial
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
9
effects of hypothermia (namely on brain metabolism, cellular and vasogenic edema,
apoptosis, ionic pumps, inflammatory response, free radicals, vaso-active mediators and
others). However translation of these results to human patiens is not linear: clinical
trials have been inconclusive has to the beneficial effect of hypothermia in traumatic
brain injury on mortality and outcome.
Discussion and Conclusions: Despite laboratory evidence in animal models that
support the beneficial role of therapeutic hypothermia in traumatic brain injury, this
therapy fails translation to human clinical trials. These are not conclusive as to an
improvement of survival and outcome. The advantages of hypothermia are not easy to
assess: the human trials are in short number, with few patients (1500 in total), ill
designed, with heterogenous protocols that compromises the quality of the scientific
evidence; the trauma patient has a variety of conditions that need care immediately, and
has a lot of medication; trauma is a very difficult clinical context to standardize and the
still insufficient knowledge about the patophysiology of the secondary lesion and the
apoptotic pathways; differences between animal and human brain that can account for
the lack of translation; selective hypothermia is still an experimental methodology with
several contra-indications but once this is overcome it will likely be the way to go as to
implement homogenous protocols.
Despite its very likely neuroprotective role, therapeutic hypothermia remains an
experimental approach and cannot be for now recommended as the standard of care.
This will likely change once the problems mentioned in the design of clinical trials are
overcome in the near future and the knowledge regarding brain trauma patophysiology
advances.
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
10
Introdução
Epidemiologia do traumatismo crânio-encefálico
O traumatismo crânio-encefálico (TCE) é causa importante de incapacidade,
mortalidade e custo económico. (3)
Nos EUA, existem hoje 6,5 milhões de pessoas a viver com as consequências
devastadoras (físicas, cognitivas, e económicas) do TCE (4). Ocorrem anualmente 1,5-2
milhões de TCEs, e prevê-se que pelo ano de 2020, o TCE será a terceira causa de
mortalidade e morbilidade no mundo (5).
O TCE é a principal causa de morte e morbilidade em pessoas jovens nos países
ocidentais. Nos EUA é responsável por 270.000 admissões hospitalares, 52.000 mortes
e 80.000 doentes com danos neurológicos permanentes, todos os anos (6).
No Reino Unido aproximadamente 1,4 milhões de pessoas sofrem um TCE anualmente
(7), sendo que 150.000 precisam de internamento (8). Destas, 3.500 precisam de
internamento numa unidade de cuidados intensivos (9). A mortalidade consequente a
um TCE grave (definido como Score na Escala de Coma de Glasgow (GCS) ≤ 8 após
ressuscitação) de 23% (10), e cerca de 60% dos sobreviventes apresenta défices, quer a
nível motor, cognitivo, ou sociais (11). Tem igualmente impacto económico e
financeiro, pelo facto de vitimar prioritariamente pessoas jovens não doentes com
elevada perda de anos de vida potencialmente perdidos (12).
Em Portugal, o único estudo epidemiológico realizado cifrou o TCE numa incidência de
151/100.000 em 1994 e de 137/100.000 em 1996 e 1997, sendo que a taxa global de
mortalidade em 1997 foi de 17/100.000, com valores mais elevados entre os 20-29 anos
(20/100.000) e depois dos 80 anos (54/100.000) (13)
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
11
Perspectiva histórica da hipotermia terapêutica no neurotrauma
A hipotermia terapêutica (HT) tem raízes ancestrais. No século IV A.C. Hipócrates
recomendava que se envolvessem as lesões dos feridos em gelo e neve, de modo a
reduzir a hemorragia (14).
Baron Larrey, cirurgião-chefe dos exércitos de Napoleão e pai da medicina militar
moderna, observa em 1814 que os soldados feridos de patente mais elevada colocados
mais perto de uma fonte de calor, como as fogueiras, paradoxalmente tendiam a morrer
mais rapidamente do que aqueles de patentes mais baixas em locais mais frios e
remotos, que permaneciam hipotérmicos (15). O Dr. Charles Phelps, cirurgião do New
York Police Department, em 1897 recomendava que se envolvesse a cabeça em gelo
para os TCEs (16).
Entre 1930 e 1940, a descrição de casos de ressuscitação bem sucedida de vítimas de
afogamento que estavam hipotérmicas, mesmo após longos períodos de asfixia,
desencadeia as primeiras investigações dos efeitos terapêuticos da hipotermia. O
primeiro caso clínico em que se descreviam as aplicações clínicas da hipotermia foi
publicado em 1945 (17). Nos anos 50 é utilizada na cirurgia do aneurisma cerebral e
para operações intracardíacas e Rosomoff demonstra benefícios em cães tratados com
hipotermia durante ou depois de isquemia focal cerebral e TCE (18) (19).
Em 1960 liderados por Rosomoff e Safar, foram levados a cabo os primeiros ensaios
clínicos em um pequeno número de doentes, com resultados animadores (20).
Safar desempenha um papel central na investigação da hipotermia em doentes com
paragem cardio-respiratória e TCEs e, em 1965, recomenda o tratamento da hipertermia
no TCE. Avança também que a hipotermia parece indicada em qualquer doente com
lesão cerebral severa o suficiente para provocar alteração do estado de consciência (21).
Contudo, e até 1980, o interesse na HT viria a declinar. Isto resultou em parte da sua
aplicação intempestiva em doentes que eram tratados por longos períodos de tempo
(desde 3 a 10 dias) com hipotermia moderada a profunda (28ºC a 32ºC) o que levou a
um aumento do número de complicações (22), fazendo moderar o entusiasmo inicial.
O interesse na HT recrudesce no início dos anos 80 com estudos animais, que
demonstram benefícios com hipotermia ligeira-moderada (32-35ºC) com diminuição
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
12
dos efeitos laterais (12). Tem-se assistido desde então ao avolumar da evidência
laboratorial em modelos animais de TCE que registam efeitos benéficos da HT.
Apesar da sua longa história, a HT carece, por enquanto, de indicações inequívocas no
tratamento de doentes com TCE, ao contrário de outros contextos clínicos,
nomeadamente a lesão neurológica peri-paragem cardio-respiratório (23). Isto decorre
do facto da evidência científica em modelos humanos com TCE ser bastante recente, e,
por essa razão, escassa, e não acompanhar os resultados favoráveis da HT em modelos
animais.
Os benefícios da HT em contexto de TCE são incertos e alvo de aceso debate entre
vários grupos de peritos. A Brain Trauma Foundation (BTF) e a American Association
of Neurological Surgeons (AANS) descriminaram a HT como um tópico prioritário na
investigação clínica, patrocinando meta-análises e ensaios clínicos aleatórios em
populações humanas, de forma a actualizar as recomendações relativas à HT no
neurotrauma (24). As guidelines para a abordagem e tratamento no neurotrauma da
BTF/AANS de 2007 classificam a HT como evidência classe III, isto é, evidência
derivada de estudos de moderada e baixa qualidade, concluindo pela ausência de
indicação formal (4).
Longe ainda de consensual, a HT no TCE continua a ser alvo de discussão entre a
comunidade científica, o que é ilustrado por vários estudos actualmente em curso (por
exemplo, o Eurotherm 3235 patrocinado pela European Society of Intensive Care
Medicine).
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
13
Objectivos
Estudar e rever as indicações e a evidência científica que suporta a indicação da
hipotermia terapêutica no doente com traumatismo crânio-encefálico.
Material e Métodos
Revisão de artigos científicos publicados em revistas referidas no Index Medicus
utilizando para tal os motores de busca PUBMED e MEDLINE OVID. Palavras-chave:
a) “hypothermia” b) “neurotrauma” c) “ traumatic brain injury” d) “a+b” e) “a+c”.
Foram incluídos os artigos:
1. Publicados até 2011;
2. Referentes à epidemiologia do TCE;
3. De revisão da fisiopatologia do TCE;
4. Referentes ao histórico do uso da hipotermia terapêutica;
5. De evidência laboratorial de hipotermia terapêutica em modelos animais de
TCE;
6. De ensaios clínicos de hipotermia terapêutica em populações humanas com
TCE;
7. De revisão sistemática da hipotermia terapêutica;
8. De hipotermia selectiva.
Foram excluídos:
1. Artigos não editados em inglês
2. Artigos do foro pediátrico
3. Correspondência, opiniões de peritos e casos clínicos.
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
14
Resultados
151 artigos científicos cumpriam os critérios de inclusão. Destes:
• 11 (7,3%) referem-se à epidemiologia do TCE, sendo que apenas 1 se referia à
epidemiologia do TCE em Portugal;
• 11 (7,3%) artigos correspondiam ao histórico do uso da HT em variados
contextos clínicos, nomeadamente no TCE;
• 4 (2,6%) artigos faziam a revisão da fisiopatologia do TCE;
• 98 (64,9%) artigos correspondiam a evidência laboratorial da HT em modelos
animais com TCE, todos relatando benefício da hipotermia (melhor outcome
neurológico, menor mortalidade, menor extensão da lesão histológica, menor
apoptose neuronal);
• 11 (7,3%) artigos eram referentes à hipotermia selectiva, relatando vantagens
desta em relação à hipotermia sistémica;
• 16 (10,6%) artigos eram relacionados a ensaios clínicos da HT em seres
humanos com TCE, sendo que 4 destes correspondiam a artigos de revisão. No
total foram admitidos em ensaios clínicos cerca de 1500 doentes.
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
15
Fisiopatologia do traumatismo crânio-encefálico
A lesão primária (a que ocorre no momento do impacto) é irreversível. Porém, o dano
neurológico não ocorre todo de uma só vez no momento da lesão primária, antes,
desenvolve-se ao longo do tempo. Esta lesão secundária, potencialmente evitável
através de intervenção médica, corresponde principalmente a isquemia cerebral e tem
origem multifactorial (9). Uma das suas causas é o edema cerebral, o que leva a
hipertensão intra-craniana (HIC) e lesão subsequente. Por sua vez, isto pode levar a
diminuições no fluxo sanguíneo cerebral, isquemia e herniação, aumentando ainda mais
a extensão de lesão cerebral (12). A HIC é causa de mortalidade e encerra mau
prognóstico (25).
O edema cerebral pode ser de 2 tipos: celular (ou citotóxico), ou vasogénico. O primeiro
diz respeito ao engurgitamento celular devido à libertação de mediadores inflamatórios
e activação de vias apoptóticas, com comprometimento da permeabilidade da membrana
das células do sistema nervoso central (SNC). Existe acumulação de líquido no espaço
intracelular. O segundo é referente ao influxo de líquido e solutos (principalmente
proteínas) para o SNC por uma BHE permeável. Refere-se à acumulação de líquido no
espaço extracelular extravascular (i.e., à volta das células) (25).
No contexto de trauma, os artigos mais antigos referem o edema vasogénico como o
principal contribuidor para o edema cerebral em contexto de TCE (26) mas a evidência
mais recente mostra ser o edema celular que predomina (25). Ambas as formas de
edema cerebral co-existem, porém, na lesão traumática.
A prevenção da lesão secundária é uma prioridade, com melhoria do outcome,
demonstrado pela redução da mortalidade no TCE grave de 50% para 25% nos últimos
30 anos (27).
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
16
Efeitos da hipotermia terapêutica em modelos animais com traumatismo crânio-encefálico
Diminuição do Metabolismo cerebral: Quando a hipotermia começou a ser utilizada em contexto clínico presumiu-se que os
seus efeitos protectores eram exclusivamente devidos a uma redução do metabolismo
cerebral – o que, pelo menos em parte, é verdade: o metabolismo diminui entre 6-10%
para cada grau de temperatura reduzido (28) (29). Estudos animais revelam que o TCE
influencia directamente a taxa metabólica do cérebro. Inicialmente, após a lesão
primária, existe um aumento do consumo da glicose que dura várias horas mas é
seguido por uma diminuição persistente das taxas metabólicas, com diminuição da
fosforilação oxidativa mitocondrial que pode durar semanas. A indução da hipotermia
aumenta a velocidade da recuperação metabólica e está associada a uma melhor
preservação de fosfatos de alta energia e menor acumulação de metabolitos tóxicos (30)
(31). Contudo, os efeitos protectores da hipotermia parecem ser maiores do que seriam
Figura 1: Efeitos da hipotermia terapêutica em modelos animais com traumatismo
crânio encefálico. Adaptado de Polderman, 2009 (40). Legenda: TxA2: Tromboxano A2;
EEG: electroencefalograma; PGs: prostaglandinas; BHE: barreira hemato-encefálica.
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
17
se fossem apenas atribuídos à diminuição do metabolismo – o que sugere a existência
de outros factores protectores importantes (12).
Edema celular: Apoptose e lesão mitocondrial: A hipotermia pode prevenir que a lesão celular progrida para apoptose, actuando
provavelmente numa etapa inicial do processo, por inibição da activação da caspase e
prevenção da disfunção mitocondrial. Outros mecanismos incluem a menor libertação
de neurotransmissores excitatórios e modificação das concentrações iónicas
intracelulares, com redução das concentrações de glicerol, lactato e piruvato (32) (33)
(34) . A apoptose desenvolve-se relativamente tarde na fase pós-trauma, continuando-se
por um período de 48 – 72 horas, ou até mais tarde, o que pode explicar, pelo menos em
parte, porque a hipotermia pode ser neuroprotectora mesmo se iniciada algum tempo
após a lesão primária (35) (36).
Bombas de iões e cascata neuro-excitatória:
Figura 2: Lesão neuronal isquémica e cascata de eventos
intracelulares. Adaptado de Brott et al, 2000 (151). Legenda:
AGL: ácidos gordos livres; PGs: prostaglandinas; LTs:
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
18
A hipotermia promove a homeostasia iónica e inibe processos excitatórios deletérios
que ocorrem nos neurónios lesados. A hipotermia influencia várias etapas nesta cascata,
sendo a etapa central o bloqueio do influxo de cálcio para a célula. Quando o fluxo
sanguíneo é interrompido, os níveis de adenosina-trifosfato (ATP) e fosfocreatina
diminuem em segundos (37). A quebra de ATP e activação compensatória de glicólise
anaeróbia leva a níveis aumentados de fosfato inorgânico, lactacto e protões, resultando
em acidose intra e extracelular. A homeostasia celular é também perturbada por falência
da bomba de Na+-K+ e dos canais de K+, Na2+, Ca2+, levando a um influxo de Ca2+ para
dentro da célula. A perda de ATP e a acidose impedem igualmente o sequestro
intracelular de cálcio, aumentando ainda mais o conteúdo de Ca2+ intracelular (38). O
excesso de Ca2+ leva a disfunção mitocondrial (que por sua vez aumenta o cálcio
intracelular, estabelecendo-se um ciclo vicioso) com activação de uma série de enzimas
intracelulares (cinases e proteases). Leva também a uma despolarização do neurónio
com libertação de grandes quantidades de glutamato no espaço extracelular (39). No
estado normal, os neurónios estão apenas expostos a pulsos breves de glutamato – o
excesso de produção é imediatamente absorvido pelos terminais pré-sinápticos e células
gliais num processo dependente de energia. Esta recaptação está lesada durante
isquemia, levando a concentrações extracelulares de glutamato muito elevadas. Isto leva
a activação prolongada e excessiva nos receptores glutamatérgicos, estimulando ainda
mais o influxo de Ca2+ pela activação de canais de cálcio. Este estado de
hiperexcitabilidade pode culminar em morte celular (40).
O Na+ e o Ca2+ intracelulares criam um gradiente osmótico e aumentam o volume
celular por entrada de H2O (25).
Os distúrbios na homeostasia do cálcio começam minutos após a lesão mas podem
continuar por várias horas (por vezes até dias). Acresce que o mecanismo pode ser
reiniciado por novos episódios de isquemia. Por conseguinte, em teoria, estes eventos
podem ser debelados em tempo útil. Contudo, alguns estudos animais sugerem que a
cascata pode ser evitada ou revertida apenas se o tratamento for iniciado nas primeiras
etapas do processo excitatório (41) (42). Outros, porém, admitem um período janela
mais prolongado, desde os 30 minutos até às 6 horas (43) (44) (45).
A descoberta recente da expressão do canal de água AQP4 da família das aquaporinas
(AQPs) na membrana das células da glia, adjacentes a vasos sanguíneos (46), permite
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
19
uma melhor compreensão dos mecanismos de edema cerebral (25). Estes canais
permitem a translocação rápida de um volume substancial de moléculas de H2O para o
espaço intracelular. A evidência laboratorial demonstra uma redução de 35% no edema
cerebral em ratinhos que não expressam AQP4 (47). Em modelos de TCE, existe uma
infra-regulação do mRNA de AQP4 progressiva ao longo das primeiras 48 horas após a
lesão (48). Contudo, o mRNA do AQP9 parece ser supra-regulado nos astrócitos
adjacentes a áreas isquémicas (49) . A investigação sobre estes canais na fisiopatologia
do TCE está ainda nas etapas iniciais.
Resposta inflamatória: Ocorrem vários processos inflamatórios durante a lesão celular induzida pela isquemia,
especialmente durante a reperfusão. O TNF-α e interleucina 1 são libertados em grande
quantidade pelos astrócitos, micróglia, e células endoteliais, durante a reperfusão. Os
mediadores estimulam a quimiotaxia de leucócitos activados através da BHE, levando a
acumulação de células inflamatórias no cérebro lesionado, assim como o aparecimento
de moléculas de adesão em leucócitos e células endoteliais, e activação do sistema
complemento. A infiltração leucocitária pode aumentar a lesão celular por acção
fagocítica, síntese de produtos tóxicos e estimulação imune (37) (45).
Deve ser contudo esclarecido que a resposta inflamatória é, pelo menos em parte,
fisiológica e até protectora (45) (50). Isto não obstante, a resposta imune
desproporcionada e persistente aumenta a lesão cerebral (51) (52) (53). Este efeito é
dependente do tempo, com os potenciais aspectos benéficos iniciais não compensando
os efeitos destrutivos. Pode então haver uma janela terapêutica de modo a interromper
este processo antes que se torne destrutivo (45) (50) (51).
A hipotermia atenua a reacção inflamatória induzida pela isquemia, a libertação de
citocinas inflamatórias (54) (55), previne ou diminui a lesão ao DNA relacionada com a
reperfusão, peroxidação lipídica e produção de leucotrienos (56), assim como a leva a
diminuição da produção de óxido nítrico (39), um agente chave no desenvolvimento de
lesão cerebral pós-isquémica. A HT reduz a expressão microvascular de proteína
ICAM-1 e por consequência o número de neutrófilos migrantes para o tecido isquémico
(57). Reduziu também as concentrações de IL-10 no LCR de doentes com TCE (58).
Isto levou a que, em estudos animais, a extensão da lesão cerebral fosse atenuada (39).
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
20
Produção de radicais livres: Os radicais livres de oxigénio são mediadores importantes na transição de lesão para
morte celular (59) (56) (60) (61).Um excesso de radicais livres causa peroxidação
lipídica, proteica e de ácidos nucleicos. Os neurónios têm vários mecanismos
(enzimáticos e não enzimáticos) para evitar este tipo de dano, mas durante a isquemia,
estes sistemas anti-oxidantes podem ficar saturados. A hipotermia lentifica estes
processos destrutivos diminuindo a produção de radicais livres permitindo que os
sistemas endógenos anti-oxidantes não fiquem sobrecarregados (59) (56) (60) (61) . A
diminuição da produção de radicais livres parece proporcional à descida da temperatura
(60).
Edema vasogénico: Permeabilidade vascular A isquemia aumenta a permeabilidade da BHE, promovendo o desenvolvimento de
edema cerebral. A hipotermia reduz a permeabilidade vascular com redução do edema
(62) (63) (64). O edema cerebral pode ser monitorizado pela PIC – o aumento desta
pode ser considerado um fim comum aos processos que levam ao edema cerebral (1).
Dado que a HIC serve como marcador de lesão neurológica em curso e é uma causa de
lesão adicional (1), é plausível que tratamentos que reduzam a PIC melhorarão também
o outcome neurológico. A PIC é usada para avaliar a eficácia terapêutica a curto prazo
em doentes com TCE (3) (65). A hipotermia tem sido usada para o tratamento do edema
cerebral e redução da PIC em várias lesões neurológicas, entre as quais o TCE. Em
teoria, o mecanismo de acção providenciaria uma ampla janela terapêutica: o edema
cerebral pode desenvolver-se de forma aguda, mas geralmente manifesta-se várias horas
após a lesão, com pico às 24-72 horas (66). Importa referir que, ainda que a hipotermia
tenha sido bem sucedida a diminuir a PIC em vários estudos clínicos, os resultados do
outcome têm sido ambivalentes (1) (67). A velocidade de indução, a duração e
profundidade da hipotermia, assim como a velocidade de reaquecimento desempenham
importantes papéis no alcance dos efeitos pretendidos da hipotermia terapêutica (51) (1)
(67).
Hipertermia cerebral localizada: No cérebro com lesão existem áreas com temperaturas mais elevadas (diferenças de 2-3
ºC) do que a temperatura do resto do corpo. A hipotermia pode ser usada para prevenir
ou atenuar este fenómeno (68). Estas diferenças podem aumentar ainda mais quando um
doente desenvolve febre, um fenómeno frequente nos doentes com lesão neurológica.
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
21
Acresce a isto o facto de poder haver diferenças de temperatura entre áreas diferentes do
cérebro mesmo em indivíduos saudáveis, com áreas activas alcançando temperaturas
um pouco maiores. Estas diferenças aumentam significativamente em contexto de lesão.
(69). O excesso de calor gerado nas áreas lesionadas do cérebro torna-se mais difícil de
dissipar pelos canais habituais (drenagem linfática e venosa) devido ao desenvolvimento
de edema local, ficando o calor “preso” nas áreas lesionadas, contribuindo também para
a lesão induzida pela hipertermia (68). A hipertermia aumenta a probabilidade de áreas
isquémicas se tornem apoptóticas ou necróticas (70) (71) (72). Estudos clínicos
confirmaram que a febre é um preditor independente de outcome adverso no TCE (73).
Mediadores vasoactivos: A hipotermia afecta a secreção local de substâncias vasoactivas como a endotelina,
tromboxano A2 (TxA2), e prostaglandina I2 (PG I2) no cérebro e noutros locais. A
endotelina e TxA2 são potentes agentes vasoconstritores, e a PG I2 é um vasodilatador,
sendo que o TxA2 também estimula a agregação plaquetária (74) (75) (76). É necessário
um equilíbrio entre TxA2 e PG I2 para a regulação do fluxo sanguíneo cerebral (74).
Este equilíbrio pode ser perturbado após acidente isquémico ou traumático, com um
aumento relativo na produção de TxA2. Isto leva a vasoconstrição, hipoperfusão, e
trombogénese nas áreas lesionadas do cérebro. Esta predominância relativa dos
vasoconstritores pode ser corrigida ou modificada por hipotermia: num estudo, a
hipotermia moderada levou a uma redução da produção de prostanóides e atenuação do
desequilíbrio entre TxA2 e PG I2 em doentes com TCE severo (77). Estas evidências
sugerem que a hipotermia pode afectar favoravelmente a secreção de mediadores vaso-
activos em doentes com TCE. Contudo, a regulação da perfusão cerebral é um assunto
altamente complexo, em particular no cérebro lesionado, com múltiplas variáveis a
contribuir para o desfecho final o que torna difícil apurar o pleno impacto da hipotermia
nesta situação (40).
Outros efeitos: Existem outros efeitos da hipotermia já descritos, sobretudo em modelos animais. A
hipotermia melhora a tolerância á isquemia (78) (79); consegue atenuar no EEG a
actividade epileptiforme em contexto de TCE (80) (81) (82) (83) (84) (85); atenua a
despolarização simultânea de vários grupos de neurónios, com redistribuição em massa
de cargas iónicas (despolarizações “depression-like”) (86); e induz à expressão de
genes que levam à produção de proteínas protectoras da lesão isquémica (87).
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
22
Efeitos laterais da hipotermia terapêutica A hipotermia induz mudanças fisiológicas em virtualmente todos os órgãos do corpo
(88), sendo os mais importantes e aqueles que são precisos conhecer e prevenir aqui
discutidos.
Shivering (doravante designado por “arrepios”):
A indução da hipotermia leva á activação de mecanismos que levam à diminuição da
perda de calor. Sob circunstâncias normais isto é conseguido através de um maior tónus
simpático e através de vasoconstrição dos vasos da pele, ocorrendo aos 36,5ºC (89),
com redução da perda de calor de 25% (90). Isto complica as tentativas de indução de
hipotermia terapêutica por refrigeração superficial. Existirá também maior produção de
calor através dos arrepios, ocorrendo aos 35,5ºC – e os tremores estão correlacionados
com um maior risco de eventos mórbidos cardiovasculares e desfecho desfavorável se
no pós-operatório, com aumento do metabolismo, consumo de oxigénio, aumento
trabalho respiratório e aumento da frequência cardíaca (91) (92). Num doente não
sedado isto pode aumentar o consumo de oxigénio entre 40-100% (93), o que é
indesejável em doença neurológica ou lesão hipóxica.
A importância de uma sedação adequada e supressão da resposta de stress induzida pela
hipotermia é ilustrado por observações de estudos animais sugerindo que algum se não
todo o efeito neuroprotector pode ser perdido se o arrefecimento for usado em animais
não sedados (94) (95).
Sistema Cardiovascular Durante hipotermia ligeira-moderada (32-34ºC) o débito cardíaco diminui por 25-40%,
em maior parte devido a diminuição da frequência cardíaca. No geral, a diminuição da
taxa metabólica é igual ou maior do que a diminuição da frequência cardíaca, pelo que o
balanço entre a oferta e a demanda permanece constante ou até melhora. A pressão
venosa central também aumenta, e também há um aumento na resistência vascular
sistémica, e um pequeno aumento na pressão arterial (± 10 mmHg) devido a
vasoconstrição das artérias periféricas e arteríolas (96). Este efeito vasoconstritor está
ausente ou é menos pronunciado nas artérias cerebrais onde o equilíbrio entre fluxo
sanguíneo cerebral e metabolismo é mantido ou melhorado (28) (29).
O efeito na contractilidade miocárdica é fortemente dependente da frequência cardíaca –
se esta é deixada diminuir com a temperatura a contractilidade miocárdica geralmente
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
23
aumenta (97). Contudo, se a frequência cardíaca estiver aumentada a contractilidade
diminui com a descida de temperatura (98). Contudo, a hipotermia continua a ser
considerada como causa de hipotensão e disfunção miocárdica, devido a depressão da
contractilidade miocárdica na hipotermia profunda independentemente da frequência
cardíaca de base (88), e também por hipovolémia devido à “cold diuresis” (99) (100)
(101).
A hipotermia induz efeitos complexos na circulação coronária (102) (103): em
indivíduos saudáveis, com hipotermia ligeira de 35ºC provoca vasodilatação coronária
(104). Contudo, em doentes com doença coronária já estabelecida, pode levar a
vasoconstrição das artérias coronárias (105). Acresce a isto o facto de a hipotermia
poder causar shivering, taquicardia, e aumento do consumo de oxigénio em doentes
insuficientemente sedados. Assim, o efeito final poderá depender da condição prévia
das coronárias do doente.
Arritmias Assim que se inicia o processo de arrefecimento o doente poderá desenvolver
taquicardia sinusal ligeira, explicada pelo aumento do retorno venoso com aumento
reflexo na frequência cardíaca. Desenvolve-se bradicardia sinusal quando a temperatura
baixa dos 35.5ºC, com uma diminuição progressiva da frequência cardíaca
acompanhando a descida de temperatura. Isto acontece por uma diminuição na taxa de
repolarização das células do nó sinusal, assim como o prolongamento da duração do
potencial de acção e uma diminuição na velocidade de condução miocárdica. No ECG
teremos intervalo P-R prolongado, complexos QRS largos, e ondas de Osborne. Estas
mudanças não costumam necessitar de tratamento (88). O risco de desenvolver arritmias
significativas devido a hipotermia é extremamente pequeno se os doentes mantiverem
temperaturas acima dos 30ºC. Existe evidência experimental que sugere que hipotermia
ligeira pode melhorar a estabilidade da membrana, diminuindo dessa forma o risco de
arritmias (106). Estudos animais demonstraram que hipotermia ligeira-moderada
aumenta a probabilidade de uma desfibrilhação eficaz e bom outcome após
ressuscitação (106) (107) (108). Por outro lado, se a temperatura atingir < 28ºC, (ou
<30ºC, se existirem distúrbios electrolíticos ou isquemia miocárdica) aumenta o risco de
arritmias graves, desde fibrilhação auricular até fibrilhação ventricular e taquicardia
ventricular, à medida que a temperatura desce. É de salientar que a manipulação
mecânica pode promover a transição de fibrilhação auricular para taquicardia
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
24
ventricular, dado que o miocárdio se torna altamente sensível a manipulação a baixas
temperaturas (109). Logo, se forem executadas compressões torácicas por causa da
bradicardia extrema isto pode facilmente levar a conversão de ritmo sinusal ou da
fibrilhação auricular para fibrilhação ventricular. O miocárdio à medida que a
temperatura baixa torna-se cada vez menos responsivo a muitos fármacos anti-
arrítmicos, pelo que as arritmias são muito difíceis de tratar a baixas temperaturas.
Devem ser executados todos os esforços para manter a temperatura acima dos 28-30ºC
(88).
“Cold diuresis” O aumento do retorno venoso induzido pela hipotermia pode levar á activação do
péptido natriurético auricular e a uma diminuição dos níveis da hormona anti-diurética,
o que em conjunto com a disfunção tubular (no ramo ascendente da ansa de Henle) pode
levar a um aumento na diurese, o que se não for corrigido, pode levar a hipovolémia,
perda de electrólitos e hemoconcentração (99). Este risco de hipovolémia será maior se
o doente for tratado com agentes que aumentam a diurese como por exemplo manitol
nos TCEs.
Distúrbios Electrolíticos A hipotermia, sobretudo na fase de indução, aumenta a troca de potássio para o
compartimento intracelular, e a administração de potássio para corrigir a hipocalémia
durante a indução da hipotermia pode levar a hipercalémia significativa no
reaquecimento. Esta é uma das razões para que o reaquecimento seja feito muito
lentamente, dando tempo aos rins para excretar o excesso de potássio (88). A
Hipotermia também diminui as concentrações de fosfato, o que foi correlacionado com
problemas respiratórios e aumento do risco de infecção (40). Estes distúrbios
elecrolíticos podem aumentar o risco de arritmias e ter também outros efeitos adversos.
A depleção de magnésio, em particular, pode desempenhar um papel importante na
diminuição de lesões cerebrais, miocárdicas e arritmias em vários modelos animais para
TCE e AVC (110) (111) (112).
Sistema Gastrointestinal Existe diminuição do trânsito intestinal, o que pode atrasar alimentação entérica (113),
assim como ligeiro aumento das enzimas hepáticas e amílase séricas (88).
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
25
Hiperglicemia A hipotermia pode simultaneamente aumentar a resistência à insulina e reduzir a sua
secreção a nível dos ilhéus pancreáticos (88). A hiperglicemia está correlacionada com
outcome adverso em doentes em estado crítico e lesão neurológica (114) (115). Isto é
mais importante na fase de reaquecimento, quando a sensibilidade à insulina aumenta
rapidamente, levando a hipoglicemia se a dose de insulina não for ajustada. (88).
pH A hipotermia leva a um aumento na síntese de glicerol, ácidos gordos livres, corpos
cetónicos e lactato, causando uma acidose metabólica ligeira, que na maioria dos
doentes não carece de tratamento. O pH raramente desce abaixo dos 7,25 e a queda no
pH extracelular não se reflecte no pH intracelular, que aumenta ligeiramente (116). Os
valores dos gases do sangue são dependentes da temperatura. Se não corrigidas para este
factor, nas amostras de sangue de doentes hipotérmicos, a PO2 e a PCO2 estão sobre-
estimadas, e o pH subestimado (88).
Sistema Hematológico A hipotermia tem efeito anticoagulante por disfunção plaquetária e interferência na
cascata de coagulação (117) (118). O risco de hemorragia significativa é baixo. A
hipotermia não afecta a função plaquetária até baixar os 35ºC (119) e os factores da
coagulação são apenas afectados quando as temperaturas descem dos 33ºC (120). Logo,
hipotermia ligeira não afecta a coagulação (40) (88).
Farmacocinética As propriedades cinéticas da maioria das enzimas são dependentes da temperatura, logo
a velocidade de várias reacções enzimáticas é influenciável pela hipotermia, com o
metabolismo de vários fármacos sendo afectado. A adrenalina e noradrenalina têm a sua
acção diminuída num contexto de hipotermia. A semi-vida de alguns vasopressores está
aumentada. A hipotermia tem efeitos na farmacocinética de anestésicos, bloqueadores
neuro-musculares e outros (121) (122) (123) (124). Na maioria dos casos os efeitos da
hipotermia são os de aumentar os níveis do fármaco e/ou os efeitos destes pela redução
da actividade enzimática, diminuição da perfusão hepática e da excreção biliar (88).
Risco de infecção A imunoparésia que a hipotermia induz (indissociável, aliás, do seu efeito terapêutico) e
a hiperglicemia aumentam o risco de infecção (40) (88). Para períodos de hipotermia
superiores a 24 horas foram verificadas incidências aumentadas de pneumonia (40) (88).
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
26
Contudo, a maioria dos estudos que usam a hipotermia por 24 horas ou menos, não
reportam aumento significativo das taxas de infecção. A hipotermia também pode
aumentar as lesões cutâneas (125), o que pode estar correlacionado com a disfunção
leucocitária e a vasoconstrição da pele. Devem ser tomados cuidados extra de modo a
prevenir úlceras de pressão, que terão uma maior progressão e cicatrização diminuída.
Também os locais de inserção do cateter terão de ser alvo de atenção.
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
27
Hipotermia selectiva
A hipotermia selectiva consiste em HT administrada preferencialmente ao sistema
nervoso central (2). Os benefícios da hipotermia terapêutica na mortalidade e outcome
são influenciados pelos efeitos laterais (126). Assim, em diferentes estudos foram
empregues diferentes métodos de arrefecimento cerebral selectivo, admitindo que os
benefícios no SNC manter-se-iam com redução dos efeitos laterais. Acresce a isso o
facto de se conseguirem tempos de indução mais curtos e maior profundidade de
hipotermia. Segundo a evidência mais recente, a temperatura cerebral a atingir deve ser
≤ 34,0ºC (2).
As técnicas de hipotermia cerebral selectiva são:
Arrefecimento superficial
São os métodos mais simples. Incluem compressas de gelo, imersão em água fria,
ventoinhas, e mais recentemente capacetes de arrefecimento (127). Num estudo com
capacetes de arrefecimento (127) foi demonstrado uma redução da temperatura cerebral
de 1,6ºC em relação à temperatura corporal central, contrapondo ao aumento de 0,22ºC
no grupo controlo/normotérmico (p<0,0001). Houve uma redução em média de 1,84ºC
no grupo da hipotermia após 1 hora do início do tratamento, com uma média de 3,4
horas para se atingir uma temperatura cerebral inferior a 34.ºC. Não houve redução da
temperatura corporal central até 6,7 horas após o início da intervenção. Não houve
complicações graves a relatar. O estudo concluía pela grande aplicabilidade deste
método, baixo risco e demora no início da hipotermia sistémica. Contudo, não foram
analisados os efeitos no outcome entre os grupos.
Noutro estudo (128) com um capacete e um colar cervical de arrefecimento, foi relatado
uma diminuição mais acentuada da temperatura cerebral com o capacete e colar cervical
(33.ºC) do que com hipotermia sistémica (35.ºC); PIC mais baixa e melhor outcome
neurológico no grupo da hipotermia selectiva (p<0,05). Os achados são corroborados
por conclusões semelhantes noutro estudo (129).
Arrefecimento intranasal
Existem poucos estudos que avaliem o impacto desta metodologia. Os achados iniciais
revelam uma descida rápida e significativa da temperatura (0,31ºC em 5 minutos) (130).
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
28
Outro estudo relata uma descida da temperatura cerebral de 2,8.ºC, com redução de
1,7ºC da temperatura corporal central em animais (131). A contra-indicação para esta
metodologia é fractura da base do crânio.
Arrefecimento endovascular Refere-se à infusão de soro ou sangue refrigerados por uma via arterial ou venosa. Num
estudo recente (132) foi administrada solução Lactato de Ringer a 5ºC via carótida
interna em macacos Rhesus após lesão isquémica, tendo obtido temperaturas cerebrais
de 15.ºC, sem alterações da temperatura corporal central. Obteve-se outcome
neurológico normal, assim como uma histologia normal, sem evidência de isquemia.
Isto contrasta com o grupo controlo, que recebia a mesma solução a 37.ºC, com
mortalidade de 100%. À histologia apresentavam evidência de necrose.
Num outro estudo (133) foi realizado o arrefecimento por flush retrógado via jugular
interna. Obteve-se hipotermia cerebral, mas o outcome não foi estudado. Em suma,
obteve-se hipotermia cerebral rapidamente, mas com aumento do fluxo sanguíneo
cerebral, o que levanta preocupações em relação à abordagem da dinâmica da PIC.
Arrefecimento vascular extraluminal Consiste em envolver um cuff de refrigeração à volta das carótidas comuns. Um estudo
(134) mostrou redução da temperatura cerebral em 2-5.ºC em 20 minutos, sem alteração
da temperatura corporal central, sem complicações cardiovasculares e com diminuição
do tamanho do enfarte, quando comparado com o grupo controlo.
Arrefecimento epidural Esta metodologia consiste à administração por via epidural de um soro refrigerado a
4.ºC. Um estudo (135) efectuado num modelo porcino obteve temperaturas cerebrais
superficiais <20ºC em 1 minutos e temperaturas cerebrais profundas < 30.ºC em 5
minutos. A temperatura corporal central foi mantida durante 6 horas. Não foram
registadas quaisquer complicações. Foi observado diminuição do volume do enfarte (<
50%) em comparação ao grupo controlo. Esta metodologia mostra grande potencial,
mas foi só testada em modelos animais.
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
29
Evidência científica da hipotermia terapêutica nos ensaios clínicos
O efeito neuroprotector da hipotermia em estudos laboratoriais e em modelos animais
encontra-se já descrito. Contudo, o impacto positivo desta terapêutica no outcome não é
ainda conclusivo nos ensaios clínicos (136). Não obstante a indução profilática da
hipotermia na admissão e o uso para contrariar a elevação da PIC na UCI de muitos
centros de trauma, a literatura científica não consegue suportar de forma consistente os
seus efeitos positivos na mortalidade e na morbilidade (3).
Em 2007 a Brain Trauma Foundation (BTF) conduziu um estudo que visava agregar a
evidência disponível e a elaboração uma meta-análise. Foram colectadas quatro meta-
análises da hipotermia em doentes com TCE (137) (138) (139) (140). Todas elas
concluíram que a evidência era insuficiente para suportar o uso generalizado da
hipotermia, e recomendavam estudos subsequentes. (3)
A lista de referências das 4 revisões sistemáticas prévias constituiu a base para a
identificação de todos os ensaios aleatórios controlados desde 1966 até Setembro de
2002. De 29 ensaios hipoteticamente relevantes, apenas 6 (avaliados como nível II de
evidência, i.e., qualidade moderada) (58) (77) (141) (142) (143) (144) constituíram
substrato para a meta-análise. No total, os 6 ensaios compreendiam uma população de
719 doentes.
Todos os estudos são ensaios clínicos aleatórios controlados e avaliam a mortalidade
global, assim como o outcome neurológico, avaliado pela Escala de Coma de Glasgow
(10).
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
30
Referência Descrição do estudo Conclusão
Aibiki et al., 2000 (77)
Monocêntrico
Hipotermia moderada (32-33ºC)
durante 3-4 dias (n=15)
Vs.
Normotermia (n=11)
Avaliação GCS às 6 semanas
1 morte no grupo da hipotermia (6,7%)
3 mortes no grupo normotermia
(27,3%)
Melhores outcomes na hipotermia
(boa recuperação/incapacidade ligeira)
em relação à normotermia (80% vs.
36,4%) p=0,04
Clifton et al., 2001 (58)
Multicêntrico
Hipotermia (32-33ºC) durante 2
dias (n=24)
Vs.
Normotermia (n=22)
Avaliação GCS aos 3 meses
Sem diferença estatisticamente
significativa na mortalidade entre
hipotermia (35%) e normotermia
(36%), nem no outcome favorável
(52,2% na hipotermia e 36,4%
normotermia)
Clifton et al., 1993
(141)
Multicêntrico
Hipotermia (33ºC durante 2 dias)
(n=199)
Vs.
Normotermia (n=193).
Avaliação GCS aos 6 meses
Sem diferença estatisticamente
significativa na mortalidade entre
hipotermia (28%) e normotermia
(27%), nem no outcome (incapacidade
severa, estado vegetativo ou morte
[agrupados]= 57% nos 2 grupos).
Tendência para pior outcome se
hipotérmico à entrada randomizado
para grupo normotermia
Jiang et al., 2000 (142)
Monocêntrico
Hipotermia (33-35.ºC) durante (3-
14dias) (n=43)
Vs.
Normotermia (n=44).
Avaliação GCS a 1 ano
Mortalidade hipotermia
significativamente menor do que
normotermia (25,6% Vs. 45,5%).
Outcomes mais favoráveis na
hipotermia (46,5%) Vs normotermia
(27,3%) p<0,05
Marion et al., 1997
(143)
Monocêntrico
Hipotermia (32-33.ºC) durante 24
horas (n=40) Vs. Normotermia
(n=42)
Avaliação GCS aos 3, 6 e 12 meses
Maior recuperação/incapacidade
ligeira aos 12 meses na hipotermia
(62%) Vs normotermia (38%) p=0,05
Qiu et al., 2005 (144)
Monocêntrico
Hipotermia 33-35.ºC durante 3-5
dias (n=43)
Vs.
Normotermia (n=43)
Avaliação GCS aos 2 anos
Menor mortalidade na hipotermia
(25,6%) Vs. Normotermia (51,2%).
Melhores outcomes (boa recuperação
ou incapacidade moderada) na
hipotermia (65,1%) do que
normotermia (37,2%) p<0,05
Figura 3: Os seis ensaios clínicos classificados com evidência clase II (qualidade moderada)
seleccionados para meta-análise. Adaptado de Brain Trauma Foundation, 2007 (3). Legenda:
GCS: escala de coma de Glasgow.
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
31
Análise Principal
Foi calculado o risco relativo agregado para:
• Mortalidade global (todas as causas)
• Outcome neurológico favorável (definido como Escala de Coma de
Glasgow 4-5).
Análise Secundária
O estudo compreendeu também a análise do impacto de outras variáveis nos resultados
apresentados:
• Profundidade da hipotermia (32-33ºC; >33ºC)
• Duração do arrefecimento (horas) (<48; 48; >48)
• Velocidade de reaquecimento (1.ºC/hora; 1.ºC/dia; <1.ºC/dia)
• Número de centros (Estudo com único centro; Estudo Multicêntrico)
Figura 5: Bom outcome neurológico (Score na Escala de coma de Glasgow 4-5) Adaptado de Brain
Trauma Foundation, 2007 (3)
Figura 4: Mortalidade (todas as causas). Adaptado de Brain Trauma Foundation, 2007 (3)
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
32
Resultados
Análise Principal
A mortalidade para doentes com TCE tratados com hipotermia não foi
significativamente diferente daquele que foi observado nos grupos controlo
Risco Relativo 0,76; Intervalo de Confiança a 95% [0,50; 1,05]; p=0,10.
Contudo, a hipotermia estava associada com uma probabilidade aumentada de bom
outcome neurológico em 46%
Risco Relativo 1,46; Intervalo de Confiança a 95% [1,12; 1,92]; p=0,006)
Análise Secundária
A análise do impacto das outras variáveis é limitada devido ao pequeno tamanho da
amostra (3).
Mortalidade:
A duração do arrefecimento foi o único aspecto da hipotermia especificado a
priori que foi possível de se associar com uma diminuição da mortalidade. Os resultados
sugerem que existe um menor risco de morte quando a hipotermia é mantida por mais
de 48 horas (RR 0.51 [0,34; 0,78]).
A profundidade da hipotermia e a taxa de reaquecimento não influenciaram
a mortalidade.
A análise indicou também uma influência do número de centros em relação à
mortalidade. O maior dos 6 ensaios (n=392) foi multicêntrico. Quando retirado da
análise, a hipotermia estava associada com uma diminuição significativa da mortalidade
(RR 0.64 [0.46, 0.89] (3).
Outcome neurológico favorável:
A profundidade da hipotermia era a única variável que estava possivelmente
ligado ao outcome. Existia uma maior probabilidade de outcome favorável se a
temperatura atingida fosse de 32-33ºC (RR 1.67 [1,18; 2.35]) e 33-35ºC (RR 1,75;
[1,12; 2.73]). (3).
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
33
Conclusão
Os resultados da meta-análise (totalizando 719 doentes) não concluem pela vantagem
do uso da hipotermia em contexto de neurotrauma. Não existe uma redução
estatisticamente significativa da mortalidade. Em relação ao outcome neurológico foi
possível demonstrar uma maior percentagem de indivíduos com Glasgow 4-5 se
tratados com hipotermia. A análise secundária estava limitada pelo reduzido tamanho
amostral. As guidelines para a abordagem e tratamento no neurotrauma da BTF/AANS
de 2007 classificam a HT como evidência classe III, isto é, evidência derivada de
estudos de moderada e baixa qualidade, concluindo pela ausência de indicação formal
(4).
Outros autores com uma amostra maior (os 719 anteriores mais 895, contabilizando
1614) retiram conclusões semelhantes (145): não há corpo de evidência que demonstre
um benefício real da hipotermia terapêutica. Os estudos que encontram benefício com a
hipotermia são estudos com pequena dimensão amostral e fraca qualidade. Os ensaios
de maior qualidade não encontram diminuição da mortalidade nos doentes submetidos a
hipotermia, sugerindo que os ensaios de menor qualidade, quando analisados em
conjunto com os de maior dimensão e qualidade, enviesam o resultado. A aplicação da
HT é recomendada apenas em contexto de investigação e em ensaios de qualidade alta.
Uma revisão sistemática mais recente, por autores da mesma instituição que realizou a
meta-análise para a Brain Trauma Foundation (24), com uma população de 1339
doentes (incluindo os 719 anteriores, mais 620) aponta as mesmas limitações das
análises anteriores, não conseguindo eliminar o efeito na mortalidade e outcome das
outras intervenções no doente urgente, admitindo que os grupos não são totalmente
comparáveis. A melhoria no outcome já detectada anteriormente manteve-se, com um
maior número de indivíduos com score neurológico 4-5 ao fim de 1-2 anos de
acompanhamento.
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
34
Discussão e conclusões Os benefícios em modelos animais da hipotermia no contexto do neurotrauma estão
bem estudados. As vantagens da HT em seres humanos com TCE são difíceis de
avaliar, e por consequência de recomendar com um nível de evidência elevado, por
diversos motivos, entre os quais:
• O trauma é uma situação clínica difícil e heterogénea, se não impossível, de
padronizar. As lesões têm origem, gravidade, localização, complicações e
repercussão diferentes não obstante a cascata de eventos químicos e celulares
que se seguem serem relativamente semelhantes;
• O doente com TCE é um doente politraumatizado muitas das vezes, o que
implica ser alvo de múltiplas intervenções num curto espaço de tempo, o que
torna difícil a avaliação isolada de apenas uma dessas medidas, excluindo os
efeitos das co-intervenções;
• O conhecimento da fisiopatologia da lesão secundária, dos mecanismos de lesão
e morte celulares são ainda escassos, não sendo possível antever quais os
doentes que hipoteticamente beneficiariam desta abordagem, e quanto
beneficiariam. Em relação aos mecanismos de formação de edema cerebral
passou-se de uma concepção “vasogénica” para uma “celular”, e a evidência
acumulada traduz sobretudo o conhecimento sobre os mecanismos vasogénicos,
tidos antigamente como predominantes no edema cerebal após TCE. Os
conhecimentos sobre os mecanismos celulares são ainda exíguos. A evidência
mais recente refere também um papel central para as AQPs, sendo ainda
incipientes os estudos referentes aos efeitos da hipotermia sobre estes canais.
• A complexidade do sistema nervoso central de um ser humano é incomparável
com o dos modelos animais, o que contribui para a ausência de translação dos
resultados laboratoriais para os ensaios clínicos;
• Desconhece-se o pleno efeito da hipotermia terapêutica na célula nervosa e no
cérebro lesado de um ser humano, não existindo um protocolo para a sua
utilização;
• Os estudos realizados em doentes humanos com TCE são em pequeno número
[os artigos encontrados são em muito menor número (10,6%) do que os de em
modelos animais (65%)] e com poucos doentes (cerca de 1500 doentes foram
estudados no total, o que é manifestamente pouco para uma patologia tão
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
35
prevalente e incapacitante quanto o TCE), e enfrentam problemas de
heterogeneidade dos critérios de selecção, das metodologias de arrefecimento e
estratégias de reaquecimento, abordagem das complicações, discriminação da
temperatura basal do doente, períodos de follow-up e de protocolo que
enviesam os resultados. Quando se procura analisar os estudos para estas
variáveis, reduz-se o número da amostra de modo a que não é possível obter
significância estatística. Um ensaio clínico multicêntrico, randomizado (58),
relatou uma variabilidade significativa de protocolo e de outcome. Outro ensaio
recente parou a inclusão de novos doentes dado a ausência de resultados (146).
• Dada a epidemiologia do neurotrauma vitimizar sobretudo pessoas jovens,
activas, sem doença prévia, com subtracção importante de anos de vida
potencialmente perdidos, interessa o outcome neurológico tanto quanto a
mortalidade. Este é difícil de avaliar, não obstante existir uma escala mais ou
menos objectiva como a de Glasgow. O cut-off utilizado pela BTF para definir
“bom estado neurológico” é baixo, e traduz na realidade um “mau estado
neurológico” se admitirmos scores de 15 antes da lesão. Acresce a isto o facto
de o Glasgow à admissão também poder alterar os resultados: a inclusão no
estudo de doentes com scores de 3, ou doentes com scores mais altos que
deterioram depois, podem mascarar os potenciais efeitos benéficos observados
em doentes com Glasgow 4-7 (1) (147). O foco principal dos ensaios continua a
ser o score atingido na escala de coma de Glasgow, quando se deveria antes
considerar o estado global do doente face à sua condição prévia a avaliar a
globalidade do doente para o regresso à autonomia. Contudo, não existe
nenhum ensaio que se proponha avaliar estas questões.
• É provável que a hipotermia terapêutica sistémica confira algum grau de
protecção cerebral. Contudo, os seus benefícios podem estar a ser mascarados
pelos efeitos laterais da hipotermia e pela múltipla patologia do
politraumatizado.
• Os achados promissores da hipotermia selectiva devem ser encarados com
alguma reserva. Não obstante os relatos de tempos de indução muito curtos e
grande profundidade de hipotermia cerebral, sem alteração da temperatura
corporal central, é importante considerar que estas técnicas são muito recentes,
algumas sem estudos em populações humanas de tamanho significativo e outras
apenas testadas em modelos animais, não avaliam outcome, apresentam
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
36
problemas de ordem técnica evidentes (o arrefecimento intranasal, por exemplo,
torna-se uma impossibilidade nas fracturas do maciço facial e da base do crânio;
o arrefecimento vascular de acesso carotídeo ou jugular é difícil, impraticável
no doente urgente e mesmo impossível em doentes com colar cervical; acresce
que interfere na dinâmica da HIC, tornando a sua abordagem mais
imprevisível). Uma vez que ultrapassados estes problemas, estas técnicas terão
o seu papel num futuro recente, permitindo a uniformização de protocolos de
hipotermia em doentes com TCE com substancial redução dos efeitos laterais
da hipotermia sistémica.
Devido aos achados conflituosos e diferenças observadas no outcome entre os diferentes
centros, alguns propuseram que a hipotermia deve ser só e apenas utilizada em centros
familiarizados com o seu uso, ou então no contexto de ensaios clínicos (137) (140)
(145).
No futuro serão necessários maiores conhecimentos sobre os mecanismos da lesão
secundária e da apoptose celular, ensaios clínicos aleatórios robustos, com maior
dimensão amostral, com lesões o mais padronizadas e protocolos rigorosos.
O desenvolvimento e a aplicação universal de técnicas de arrefecimento cerebral
selectivo, de aplicabilidade fácil e rápida em contexto de trauma será uma necessidade
para ensaios clínicos futuros, de modo a se poder retirar novas conclusões sobre este
tema controverso.
Esta dissertação conclui que, não obstante confirmado o seu carácter neuroprotector,
não existe ainda indicação inequívoca da hipotermia no TCE, não podendo ser para já
recomendado o seu uso de forma sistemática. Condição que poderá mudar num futuro
próximo assim que ultrapassadas as limitações apontadas aos ensaios clínicos e ao
conhecimento da fisiopatologia do neurotrauma.
Hipotermia Terapêutica: Evidência científica no neurotrauma
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