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Um Centro de Atenção Psicossocial noticiado por ele mesmo: a experiência do “Jornal do CAPSad II – Caminhos do Sol”
ROMANINI, Moises1
ROSO, Adriane2
Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
RESUMO
O Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS ad) “Caminhos do Sol”, onde a experiência que será aqui relatada aconteceu, foi aprovado em dezembro de 2002 e funciona desde janeiro de 2003, no município de Santa Maria, cidade do estado do Rio Grande do Sul, que possui em torno de 280.000 habitantes. Esse trabalho tem como objetivo apresentar a experiência da criação de um jornal dentro desse serviço de saúde, durante um estágio curricular de psicologia no ano de 2008. A referida experiência é pensada em dois momentos distintos: o momento de fazer, que ocorreu durante o estágio com os usuários e profissionais do serviço; e o momento de escrever sobre o fazer, que consiste num momento situado em outro contexto, onde se propõe uma reflexão ex-post-facto sobre tal atividade, a partir de leituras na área da Psicologia da Saúde e Promoção à Saúde, consideradas como pressupostos teóricos que complementam nosso olhar sobre a construção do “Jornal do CAPSad II – Caminhos do Sol”. Palavras-chave: Psicologia da Saúde; Promoção à Saúde; CAPSad; Jornal; Grupos.
As primeiras intervenções do governo brasileiro com relação à atenção ao usuário
de drogas datam no início do século XX e foram constituídas pela criação de um aparato
jurídico-institucional (MACHADO & MIRANDA, 2007). Esse aparato estabelecia,
através de uma série de leis e decretos, o controle do uso e do comércio de drogas e a
preservar a segurança e a saúde pública no país, prevendo penas que determinavam a
exclusão dos usuários do convívio social. Em 2003, o Ministério da Saúde estabeleceu a
Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas e reconheceu que 1 Psicólogo, Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, Bolsista CAPES. E-mail: moisesromanini@yahoo.com.br
2 Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Líder do Grupo de Pesquisa Saúde, Minorias Sociais e Comunicação. E-mail: psicologia.ufsm@gmail.com
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houve um atraso histórico do Sistema Único de Saúde no enfrentamento de problemas
associados ao consumo de álcool e outras drogas. A atual política adota uma abordagem
não mais comprometida com o controle e a repressão, mas sim com a redução dos danos
e dos prejuízos.
Através de sua Política de Atenção Integral, o Ministério da Saúde “assume de
modo integral e articulado o desafio de prevenir, tratar e reabilitar os usuários de álcool
e outras drogas como um problema de saúde pública” (BRASIL, 2004, p. 9). O projeto
propôs a criação de uma rede de atenção integral do Sistema Único de Saúde (SUS), que
envolvem ações de prevenção, promoção e proteção à saúde; a construção de malhas
assistenciais formadas por dispositivos especializados (os Centros de Atenção
Psicossocial álcool/drogas - CAPSad) e não especializados (unidades básicas,
programas de saúde familiar e hospitais em geral), bem como o estabelecimento de
ações intersetoriais (MACHADO & MIRANDA, 2007).
O dispositivo do CAPS, fazendo um uso deliberado e eficaz dos conceitos de
território e rede, oferece atividades terapêuticas e preventivas à comunidade, buscando:
prestar atendimento diário aos usuários dos serviços, dentro da lógica de redução de
danos; oferecer cuidados personalizados; oferecer atendimento em diversas modalidades
(intensivo, semi-intensivo e não-intensivo); oferecer condições para o repouso e
desintoxicação ambulatorial para os usuários que necessitem de tais cuidados; oferecer
cuidados aos familiares dos usuários dos serviços; promover, mediante diversas ações, a
reinserção social dos usuários, utilizando recursos intersetoriais; entre outros (BRASIL,
2004).
O CAPS ad “Caminhos do Sol”, onde a experiência que será aqui relatada
aconteceu, foi aprovado em dezembro de 2002 e funciona desde janeiro de 2003, no
município de Santa Maria, cidade do estado do Rio Grande do Sul, que possui em torno
de 280.000 habitantes. Os tratamentos são oferecidos dentro das modalidades: intensivo,
semi-intensivo, e não-intensivo. Os atendimentos e atividades são desenvolvidos em um
ambiente com duas salas de reuniões, quatro salas de atendimentos clínicos, um espaço
de recreação, uma cozinha, uma recepção e três banheiros. A área de recreação oferece
um ambiente arborizado aos pacientes intensivos e materiais para jogos diversos.
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Quando foi estabelecido o convênio entre o Curso de Psicologia da Universidade
Federal de Santa Maria e a Prefeitura Municipal, para realização de estágio curricular
nesse CAPS, a equipe era formada por uma psiquiatra, um clínico geral, uma
enfermeira, três psicólogos, dois técnicos de enfermagem, uma auxiliar administrativa,
duas recepcionistas, uma fisioterapeuta, um assistente social e uma funcionária para
serviços gerais. O local também se constituía, e ainda se constitui, em um espaço de
formação acadêmica, contando com estagiários de Enfermagem, Serviço Social e
Psicologia. Porém, havia carência de profissionais que prestem serviços de reinserção
social através de oficinas diversas, visto que os profissionais que ofereciam essas
atividades haviam sido desvinculados do serviço recentemente.
O serviço articula-se com a rede municipal, especificamente: com o Ambulatório
de Saúde Mental, o CAPS II Prado Veppo, a Unidade de Dependência Química
(SERDEQUIM) do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Maria
(HUSM), além da rede de Atenção Básica, do Programa de Saúde da Família (PSF), do
Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), Fazendas Terapêuticas,
Conselho Tutelar e Poder Judiciário.
Esse trabalho se propõe, então, a apresentar uma experiência realizada durante um
estágio curricular em Psicologia no referido serviço de saúde. Porém, como a atividade
que aqui será descrita não se constituiu através de um projeto formal, propomos uma
reflexão ex-post-facto dessa experiência, ocorrida há dois anos, a partir de leituras na
área da Psicologia da Saúde e Promoção à Saúde, feitas no início do Curso de Pós-
Graduação em Psicologia da UFSM.
A Psicologia da Saúde emergiu como um novo campo de saber em meio a
mudanças recentes na forma de inserção dos psicólogos na saúde e a abertura de novos
campos de atuação que vêm introduzindo transformações qualitativas na prática
(SPINK, 2009; GIOIA-MARTINS & ROCHA, 2001; ABALO & MELÉNDEZ, 2005).
A articulação intersetorial decorrente do Movimento Sanitário promoveu uma
reformulação dos conceitos de saúde e práticas assistenciais. A necessidade da
incorporação de novos profissionais nos serviços de saúde oriunda da política de
atenção integral, associada à crise do modelo assistencial-privatista, abriu espaço para
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os psicólogos, que até então, apenas faziam intervenções pontuais em ambulatórios e
hospitais (YAMAMOTO et. al., 2004).
As funções do psicólogo da saúde são de cunho assistencial-educativo, científico-
investigativo, docente, administrativo-organizativo, de capacitação, assessoria e
consultoria (ABALO & ALARCÓN, 2005). As tarefas desenvolvidas por esses
profissionais, contudo, estão em função dos cenários e das instituições de trabalho nos
quais está inserido. Apesar disso, pode-se definir como tarefas gerais: a promoção de
saúde e a prevenção de doenças, o psicodiagnóstico ou diagnóstico psicológico,
orientação psicológica ou aconselhamento, tratamento ou intervenção psicológica,
reabilitação e assessoria ou consultoria aos órgãos diretivo-gerenciais dos sistemas e
serviços de saúde (ABALO & ALARCÓN, 2005).
Para exercer tais funções, contudo, o psicólogo não pode simplesmente transpor a
experiência clínica da esfera particular para a pública (LIMA, 2005; SPINK, 2009). Na
transição da esfera particular/clínica para a esfera pública/saúde, a Psicologia da Saúde
tem enfrentado algumas limitações, dentre elas: o viés individualista e a conseqüente
predominância do enfoque clínico; a pobreza teórica no campo da saúde e o fracasso no
desenvolvimento de medidas apropriadas; e a falta de atenção às questões sociais, tanto
em relação às políticas públicas quanto em relação às desigualdades sociais (SPINK,
2009).
A partir de tais considerações, constatamos que uma função fundamental do
psicólogo da saúde é a promoção de saúde. O modelo de promoção de saúdesegundo
Sícoli e Nascimento (2003) se propõe a incidir sobre os determinantes sociais e
ambientais de saúde, indo além da prestação de serviços clínico-assitenciais e do
desenvolvimento de ações preventivas que tem como foco a doença. Isto é, os princípios
e estratégias da promoção de saúde pretendem incidir sobre as condições de vida da
população e sobre os fatores geradores de saúde e bem-estar, dentre eles habitação,
saneamento básico, educação, trabalho e renda, alimentação, lazer, cultura, acesso a
bens e serviços, entre outros. Para isso, fazem-se necessárias ações intersetoriais,
multiprofissionais e interdisciplinares, além da participação ativa da população em
ações comunitárias visando à promoção de saúde (SÍCOLI & NASCIMENTO, 2003).
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Posicionar a participação ativa da população no processo de promoção à saúde
exige que o psicólogo anime a autonomia do Outro, autonomia que, no nosso entender,
só pode se efetivar através da dialogicidade, que é a “capacidade da mente de conceber,
criar e comunicar sobre as realidades sociais em termos de Alter-Ego” (MARKOVÁ,
2006, p.137). Ou em simples palavras, reconhecer e respeitar a perspectiva do Outro,
mesmo que ela seja diametralmente oposta a nossa.
Entendendo que a mídia tem como função legal informar e educar criticamente os
cidadãos (GUARESCHI, 2003; ROSO E GUARESCHI, 2007) e que a “educação para a
saúde” é uma estratégia básica da promoção de saúde, a construção de um Jornal do
CAPS, atrelada à intervenção grupal, pode se constituir como um dispositivo de
promoção de saúde com os usuários desse serviço e um território para o florecimento
da dialogicidade.
Com isto exposto, passemos agora ao relato da experiência da construção do
jornal, sempre lembrando que se trata de uma experiência que se constituiu em dois
momentos: o momento de fazer, durante a prática do estágio, com os usuários e
profissionais do serviço; e um outro momento, o de escrever sobre o fazer, que está
inserido em outro contexto; ou seja empreende-se um olhar ex-post-facto (a partir do
fato passado), cuja peculiaridade reside no cruzamento entre a teoria e a prática em
psicologia da saúde.
O “Jornal do CAPSad II – Caminhos do Sol”
A proposta da realização de um Jornal para o serviço durante a realização do
estágio foi, aos poucos, sendo efetivada. Conversas informais com os usuários do
serviço foram se estabelecendo, a fim de verificar o interesse dos mesmos sobre a
produção do jornal. Em uma reunião da equipe a idéia foi colocada em pauta, que foi
aceita com motivação por todos os profissionais e estagiários daquele ano. Mesmo com
poucos recursos e com conhecimento incipiente em informática, a primeira edição do
jornal foi lançada em junho de 2008, seguida pela segunda edição em julho e pela
terceira edição em outubro, período em que o estágio curricular estava quase
terminando.
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O jornal apresentava uma estrutura bem simples e era composto, basicamente, por
quatro partes: a primeira, na qual um tema escolhido pelos usuários e/ou profissionais
do CAPS era apresentado de forma esquemática ou em forma de texto; a segunda,
consistia na divulgação de grupos, oficinas e projetos desenvolvidos dentro dos serviços
e, geralmente, era acompanhado pelo depoimento do profissional/estagiário que
coordenava o grupo, bem como dos usuários que participavam de tais atividades; a
terceira parte foi intitulada “Aconteceu...”, trazendo eventos ocorridos nos quais os
usuários e/ou profissionais do serviço haviam participado; e, a última, intitulada
“Acontecerá...”, apresentava uma agenda com encontros, atividades e eventos que iriam
ocorrer ainda naquele mês ou no próximo, sendo de temas que interessavam tanto os
profissionais quanto os usuários. Ainda, após essa última parte, havia um comentário
sobre a edição, um recado ou as boas-vindas a novos profissionais que chegavam ao
serviço, como foi o caso da segunda edição do jornal.
As três edições, antes de serem impressas, foram revisadas por dois profissionais
(geralmente pela supervisora local do estágio e outro psicólogo) para evitar erros de
digitação ou algum equívoco nas informações. Os usuários que colaboravam com a
produção do jornal fizeram uma “enquete” com os demais usuários com o intuito de
escolher um nome para o jornal. Após alguns dias, chegaram ao consenso de que o
jornal deveria ter o nome do próprio CAPS, pois era esse nome que os “identificavam”
como usuários daquele serviço. Portanto, o jornal se chamou “Jornal do CAPSad II –
Caminhos do Sol”, com o layout “clean”, caracterizado por um sol ao lado do título,
conforme a sugestão do próprio grupo.
Enfatizaremos, nesse momento, as duas primeiras partes do jornal. A primeira
parte, como foi dito anteriormente, apresentava um tema sugerido pelos profissionais
e/ou usuários do serviço. A primeira edição do jornal trouxe na capa a apresentação do
próprio serviço, sobre sua criação, quais profissionais e estagiários que constituíam o
serviço naquele momento e suas articulações com outros serviços da rede de saúde
mental. Na segunda edição, essas articulações foram esquematizadas, formando um
mapa da rede e foi apresentado na primeira página do jornal, como pode ser visualizado
na figura que segue:
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Figura 1. Capa da 2ª edição do “Jornal do CAPSad II – Caminhos do Sol”
A última edição apresentou um tema solicitado pelos usuários: as diferenças entre
uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas, além de tratar do consumo do
crack e algumas de suas conseqüências. Os usuários do CAPS queriam, com essa
matéria, “mostrar aos familiares” o que é a dependência química e ser reconhecidos
como dependentes, ou seja, “portadores” de uma doença crônica. Tal discurso era
recorrente no grupo coordenado por diferentes profissionais, e os usuários, por sua vez,
queriam legitimar seu discurso perante os familiares através do jornal.
Vemos, assim, que o Jornal constituiu-se como uma possibilidade de expandir as
fronteiras das práticas discursivas dos próprios usuários. Nesse aspecto, a materialidade
de um jornal (produção da forma simbólica) pode facilitar a expressão daquilo que de
outro modo não consegue ser dito aos familiares (recepção da forma simbólica) e
efetivar o encontro de saberes em diferentes sentidos. Espera-se que nesse processo de
produção e recepção de formas simbólicas consigamos gerar novos espaços dialógicos.
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Figura 2. Encontro de Saberes Via Recepção do Jornal
Mesmo se tratando de uma atividade que se propunha à criação de uma mídia
alternativa dentro do CAPS, reproduziu-se um discurso dominante sobre a dependência
química: o discurso da dependência química, com o foco na substância, de cunho
biomédico-curativo, como está ilustrada na figura acima (Figura 2).
Sabemos, contudo, que o modelo brasileiro de atenção à saúde pretende extrapolar
de duas maneiras o modelo biomédico-curativo apresentado na série analisada: através
da concepção ampliada de saúde, que incluiu os condicionantes econômicos, sociais,
culturais e bioecológicos (VASCONCELOS & PASCHE, 2009); e através de uma visão
abrangente e integrada de ações e serviços de saúde, a promoção à saúde, a qual
“resgata a concepção da saúde como produção social e busca desenvolver políticas
públicas e ações de âmbito coletivo que extrapolem inclusive o enfoque de risco (campo
da prevenção)” (SÍCOLI & NASCIMENTO, 2003, p.102), incidindo sobre as condições
de vida da população e supondo ações intersetoriais.
A segunda parte do jornal, que consistia na apresentação de grupos, atividades e
projetos desenvolvidos no CAPS foi a que teve a maior participação dos usuários e
profissionais. Os profissionais/estagiários sentiam-se valorizados com o seu trabalho
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exposto no jornal e, cabe ressaltar, que circulava não apenas dentro do serviço, mas
também na universidade e em outros serviços da rede de saúde. Os usuários, por sua
vez, ficavam muito satisfeitos ao ler sobre os grupos dos quais participavam e ao se
enxergarem nas fotos que eram “publicadas”. Sobre o Grupo de Atividades Físicas, o
coordenador do grupo salienta que: “Nossa idéia é melhorar a auto-estima dos
participantes para conseguirmos mudar o restante. Além das atividades físicas e dos
exercícios com bolas e elásticos, procuramos trabalhar com o afeto através do toque,
do abraço”.
Outro grupo que foi “retratado” e muito comentado foi a “Oficina de Artesanato”.
Em relação a essa atividade, dois usuários fizeram questão de dar o seu depoimento: “O
artesanato é muito bom para desenvolver a mente e ocupar para as coisas que muitas
vezes nos afetam psicologicamente. Ele exerce a função de um trabalho mental
tranqüilo e é essencial para o crescimento, sobre o que a dependência química nos
faz”, ressalta U., usuário do CAPS. “Acho o artesanato uma ótima terapia, serve como
auxílio para esquecer os problemas e pode também ser uma fonte de renda, bem como
ocupar o tempo, fazendo com que nos sintamos úteis e produtivos”, complementa C.,
outro usuário do CAPS.
O Grupo de Música, além de obter grande aceitação dentro do serviço tanto por
parte dos profissionais quanto dos usuários, foi “noticiado” após uma apresentação
realizada pelo grupo em uma festa junina organizada por um CAPSad de uma cidade da
região. “A música faz ver, tatear, ouvir, desenvolver todos os sentidos, expressando-se
com os mais profundos sentimentos e resgatando o autoconhecimento”, comentam as
coordenadoras do grupo. Empolgado com o grupo, o usuário D. V. contribuiu com o
jornal falando sobre sua experiência nessa atividade:
“Me chamo D. V., participo das reuniões do Grupo de Música, onde se encontram pessoas de amplas idades. Quando estou no Grupo, me sinto mais à vontade para brincar com os amigos, tocar violão e cantar. As pessoas que antes eram bem mais fechadas, agora cantam, brincam e saem da sala com empolgação para continuar as outras oficinas. Nós levávamos como uma simples reunião de música, mas agora dá para perceber que é realmente uma ´terapia´ para o bom humor!”
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A proposta inicial de formar um grupo para a construção do jornal, no qual os
próprios participantes fossem os “escritores”, não se efetivou no ano do estágio, pois a
3ª edição foi impressa em outubro e já não havia mais tempo para iniciar tal tarefa.
Porém, a idéia havia sido lançada, e, após dois anos, os mesmos usuários que tanto
colaboraram com as primeiras edições, organizaram-se e constituíram o grupo para
retomar a confecção do jornal. Agora, tendo a colaboração de outros estagiários de
psicologia, são eles que escrevem as matérias e discutem em conjunto o que vai ser
publicado. O jornal está de “cara nova” e agora conta com pequenas empresas do
município de Santa Maria como patrocinadores, mostrando que a parceria entre
instituições privadas e públicas é viável.
Considerações Finais
Percebemos, através desse exemplo de iniciativa e organização dos próprios
usuários, que estratégias educativas e políticas (como a criação do jornal através do
dispositivo de grupo) adequadas às características biofísicas, socioeconômicas e
culturais do serviço (CAPSad) a que se destinam, a organização grupal pode servir
como um dispositivo de participação social (estabelecida como objetivo essencial da
Promoção da Saúde), no qual as pessoas podem, em alguma medida, envolver-se no
processo de eleição de prioridades, tomada de decisões, implementação e avaliação das
iniciativas (SÍCOLI & NASCIMENTO, 2003),
A disseminação da informação e da educação, propostas na idéia do jornal, são
base para tomadas de decisão. A informação e a educação estão diretamente ligadas ao
princípio da Promoção de Saúde denominado “empoderamento”, que só é possível
através da organização grupal. Através do “empoderamento”, pretende-se capacitar
indivíduos e comunidades para que eles possam assumir um maior controle sobre os
fatores pessoais, sócio-econômicos e ambientais que afetam a saúde (SÍCOLI &
NASCIMENTO, 2003), e não somente ficar restrito às concepções biomédico-curativas
sobre a dependência química.
Portanto, a organização grupal é fundamental para o enfrentamento das
dificuldades vividas pelos usuários, visto que ela propicia a participação social nas
decisões e “empodera” os sujeitos na busca de melhores condições de vida e na
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promoção de sua própria saúde. Entretanto, é preciso considerar que esse
desenvolvimento de habilidades pessoais para o enfrentamento das dificuldades
relativas aos processos saúde/doença pode acontecer de diferentes maneiras. “A relação
profissional/usuário é uma relação de co-produção de sujeitos ou uma relação
paternalista? Os usuários são vozes passivas ou ativas?” (CARVALHO, 2004, p.672).
Parece-nos que, apesar de funcionar como um espaço de acolhimento, tais práticas
podem estabelecer uma relação paternalista com seus membros, à medida que não
incentiva a autonomia dos sujeitos (como aconteceu com a matéria que reproduzia o
discurso psiquiátrico sobre o uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas).
Nesse sentido, para que a organização grupal seja realmente efetiva é necessário
que haja um “esforço para levar em consideração a perspectiva do Outro e reconhecê-la
como legítima” (JOVCHELOVITCH, 2008, P.239), o que caracteriza um encontro
dialógico que pressupõe que “a comunicação entre Eu e Outro é o caminho para o
desenvolvimento de recursos pessoais, sociais e materiais” (JOVCHELOVITCH, 2008,
p.251). Os encontros dialógicos proposto por Jovchelovicht (2008), pressupõe um
respeito tanto pelo saber técnico quanto pelo saber popular, evitando, dessa forma, uma
hierarquização de saberes. Se o dispositivo grupal e de criação de mídias alternativas for
pensado dentro da perspectiva dos encontros dialógicos, os saberes dos usuários são
valorizados e reconhecidos como legítimos, “empoderando” sujeitos e coletivos na
construção e manutenção de sua saúde e qualidade de vida.
REFERÊNCIAS
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