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Tradução em português de livro sobre o artista belga Marcel Broodthaers escrito pela crítica norte americana Rosalind Krause. O livro foi publicado em inglês, pela Thames & Hudson, em 2000
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A Voyage on the North Sea: Art in the Age of the Post-Medium Condition.
Rosalind Krauss
Prefácio
Primeiro, eu pensei que poderia simplesmente traçar uma linha sob a palavra medium,
enterrá-la como muito lixo tóxico crítico, e afastar-me dela em um mundo de liberdade léxica.
“Medium” parecia muito contaminado, muito ideológico, muito dogmático, muito carregado
discursivamente.
Eu me perguntava se poderia fazer uso do automatismo de Stanley Cavell, termo do
qual ele se apropriou para atacar o duplo problema de abordar o filme como um medium
(relativamente) novo e de colocar em foco aquilo que parecia, para ele, inexplicável sobre a
pintura modernista.1 Para ele, a palavra “automatismo” capturava o sentido de que parte do
filme – a parte que depende da mecânica da câmera – é automática; conectava-se também ao
uso surrealista de “automatismo” como um reflexo inconsciente (uma alusão perigosa, porém
útil, como veremos adiante); e continha a possível referência conotativa à “autonomia,” no
sentido da resultante liberdade do trabalho de seu criador.
Assim como a noção de medium ou gênero dentro de um contexto mais tradicional da
arte, um automatismo envolveria a relação entre um suporte técnico (ou material) e as
convenções com que um gênero particular opera ou articula ou trabalha nesse suporte. A
herança que o automatismo traz para o primeiro plano dessa definição tradicional de
“medium,” no entanto, é o conceito de improvisação, da necessidade de se arriscar diante de
um medium agora liberto das garantias da tradição artística. É esse sentido de improvisação
que abraça a associação da palavra com “automatismo psíquico;” mas o reflexo automático
aqui não é um reflexo inconsciente, mas sim algo como a liberdade expressiva que a
improvisação sempre contém, assim como a relação entre o fundamento técnico de um gênero
e suas convenções dadas abrem espaço para liberdades – da mesma maneira que a fuga torna
possível, por exemplo, improvisar casamentos complexos entre as vozes. As convenções em
questão não precisam ser tão estritas como aquelas de uma fuga ou de um soneto; podem ser
excedentemente soltas ou esquemáticas. Mas, sem elas, não se poderia julgar o sucesso ou o
fracasso de tal improvisação. Poderíamos dizer que a expressividade não teria um objetivo.2
Para mim, a importância do exemplo de Cavell foi sua insistência na pluralidade interna de
1 Stanley Cavell, The World Viewed (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1971), pp. 101-18.
qualquer medium dado, da impossibilidade de pensar um medium estético como nada mais
além de um suporte físico não trabalhado. Eu enfrentava o problema originado pelo fato de que
tal definição de medium como um mero objeto físico, em toda sua redução e seu movimento
em direção a retificação, se tornara moeda comum no mundo da arte, e de que o nome Clement
Greenberg havia se fixado a essa definição de maneira que, dos anos 60 em diante, usar a
palavra “medium” significava evocar “Greenberg.”3 De fato, o movimento para
“Greenberguizar” a palavra era tão patente, que as tentativas históricas anteriores de se abordar
sua definição eram agora despidas de sua própria complexidade. A famosa fala de Maurice
Denis, de 1890, sobre o medium pictórico – “É bom lembrar que uma figura – antes de ser um
cavalo de batalha, uma mulher nua, ou alguma anedota – é essencialmente uma superfície
plana coberta com cores organizadas numa certa ordem” – estava agora sendo lida, por
exemplo, como um mero presságio da redução essencial da pintura à “platitude.” Esse não era
o argumento de Denis; foi simplesmente ignorado que ele estava descrevendo a relação
complexa e cheia de camadas que poderíamos chamar de uma estrutura recursiva – isto é, uma
estrutura gerada pelas regras produzidas por alguns de seus próprios elementos. O que está
latente na conexão tradicional entre “medium” a problemas de técnica é que essa estrutura
recursiva é algo feito ao invés de algo dado, como, por exemplo, quando as artes eram
divididas dentro da Academia, em ateliês representando os diferentes mediums – pintura,
escultura, arquitetura – para serem ensinadas.4
Assim, se eu decidi, por fim, manter a palavra “medium,” foi porque, devido a todos os
mal-entendidos e abusos colados a ela, este é o termo que abre o campo discursivo que eu
pretendo abordar. Isso é verdade no nível histórico, já que o destino desse conceito parece
pertencer cronologicamente à ascensão de uma crítica pós modernista (crítica institucional,
especificidade do site) que por sua vez tem produzido sua própria problemática (o fenômeno
internacional da arte da instalação). Isto é, parecia que apenas “medium” encararia essa
mudança de fatos, e, no nível léxico, é a palavra “medium” e não algo como “automatismo,”
que traz a questão da “especificidade” em seu rastro – como na designação “especificidade do
medium.” Embora, infelizmente, este seja outro conceito carregado – remodelado
abusivamente como uma forma de objetivação ou reificação, uma vez que um medium é
2 Com relação a isto, veja Stanley Cavell, “Music Discomposed”, em Must We Mean What We Say? (New York: Scribner’s, 1969), pp.199-202.3 Esse problema é ainda mais complicado pela necessidade de ressaltar o nome de Greenberg com o uso de aspas, na maneira que fiz nesta sentença, para indicar que esta leitura de seu próprio uso da palavra “medium” envolvia (e envolve) um engano estranho, esse a que me refiro abaixo (veja pp. 27-30).4 Durante todo esse texto, usarei mediums como o plural de medium a fim de evitar uma confusão com media, que estou reservando para as tecnologias da comunicação indicada por esse último termo.
presumivelmente específico por não ser nada além de suas propriedades físicas manifestas –,
ele é (em sua forma não abusivamente definida) intrínseco a qualquer discussão de como as
convenções colocadas em um medium podem funcionar; já que a natureza de uma estrutura
recursiva é a de que deve ser capaz de, pelo menos em parte, ser capaz de especificar a si
mesma.
Engasgada, portanto, com a palavra “medium,” devo igualmente empurrá-la em meu
leitor, nas reflexões que se seguem. Espero, contudo, que esta nota em forma de prefácio tenha
me garantido alguma distância entre a palavra em si, com sua longa história fora das recentes
batalhas sobre o “formalismo,” e os pressupostos sobre a corrupção do termo e o colapso que
estas batalhas geraram.
Com a prudente clarividência do materialista, Broodthaers antecipou, nos anos 1960, a
transformação completa da produção artística num ramo da indústria cultural, um fenômeno
que somente agora reconhecemos.
Benjamin Buchloh5
1
Uma capa, desenvolvida por Marcel Broodthaers, para uma edição de 1974 da Studio
International, vai servir como introdução para o que eu tenho a dizer aqui. Um rébus que
soletra FINE ARTS [Belas Artes], onde a figura da águia suprime a última letra de “fine” e a
do burro funciona como a primeira de “arts.”6 Se adotarmos o senso comum de que a águia
simboliza nobreza, altivez, alcance imperioso, e assim por diante, daí a relação com a “fineza”
5 Benjamin H. D. Buchloh, “Introdutory Note [to the special Broodthaers issue],” Outubro, no. 42 (Outono 1987), p. 5. O papel central de Benjamin Buchloh na recepção crítica do trabalho de Broodthaers como indobrável no começo da década de 70 é óbvia nas muitas citações de seus escritos, que ocorrem durante toda esta tese, assim como na referência às suas atividades incentivadoras como editor de seu jornal Interfunktionen. Aqui, com relação a essa declaração posicionada como um epigrafo ao que segue, quero declarar minha própria gratidão a Benjamin Buchloh, pela generosidade de sua voluntariedade em ler esse texto manuscrito e discuti-lo comigo, na troca aberta de aprovação e do desacordo que faz o diálogo com ele consistentemente tão desafiante e esclarecedor. 6 Studio International, vol. 188 (Outubro 1974). A contracapa também é por Broodthaers. É uma mistura do mesmo tipo de discos educativos infantis (Z para zebra, H para horse [cavalo], W para watch [relógio], com as figuras apropriadas para cada disco) e discos que têm apenas letras. Sob a grade desses discos, Broodthaers encerrou: “elements du discours ne peuvent servir l’art une faute d’orthographe cachée vaunt un fromage [elementos do discurso não podem prover a arte um erro ortográfico escondido vale um queijo.” Isto se refere a dois aspectos de seu trabalho. De um lado, faz um comentário sobre a fábula de La Fontaine sobre a raposa e o corvo que serviu a Broodthaers para sua exposição e filme Le Corbeau et le renard (1967). De outro, faz uma alusão ao erro de digitação no anúncio de sua exposição “Court-Circuit” (1967), no qual o tipógrafo esqueceu o “h” de Broodthaers e o artista adicionou a letra à mão, assim transformando o erro em um trabalho autografado ou objeto comercializável ou, em gíria francesa, “fromage” (dinheiro).
da fine arts parece perfeitamente óbvia. E se o burro é presumidamente, através do mesmo tipo
de reflexo intelectual, o que representa a “baixeza” de uma besta de labuta, daí sua conexão
com a arts não é aquela do movimento unificador da águia – as artes em separado ascendem ou
sucumbem sob a idéia maior e sintética de Arte – mas sim, a surpreendente particularidade das
técnicas individuais, de tudo aquilo que envolve a prática no tédio de seu fazer: “Burro como
um pintor,” dizem eles.
Mas também podemos ler o rébus como um eclipse da letra apropriada da palavra dada.
E então chegamos, de um modo sugestivo, a FIN ARTS, ou ao fim da arte;7 e isso em
contrapartida abriria para um modo específico com que Broodthaers frequentemente usava a
águia, e dessa forma para uma particular narrativa sobre o fim da arte, ou – lendo seu rébus
mais cuidadosamente – para o fim das artes.
Havia, de fato, uma narrativa sobre este fim com a qual Broodthaers se identificava no
fim dos anos de 1960 e começo dos anos de 1970. Essa era a história de um modernismo
militante e reducionista que, por estreitar a pintura para aquilo que foi anunciado como a
essência do medium – conhecida como platitude – contraiu-a tanto que ela, de repente,
refratada pelo prisma da teoria, emergiu do outro lado da lente, não simplesmente de ponta-
cabeça, mas transformada em seu oposto. Se, a história conta, as telas negras de Frank Stella
mostraram como a pintura pareceria uma vez materializada como platitude rígida – sua suposta
essência entendida como nada mais do que uma inerte característica física – elas anunciaram a
Donald Judd que a pintura agora se tornara um objeto, como qualquer outra coisa
tridimensional. Além disso, ele concluiu que, com nada mais diferenciando pintura de
escultura, as distinções de cada um como mediums separados estava finda. O nome que Judd
deu aos híbridos que se formariam deste colapso foi “Objetos Específicos.”
Foi Joseph Kosuth que rapidamente viu que o termo correto para esse subproduto
paradoxal da redução modernista não era específico, mas geral.8 Pois, se o modernismo estava
sondando a pintura por sua essência – pelo que a faz específica como medium – esta lógica
levada ao extremo havia virado a pintura do avesso e esvaziado-a dentro da genérica categoria
de Arte: arte-qualquer, ou arte-em-geral. E agora, Kosuth sustentava, o trabalho ontológico do
artista modernista seria definir a Arte em si. “Ser um artista hoje, significa questionar a
7 Minha atenção foi primeiramente voltada a esta capa, e ao seu particular jogo com as palavras, por Benjamin Buchloh em seu importante ensaio “Marcel Broodthaers: Allegories of the Avant-Garde,” Artforum, vol.XVIII (maio de 1980), pg. 578 Para a apresentação e teorização desta transformação de específico para geral, veja Thierry de Duve, Kant after Duchamp (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1996) particularmente o capítulo “O Monocromático, e a Tela Negra.”
natureza da arte,” ele afirmou. “Pode-se questionar a natureza da pintura, mas não a natureza
da arte. Assim é, porque a palavra arte é genérica e a palavra pintura é específica.”
Kosuth argumentou, a seguir, que a definição de arte, que os trabalhos agora iriam
estabelecer, poderia meramente tomar a forma de afirmações e assim rarefazer o objeto físico à
condição conceitual de linguagem. Mas essas afirmações, apesar de vê-las ressoando com a
finalidade lógica da proposição analítica, iriam ser arte e não, digamos, filosofia. Sua forma
linguística iria meramente sinalizar a transcendência do conteúdo particular, sensível de uma
arte dada, como pintura ou fotografia, e a submissão de cada uma delas àquela elevada unidade
estética – Arte em Si – da qual qualquer uma seria apenas uma incorporação parcial.
A conclamação seguinte da arte conceitual foi a de que purificando a arte de sua
impureza material, e produzindo-a como um modo de teoria-sobre-a-arte, sua própria prática
escaparia da forma de bens de consumo, da qual pintura e escultura inevitavelmente tomavam
parte, ao serem forçadas a competir em um mercado de arte que, cada vez mais, parecia com
qualquer outro mercado. Nesta declaração, ainda foi revelado um outro paradoxo da história
modernista recente. Os mediums específicos – pintura, escultura, desenho – haviam investido
em sua reivindicação por pureza, ao se tornarem autônomos, isto quer dizer que, em sua
declaração de não ser nada além de sua própria essência, estariam desligados de tudo aquilo
que estivesse fora de seus limites. O paradoxo foi que esta autonomia havia se provado
quimérica, e que o próprio meio de produção da arte abstrata – como a produção em série de
pinturas, por exemplo – pareciam carregar a digital dos objetos de consumo produzidos
industrialmente, internalizando, no campo de trabalho, seu próprio estatuto como permutável, e
assim, como puro valor de troca. Abandonando esse pretexto de autonomia artística e
livremente assumindo várias formas e lugares – as revistas de distribuição de massa e os
outdoors públicos, por exemplo –, a arte conceitual viu a si mesma assegurando uma pureza
ainda maior para a Arte, de maneira que, flutuando através dos canais de distribuição de bens
de consumo, iria não apenas adotar qualquer forma que precisasse, mas iria, por um tipo de
defesa homeopática, escapar dos efeitos do mercado em si.
Embora, em 1972, Broodthaers já tivesse interrompido sua empreitada de quatro anos
chamada “Museu de Arte Moderna, Departamento das Águias” – uma sequência de trabalhos
em que, ao produzir as atividades das doze seções do Museu, ele operava no que chamou de
museu fictício – é óbvio que um dos alvos do projeto se transferiu à capa da Studio
International. Tendo explicado, alguns anos antes, que para ele havia o que ele chamava de
“identidade da águia como idéia e de arte como idéia,” a águia de Broodthaers funcionava
muitas vezes como emblema da arte conceitual.9 E nesta capa, então, o triunfo da águia anuncia
não o fim da Arte, mas a terminação das artes individuais como mediums específicos; e o faz
por decretar a forma que essa perda de especificidade vai assumir a partir de agora.
Por um lado, a águia em si vai ser desdobrada na condição intermidiática e híbrida do
rébus, em que, não apenas linguagem e imagem, mas alto e baixo, e qualquer outra oposição
em par que se possa pensar, vão agora se misturar livremente. Mas por outro lado, essa
combinação em particular não é totalmente randômica. É específica ao lugar em que ocorre,
que no caso é uma capa daquele órgão do mercado, uma revista de arte, aonde a imagem da
águia não escapa a operações do mercado servido pela imprensa. Assim, ela se torna uma
forma de publicidade ou de promoção, agora promovendo arte conceitual. Mais ou menos ao
mesmo tempo, Broodthaers deixou isso claro no anúncio que fez para a capa da revista
Interfunktionen: “Visão,” se lê, “de acordo com a qual, uma teoria artística vai funcionar para o
produto artístico da mesma maneira que um produto artístico em si funciona como anúncio
para a ordem sob a qual é produzido. Não haverá outro espaço além desta visão de acordo com,
etc… [assinado] Broodthaers.”10 O desdobramento da arte como teoria, daí, leva a arte (e mais
particularmente a arte para a qual é feita a teoria) para exatamente aqueles lugares cuja função
é a promoção, e o faz sem o que se pode chamar de vestígio crítico.
E o faz, também, sem vestígios formais. Na perda intermidiática de especificidade, à
qual a águia submete as artes individuais, o privilégio do pássaro em si, é espalhado em uma
9 A explicação de Broodthaers aparece em Museum, o catálogo em dois volumes da exposição “Der Adler vom Oligozän bis Heute” (Dusseldof, Städtische Kunsthalle, 1972), vol. 2, p 19. No rascunho de um texto aparentemente endereçado a Jürgen Harten, Broodthaers joga com o clamar conceitualista para a “teoria” e a ambição deles de limitar a arte a apodíticas declarações que produziriam sua “definição:”
Teoria Museu no [presente] tempoEu sou a ÁguiaVós sois a ÁguiaEle é a ÁguiaNós somos a ÁguiaVocê é a Águia
Eles são cruéis e indolentes inteligentes e impulsivos comoleões, como remorso, comoratos.10 Interfunktionen, nº 11 (outono 1974), capa. Benjamin Buchloh, editor deste jornal avant-garde, encomendou a capa a Broodthaers, bem como outro trabalho para a edição: o roteiro de um filme chamado “Séance [Sessão],” no qual uma fictícia projeção cinematográfica consistindo de um curta, um noticiário, e um longa metragem são montados com imagens pirateadas. “Séance” era ladeado por um par de imagens de palmeiras, sobre as quais o letreiro “Racisme végétable [Racismo vegetal]” anunciavam o livro homônimo de Broodthaers que estava por vir. Foi Buchloh que traduziu o texto da capa de Broodthaers, “Avis”, para o inglês em colaboração com o artista. Mais uma vez, minha atenção por este trabalho pouco conhecido foi alertada por Buchloh, em “Broodthaers: Allegories of the Avant-Garde,” op. Cit., pp. 57-8.
multiplicidade de lugares – cada um agora denominado de específicos – em que as instalações
que são aí construídas vão comentar, comumente de maneira crítica, sobre as condições
operacionais do lugar em si. Para esse fim, eles terão recursivos a todo suporte material que
alguém possa imaginar, de imagens a palavras, vídeos, readymades, filmes. Mas todo suporte
material, incluindo o lugar em si – sejam revistas de arte, stands em feiras de arte ou galerias
de museus – vão ser nivelados, reduzidos a um sistema de pura equivalência, estabelecido pelo
princípio homogeneizador da comercialização, a operação de puro valor de troca da qual nada
pode escapar e para a qual tudo é transparente para o subjacente valor de mercado do qual ela é
um signo. Broodthaers deu uma forma obsessiva a essa redução, afixando rótulos “figura” a
objetos aleatórios, e efetuando sua equivalência através de etiquetas que os ordenam como
“Fig. I,” “Fig. 2,” “Fig. 0,” “Fig. 12.” Na seção de filmes de seu museu, ele não só colou esses
rótulos em objetos mundanos como espelhos, canos e relógios, mas a própria tela de projeção
era repleta destas figuras numéricas, de modo que tudo no filme projetado – da imagem de
Chaplin, à do Palais Royale em Bruxelas – agora inteirava esta coleção das “Fig.” de
Broodthaers.
Na Seção de Figuras (A Águia do Geolítico ao Presente), montada por seu museu
ficcional, Broodthaers submeteu de maneira célebre mais de trezentas diferentes águias ao seu
princípio de nivelamento. Desta maneira, a águia em si não é mais uma figura de nobreza,
torna-se um signo da figura, da marca, isto é, da pura troca. Ainda nisso há um paradoxo a
mais que Broodthaers não viveu para ver. O princípio da águia, que ao mesmo tempo implode
a idéia de um medium anestético e transforma tudo igualmente em readymades que colapsam a
diferença entre o anestético e o comercializado, permitiu à águia soerguer-se sobre os cacos e
alcançar a hegemonia uma vez mais.11 Vinte e cinco anos depois, por todo o mundo, em toda
bienal e em toda feira de arte, o princípio da águia funciona como uma nova Academia. Seja
chamando-se instalação, ou crítica institucional, o alcance internacional das instalações de
mídias mistas se tornou onipresente, triunfantemente declarando que nós agora habitamos uma
era pós-medium. A condição pós-medium, desta forma, traça sua linha histórica, claro, menos
a partir de Joseph Kosuth do que de Marcel Broodthaers.
2
11 Ao cunhar o termo “princípio da águia,” para aquela parte em que Broodthaers faz uso da águia para criticar a Arte Conceitual e, assim, um certo desenrolar de eventos dentro da história da arte do pós guerra, estou tentando diferenciá-lo do alcance total que Broodthaers queria que a águia significasse, que obviamente inclui a dimensão política do símbolo e mais especificamente, dentro do contexto europeu de Broodthaers, sua permeação e exploração pelo fascismo.
Mais ou menos no mesmo período em que Broodthaers estava pensando sobre o
princípio águia, um outro acontecimento, certamente com um alcance mais amplo, tinha
entrado no mundo da arte para, a seu próprio modo, estilhaçar a noção de especificidade do
medium. Isto foi o portapak (portable pack) – uma leve e barata câmera de vídeo e seu monitor
– e deste modo, o advento do vídeo dentro da prática artística, algo que requer ainda uma outra
narrativa.
É a história que poderia ser contada a partir do ponto de vista do Anthology Film
Archives, uma sala de projeção no Soho de Nova York, onde no final dos anos 1960 e começo
dos 1970, um grupo de artistas, realizadores de filmes e compositores se juntava, noite após
noite, para ver o repertório de filmes modernistas organizados por Jonas Mekas e projetados
em um ciclo invariável, um corpus que se compunha do cinema de vanguarda soviético e
francês, documentários britânicos mudos, versões iniciais do American Independent Film
[Filme Independente Americano], bem como filmes de Chaplin e Keaton.12 Poderia se dizer
que os artistas – como Richard Serra, Robert Smithson ou Carl Andre – que sentaram no
escuro daquele teatro, em poltronas desenhadas para tirar toda a visão periférica de tal modo
que toda a atenção estaria focada somente na tela, estavam unidos em torno de uma profunda
hostilidade contra a rígida versão do modernismo de Clement Greenberg, com sua doutrina da
platitude. Ainda assim, se estavam juntos no Anthology Film Archives, isto significava em
primeiro lugar que eles eram modernistas devotos, apesar de tudo. O Anthology tanto
alimentava quanto promovia o trabalho regular de estruturalistas como Michael Snow ou
Hollis Frampton ou Paul Sharits. Suas projeções forneciam o terreno discursivo dentro do qual
este grupo de jovens artistas podiam imaginar seus caminhos em um tipo de filme que, focado
na natureza do próprio meio cinemático, poderia ser modernista no seu âmago.
Agora, a intensa satisfação de pensar sobre a especificidade do filme neste contexto,
derivada da condição de totalidade do meio, aquela que conduziu a geração imediatamente
seguinte de teóricos a definir seu suporte com a idéia de “apparatus” – o meio ou o suporte
para o filme como não sendo nem a tira de celulóide de imagens, nem a câmara que as filma,
nem o projetor que as traz para a vida em movimento, nem o feixe de luz que as transmite para
a tela, nem a própria tela, mas tudo isto junto, incluindo a posição do espectador capturado
12 Para uma discussão acerca do Antology Film Archives, veja Annette Michelson, “Gnosis and Iconoclasm: A Case Study of Cinephilia”, October, n. 83 (Winter 1998), pp. 3-18.
entre a fonte de luz atrás dele e a imagem projetada diante dos olhos.13 O filme estruturalista14
propõe, ele mesmo, a idéia de produzir a unidade deste suporte diversificado em uma singular e
sustentável experiência, na qual a completa interdependência de todas estas coisas seria ela
própria revelada como modelo de como o espectador está intencionalmente conectado ao
mundo (dele ou dela). As partes do aparelho seriam como coisas que não podem tocar umas
nas outras sem serem tocadas elas mesmas; e esta interdependência iria antecipar a emergência
recíproca de um espectador e de um campo de visão como uma trajetória, através da qual o
sentido da visão toca naquilo que o toca de volta. O Wavelenght [Comprimento de onda] de
Michael Snow, um único zoom de 45 minutos, quase ininterrupto, captura a intensidade desta
busca, forjando a união deste tipo de trajetória dentro de algo ao mesmo tempo imediato e
óbvio. Em seu esforço para articular o que Merleau-Ponty chamou de natureza pré-objetiva, e
portanto abstrata, desta conexão, tal ligação poderia ser chamada de “vetor fenomenológico.”15
Para Richard Serra, um dos parasitas do Anthology, um trabalho como o Wavelenght
teria tido uma dupla função. Por um lado, o filme de Snow atua como pura força horizontal,
cujo inexorável movimento para frente é capaz de criar a metáfora espacial abstrata para a
relação do filme com o tempo, agora sintetizado como forte suspense.16 O esforço de Serra em
fazer da escultura uma condição de algo como um vetor fenomenológico, isto é, a própria
experiência de horizontalidade, teria achado por fim a confirmação estética na Wavelenght.17
13 Ver J.-L. Baudry, “The Apparatus”, Camera Obscura, n.I (1976); e Theresa de Lauretis e Stephen Heath, The Cinamatic Apparatus (London: Macmillan, 1980).14 O cinema estruturalista é um termo de P. Adams Sitney, historiador de cinema de vanguarda norte americano, para a produção de jovens artistas como Michael Snow, Hollis Frampton, George Landow (aka Owen Land), Paul Sharits, Tony Conrad, Joyce Wieland, Ernie Gehr, Birgit and Wilhelm Hein, Kurt Kren, e Peter Kubelka. O “Filme Estrutural” era simplificado (câmera fixa, efeito tremeluzente devido à natureza do filme, loop, refotografia) e, às vezes quase pré-determinado. A forma do filme era crucial e o conteúdo periférico. Diferenciava-se do cinema experimental complexo e condensado feito por artistas como Sidney Peterson e Stan Brakhage (nota da tradução).15 Maurice Merleau Ponty, Phenomenology of Perception, trans. Colin Smith (London: Routledge and Kegan Paul, 1962). A seção intitulada “O corpo” trata das interconexões entre a ‘frente’ e as ‘costas’ de um corpo, formando um sistema de significados destas relações. Estas, determinadas pré-objetivamente pelo espaço do corpo, funcionam, então como um modelo primordial do próprio significado. O corpo como o território pré-objetivo para toda a experiência relacionada com objetos é o primeiro âmbito explorado pela Fenomenologia da Percepção. (Interconectedness – é parte da terminologia do worldview (wide world perception) que vê a unidade em todas as coisas. Um termo similar as vezes é usado, interdependence, embora haja diferenças sutis em seus significados. Os dois termos se referem a idéias que todas as coisas são de uma única substância e realidade comum, e que não há separação verdadeira por trás das aparências.)16 Annette Michelson escreveu “Ao contínuo movimento da câmera sempre para frente, construindo uma tensão que cresce na mesma proporção que o campo se reduz, reconhecemos, com alguma surpresa, aqueles horizontes como definidores do contorno da narrativa, daquela narrativa formada pela distensão temporal, se tornando o significado, enquanto se revela. Aguardando um assunto, somos ‘suspensos’ através daquela resolução.... Snow, re-introduzindo a expectativa como o centro do filme, redefine o espaço como sendo... essencialmente ‘uma noção temporal’. Esvaziando o filme da propensão da metáfora da montagem, Snow cria a grande metáfora da forma narrativa.” (“Toward Snow: Part I.” Artforum, vol. IX (June -1971), pp. 31-2.17 Serra fala da importância do trabalho de Michael Snow em Annette Michelson, Richard Serra, and Ciara Weyergraf, “The films of Richard Serra: An Interview”, October, n.10 (Fall, 1979).
Mas, mais do que isto, no próprio filme estruturalista, Serra teria descoberto o suporte para
conceber a idéia de um medium estético, aquele que, como o do filme, poderia não ser
entendido como redutivo, mas de novo, como o do filme, era completamente modernista.
A nova idéia de Serra de que um medium estético poderia participar de sua etapa de
desenvolvimento recente, o fez compreender Jackson Pollock e a noção de que, se Pollock
tinha ultrapassado o quadro de cavalete, como Clement Greenberg declarou, não foi para fazer
uma pintura maior e mais plana.18 Pelo contrário, foi para girar o seu trabalho completamente
para fora da dimensão do objeto pictórico e, ao colocar suas telas no chão, modificar todo o
projeto de arte de fazer objetos, em suas formas cada vez mais reificadas, para articular os
vetores que conectam objetos a sujeitos.19 Ao entender este vetor como o campo horizontal de
um acontecimento, o problema de Serra foi tentar descobrir, no interior da lógica dos próprios
acontecimentos, as possibilidades expressivas ou convenções que iriam articular este campo
como um medium. Porque, no sentido de manter uma prática artística, um medium deve ser
uma estrutura de sustentação, geradora de um conjunto de convenções, algumas das quais – ao
assumirem o próprio meio como seu assunto – serão totalmente específicas para tal,
produzindo conseqüentemente uma experiência de suas próprias necessidades.20
Para os propósitos deste argumento, não é necessário saber exatamente como Serra
levou isto adiante.21 É suficiente dizer que Serra retirou estas convenções para fora da lógica de
produção de um trabalho – quando isto é entendido como uma forma serial – não no sentido de
estampar moldes idênticos como em uma produção industrial, mas no sentido de um
18 Em uma série de artigos no final dos anos 1940, Greenberg anuncia esta idéia do fim da pintura de cavalete e da abertura do “fazer da pintura” para algo além dela. 19 Analisando as linhas que conectam o sujeito ao seu mundo, Sartre fala não somente da reciprocidade dos pontos de vista – o vetor que conecta meu corpo, como meu ponto de vista das coisas, com aquele aspecto que marca o ponto de vista das coisas em meu corpo – mas também daqueles movimentos através do mundo que são a minha forma de me apropriar dele, como o jogo, por exemplo. “O esporte”, escreve ele, “ é uma transformação livre do meio para o suporte da ação. Esse fato o faz criativo como arte. O meio pode ser um campo de neve... ver já é possuí-lo. Representa a pura exterioridade, a espacialidade radical, sua indiferença, sua monotonia, e sua brancura manifestam a absoluta nudez da substância, é o Em-si que não passa de Em-si... o que almejo então é precisamente que este Em-si esteja comigo em uma relação de emanação, sem deixar de ser Em-si. O objetivo é “fazer algo com esta neve,” ou seja, impor a ela uma forma, que adere tão profundamente a matéria, que esta parece existir a bem daquela... O sentido do esqui não é somente o de me permitir deslocamentos rápidos e a aquisição de uma habilidade técnica, nem o de possibilitar jogar, aumentado ao meu capricho a velocidade ou as dificuldades do percurso; é também o de me permitir possuir este campo de neve. Agora, faço algo com ele. Significa que, pela minha própria atividade de esquiar, modifico sua matéria e seu sentido.” (Jean-Paul Sartre, O ser e o nada – Ensaio de ontologia fenomenológica, trad. Paulo Perdigão [Petrópolis, RJ: editora Vozes, 1997], pp. 711-12). O conceito de “vetor fenomenológico” é precisamente engajado com esta idéia de uma atividade de organização e conexão através da qual um sujeito se compromete com um mundo como significante. 20 Eu explorei esse assunto numa série de artigos: “ ‘... And Then Turn Away?’ An Essay on James Coleman”, October, n. 81 (Sumer, 1997), pp. 5-33; “Reinventing the Medium”, Critical Inquiry, n. 25, (Winter, 1999), pp.289-305; e “The crisis of the Easel Picture”, a ser publicado no Segundo volume do catálogo de Jackson Pollock, The Museum of Modern Art, New York.21 Tal análise sobre Serra é abordada no final de “The crisis of the Easel Picture”, op. cit.
diferencial periódico ou do fluxo das ondas, no qual conjuntos separados de repetições em série
convergem para um dado ponto. O importante é que Serra experimentou e articulou o medium
no qual ele se pôs a trabalhar como aglutinante e, portanto, distinto das propriedades materiais
de um suporte objetal meramente físico; e, no entanto, ele se via como modernista. O exemplo
do filme estruturalista independente – ele próprio um suporte compositivo, mas ainda assim
modernista – confirma este naquele.
Nesta junção é importante, entretanto, fazer um pequeno desvio para dentro da história
do próprio modernismo oficial e reducionista, e corrigir a gravação como se ela fosse escrita
pela lógica dos objetos específicos de Judd. Assim como para Serra, a visão de Greenberg
sobre Pollock o tinha conduzido, por fim, a descartar a noção materialista e reducionista de
medium. Quando viu a lógica modernista se dirigindo ao ponto onde, como ele próprio disse,
“a observância de simplesmente duas convenções constitutivas ou normas da pintura –
platitude e a delimitação da platitude – é suficiente para criar um objeto que pode ser
experimentado como pintura,” dissolveu aquele objeto no fluido daquilo que ele primeiro
chamou de “opticidade” e depois nomeou de “campo cromático.”22 O que é dizer que mal
Greenberg pareceu isolar a essência da pintura na platitude, ele girou noventa graus o eixo do
campo para a “atual/verdadeira” superfície pictórica, para colocar tudo o que importa da
pintura no vetor que conecta o espectador ao objeto. Nisto ele pareceu trocar da primeira
norma – platitude – para a segunda – a delimitação da platitude – e mais tarde dar a isto uma
leitura que não era aquela do limite da borda do objeto físico, mas aquele da ressonância
projetiva do próprio campo óptico – o que em “Modernist Painting” [Pintura Modernista] ele
teria chamado de “a terceira dimensão óptica,” criada pela “primeiríssima marca em uma tela
que destrói sua literal e total platitude.”23 Isto era a ressonância que ele imputou ao brilho da
cor pura, ao falar dela, não somente como algo sem corpo, portanto, puramente óptico, mas
também “como uma coisa que abre e expande o campo da pintura.”24 “Opticidade” era assim
uma totalidade abstrata, versão esquematizada da ligação que a perspectiva tradicional havia
formalmente estabelecido entre o espectador e o objeto, mas algo que agora transcende os
parâmetros reais do mensurável espaço físico, para expressar os poderes puramente projetivos
de um nível pré-objetivo de visão: “a própria visão.”25
22 Ver “Louis and Nolland” (1960) e “After Abstract Expressionism” (1962, in Clement Greenberg, op. cit., vol. 4, pp. 97 e 131)23 “Modernist Painting”, ibid., p. 90.24 “Louis and Noland”, ibid., p. 97.25 Thierry de Duve conta que Greenberg abandona o modernismo e abraça o formalismo – este último sendo um interesse exclusivo da estética como um exercício de juízo de gosto – devido à transmutação da platitude modernista na tela monocrômica como um tipo de ready-made, produzida pelo Minimalismo (in “The
O mais sério tópico para a pintura agora era entender, não suas características objetivas
como a platitude da superfície material, mas o seu modo específico de discurso, e fazer disto a
fonte de um conjunto de convenções novas – ou o que Michael Fried chamou de “uma nova
arte.”26 Tal convenção emergiu como o sentido do oblíquo gerado por campos que pareciam
estar sempre rotacionados para fora do plano da parede, e para dentro da profundidade; uma
corrida em perspectiva de superfícies, que fez com que críticos como Leo Steinberg, falassem
de seu senso de velocidade: o que ele chamou de eficiência visual do homem com pressa.27
Outro derivado da serialização – internalizada tanto pelos trabalhos quanto pela sua produção –
para a qual os pintores do campo-cromático invariavelmente recorreram.
Assim, poderia se argumentar que nos anos 1960, a opticidade estava também servindo
mais do que a uma característica da arte; ela se tornou um medium da arte. Como tal, isto era
também agregativo, uma afronta àquilo que era oficialmente entendido como lógica redutora
do modernismo – uma lógica e uma doutrina atribuídas ao próprio Greenberg. Entretanto, nem
Greenberg, nem Fried teorizaram o campo-cromático como um novo medium da pintura; eles
falaram disto somente como uma nova possibilidade para a pintura abstrata.28 Nem a arte em
processo – o termo sob o qual os primeiros trabalhos de Serra eram tratados – estava
adequadamente teorizada. E certamente o fato de que, apesar de tudo, em ambos os casos a
especificidade do meio estava sendo mantida, mesmo que agora ela estivesse sendo vista agora
como internamente diferenciada – no sentido do modelo fílmico – que tampouco fora
teorizado. Pois, no caso deste último modelo, o impulso era tentar transformar as diferenças
internas do aparato fílmico em uma singular e indivisível unidade experimental que serviria
como uma metáfora antológica, uma figura – como o zoom de 45 minutos – para a essência do
todo. Em 1972, a auto-descrição do filme estruturalista, como eu disse, era modernista.
Dentro desta situação entrou o portapak, e seu efeito televisivo, para despedaçar o
sonho modernista. No começo, os artistas começaram a fazer trabalhos em vídeo, usando o
Monochrome and the Black Canvases,” op. cit., p. 252). Isto, claro, de acordo com a própria descrição de Greenberg em seus escritos depois de 1962, como “Complains of an Art Critic” (Artforum [October 1967]). Mas o que essa leitura delimita, não obstante, é o jeito como Greenberg entende a categoria de opticidade como um suporte para a prática, e até, apesar de nunca dizer isso, um medium. E o que isso significa de fato é que o “modernismo” de Greenberg é mais complexo do que as suas próprias articulações, ou as de Judd, ou as afirmações de Duve. A questão da opticidade como um vetor fenomenológico é desenvolvida posteriormente em meu artigo “The Crisis of the Easel Picture,” op. cit.26 Em relação a uma versão de tal rotação, Fried escreve que isso poderia permitir algo “poderoso o suficiente para gerar novas convenções, uma nova arte” (Michael Fried, “Shape as Form,” in Art and Objecthood [Chicago and London: Chicago University Press, 1998], p.88).27 Leo Steinberg, Other Criteria (New York: Oxford University Press, 1972), pp. 79.28 O uso do termo automatismo por Cavell para sugerir a idéia de um medium como um suporte para a prática dá a abertura para o começo de tal teorização. Por exemplo, traz a relação entre um “automatismo” dado e a forma que o seu desenvolvimento adotaria, necessariamente de natureza serial, em que cada elemento da série é uma nova instância do próprio medium (The World Viewed, op. cit., pp. 103-4).
vídeo como uma continuação tecnologicamente atualizada do modo de discurso organizado
pela nova atenção ao fenomenológico; embora fosse uma versão perversa disto, uma vez que a
forma tomada era decididamente narcisista: uma interminável conversa dos artistas com eles
mesmos.29 Que eu saiba, somente o próprio Serra reconheceu imediatamente que o vídeo era de
fato televisão, o que significa um meio de longo alcance, algo que rompe a continuidade
espacial em lugares remotos de transmissão e recepção. O seu Television Delivers People [A
televisão distribui pessoas] (1973) – uma mensagem mostrada em uma lentidão contínua – e
Prisoner’s Dilemma [O dilema do prisoneiro] (1974) foram versões disto.
É esta separação espacial, combinada com a simultaneidade temporal de instantâneos à
distância, que levou certos teóricos a tentar localizar a essência da televisão no seu uso como
circuito-fechado de vigilância. Mas o fato é que a televisão e o vídeo parecem uma cabeça de
Hidra, existindo em intermináveis formas, espaços e temporalidades diversos, para os quais
nenhum único instante parece fornecer uma unidade formal para o todo.30 Isto é o que Sam
Weber chamou de “heterogeneidade constitutiva” da televisão, acrescentando que “o que
talvez seja o mais difícil de se ter em mente é que os modos nos quais opera o que chamamos
de televisão, diferem também e sobretudo entre si.”31
Se a teoria modernista se descobre, a si mesma, frustrada por tal heterogeneidade – a
qual a impediu de conceituar o vídeo como um medium – modernista, o vídeo estruturalista foi
conduzido pelo sucesso instantâneo do vídeo como prática. Pois, mesmo se o vídeo tinha um
suporte técnico diferente – o seu próprio aparato, por assim dizer – ele ocupou uma espécie de
caos discursivo, uma heterogeneidade de atividades que não podiam ser teorizadas como
coerentes ou concebidas como tendo algo de essência ou unidade central.32 Como o princípio
águia, ele proclamou o fim da especificidade do meio. Na era da televisão, e seu longo alcance,
habitamos uma condição pós-medium.
329 Ver “Vídeo and Narcissism”, October, n.1 (Spring, 1976)30 Stanley Cavell procura situar este todo através da base material da televisão, como “um evento de recepção atual e simultâneo,” e uma forma de percepção específica a ela, que ele chama de “monitoramento” (ver Stanley Cavell, “The Fact of Television,” in Vídeo Culture: A Critical Investigation, ed. John Hanhardt (Rochester, N.Y.: Visual Studies Workshop, 1986). Outras tentativas para articular a especificidade da televisão e/ou vídeo incluem: Jane Feuer, “The Concept of Live Television: Ontology as Ideology,” in Regarding Television: Critical Approaches, ed. E. Ann Kaplan (Frederick, Md.: University Publications of América, 1983); Mary Ann Doane, “Information, Crisis, and Catastrophe,” in Logics of Television: Essays in Cultural Criticism, ed. Patrícia Mellencamp (Bloomington: Indiana University Press, 1990); Frederic Jameson, “Vídeo,” Postmodernism: Or the Cultural Logic of Late Captalism (Ducham, N.C.: Duke University Press, 1998).31 Samuel Weber, “Television, Set, and Screen”, Mass Mediauras: Form, Techniques, Media (Pasadena, Calif.: Standford UniversityPress, 1996).32 Fredric Jameson comenta a sua resistência à teorização modernista do vídeo no seu artigo “Transformations of the Image in Postmodernity”, in The Cultural Turn: Selected Writings on the Postmodern, 1983-1998 (London: Verso, 1998).
A terceira narrativa, que apresentarei de forma mais sucinta, diz respeito à ressonância
entre a posição do pós-medium e o pós-estruturalismo. Durante o mesmo momento “fins dos
1960/começo dos 1970,” a desconstrução começou a atacar abertamente aquilo a que ela se
referia com desprezo como a “lei do gênero,” ou seja, a autonomia estética supostamente
assegurada pelo quadro pictórico.33 Da teoria da gramatologia àquela do parergon34, Jacques
Derrida elaborou várias demonstrações para mostrar que a idéia de um interior separado de, ou
não contaminado por, um exterior era uma quimera, uma ficção metafísica. Fosse o interior da
obra de arte em oposição a seu contexto, ou a interioridade de um momento vivido da
experiência em oposição a sua repetição na memória ou via signos escritos, aquilo que a
desconstrução preocupava-se em desmantelar era a idéia de próprio, tanto no sentido de auto-
idêntico, como, por exemplo, em “visão é aquilo que é próprio das artes visuais,” quanto no
sentido do que é limpo e puro como, por exemplo, em “a abstração purifica a pintura de coisas
como narrativa ou espaço escultórico, que não são próprias a ela.” O argumento de que nada
podia se constituir como pura interioridade ou auto-identidade, de que aquela pureza sempre já
tinha sido invadida por um lado de fora, ou, de que, na realidade, só podia se constituir pela
introjeção daquele lado de fora foi elaborado para destruir a suposta autonomia da experiência
estética, ou a possível pureza de um meio artístico, ou a presumida independência de uma
disciplina intelectual. O auto-idêntico era revelado e, portanto, dissolvido, no auto-diferente.
Na universidade isto, assim como outras análises pós-estruturalistas, como as de Michel
Foucault, provaram um argumento poderoso para o fim da separação das faculdades
acadêmicas em ramos distintos do conhecimento, e criaram, assim, um forte apoio à
interdisciplinaridade. Fora da academia, no mundo da arte, onde a autonomia e a noção de que
haveria algo de próprio ou específico a um determinado medium já estavam sendo atacadas,
isto deu um pedigree teórico iluminador a práticas de impureza florescentes, como Fluxus ou o
33 Ver Jacques Derrida, “The Law of Genre,” Glyph, no. 7, (1970).34 Párergon é uma palavra grega que significa 'objeto acessório, suplemento'; ocupação, ornamento ou trabalho (criativo) secundário, derivativo, desnecessário ou suplementar. A teoria do parergon trata do problema do moldura – da estrutura da margem, da diferença entre dentro e fora. Kant descarta o excesso de ornamento (Zieraten) na arte (que ele condena como algo externo, parergon), e ainda o que denomina de “disparates” (Unsinn). Estes seriam o fruto de um artista “rico e original em idéias,” mas sem ter a faculdade de juízo capaz de indicar a “legalidade do entendimento” para conter esta genialidade. Em “La Vérité en peinture,” Jacques Derrida escreve sobre o parergon de Kant, transformando-o. Derrida discute o parergon como algo “contra, além e em somatória ao ergon, o trabalho feito [fait], o fato [le fait], a obra, mas que não fica de lado; toca e coopera na operação, de um certo lado de fora. Nem simplesmente fora, nem simplesmente dentro. Como um acessório que é obrigado a dar, na beirada, boas vindas a bordo [au board, a bord]. É o primeiro a abordar. [Il est d’aboard l’a bord] (1987)” (nota da tradução).
détournement (apropriação subversiva) Situacionista, que estavam, havia tempos, em estado
latente.
No fim dos anos 1960 e começo dos 1970, Marcel Broodthaers parecia ser o cavaleiro
errante de tudo isso. Seu “Museu de Arte Moderna,” uma fantástica operação de détournement
institucional, parecia constituir a implosão derradeira da especificidade do medium, e, ao fazer
isso, estar demonstrando a base teórica de seu próprio projeto. Como já vimos, a fixação de
figuras numéricas a uma variedade de objetos funcionava tanto como uma paródia da prática
curatorial, quanto como um esvaziamento do significado da classificação. Conseqüentemente,
as figuras funcionavam como um conjunto de meta-legendas cuja operação era teórica.
Broodthaers comentou a respeito: “Uma teoria com figuras serviria apenas para dar uma
imagem de uma teoria. Mas e a Fig. como uma teoria da imagem?”35
Ainda que Broodthaers possa ser visto movendo-se entre o círculo da teoria pós-
estruturalista, devemos também lembrar de sua profunda ambivalência no que diz respeito à
teoria. Devemos recordar sua declaração, em Interfunktionen, de que as teorias são reduzidas,
ou talvez reveladas como nada mais que “anunciando para a ordem para a qual estão sendo
produzidas.” De acordo com esta condenação, qualquer teoria, mesmo que seja distribuída
como uma crítica da indústria cultural, vai acabar unicamente como uma forma de promoção
desta mesma indústria. Deste modo, o derradeiro senhor do détournement acaba por ser o
próprio capitalismo, que pode apropriar-se e reprogramar qualquer coisa para servir a seus
objetivos. Assim, mesmo não vivendo para ver a confirmação absoluta de sua “Visão”
totalmente pessimista, Broodthaers previu tanto a cumplicidade eventual entre teoria e
indústria cultural, quanto a absorção final da “crítica institucional” pelas mesmas instituições
de marketing global das quais esta “crítica” depende para seu sucesso e apoio.
4
Isso nos leva, entretanto, a outra história. Se o capitalismo é o senhor do détournement,
absorvendo todo protesto de vanguarda em seu caminho e transformando-o em seu proveito,
Broodthaers estava - dando uma apertada final ao parafuso - num tipo de relação mimética com
35 Isto, inscrito num trabalho sem título de 1973-74, é, em si, uma declaração complexa. A primeira metade se conecta com a sentido duplo do princípio águia, de que as próprias teorias são permeáveis à mercantilização e de que a substituição do objeto físico pela linguagem não protege a arte desta condição. Mas a segunda sentença é muita menos negativa e abre possibilidades redentoras no sentido das quais a “Fig.” como um novo tipo de imagem – um fragmento que não participa inteiramente nem da imagem nem do ícone – acena. Isto é sugerido pelo papel da “Fig.” em Ma Collection e no livro Charles Baudelaire. Je hais le mouvement que déplace les lignes, ambos discutidos a seguir. Sou imensamente grata a Benjamin Buchloh pelas sugestões sobre a complexidade da “Teoria das Figuras” de Broodthaers e do estatuto alegórico dessa noção em toda sua obra.
isso. Em resumo, este era o modo pelo qual ele conduzia um tipo de détournement em si
mesmo.
Reconhecendo isso nas informações distribuídas à imprensa, durante a Documenta de
1972, onde foram instaladas as seções finais de seu Museu (agora renomeado de “Museu da
Arte dos Grandes Mestres [Arte Antiga], Galeria do Século XX; Departamento das Águias”), a
citar, as seções de promoção e relações públicas, Broodthaers fala das suas “entrevistas
contraditórias” com respeito às suas ficções de museu.36 Na realidade, os melhores críticos de
Broodthaers têm estado alerta às inconsistências peculiares que minam tanto as explicações do
artista sobre seu trabalho, quanto o desdobramento do trabalho em si. Benjamin Buchloh
escreveu, por exemplo: “O sentido persistente de contradições pode ser considerado o aspecto
mais proeminente dos pensamentos e declarações e, obviamente, do trabalho de
Broodthaers.”37
Num determinado momento, Buchloh vê isso como uma espécie de blague, uma forma
deliberada, irônica de negação dupla na qual uma linguagem petrificada age imitando a
reificação contemporânea da fala, nas mãos da indústria da consciência. Para isso, ele cita um
texto de Broodthaers chamado “Minha Retórica,” no qual o artista escreve: “Eu, eu digo eu; eu,
digo eu. Eu, o Rei dos Mariscos. Você diz você. Eu tautologizo. Eu ‘não posso’. Eu
sociologizo. Eu manifestadamente manifesto...,” e assim por diante.38
Douglas Crimp também atentou para este aspecto da contradição, que Broodthaers às
vezes chama de sua própria “má fé,” como, por exemplo, quando explica sua decisão, no
começo dos anos 1960, de deixar de ser um poeta e tornar-se um artista. Como não tinha
dinheiro para colecionar os objetos de arte que amava, decide criá-los: torna-se um criador,
então, pela inércia de não ser capaz de ser um colecionador.39
Num certo sentido, todas as ficções de museu, em que Broodthaers se instala como
diretor, encenam a função de colecionar. Mas Broodthaers também distingue esta forma
pública de coleção de uma outra, mais pessoal, num trabalho chamado Ma Collection [Minha
coleção]; um trabalho com uma aura especial de privacidade e interioridade por causa da
presença de um retrato de Stéphane Mallarmé, entre uma série de imagens agrupadas.
36 Informação para a imprensa do “Musée d’Art Moderne, Départment des Aigles, Sections Art Moderne et Publicité” (Kassel, 1972), reeditado em Marcel Broodthaers, cat. ex., (Paris: Jeu de Pomme, 1991), p. 227.37 Benjamin H. D. Buchloh, “Marcel Broodthaers: Alegories of the Avant-Garde,” op. cit., p. 52.38 Ibid., p. 54. 39Para este argumento sobre a relação de Broodthaers com a figura Benjaminiana do colecionador, ver Douglas Crimp, “This is not a Museum of Art,” in Marcel Broodthaers, cat. ex., (Minneapolis: Walker Art Center, 1989), pp. 71-91. A explicação de Broodthaers sobre ser um “criador” está em seu ensaio Comme du beurre dans un sandwich,” Phantomas, no 51-61 (Dezembro 1965), pp. 295-6, citado em Crimp, op. cit., p. 71.
Enfocando a distinção entre público e privado, institucional e pessoal, Crimp aborda, através
da análise de Walter Benjamin sobre o colecionador do século XIX, o privilégio estranho que
Broodthaers dá ao colecionador pessoal: um contratipo40 positivo do consumidor burguês e do
colecionador particular contemporâneo que opera, agora, no padrão de consumo de bens
duráveis. Diferentemente do consumidor que é levado a acumular objetos para exibi-los como
capital ou para usá-los, o colecionador verdadeiro, diz Benjamin, libera as coisas das “amarras
da utilidade.” Benjamin considera decisivo no ato de colecionar o fato de “que o objeto seja
desassociado de todas suas funções originais para iniciar a relação mais próxima possível com
seus equivalentes. Isto é o diametralmente oposto ao uso e existe sob a curiosa categoria de
integridade.”41
Aqui, o princípio de equivalência que nivela objetos às medidas de seus valores de
troca, e que Broodthaers parece atacar na aplicação dos números “Fig.” na Seção de Cinema de
seu museu, é valorizado na situação da coleção pessoal. Broodthaers também parece
reconhecer este fato, já que os números “Fig.” que aparecem legendando as imagens em Ma
Collection podem ser vistos como um esforço para formar novas relações forjadas pelo
colecionador “verdadeiro.”42 Essas relações, as quais Benjamin chama de “círculo mágico,”
permitem a cada objeto esfoliar-se em vários lugares da memória. “Colecionar,” diz ele, “é
uma forma de memória prática e, entre as manifestações profanas de ‘proximidade,’ a mais
convincente.”43
Esta estrutura, na qual duas formas opostas de equivalência – a do intercâmbio e a da
proximidade – podem convergir num só objeto, é uma condição dialética em que tudo que
existe dentro do capitalismo – todo objeto, todo processo tecnológico, todo tipo social – é
entendido como investido de uma valência dupla: negativa e positiva, como um objeto e sua
sombra, como a percepção e sua pós-imagem. Isto é o que liga tipo e contratipo, ou, no caso
dos bens de consumo, produz aquilo que Benjamin chama de “a ambivalência entre seus
elementos utópico e cínico.”44
No decorrer do tempo, o elemento cínico ganha o jogo, sem dúvida nenhuma. Mas
Benjamin acreditava que no nascimento de uma determinada forma social ou processo
40 Internegativo (nota da tradução).41 Walter Benjamin, Das Passagen-Werk (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1982), vol. I, p. 277, citado em Crimp, op. cit., p. 72.42 Os números “Fig.” em Ma Collection são consecutivos, diferente do caráter randômico que Broodthaers utiliza como princípio de numeração na exposição “Section des Figures” (“The Eagle from the Oligocene to the Present”), ou da qualidade aleatória da aspersão das “Fig. 1,” “Fig. 2,” “Fig. A,” etc. 43 Ibid., p. 73. 44 Isto é de Walter Benjamin, Charles Baudelaire: A Lyric Poet in the Era of High Capitalism, trad. Harry Zohn (London: New Left Books, 1973), p. 165, citado em Crimp, op. cit., p. 80.
tecnológico, a dimensão utópica estava presente e, além disso, que é precisamente no momento
de obsolescência dessa tecnologia que ela libera, uma vez mais, sua dimensão, como o último
brilho de uma estrela que morre. Portanto, a obsolescência, lei verdadeira da produção de bens
de consumo, tanto libera o objeto ultrapassado das garras da utilidade quanto revela a promessa
vazia daquela lei.45
A atração profunda de Broodthaers para com as formas do ultrapassado tem sido notada
por seus vários críticos. Seu sistema de referências enfoca principalmente o século XIX, seja
por meio de seus Ingres e Courbets na primeira manifestação de seu museu, seja por seus
exemplos tirados de Baudelaire e Mallarmé em seus livros e exposições, seja pelos panoramas
e jardins de inverno em seus modelos para espaços sociais. De fato, como Benjamin Buchloh
comentou, esta “aura datada da cultura burguesa do século XIX, que muitos de seus trabalhos
parecem sugerir, podem facilmente seduzir o observador e fazê-lo descartar a obra como sendo
obviamente obsoleta e nem um pouco preocupada com os pressupostos da arte
contemporânea.”46
Entretanto, Crimp sugere que o poder que Walter Benjamin investiu no ultrapassado
deve ser reconhecido na sua utilização por Broodthaers – como, por exemplo, na sua
compreensão do colecionador “verdadeiro.” Benjamin esperava poder libertar esse poder, por
meio de suas explorações nos campos históricos das formas do século XIX. Em seu projeto
Passagens, propõe: “Nós estamos aqui, construindo um despertador que acorda o kitsch do
século passado numa ‘re-cordação.’”47 A arqueologia de Benjamin era retrospectiva pois era
uma função do fato de que ele acreditava que seu ponto de vista só poderia deslanchar do lugar
da obsolescência. Como ele próprio notou: “Somente na extinção, o [verdadeiro] colecionador
é compreendido.”48
5
O colecionador verdadeiro não era, entretanto, a única figura ultrapassada por quem
Broodthaers se sentia atraído. Também admirava o cineasta dos primórdios do cinema, quando
45 Ver Susan Buck-Morss, The Dialectics of Seeing: Walter Benjamin and the Arcades Project (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1989), pp. 241-5.46 Benjamin H. D. Buchloh, “Formalism and Historicity – Changing Concepts and American and European Art since 1945,” in Europe in the Seventies: Aspects of Recent Art, cat. ex. (Chicago: The Art Institute of Chicago, 1977), p. 98.47 Walter Benjamin, Das Passagen-Werk, op. cit., p. 271, citado em Crimp, op. cit., p. 73.48 Walter Benjamin, “Unpacking my Library” (1931), in Illuminations, trad. Harry Zohn, (New York: Schocken Books, 1969), p. 67.
a produção cinematográfica era naturalmente artesanal, como os filmes dos Irmãos Lumière ou
as operações em sociedade anônima de D. W. Griffith e Chaplin (como Biografia ou S. e A.).
Quando Broodthaers começou a fazer filmes a sério, de 1967 até o começo dos anos 1970, ele
formatou sua produção exatamente segundo este molde. Imitou os gestos dos atores cômicos
do cinema-mudo, particularmente de Buster Keaton, capturando o sentido espantoso de
persistência teimosa diante de adversidades sem fim, irradiado por eles. Broodthaers
reproduziu o olhar primitivo do início do cinema com suas exposições desiguais combinadas
juntas e seu andar tremeluzente.
O tipo de atividade espontânea representada neste modelo se tornaria obsoleto devido à
industrialização do cinema nas mãos dos grandes estúdios em Hollywood e na Europa. Isso se
tornou um assunto para o cinema estruturalista que estava sendo feito no final dos anos 1960,
no contexto da Anthology Film Archives, em Knokke-le-Zoute, na costa da Bélgica, um evento
que Broodthaers freqüentou duas vezes.49 A demonstração de que era possível desafiar o
sistema e fazer filmes de maneira elementar, com praticamente nenhum dinheiro e a partir de
restos e sobras de estoques antigos, como era mostrado em Knokke pelos americanos e
canadenses, influenciou, sem sombra de dúvida, os primeiros experimentos cinematográficos
de Broodthaers. Mas – apesar de muito americanos considerarem esse desafio a Hollywood
como um movimento progressivo, de vanguarda, como a oportunidade para uma concentração
modernista do disparate da produção hollywoodiana em um vetor único, estrutural, que
revelaria a natureza do próprio filme – Broodthaers fazia uma leitura retrógrada, um retorno à
promesse de bonheur abarcada nos primórdios do cinema.
Partilhando do ponto de vista modernista do cinema estruturalista, Broodthaers não
estava negando o filme como medium. Ele entendia o medium na luz da abertura prometida
pelos primeiros filmes, uma abertura capturada na armadilha da imagem, da mesma forma
como a irresolução tremeluzente da ilusão de movimento produzia a dilatação da experiência
da visão: uma mistura fenomenológica de presença e ausência, urgência e distância. Se, neste
49 Apesar de Broodthaers ter feito dois filmes anteriores, La Clef de l’Horloge (1957) e Le Chant de ma Génération (1959) – o primeiro, uma retomada do começo do cinema “experimental,” como o Ballet mécanique de Léger, e o segundo, uma compilação de filmes utilizando documentários existentes –, foi em 1967, com Le Courbeau et le renard, que Broodthaers começou a trabalhar intensamente com filme e parece desenvolver seu sistema particular de experimentação neste medium. Este foi também o ano em que Wavelenght, de Michael Snow, ganhou o primeiro prêmio no Knokke Experimental Film Festival. Jacques Ledoux, fundador do festival, foi o cabeça do Royal Film Archives, em Bruxelas, que funcionava como um arquivo do mesmo tipo de repertório cinemático que privilegiava o Anthology Film Archives. Em seu ensaio “Le Cinéma Experimental et les fables de La Fontaine. La raison de plus fort,” escrito em razão de sua exposição “Le Coubeau et le Renard,” Broodthaers descreve o filme de Snow em detalhes. Ele o compara ao filme “estruturalista” europeu, particularmente a Selbstschüsse do cineasta alemão, Luc Mommartz (Marcel Broodthaers: Cinéma, Barcelona: Tapiès Foundation, 1997, pp. 60-1; meus agradecimentos a Maria Gilissen por chamar minha atenção a esta referência e a Mommartz.)
sentido, o meio do filme primitivo resistiu ao fechamento estrutural, ele permitiu que
Broodthaers visse o que os estruturalistas não viram: que o aparato fílmico nos apresenta um
medium cuja especificidade se encontra em sua condição de diferente de si mesmo. Ele é
agregativo, um corpo de suportes integrados e convenções sedimentadas. Os estruturalistas
esforçaram-se para construir a sinédoque fundamental para o “próprio” filme – ação reduzida e
sumarizada no movimento derradeiro da câmera (o zoom de Snow), ou a ilusão fílmica
tipificada na dissecação da persistência da visão do filme tremeluzente (no trabalho de Paul
Sharits) – algo que, como qualquer forma simbólica totalizante, seria unitário; Broodthaers
honrou a condição diferencial do filme: sua relação inextricável entre simultaneidade e
seqüência, suas demãos de som ou texto sobre a imagem.
Como Benjamin havia previsto, nada traz a promessa, codificada no nascimento de uma
forma tecnológica, de um brilho tão efetivo quanto a queda na obsolescência de suas etapas
finais de desenvolvimento. O equipamento portátil televisivo que assassinou o Cinema
Independente Americano foi somente esta declaração de obsolescência do cinema.
6
Se estou persistindo no exemplo de Marcel Broodthaers no contexto da condição do
pós-medium, é porque ele se posiciona em, e representa assim o que eu gostaria de ver como o
“complexo” dessa condição. Broodthaers – o suposto orador para a intermedia e o fim das
artes – não obstante teceu para sua obra um forro interno que tem que ser chamado redentor.
Estou pegando essa noção de redenção de Walter Benjamin, de quem a idéia do contra-tipo –
como a pós-imagem dialética de um papel social agora reificado e corrompido sob o
capitalismo – parece operar sobre parte das atividades de Broodthaers como colecionador. E
futuramente, a análise da fotografia que Benjamin construiu pode ser vista deslizar sobre a
prática de filme de Broodthaers.
Primeiramente pode parecer inacreditável, pois, assim como Broodthaers, Benjamin é
famoso por uma atitude desconstrutiva para com a própria idéia de um medium. Para esse fim,
ele usou a fotografia, não somente como uma forma que corrói sua própria especificidade – já
que força a imagem visual à dependência de uma legenda escrita – mas como uma ferramenta
para atacar a idéia de especificidade para todas as artes. Isso é porque o estatuto da fotografia
como um múltiplo, uma função da reprodução mecânica, reestrutura a condição das outras
artes. Como exemplo, Benjamin explicou que “a obra de arte reproduzida, torna-se cada vez
mais a reprodução de uma obra de arte que assenta na reprodutibilidade”. E o que se segue
disso é que, se tornando presas das leis da comercialização, a obra de arte específica, assim
como os mediums de arte específicos, adquire a condição de equivalência comum, perdendo
desse modo a unicidade da obra – o que Benjamin chamava de “aura” – assim como a
especificidade de seu medium.
Mas longe de ser uma pura celebração desse estado de acontecimentos, a abordagem
de Benjamin da fotografia era também moldada em sua atitude retrospectiva, que é por assim
dizer, seu senso de que, como um fóssil de seu nascimento, o estágio ultrapassado de uma
dada forma tecnológica pode trair o obverso redentor daquela própria tecnologia. No caso da
fotografia, essa outra premissa estava codificada no caráter amador, não-profissionalizado da
prática pré-comercializada, de artistas e escritores, tais quais Julia Margaret Cameron, Victor
Hugo e Octavius Hill, que tiravam fotos de seus amigos. Também tinha a ver com o tempo da
pose exigido pelas suas obras, durante o qual havia uma possibilidade de humanizar o olhar,
que é por assim dizer, o escapar do sujeito de sua própria objetivação nas mãos da máquina.47
O refúgio que Broodthaers utilizou em uma prática do cinema primitivo trai esse
mesmo pensamento das possibilidades redentoras codificadas no nascimento de um dado
suporte técnico. E é esta idéia que eu gostaria que fosse vista como atuando em toda a
produção de Broodthaers, como uma luz paralela brilhando num ângulo estranho sobre uma
superfície, que traz a tona uma estrutura topográfica inteiramente nova. Se não tenho espaço
para dar nada uma demonstração completa disso, eu ainda assim sugeriria que o modelo
fílmico é um subconjunto de uma contemplação maior sobre a natureza do medium,
conduzida através da guisa do que acredito ter funcionado como o medium mestre para
Broodthaers – a própria ficção –, como quando Broodthaers se referiu ao seu museu como
“uma ficção”. Ficção sempre pareceu conter um aspecto revelatório para ele; como ele mesmo
colocou a diferença entre os museus oficiais e seu próprio: “uma ficção permite-nos
compreender a realidade ao mesmo tempo que o que a esconde.”48
O que está em questão no contexto de um medium, entretanto, não é somente essa
possibilidade de explorar o ficcional para desmascarar as mentiras da realidade, mas produzir
uma análise da própria ficção em relação a uma estrutura específica. E era somente essa
estrutura de um “atrás de” espacial, ou em camadas, que era para ele uma metáfora da
condição de ausência que está no coração da ficção.
47 Walter Benjamin, “Pequena História da Fotografia”, em Rua de Mão Única e Outros Escritos, trad. Edmund Jephcott e Kingsley Shorter (London: New Left Books, 1979). Para uma discussão mais profunda, veja meu “Reinventing the Medium”, op. cit.48 Comunicado à imprensa sobre “Musée d’Art Moderne, Département des Aigles, Sections Art Moderne et Publicité” (Kassel, 1972), reimpresso em Marcel Broodthaers, 1991, op. cit., p. 227
Fica claro que o romance como o suporte técnico, através do qual a ficção foi
convencionalizada durante o século dezenove, era de um interesse particular para
Broodthaers, não somente pelas suas declarações, como aquela em que ele, referindo-se à
exposição “Theory of Figures” [Teoria das Figuras], ele vê os objetos carregados de números
“Fig.” como “usando um caráter ilustrativo referindo-se a um tipo de romance sobre a
sociedade”.49 Isso também se concretiza em sua produção de obras com o formato de livros.
Um desses livros, Charles Baudelaire. Je hais le mouvement qui déplace les lignes
(1973) (Eu odeio o movimento que desloca as linhas), é um acoplamento específico com o
poder revelatório do romance. Em seu desenvolvimento peculiar de um poema de Baudelaire,
a forma seqüencial e romantizada do livro é feita, não somente para expor como auto-ilusória
a crença romântica na poesia como forma de total imediatez – um colapso da diferença entre
sujeito e objeto – mas também para abrir essa imediatez para seu verdadeiro destino temporal,
no qual o sijeito jamais pode se tornar idêntico a si mesmo. Baseado no poema de Baudelaire
“La Beauté” [A Beleza], onde o imediatismo subjetivo ganha voz por uma escultura
vangloriando-se da maneira que sua própria auto-suficiência e presença simultânea é capaz de
simbolizar a infinidade de um todo perfeito (“Je suis belle, ô mortels! comme un rêve de
pierre” [Eu sou bela, ó mortais! Como um sonho de pedra]), o livro pontua suas visões sobre
o esvaziamento dessa própria noção de simultaneidade.
Imprimindo o poema em sua totalidade na primeira página, que é marcada “Fig. 1”,
Broodthaers singulariza em vermelho a linha do verso através da qual a escultura desafia
qualquer desenvolvimento temporal de sua forma perfeita, aquela em que se lê, “I hate the
movement that shifts the lines” [Eu odeio o movimento que desloca as linhas]. Entretanto,
durante todas as páginas seguintes do livro, Broodthaers procede em direção a esse
deslocamento ou desvio, enquanto o verso em si vai se depositando no movimento de seu
próprio horizonte que desaparece, com cada palavra consignada à parte inferior de uma única
página.
Poderia se objetar que com essa revisão do poema de Baudelaire, Broodthaers está
simplesmente seguindo o exemplo do “Un coup de dés” [Um lance de dados], de Mallarmé,
no qual as palavras do título (“Un coup de dés jamais n’abolira le hasard” [Um lance de
dados jamais abolirá o acaso]) estão similarmente estendidas ao longo da parte inferior de
diversas páginas, o próprio texto do poema feito radicalmente espacial pela irregularidade e
dispersão das linhas em todas as páginas, algumas vezes até correndo através da margem do
49 Marcel Broodthaers, após uma entrevista por Irma Lebeer, “Ten Thousand Francs Reward” (Recompensa de Dez Mil Francos), October, no. 42 (Outubro 1987), p. 110
livro, para transformar os versos em algo como uma imagem. O argumento desse paralelismo
pode ser afirmado ainda mais pelo polvilhamento de números “Fig.” na parte superior das
páginas do Baudelaire de Broodthaers, reconhecendo a maneira como Un coup de dés
transforma a condição seqüencial da escrita no campo simultâneo do olhar num movimento ao
qual Broodthaers freqüentemente referia-se. “Mallarmé está na fonte da arte moderna”, ele
explicaria. “Ele inventou involuntariamente o espaço moderno”.50
Mas o próprio entendimento de Broodthaers da estratégia de Mallarmé opõe-se ao que
o livro Baudelaire apresenta. Primeiro, a condição real da notação “Fig.” de Broodthaers
insiste no estatuto incompleto ou fragmentário da palavra, sua resistência à possibilidade da
imagem algum dia ser totalmente (auto-) presentativa: como sua questão “But the Fig. as a
theory of the image?” [Mas a Fig. como uma teoria da imagem?] sugere, “Fig.” teoriza a
imagem para dentro do estatuto de ficção auto-excludente e deslocante.51 Nesse sentido, a
“Fig.” questiona, ao invés de imitar, o estatuto caligramático das páginas de Mallarmé. E
segundo, a maneira como a seqüencialização funciona em Baudelaire se opõe às operações em
Mallarmé. Un coupe de dés, o desenrolar devagar do título, ao longo da parte inferior da
página do poema, funciona mais como um pedal contínuo, ou como as suspensões harmônicas
que servem para transformar o fluxo diacrônico musical na ilusão de parar o coração do
espaço sincronizado de uma única corda que ouvimos, por exemplo, em Debussy. A dilatação
que somos feitos a experimentar no Baudelaire, é muito diferente, reforçada ao ser reencenada
no filme que Broodthaers concebeu no mesmo ano, A Voyage on the North Sea [Uma viagem
pelo mar do norte], no qual mais uma vez a gestalt da imagem é narrativizada (ver páginas 54-
5).
Moldando sua viagem cinemática sob a forma de um “livro”, as tomadas totalmente
estáticas do filme (cada uma durando em torno de dez segundos) alternam entretítulos –
começando com “PAGE 1” e continuando até “PAGE 15” – com imagens imóveis de barcos.
Estes começam com uma fotografia de um iate distante, solitário, visto quatro vezes enquanto
se passa da página um à página quatro, então substituído por uma pintura do século dezenove
de um barco de pesca a vela, o qual é mostrado em vários detalhes em páginas sucessivas.
O primeiro desses detalhes, executando o pulo radical da cena panorâmica marítima,
com suas escunas e balsas, para um gigante close-up da textura da tela, mostra, na próxima
“página,” uma vista tão próxima da dobra ondeante da vela principal que ela se torna parecida
50 Do catálogo para “MTL-DTH”, citado em Anne Rorimer, “The Exhibition at the MTL Gallery in Brussels, March 13 – April 10, 1970”, October, no. 42 (Outono 1987), p.110 51 Ver nota 33, acima.
com uma pintura abstrata, apenas para, após o anúncio da próxima página, mostrar outra vista
de textura de tela que desfila como um tipo de monocromo radical. Essa progressão talvez
sugira que a narrativa convocada pelo “livro” pertence à história da arte, telescopiando por
três páginas sucessivas, a história da troca modernista do espaço profundo necessário para a
narrativa visual, pela superfície cada vez mais achatada, que agora se refere somente a seus
próprios parâmetros, a “realidade” do mundo suplantado pela realidade dos dados pictoriais.52
Mas na próxima “página,” o detalhe monocromático novamente recua para uma visão
completa da escuna, e Broodthaers embaralha, em movimentos sucessivos, a conta de uma
progressão modernista.
O que nos é oferecido em lugar dela é a experiência de uma passagem entre diferentes
superfícies, em uma estratificação que desenha uma analogia entre as páginas empilhadas de
um livro e a condição aditiva da mais monocromática das telas, que, por mais objetivada que
seja, deve mesmo assim aplicar tinta sobre um suporte. Certamente, à maneira que as
“páginas” do livro se desenrolam, essa viagem parece ser de uma busca para as origens da
obra, tal “origem” sendo suspensa igualmente entre a materialidade da tela plana da obra (a
“origem” modernista) e a imagem projetada naquela superfície opaca, como o índice do
desejo originário do espectador de transformar qualquer momento dado da experiência em
algo além de si próprio (realidade como “origem”). Então, tanto circundando quanto
encenando tal desejo, a ficção é o reconhecimento dessa incompletude. É a forma que uma
falta indisciplinável de auto-suficiência assume quando dispara em busca de seu próprio
começo ou de seu próprio destino como uma maneira de imaginar a possibilidade de alcançar
o todo. É a tentativa impossível de transformar sucessão em neutralidade, ou uma corrente de
partes em um todo.
52 As filmagens marítimas em A voyage on the North Sea são tiradas parcialmente de um filme um pouco anterior, Analyse d’une Peinture [Análise de uma Pintura], reeditadas com os entretítulos de cada página e os instantes fotográficos dos barcos de navegação tirados por Broodthaers. Em uma entrevista conduzida na ocasião da exposição de 1973 das Literary Paintings [Pinturas literárias] de Broodthaers, aonde Analyse d’une Peinture foi projetado, Benjamin Buchloh e Michael Oppitz questionaram o artista sobre o filme. Em suas questões a Broodthaers, Buchloh considera o filme como uma alegoria ao modernismo, uma que analisa e ataca suas auto-certezas: “Sua maneira de repetir ironicamente os gestos pictóricos de redução e aniquilação em filme – não são os mesmos princípios obsoletos e retardataire que determinam sua análise de pintura também?” As respostas de Broodthaers a isso são singularmente resistentes: “É a ferramenta de análise realmente suficiente para ‘funcionar’?” ele pergunta em um determinado momento. Em outro, ele parece se opor à idéia de que seu filme lide, como Buchloh insiste, “com o problema da pintura”. “Não com a pintura como um problema”, ele diz, “mas com a pintura como um assunto [subject]. Se, na sua opinião, existe um problema da pintura, eu reivindico ter tratado o filme sobre o qual estamos falando em um estilo que transforma esse problema”. (Marcel Broodthaers: Cinéma, op. cit. , pp. 230-1).Meu ponto de vista é que, quando Broodthaers usa a palavra assunto [subject], como ele faz acima – “pintura como um assunto” – ele está freqüentemente apontando não para algo como tema ou conteúdo, mas para a questão do medium.
A história modernista que bradou o suposto “triunfo” do monocromo acreditava que
tinha produzido esta totalização em um objeto que era totalmente coextensivo com suas
próprias origens: superfície e suporte em uma unidade indivisível; o medium da pintura tão
reduzido a zero que nada sobrava além de um objeto. O recurso de Broodthaers à ficção fala
da impossibilidade dessa história na encenação de um tipo de estratificação que pode
substituir, ou alegorizar, a condição auto-diferencial dos mediums.
Quando Broodthaers se refere ao romance, em sua definição de uma “Teoria das
Figuras”, eles fala sobre a complexidade que ele espera ter alcançado com os objetos lugar-
comum como cachimbos e espelhos que “ilustram” esse trabalho. “Eu nunca teria obtido esse
tipo de complexidade”, ele diz, “com objetos tecnológicos, cuj a singularidade condena a
mente à monomania: arte minimalista, robô, computador”.53
Em tal observação estão dobrados dois componentes do argumento que dessa minha
meditação sobre o medium. Primeiro, que a especificidade dos mediums, até mesmo os
modernistas, deve ser entendida como diferencial, auto-diferenciada, e assim como uma
estratificação de convenções nunca simplesmente ruídas à materialidade de seus suportes.
“Singularidade”, como Broodthaers diz, “condena a mente à monomania”.54 Segundo, que é
precisamente o estabelecimento de ordens superiores de tecnologia – “robô, computador” –
que nos permite, ao considerar tecnologias antigas obsoletas, captar a complexidade interior
dos mediums que essas técnicas suportam. Nas mãos de Broodthaers, a própria ficção se
tornou esse medium, essa forma de especificidade diferencial.
7
Frederic Jameson caracteriza a pós-modernidade como uma saturação total do espaço
cultural pela imagem, seja, colocada nas mãos da propaganda, dos meios de comunicação, ou
do meio virtual. Ele diz que essa completa permeação da imagem na vida social e cotidiana
significa que a experiência estética está em todo lugar, numa expansão cultural que não só fez a
idéia de um trabalho artístico individual totalmente problemática, mas que também esvaziou o
conceito de autonomia estética. Neste estado, no qual “tudo está totalmente traduzido para um
universo familiar e visível [incluindo todas as críticas a esta situação],... a atenção estética”, ele
diz, “encontra-se substituída pelo ato de perceber, como tal”. Isto é o que ele chama de “nova
vida da sensação pós-moderna”, no qual “o sistema perceptual do capitalismo recente”
53 Marcel Broodthaers, “Then Thousand Francs Reward” (Recompensa de Dez Mil Francos), op. cit., p. 43.54 Ibid.
experimenta tudo – desde o consumo até todas as formas de lazer como estética. Desse modo
ele faz tudo o que pode ser adequadamente chamado de esfera estética ... obsoleto.55
Uma descrição da arte, nesse regime da sensação pós-moderna, é que ela mimetiza uma
situação de parasitismo para com a estética, jogando o resultado dessa operação em toda a
esfera social. No entanto, dentro desta situação existem alguns artistas contemporâneos que
decidiram não seguir essa prática; isto é, que decidiram não empenhar-se numa tendência
internacional de trabalhos de instalação e arte inter-mídia, na qual a arte encontra-se
essencialmente como cúmplice de uma globalização da imagem a serviço do capital. Esses
mesmos artistas também resistiram ao recuo para a palidez das formas tradicionais dos
mediums – como por exemplo a pintura e a escultura. Ao invés disso, artistas como James
Coleman ou William Kentridge abraçaram a idéia da especificidade diferencial, que é assumir
o medium como ele realmente é – e que eles entendem ser algo a ser reinventado ou
rearticulado.56 O exemplo de Marcel Broodthaers, que eu venho apresentando aqui, tem sido
fundamental para esta tarefa.
55 Frederic Jameson, A virada cultural, op. cit, pp. 110-112.56 Já citado em partes anteriores do texto (nota 19). Eu tenho discutido o trabalho de James Coleman e Jeff Wall sob tais considerações. Num estudo subseqüente sobre William Kentridge eu focarei nisto também.
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