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UniFMU
Curso de Direito
ABOLICIONISMO PENAL
Allan Valêncio Bulcão R.A: 454.724-7
3109 C Fone: 9143.7775
avb2001@terra.com.br
SÃO PAULO 2005
2
UniFMU
Curso de Direito
ABOLICIONISMO PENAL
Allan Valêncio Bulcão R.A: 454.724-7
Professor-Orientador Dr. Edson Luz Knippel
Trabalho de Curso apresentado ao Curso de Direito da Uni-FMU como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob a
orientação do Professor Edson Luz Knippel.
SÃO PAULO 2005
3
Avaliação do Trabalho de Curso
Banca examinadora do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas - UniFMU
___________________________ Professor-Orientador
Dr. Edson Luz Knippel Nota: _____(___________)
___________________________ Professor-Argüidor
Dr(a)_______________________ Nota: _____(___________)
___________________________ Professor-Argüidor
Dr(a)_______________________
Nota: _____(___________)
São Paulo 2005
4
“O futuro pertence àqueles que acreditam na beleza dos seus sonhos”. Roosevelt
A meus queridos pais. Sem eles nada poderia fazer.
5
Meus sinceros agradecimentos ao ilustre
professor Edson Luz Knippel. Pela dedicação e apoio oferecidos.
6
Sumário
1. Introdução........................................................................................................... 01
2. Movimento de política criminal
2.1 Conceito.............................................................................................................. 03
2.2 O cenário atual da política criminal no Brasil e no mundo.................................. 06
3. Teoria abolicionista
3.1 Considerações iniciais.........................................................................................13
3.2 A "cifra negra" da criminalidade...........................................................................20
3.3 O sistema seletivo e marginalizador do direito penal...........................................26
3.4 Corrupção e violência nos órgãos do sistema penal............................................32
3.5 A ineficiência da "prevenção geral" ....................................................................35
3.6 A solução estereotipada do direito penal .......................................................... 37
4. Considerações Finais ........................................................................................ 39
5. Bibliografia ......................................................................................................... 43
7
Introdução:
A pesquisa aborda diversos tópicos que dizem respeito a aspectos
jurídicos, sociológicos, criminológicos e históricos sobre a existência, validade e
eficiência do sistema penal baseando-se na teoria abolicionista.
O movimento acadêmico e social que reveste a pesquisa disserta sobre o
abolicionismo penal, rompendo com conceitos de crimes, indivíduos lesivos à
sociedade, bem como teorias explicativas e legitimadoras do sistema penal.
O trabalho apresentado desenvolve inicialmente algumas noções básicas
sobre o movimento de política criminal. Tal abordagem se torna necessária, pois
inclusive alguns defensores do abolicionismo penal vêem na descriminalização uma
etapa necessária para que se possa alcançar o objetivo abolicionista.
Conceitos de política criminal, descriminalização, despenalização, direito
penal e criminologia se fazem necessários pois há estrita ligação e idéias
convergentes entre eles. A descriminalização pode sim ser o primeiro passo a uma
sociedade sem pena.
Na segunda etapa da pesquisa são dadas algumas idéias iniciais sobre a
teoria abolicionista.
São abordados alguns conceitos sobre o significado do movimento e
também uma idéia geral sobre o que compõe o pensamento e ideal do abolicionismo
penal.
A exposição de conceitos importantes como a idéia de substituir a
definição de crime por “situação-problema”, dando ênfase sobre a questão, e a
dissertação minuciosa dos aspectos dessa brutal diferença é de extremo valor para
8
que se concretize o desenvolvimento da pesquisa através dessa premissa básica
abolicionista.
Algumas condutas que atualmente não são repreendidas pelo
ordenamento jurídico penal, mas que em outras épocas eram previstas, são
exemplificadas para que se demonstre que o crime não possui uma realidade
ontológica.
Nessa etapa do trabalho afirma-se, desde já, que o abolicionismo penal
não possui soluções pré-estabelecidas para que não se criem expectativas sobre
reais situações que possam ser tipificadas e resolvidas como ocorre no direito penal
vigente.
A “cifra negra” da criminalidade é conceituada, desenvolvida e
problematizada sob o ponto de vista prático, dando exemplos cotidianos da
existência da mesma. Nessa fase da pesquisa verifica-se que apesar dos esforços
das autoridades para a manutenção da ordem social, o resultado obtido é cada vez
menos satisfatório, visto que grande parte dos episódios vistos à luz do direito penal
como crimes nem chegam ao conhecimento das autoridades policiais e judiciárias.
Ponto de extrema relevância diz respeito ao sistema marginalizador e
seletivo que envolve o sistema penal. A problematização do assunto torna-se um
mister pois o tratamento dado entre crimes de algumas espécies, que normalmente
são cometidos por indivíduos de classes sociais desprivilegiadas, e outros, como na
hipótese dos crimes de “colarinho branco” torna o sistema repressor alvo de severas
críticas sobre sua legitimidade e justiça social.
A corrupção que está inserida nos órgãos do sistema penal é ponto de
destaque da pesquisa através de reflexões sobre casos públicos e notórios,
divulgados recentemente nos meios de comunicação, como outro alvo que minimiza
a legitimidade do sistema repressor vigente.
A violência policial também é abordada no decorrer do tema.
9
A “prevenção geral” que é uma das principais razões de existência do
direito penal é severamente criticada pelos abolicionistas. Durante a pesquisa
desenvolve-se a idéia inicial que legitima a “prevenção geral”, bem como a aplicação
de penas para os episódios considerados crimes pelo ordenamento jurídico,
considerando os aspectos sociológicos e psicológicos que envolvem o tema.
A falta de sensibilidade do sistema penal diante da multiplicidade que faz
parte da essência humana faz com que todas as soluções para os conflitos
semelhantes sejam idênticas. A pesquisa disserta sobre o assunto de acordo com a
ótica abolicionista, demonstrando a ineficiência de soluções estereotipadas.
O trabalho foi desenvolvido a partir de diversas obras e artigos sobre
abolicionismo penal, descriminalização, direito penal e criminologia.
10
Movimento de Política Criminal:
Conceito:
Entende-se por política criminal, em linhas gerais, as medidas adotadas
para que se tenham respostas às condutas criminosas. Trata-se de “um conjunto de
procedimentos por meio dos quais o corpo social organiza as respostas ao
fenômeno criminal”. 1
A política criminal objetiva oferecer respostas que ao menos minimizem,
de forma significativa, a prática de crimes, visando a paz social. São medidas
práticas de cunho preventivo e repressivo no meio social que influenciem na
diminuição da ocorrência de delitos.
É comum a confusão entre conceitos de política criminal, criminologia e
direito penal. Paulo Queiroz assevera que a criminologia ocupa-se do crime
enquanto fato; já a política criminal enquanto valor; e o direito penal enquanto
norma.2
O direito penal, a partir dessa premissa, compreende a norma geral e
reguladora do sistema penal. Em contrapartida, a política criminal ocupa-se com a
análise da situação da criminalidade em determinado local, objetivando soluções
para a diminuição dos delitos. Apesar de haver estrita relação entre os dois, a
política criminal se destaca do direito penal.
1 DELMAS MARTY, Mireille. Modeles et Mouvements de Politique Criminelle. Paris: Econômica, 1983. 2 QUEIROZ, Paulo. É realmente possível distinguir direito penal de política criminal? Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto136.htm#_ftn1 . Acesso em: 22 jan. 2005.
11
A criminologia, iniciada de forma acadêmica a partir de Cesare Lombroso,
preocupa-se com o estudo do delinqüente, ou seja, um estudo global do homem
criminoso. 3
A criminologia não só cuida do perfil sociológico e mental do delinqüente,
mas também se preocupa com a vítima e o crime para que se possa chegar a um
veredicto sobre a criminalidade e consiga se desenvolver uma política criminal
adequada às necessidades da sociedade analisada.
O direito penal, em suma, engloba a letra da lei, a norma repressora que
tipifica as condutas que o Estado entende como negativas ao bom convívio social e
manutenção da “paz”. Além disso, traz conceitos e princípios estruturais para que a
lei possa ser interpretada segundo alguns parâmetros mais amplos. A partir daí, por
exemplo, o juiz pode deixar de aplicar determinada norma baseando-se em um
princípio. A título de exemplo, há o princípio da insignificância, ou seja, na hipótese
de furto de irrisória quantia de dinheiro o juiz, para evitar injustiças ou mesmo
exageros na aplicação da norma, pode se valer de tal princípio, livrando o réu da
reclusão em razão de ínfima quantia obtida de forma ilegal.
A política criminal possui atualmente vida própria, destacando-se do
campo do direito penal. Paulo Queiroz afirma:
“Constata-se hoje que a política criminal se desligou tanto do Direito Penal
quanto da Criminologia e da Sociologia Criminal e adquiriu um significado
autônomo”. 4
A norma penal é mutável, bem como a política criminal adotada varia de
acordo com as tendências mais ou menos repressivas para atender às expectativas
3 No curso sobre Patologia Forense, oferecido como matéria extracurricular pelo UniFMU, o professor Antonio José Eça aborda o tema da criminologia. A partir da psiquiatria ele disserta sobre a estruturação da vida psíquica normal de um indivíduo. Em linhas gerais, para que determinada pessoa possa ser considerada normal seus principais impulsos, quais sejam: Pensar, Sentir, Querer e Agir, bem como o modo de reação a esses estímulos em situações momentâneas e durante a vida devem seguir linhas tênues. Qualquer ocorrência fora do comum pode resultar na ocorrência de delitos.
12
da sociedade. Verifica-se que a existência de novas espécies de crimes varia de
acordo com o meio social vivido. Em cidades urbanas como São Paulo, por exemplo,
a tendência é que ocorram mais crimes como furto de veículos, seqüestros,
homicídios, entre outros. Já em cidades rurais, a incidência de crimes dessas
espécies já não ocorre com tanta freqüência.
A partir dessa conclusão fica claro que a política criminal adotada nos dois
locais será diferente. A norma é a mesma, mas o modo de reação do Estado é
distinto, sem que seja ignorada a norma comum. A reação estatal diante de uma
situação de delitos será inegavelmente distinta em locais cujos modos de viver não
são iguais. Óbvio, pois a organização da polícia, as técnicas de prevenção e
combate a crimes deverão ser diferentes nos dois locais para que se possa chegar a
um resultado satisfatório.
A política criminal atua em dois campos distintos:
- Legislativo: Onde são elaboradas as normas de acordo com o interesse
estatal à época, e se observam as normas que não possuem mais razão de
permanecer no ordenamento jurídico por falta de interesse, ou mesmo em razão da
mudança de valores, costumes e evolução histórica.
- Jurisprudencial: Aplicada aos tribunais onde se problematizam as
questões criminais sob o ponto de vista jurídico, de validade e aplicabilidade da
norma.
Cria-se “modos de reação” do sistema judiciário diante de questões
semelhantes, visando a aplicabilidade de tais tendências jurisprudenciais aos casos
levados ao conhecimento do Estado-juiz.
A política criminal além de criar estratégias de prevenção e combate à
criminalidade visa atuar de forma incisiva com políticas públicas de cunho social,
4 QUEIROZ, Paulo. Idem.
13
bem como cuidar da administração da justiça criminal e da execução das penas e
das medidas de segurança.
14
O cenário atual da política criminal no Brasil e no mundo:
Com o crescimento desenfreado da criminalidade no Brasil e no mundo, a
tendência encarceradora tem aumentado significativamente. A influência da mídia ao
expor crimes bárbaros faz com que a sociedade clame por uma justiça mais severa.
O senso comum acredita piamente que o aumento na rigidez das normas
penais seria a solução para as questões criminais.
Ledo engano.
Diversos estudos já comprovaram que penas mais repressivas, bem como
essa “inflação legislativa” no campo das normas penais não resolvem a questão da
criminalidade e, além disso, trazem outros problemas no que diz respeito aos efeitos
dessa política criminal exagerada.
Altos custos para manutenção de um sistema que cada dia aumenta o
número de condutas repreendidas pelo ordenamento jurídico penal, a não
ressocialização dos indivíduos alcançados por tais normas, o crescimento frenético
de condutas moralmente negativas são alguns dos vários problemas que são
freqüentes atualmente.
Leandro Duarte Vasques salienta:
“Uma outra constatação preocupante recai-se na fragilização dos
princípios, consagrados constitucionalmente, da legalidade e tipicidade, uma vez
que esse movimento deforma a essência do Direito Penal e Processual Penal.
Quanto ao Direito Substantivo, os tipos penais passaram a ser descritos com a
inclusão de normas elásticas e genéricas, enquanto de Direito Adjetivo, (aspecto
processual) vem sofrendo consideráveis mutações em sua forma.
15
Com essas contumazes deformações que são trazidas pelo Movimento da
Lei e da Ordem, leis são incessantemente editadas. Tal fenômeno já vem sendo
considerado, desde o decênio passado, como "inflação legislativa" ou mesmo
"esquizofrenia legislativa". 5
Para exemplificar esse aumento da repressão basta que se observe a Lei
8.072, de 25 de julho de 1990 – a Lei dos Crimes Hediondos. O clamor social,
incendiado fundamentalmente pela força da mídia e da imprensa nacional
contribuíram para que se criasse lamentável diploma legal.
A Lei dos Crimes Hediondos é uma ofensa aos direitos e garantias
fundamentais constantes na Carta Maior brasileira. O legislador constituinte privou,
por exemplo, o acusado de crime hediondo da possibilidade de livramento mediante
o pagamento de fiança e o fez insuscetível de graça ou anistia. Trata-se de uma
aberração aos direitos do homem e do cidadão.
A lei em tela, assim como diversas outras normas criadas atualmente têm
piorado ainda mais a situação do cárcere no país. Diversas condutas que poderiam
ser abolidas, ainda são mantidas pelo direito repressor, o que torna a situação
carcerária um problema de difícil solução.
O sensacionalismo que os meios de comunicação adotam facilita esse
processo cada vez maior de criminalização. Episódios mostrados diariamente nos
incontáveis programas policiais existentes fazem com que gere repercussões
perigosas diante da opinião pública.
“É, muitas vezes, graças à imprensa ávida por sensacionalismo (que
rende-lhe o providencial "Ibope") que a incansável cobertura de delitos traduzem-se
num discreto e compassado incentivo à violência.
5 VASQUES, Leandro Duarte. Reflexões acerca do direito penal vigente. Disponível em: http://www.suigeneris.pro.br/direito_dp_penalvigente.htm . Acesso em: 23 janeiro de 2005.
16
Obviamente que não se pode generalizar tal comportamento, mesmo
porque existem aqueles profissionais que dedicam-se à divulgação do fato, sem
conjecturas perigosas ou influenciados, cobrando a ação do governo, etc...
Determinadas frases impensadas, ditas por apresentadores de programas
que cobrem a seara policial, prestam-se, tão somente, para incitar as classes
desfavorecidas, provocando-lhes um sentimento de revolta, alimentando-lhes o ódio
do nefasto contraste que os distancia daqueles abastados, fazendo com que eles
sintam-se desprezados e à margem.
Definitivamente não é esse o papel da imprensa.
Alguns programas televisivos de nível subterrâneo, ao invés de semearem
o pânico social, deveriam divulgar o hercúleo trabalho desempenhado por
segmentos sociais (universidades, Ong´s, pessoas isoladas,etc...) no escopo de
minimizar ou apresentar sólidas propostas de combate à criminalidade”. 6
Nesse momento que o incentivo a penas mais rígidas prevalece, e, ao
contrário do que pensam os defensores da intervenção penal máxima, a
criminalidade aumenta a cada dia, o que gera desconforto aos responsáveis pela
política criminal no Brasil e no mundo.
Além disso, as sensações de insegurança e medo imperam na sociedade
atual com o avanço da criminalidade. Tais sentimentos trazem sérias repercussões
no meio social.
Raúl Cervini assevera que “o temor ao delito na rua pode fazer com que
as pessoas evitem freqüentar restaurantes, estabelecimentos comerciais e de lazer,
particularmente à noite, o que pode ter como conseqüência a perda de renda e a
diminuição de estímulos para a abertura de novas instalações, não apenas perdas
6 VASQUES, Leandro Duarte. Idem.
17
pessoais mas também estatais, pois a economia nacional não receberia os
rendimentos dessas fontes”. 7
Nos Estados Unidos, por exemplo, a adoção da “tolerância zero” vem
demonstrando sua ineficiência diante da criminalidade. A cada dia o número de
indivíduos atingidos pelo ordenamento repressor americano cresce
assustadoramente, e, verifica-se, que o resultado obtido com tal política é
desanimador. Na década de 90 tal teoria foi amplamente difundida nos meios de
comunicação, passando a idéia de ser um sucesso. Criada em 1982 pelo cientista
político James Q. Wilson e o psicólogo criminologista George Kelling a Broken
Windows Theory, isto é, a teoria da janela quebrada baseia-se na seguinte idéia:
“Kelling e Wilson sustentavam que se uma janela de uma fábrica ou de
um escritório fosse quebrada e não fosse imediatamente consertada, as pessoas
que por ali passassem concluiriam que ninguém se importava com isso e que,
naquela localidade, não havia autoridade responsável pelo manutenção da ordem.
Em pouco tempo, algumas pessoas começariam a atirar pedras para quebrar as
demais janelas ainda intactas. Logo, todas as janelas estariam quebradas. Agora, as
pessoas que por ali passassem concluiriam que ninguém seria responsável por
aquele prédio e tampouco pela rua em que se localizava o prédio”. 8
A partir dessa teoria da Broken Windows Theory foi desenvolvida em
Nova Iorque a política criminal de “tolerância zero”, onde os diversos delitos,
considerados graves ou leves, deveriam ser repreendidos pelo sistema penal vigente
para evitar que fosse “quebrada alguma janela” e esta ficasse sem reparo. 9
7 CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 69. 8 RUBIN, Daniel Sperb. Janelas Quebradas, Tolerância Zero e Criminalidade. Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3730 . Acesso em: 13 de fevereiro de 2005. 9 Tal teoria desconsidera a idéia que indivíduos que pretendem “quebrar janelas” irão cometer tal ato de qualquer maneira, vale dizer, havendo leis reguladoras ou não os atos serão os mesmos. O que houve em Nova Iorque na década de 90 foi uma diminuição em delitos considerados leves, como indivíduos que pulavam as catracas de metrôs e não pagavam, por exemplo. Porém, com o passar do tempo, os mesmos indivíduos que em razão da adoção de tal política criminal haviam parado de cometer tais atos voltaram a pular as catracas de metrôs, o que tornou tal política criminal obsoleta.
18
Passetti disserta sobre o tema da seguinte maneira: “Os reformadores do
sistema penal, há mais de um século, não cansam de constatar o fracasso da prisão
como forma de reeducar e reintegrar o infrator depois de passar um certo tempo
cumprindo pena. Encontram outras respostas punitivas associadas à continuidade
da prisão, como foi o caso do regime das penas alternativas. No início se imaginou
que isso levaria a uma redução do encarceramento, mas em pouco tempo se
constatou ser uma política complementar à internação, uma maneira de punir mais
as pequenas infrações seletivamente capturadas pelo sistema penal, compondo o
que ficou conhecido como política de tolerância zero”. 10
Remando contra a maré dos pensamentos repressores atuais há aqueles
que defendem uma descriminalização do direito penal, isto é, determinadas
condutas que são atingidas pelo direito, sejam elas moralmente negativas ou não,
passariam a não fazer parte do rol tipificado pelo diploma legal repressor.
Analisando o debate constante sobre a descriminalização das drogas
observam-se as injustiças ocorridas neste campo. Indivíduos que possuem uma vida
comum, mas que fazem uso de tais substâncias, podem ser alvo do direito penal se
forem vistas portando-as, o que resultará em uma mancha em sua vida.
A descriminalização surge como alternativa saudável tanto para o
indivíduo infrator quanto para a sociedade em geral. “As penas longas privativas de
liberdade trazem diversos incômodos como a desintegração social e psíquica do
indivíduo, bem como seu círculo familiar”. 11
O indivíduo que passa pela experiência do cárcere leva marcas do castigo
pelo resto da vida. Quando a pena é cumprida, por mais que o indivíduo consiga
retomar suas atividades cotidianas anteriores, seu relacionamento familiar, afetivo e
profissional torna-se seriamente abalado. Dificuldades de entrosamento com os
10 PASSETTI, Edson. Curso Livre de Abolicionismo Penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004, p. 23-24. 11 CERVINI, Raúl. Idem. p. 77.
19
entes e amigos, difícil readaptação social são questões que influenciam a vida do
indivíduo quando é libertado do cárcere.
Verificando a parcela atingida pelo direito penal conclui-se que na maioria
das vezes são delinqüentes ocasionais, o que torna a descriminalização uma
alternativa favorável para diversas condutas recriminadas pelo direito repressor.
Segundo Raúl Cervini a descriminalização pode se manifestar de três
formas:
A. “Descriminalização formal – em alguns casos
corresponde ao desejo de outorgar um total reconhecimento legal e
social ao comportamento descriminalizado.
B. Descriminalização substitutiva – as penas são
substituídas por sanções de natureza diversa.
C. Descriminalização de fato – quando o sistema
penal deixa de funcionar sem que formalmente tenha perdido
competência para tal, ou seja, do ponto de vista técnico-jurídico,
nesses casos, permanece ileso o caráter ilícito penal, eliminando-se
somente a aplicação efetiva da pena”. 12
Não se confundem os conceitos de descriminalização e despenalização.
A primeira diz respeito a minimizar o número de condutas alcançadas pelo direito
penal. Já a última corresponde à retirada da pena de um delito, isto é, o fato
continua a fazer parte do ordenamento jurídico repressor, porém a existência da
pena é extinta, dando lugar a outras possibilidades de solução ao conflito.
Outra forma de solução de conflitos que privilegiam o diálogo é a
diversificação. Corresponde tal método “em remeter o problema às partes
12 CERVINI, Raúl. Ibid. P. 82-83.
20
diretamente afetadas, para que o resolvam com ou sem a ajuda de um organismo
externo. Outras vezes enfatiza-se mais a atuação de um organismo externo ad hoc
que não pertence aos sistemas penais ordinários”. 13
13 CERVINI, Raúl. Ibid, p. 86.
21
TEORIA ABOLICIONISTA
Considerações Iniciais:
A teoria abolicionista surgiu em meados da década de 60. Após a
Segunda Guerra Mundial alguns pré-conceitos legitimadores da intervenção
constante do direito penal começaram a serem questionados. A partir dos
ensinamentos de Beccaria, o movimento abolicionista se baseou e desenvolveu sob
várias óticas e entendimentos distintos.
“Deslegitimando o direito penal desde um ponto de vista radicalmente
externo e denunciando sua arbitrariedade, assim como os castigos e sofrimentos
que inflige, os abolicionistas impõem ao direito penal uma grande carga de
justificação, exigindo réplicas moralmente satisfatórias e logicamente pertinentes ao
raciocínio pelo qual se conclui que a soma dos sacrifícios que requer é superior às
vantagens que proporciona.
As propostas abolicionistas variam de acordo com os métodos e
pressupostos filosóficos de seus defensores, cada qual usando uma tática diferente
para a consecução do mesmo fim. Neste sentido, assinala Zaffaroni a preferência
marxista de Thomas Mathiesen, a fenomenológica de Louk Hulsman, a estruturalista
de Michel Foucault e a fenomenológico-historicista de Nils Christie”. 14
A doutrina abolicionista considera ilegítimo o sistema penal, afirmando ser
ineficaz, arbitrário e não cumprindo com o seu papel primordial que é o controle
social. Partindo-se da premissa que a melhor forma de solucionar os conflitos é
através do diálogo entre os envolvidos, o abolicionismo prega a dissolução do
14 MARCHI JÚNIOR, Antonio de Padova. Abolicionismo Criminal. Disponível em: <http://www.infojus.com.br/area6/antoniodepadova.htm>. Acesso em: 15 dez. 2004.
22
sistema penal como um todo, isto é, a extinção de toda a organização que o sistema
punitivo agrega.
O pensamento abolicionista condena qualquer forma de solução que
incentive a dor, o sofrimento ou a perda da liberdade como ocorre no regime atual,
privilegiando o diálogo, a compreensão e reprovando soluções vingativas como a
reclusão de indivíduos, tendo como justificativa para tal a “ressocialização” dos
mesmos.
Para solucionar os conflitos, que passariam a serem vistos como
“situações-problema” ao invés de encarados como “crimes”, é necessário que se
compreenda de forma clara o que se entende por situação-problema.
No sistema penal vigente o ato repreendido pelo ordenamento jurídico
repressivo é tido como crime, analisando-se, a partir de então, a personalidade do
indivíduo, seu perfil psicológico e social, julgando seu histórico e demais
antecedentes, deixando-se de lado o fato em si. Elabora-se um panorama completo
do perfil do indivíduo que afrontou o ordenamento jurídico penal, classificando-o,
então, como delinqüente. Esse estereótipo que é criado em torno daquele que
comete determinado ato contrário à lei penal torna, o antes pacato cidadão, em um
indivíduo sem caráter, valores e sentimentos.
Nils Christie disserta sobre o tema da seguinte maneira: “Atos não são,
eles se tornam alguma coisa. O mesmo acontece com o crime. O crime não existe. É
criado. Primeiro, existem atos. Segue-se depois um longo processo de atribuir
significado a esses atos. A distância social tem uma importância particular. A
distância aumenta a tendência de atribuir a certos atos o significado de crimes, e às
pessoas o simples atributo de criminosas”.15
15 CHRISTIE, Nils. A Indústria do Controle do Crime. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1998, página 13.
23
Christie continua seu discurso alegando que “o maior perigo do crime não
está nele mesmo, mas no fato de que, em sociedades como a nossa seu controle se
converta em totalitarismo”.16
Daí a visão abolicionista sobre o que é considerado crime. O conceito de
crime é substancialmente relativo, ou seja, o que é crime em determinado local, em
determinada época, amanhã poderá não ser.17
Diversas condutas consideradas criminosas variam de acordo com o
período vivido. A homossexualidade era vista em meados do século XX como crime.
Já nos dias atuais a discriminação à opção sexual alheia é que se considera
criminosa.
Analisando-se o caso das substâncias psicoativas a diferença de época e
costume torna o tráfico ou porte de algumas dessas substâncias como atitudes
condenadas pelo ordenamento jurídico penal na maioria dos países. A cocaína, a
maconha, a heroína, o crack, dentre tantas outras, são consideradas drogas ilícitas
pelo simples fato de serem atingidas pelo direito penal.
Porém, apesar de também serem psicoativas, o álcool, a cafeína e o
tabaco já não são alcançados pelo direito repressor.
O crime é, portanto, uma conduta previamente repreendida e tipificada
como negativa pelo Estado que, privilegiando-se de sua supremacia, a denomina
como tal.
Para Maria Lúcia Karam “o controle social formal manifestado no poder do
Estado de punir estrutura-se em um sistema que se materializa através da seleção
de determinadas condutas conflituosas ou socialmente negativas, que, por
intervenção da lei penal, recebem a qualificação de crimes”.18
16 CHRISTIE, Nils. Idem, p. 64. 17 KARAM, Maria Lúcia. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004. 18 KARAM, Maria Lúcia. Idem, p. 72.
24
Conclui-se, a partir dessa análise sobre o que se considera crime, e de
acordo com a ótica abolicionista que o ato condenado e tido como tal pelo Estado
varia de acordo com os costumes, com o local e com a realidade social vivida, o que
desconsidera, desde já, a afirmativa que o crime possui uma realidade ontológica.
Mesmo condutas moralmente negativas como o homicídio não possui realidade
ontológica criminosa. Em casos de guerra, por exemplo, o homicídio deixa de se
tornar uma conduta negativa, sob o ponto de vista jurídico, e se torna um mérito ao
soldado que obtém êxito em seus objetivos.
Cabe mencionar a título de exemplo que roubos, furtos, homicídios,
agressões, dentre tantas outras atitudes que são condenadas pelo ordenamento
jurídico penal, seriam analisados não como crimes, e sim “situações-problema”. Tal
distinção merece destaque, pois a solução abolicionista não é repressiva do ponto
de vista de imposição de castigos, e sim reparatória, conciliatória.
O Direito Penal assevera que a punição é uma resposta do Estado à
sociedade. Uma das maiores críticas ao sistema penal feita pelos abolicionistas diz
respeito a essa visão que simplesmente ignora os reais interessados no conflito, ou
seja, os agressores e as vítimas. O Estado, privilegiando-se de sua hierarquia e
supremacia em relação aos indivíduos da sociedade, considera-se no direito de
repreender as pessoas que afrontam suas normas e se esquece de verificar qual o
real interesse da vítima ou familiares, bem como quais as razões que motivaram o
agressor a cometer determinado delito.
Na obra de Michel Foucault, “Vigiar e Punir“, o autor aborda
minuciosamente a história das prisões e castigos dando enfoque às justificativas do
Estado para que torne suas imposições legítimas.
Antes a pena corporal era justificada como salvação da alma e uma forma
de “vingança” à vítima:
25
“Damiens fora condenado, a 02 de março de 1757, a pedir perdão
publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris aonde devia ser levado e
acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa
de duas libras; em seguida, na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo
que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas,
sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com
fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido,
óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir
seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo
consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento”.19
O trecho supra mencionado da obra de Foucault explicita a forma aviltante
que os condenados por crimes eram tratados. Demonstrações brutas de coerção e
poder impostos pelo Estado eram vistos como forma de punição aos tidos como
delinqüentes. A dor, como se pôde observar, era vista como a melhor forma de
solucionar os eventos criminais.
Atualmente as penas físicas continuam a ser impostas, porém não de
forma violenta e visível como no episódio citado, e sim com a retirada da liberdade
de indivíduos que, de forma culposa ou dolosa, ou ainda, por equívocos judiciais são
condenados por práticas que contrariam o Código Penal ou leis esparsas que
representam o interesse do Estado.
Essa violência velada que a perda da liberdade impõe é radicalmente
contra qualquer pensamento e ideal abolicionista. A reclusão de indivíduos nada
mais é do que um mecanismo perpétuo de vinganças, pois o objetivo principal é
punir, repreender e não ressarcir ou qualquer outra forma de solução que traga
algum benefício à vítima. O agente passa a figurar como mera peça dentro do
processo criminal.
19 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, p. 09.
26
Louk Hulsman disserta sobre o assunto da seguinte forma: “Poderíamos
argumentar que as atividades profissionais e burocráticas só são úteis à clientela
quando guiadas por uma participação ativa daqueles para os quais atuam. No
modelo de referência da justiça criminal não há espaço – por princípio – para tal
participação e direção ativa. Quando a polícia atua dentro dos esquemas da justiça
criminal, tende a não ser mais guiada pelos desejos e pela vontade do queixoso,
sendo-o, sim, pelas exigências do procedimento legal que está instruindo. A parte
civil – que pediu a intervenção da polícia – torna-se sua “testemunha”, em vez de
guia. Uma testemunha é, fundamentalmente, um “instrumento” destinado a levar um
procedimento legal ao êxito. De modo similar, o esquema dos procedimentos
judiciários impede – ou, pelo menos, torna extremamente difícil – a expressão, por
parte da vítima, de seu ponto de vista sobre a situação, impedindo ainda sua
interação com a pessoa considerada como supostamente culpada diante da
Corte”.20
O sistema penal não admite indivíduos diferentes. Busca-se criar, a partir
de um mecanismo de atribuição de penas, castigos e imposições de medo,
indivíduos regrados, disciplinados, que não contrariem as normas vigentes sob pena
de coerção. Foucault aborda o tema denominando tais indivíduos como “Os Corpos
Dóceis”, ou seja, pessoas sendo disciplinadas como em um exército:
“Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos,
nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos
séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois
não se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da
disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo
menos igualmente grandes”.21
Analisando o sistema criminal o que se conclui é que qualquer
transgressão às suas normas faz movimentar todo maquinário judiciário, desde a
20 HULSMAN, Louk. Curso Livre de Abolicionismo Penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004, página 46 e 47. 21 FOUCAULT, Michel. Idem, p. 118.
27
fase de investigação, que se dá através do inquérito policial, se prolonga com o
processo-crime e se conclui com a fase da execução criminal, isto é, o cumprimento
da pena imposta pelo Estado-juiz.
Agressores passam a se tornar réus dentro do processo, bem como as
vítimas autores ou assistentes de acusação.
O abolicionismo não prevê soluções pré-estabelecidas. Busca analisar, de
forma crítica e profunda, os motivos que levaram o indivíduo a tomar determinada
atitude, dando extrema importância para a opinião e interesse dos envolvidos na
“situação-problema”.
Cabe ressaltar, conforme o pensamento de Antonio de Pádova Marchi
Júnior, “que o abolicionismo penal não é uma forma de solucionar os conflitos
através de penas alternativas, e sim ampliar possibilidades de solução para os
mesmos, sendo através de alternativas legais ou extrajudiciais”.22
“O abolicionismo penal é perturbador, porque nos tira a fantasia de que o
mundo está dividido entre o bem (nós) e o mal (eles). Coloca-nos frente a frente com
uma responsabilidade social da qual tentamos fugir e para com a qual fingimos
cumprir a cada sentença condenatória proferida e executada. Em resumo, nos deixa
sem o bode expiatório que personifica o inimigo. Ao contrário, nos questiona e nos
chama a criar outros instrumentos de pacificação dos conflitos sociais, que atinjam
melhores efeitos. Propõem os abolicionistas que o Estado seja instrumento
garantidor dos direitos inerentes aos seres humanos, não seu carrasco ou algoz”. 23
Em suma, entende-se por abolicionismo penal a intolerância à práticas
que induzam a dor, o castigo, o sofrimento; tentando solucionar as questões e
problemas humanos de forma racional, inteligente, humana.
22 MARCHI JÚNIOR, Antonio de Padova. Op.cit.
23 CASTANHEIRA, Beatriz Rizzo e BARROS, Carmen Sílvia de Moraes. Para aqueles que acreditam na justiça penal. Disponível em: http://www.neofito.com.br/artigos/art01/penal23.htm . Acesso em: 23 fev. 2005.
28
A “cifra negra” da criminalidade:
O número de condutas recriminadas pelo ordenamento jurídico penal que
são registradas e efetivamente apuradas são extremamente menores que a
quantidade de crimes que ocorrem na prática. Surge, dessa forma, a “cifra negra”,
ou seja, o liame que separa os crimes que são verificados e solucionados pela
polícia e demais instituições judiciárias de fato, e aqueles que nem sequer chegam
ao conhecimento das autoridades.
É fato que o sistema penal abrange uma parcela restrita dos crimes
ocorridos efetivamente. Surge então a visão abolicionista acerca do tema, sendo
uma das críticas sobre o sistema repressivo vigente, asseverando tratar-se de um
sistema ineficaz, isto é, um mecanismo coercitivo que não atinge seu objetivo
primordial que é a segurança da sociedade e o controle social geral.
Homicídios entre membros de quadrilhas rivais, tortura praticada por
policiais contra cidadãos tidos como suspeitos, agressões e homicídios em
penitenciárias, vínculo de policiais com o narcotráfico são fatos criminalizáveis que
praticamente não recebem o olhar do direito penal. 24
Conforme assevera Maria Lúcia Karam: “Falsamente identificada a
violência à criminalidade, alimentam-se os sentimentos de medo e insegurança,
manipulando-se dados, que permitem a divulgação, sem bases reais, de um
aumento descontrolado da criminalidade, esquecendo-se, ou ocultando-se, que,
sendo o número de crimes não conhecidos infinitamente superior ao de crimes
registrados, a criminalidade é um fenômeno de impossível mensuração, não se
24 Passetti assevera em seus discursos no Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-sol), bem como em seminários sobre o tema que a teoria do abolicionismo penal já existe. Explicita fatos corriqueiros que não são contemplados pelo direito repressor e que, por falta de interesse da sociedade, ou mesmo por ignorar tais condutas, se perpetuam por diversas gerações.
29
podendo afirmar, efetivamente, que em um determinado período de tempo tenham
acontecido mais crimes do que em outro”.25
A criminalidade oculta resulta da incapacidade estatal de coibir os
diversos fatos e ocorrências cotidianas. Tal criminalidade não se dá apenas pelos
episódios que não chegam ao conhecimento das autoridades, mas sim, crimes que
são verificados e não são apurados de forma satisfatória pois os autores são
desconhecidos, por ausência de provas gerando em muitos casos a sensação de
injustiça, crimes prescritos ou que são resolvidos de forma extrajudicial.
O sistema penal é alvo de questionamentos sobre sua real eficiência e
necessidade quando se verifica o resultado obtido com a manutenção desse
complexo mecanismo repressivo.
Partindo-se do ponto de vista que o sistema penalizador não possui
capacidade para controlar, investigar e apurar todos os fatos denominados crimes
pelo ordenamento jurídico penal, e que, aliás, a porcentagem controlada é irrisória
se comparada ao número de delitos cometidos diariamente, conclui-se que a
manutenção desse sistema é descabida.
A “cifra negra” demonstra que o sistema penal gera desigualdades, ou
seja, o fato de somente alguns indivíduos responderem criminalmente por atos que
vão contra o ordenamento jurídico penal resulta em um sentimento de impunidade
com relação à maioria de indivíduos que também afrontaram o diploma penal e nada
sofreram.
Os jornais, revistas, noticiários e demais veículos de comunicação
apresentam diariamente centenas de episódios criminosos que acabam sem
solução. Alguns são apurados e o autor condenado, mas a sensação de impunidade
permanece. Assassinatos cruéis, chacinas, latrocínios, dentre tantos outros crimes
que são veiculados pela mídia causam espanto quando se chega a um veredicto.
25 KARAM, Maria Lúcia. Conversações Abolicionistas. São Paulo, IBCCrim – PEPG Ciências Sociais PUC/SP, 1997, p. 69.
30
Assassinatos que foram amplamente divulgados como da atriz Daniela
Perez, estupros em série com resultado morte cometidos por Francisco de Assis
Pereira, vulgo “Maníaco do Parque”, demonstraram que mesmo os autores sendo
condenados houve descontentamentos quando as sentenças foram proferidas.
Pede-se “justiça”, prisão perpétua, alguns mais extremistas chegam a desejar a
pena de morte aos condenados. Tal sentimento ocorre não porque as leis são muito
brandas ou os julgamentos mais “benéficos” ao réu, e sim porque o sistema atual
não responde às expectativas íntimas das pessoas.
A primeira sensação do público logo após um crime de grande
repercussão, ou mesmo crimes não conhecidos publicamente são de repulsa ao
indivíduo que cometeu o delito. Reações assim são comuns e refletem os
pensamentos e pré-conceitos internos de cada indivíduo, baseando-se em ideais
morais, éticos ou religiosos que são expostos em situações que chocam a
sociedade. Com o passar do tempo esse sentimento vai sendo esquecido, ou pelo
menos minimizado.
Nessa interminável discussão existem três pólos distintos, opostos e ao
mesmo tempo convergentes para manutenção do “status quo” vigente.
De um lado a mídia que desconsidera o sistema repressor como algo
negativo, incentivando, ao contrário, a criação de mais presídios e a adoção de
penas ainda mais rígidas.
Por outro lado os membros do Ministério Público, juízes e polícia, mesmo
tendo consciência que o sistema atual não soluciona as questões criminais,
continuam a participar dessa proliferação de punição. Os pesquisadores
reconhecem a ineficiência do sistema penal e ainda assim não expõem, na maioria
dos casos, opiniões e respaldo científico que contribuam para a dissolução do
castigo.
Antônio de Padova Marchi Júnior explicita de forma bastante direta e
objetiva alguns pontos importantes sobre a “cifra negra” da criminalidade:
31
“Após citar uma pesquisa realizada nos Estados Unidos, onde se calculou
que em uma cidade de meio milhão de habitantes o número anual de furtos em lojas
seria de cento e cinqüenta mil, fato que demonstra a impossibilidade de conhecer a
criminalidade real, o Professor Eugenio Raúl Zaffaroni percebeu que a sustentação
da estrutura do poder social através da via punitiva (sistema penal) é
fundamentalmente simbólica, levando-o à seguinte afirmação: A lógica interna das
propostas abolicionistas parece-nos incontestável: se o sistema penal é simbólico,
apenas tendo por função assegurar a hegemonia de um setor social, com efeitos, no
geral, negativos, melhor é a sua supressão, suprimindo a própria hegemonia social
ou substituindo a forma de sustentação por outro sistema menos negativo (mais
racional).
Desse modo, todos os valores ou princípios, que costumam fundamentar
a intervenção do sistema penal – a igualdade perante a lei, a segurança, a punição
do criminoso como realização da justiça – desmoronam, diante desta sua aplicação
excepcional, e, portanto, injusta, a um reduzido número de selecionados violadores
da lei penal.
Por sua vez, os crimes não atingidos pelo sistema penal, correspondentes
à denominada cifra negra, são de um modo ou outro resolvido pelas partes
envolvidas, sendo forçoso reconhecer que a proposta abolicionista é tacitamente
admitida ou tolerada, pois não podemos ter a ingenuidade de acreditar que tais
eventos sejam desconhecidos pelas autoridades responsáveis pelo funcionamento
do sistema.
Em outras palavras, a supressão do sistema penal iria unificar a solução
adotada diante de um fato definido como crime, estendendo à parcela minoritária
que é alcançada pelo sistema o tratamento não penal que, na prática, resolve os
conflitos da maioria das pessoas envolvidas em eventos criminalizáveis“.26
26 MARCHI JÚNIOR, Antonio de Padova. Op. Cit.
32
A manutenção do sistema vigente se dá por diversos motivos. Nils
Christie salienta em sua obra “A Indústria do Controle do Crime” que o mercado
consumidor do crime é vasto, citando como exemplo as empresas de construção
civil que se beneficiam quando novos presídios e delegacias são construídos.
Os equipamentos disponíveis ao mercado prisional, como a segunda
categoria apresentada pelo autor, como a ampla oferta de objetos, equipamentos e
estratégias de controle. Câmeras de vigilâncias, grades e toda parafernália que
contribui para a subordinação dos presos ao Estado fazem gerar incontáveis somas
de dinheiro às empresas fabricantes desses materiais.
Compondo a terceira categoria apresentada por Christie é a gestão das
prisões. Gastos administrativos, armamentos, e algumas das mercadorias que
auxiliam a administração dos presídios como alimentos, remédios, colchões, gastos
com funcionários servem apenas para fortificar esse sistema de manutenção da dor
e castigo.27
Outro fator importante que vale destaque é a quantidade de crimes
que chegam ao conhecimento das autoridades, porém não são concluídos,
comprovando a ineficiência do sistema repressivo. Dados da própria Secretaria de
Segurança Pública do Estado de São Paulo referentes ao 4º trimestre do ano de
2004 refletem bem a afirmativa anterior: 28
• Total de Boletins de Ocorrência na capital de São Paulo:
172.402
• Total de Termos Circunstanciados lavrados pela Polícia Civil da
capital de São Paulo: 8.304
• Total de Termos Circunstanciados lavrados pela Polícia Militar
da capital de São Paulo: 348
• Total de Inquéritos Policiais Instaurados: 24.672
27 CHRISTIE, Nils. Op.cit. 28 Extraído de: Http://www.ssp.sp.gov.br/estatisticas/_portrimestre.aspx?ano=2004&tri=4 . Acesso em: 15 dez. 2004
33
Analisando este item da atividade da polícia judiciária da capital verifica-
se, desde já, a desproporção entre o número de ocorrências registradas e aquelas
que são efetivamente levadas adiante.
Surge a partir dessa idéia a indagação a respeito dos gastos exorbitantes
com a manutenção desse sistema. Ora, os custos do Estado com funcionários,
sejam eles públicos ou de empresas terceirizadas, alimentação de presos,
manutenção e ampliação de presídios, dentre tantas outras despesas põe em xeque
a eficácia do sistema penal quando comparado ao resultado trazido.
Afinal, um sistema penal que atinge uma parcela irrisória dos indivíduos
que se envolveram em delitos, excluindo a grande maioria dos “criminosos”, traz à
tona a discussão sobre a relação custo x benefício de tal organização repressiva.
Os defensores do sistema vigente criticam o abolicionismo penal
afirmando ser um gerador de desempregos.
Segundo Passetti, explicando que o abolicionismo não se trata de uma
política de desemprego afirma: “O Estado permanece, mas funcionando como
indenizador das partes, não lhe cabendo o papel de administrar as respostas-
percurso, ser guardião dos bens ou pessoas, ditar as regras da prevenção geral. Ele
permanece como presença de autoridades que estão pessoalmente envolvidas com
os riscos e dele se apartando”.29
29 PASSETTI, Edson. Op.cit, p. 32.
34
O sistema seletivo e marginalizador do direito penal:
No Brasil costumeiramente se ouve a seguinte afirmativa: “Só os pobres
vão para a prisão”.
A partir desse pensamento popular, segue-se uma análise sob a ótica
abolicionista a respeito da manutenção desse sistema marginalizador e seletivo que
constitui o sistema penal.
Tal seletividade do sistema repressivo assenta-se fundamentalmente nas
desigualdades sociais. Diferenças brutais geradas pelo capitalismo tornam ainda
maiores as ocorrências desenfreadas de crimes, ocasionando, destarte, iguais
desigualdades no campo criminal.
Deficiências sérias na educação e na saúde, ausência de alimentos para
a própria subsistência e de condições mínimas de sobrevivência, discriminações
raciais e de cunho social, amplos incentivos ao consumismo são alguns dos vários
motivos que levam indivíduos pacatos à delinqüência.
A partir dessa premissa óbvia o Estado tenta se precaver dos possíveis e
prováveis acontecimentos de forma totalitária, esquecendo-se que o principal
responsável por várias dessas desigualdades é ele próprio.
A Carta Magna Brasileira, por exemplo, logo em seu preâmbulo afirma
que “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida,
na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
35
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.30
Infelizmente o preâmbulo constitucional, bem como grande parte dos
direitos e garantias constitucionais, previstos no artigo 5º da mesma Carta Maior,
são praticamente ignorados. O que deveria ser assegurado ao cidadão é esquecido
com tamanha facilidade.
Direitos sociais?
Liberdade?
Segurança?
Bem-estar?
Seguramente pode-se afirmar que a maioria da população brasileira
desconhece tais vocábulos.
Maria Lúcia Karam afirma: “O quadro de desequilíbrio econômico e social,
aliado ao abandono de ideais transformadores, constitui campo extremamente fértil
para a intensificação do controle social, a reavivar as premissas ideológicas de
afirmação da autoridade e da ordem, fazendo surgir, à direita e à esquerda, uma
opção preferencial pela reação punitiva, que abre espaço para uma desmedida
ampliação do poder do Estado de punir”.31
A discriminação não ocorre somente no campo social onde milhares de
crianças e adolescentes possuem educação pública precária, ou pior, alguns nem
têm a oportunidade de desenvolverem o intelecto. Além das muitas dificuldades
30 CAHALI, Yussef Said. Constituição Federal – Código Civil – Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. RT, 2003, p. 19. 31 KARAM, Maria Lúcia. Op.cit, p. 71.
36
enfrentadas pela maioria das pessoas com rendimento mensal baixo, há a questão
do sistema penal atingir, na maioria das vezes, esses indivíduos desprivilegiados.
Para ilustrar melhor essa afirmativa, basta que se analise os principais
crimes que são efetivamente apurados. Roubos, furtos, agressões e latrocínios são
crimes que, na maioria das vezes, são praticados por pessoas que não possuem
boas condições financeiras e, ao contrário, crimes de “colarinho branco”, crimes de
trânsito, entre outros, têm penas mais brandas se comparadas ao mal causado.32
Obviamente há exceções, porém se for verificado o número de indivíduos
que cometeram tais delitos e foram condenados, sem sombra de dúvidas as
pessoas de baixa renda serão a grande maioria.
Segue dois quadros gráficos fornecidos pela Secretaria de Segurança
Pública do Estado de São Paulo que comprovam o exorbitante número de delitos
cometidos na maioria das vezes por indivíduos com baixa renda: 33
32 Extraído de http://www.infojus.com.br/area6/antoniodepadova.htm . Acesso em 20 dez. 2004. 33 Extraído de http://www.ssp.sp.gov.br/estatisticas . Acesso em 03 jan. 2005.
37
38
Maria Lúcia Karam aborda o tema da seguinte forma:
“Mas a injustiça, inerente ao funcionamento do sistema penal, acentua-se
quando se considera que a reação punitiva, necessária e prioritariamente, se dirige
aos membros das classes subalternizadas, aos excluídos, aos desprovidos de
poder”.34
Seguindo sua linha de raciocínio, e comprovando tal afirmativa a autora
traz as seguintes informações:
“Os Censos, periodicamente realizados pelo Ministério da Justiça, têm
classificado como absolutamente pobres entre 90 e 95% dos internos no sistema
penitenciário brasileiro. Este perfil aparece de forma ainda mais eloqüente, quando
se consideram dados colhidos na região Sul, em que o nível de vida das populações
se encontra entre os mais bem registrados no país. Em Censo, realizado no Paraná
em 1992, a posição precária no mercado de trabalho, quando da prisão, se
expressava nos seguintes percentuais: 69% dos presos não tinham emprego fixo,
sendo que 28% nunca tiveram carteira assinada; dos que estavam regularmente
empregados, 26% trabalhavam na construção civil. Do total de presos, 95%
ganhavam menos de um salário mínimo, quando da prisão. A baixa escolaridade
também se revelou: 86% dos presos tinham apenas o 1º grau incompleto...”.35
O sistema seletivo e marginalizador do direito penal ocorre de forma
absolutamente preconceituosa dentro da própria sociedade. A burguesia e a classe
média, ancoradas na tradição reformista da legislação, diante da violência policial e
posterior aprisionamento assumem três tipos de posicionamento na maioria das
vezes: Há aqueles defensores que inclusive defendem o extermínio; outros
defendem que deve haver os direitos individuais respeitados, mas mantendo o
aprisionamento; e por último há aqueles que defendem a internação em outro
modelo de estabelecimento reformador.
34 KARAM, Maria Lúcia. Ibid, p. 93. 35KARAM, Maria Lúcia. Ibid, p. 94-95.
39
Observa-se que nos dois últimos há uma posição mais “preocupada” com
o indivíduo que comete determinado ato, mas ainda conservadores com relação à
abolição da pena. O primeiro grupo dispensa comentários.
Trata-se de um pseudo-moralismo da burguesia e da classe média em
geral. O lazer e a segurança nas periferias é aplaudido veemente, afinal, traz uma
certa tranqüilidade para aqueles que vivem em condomínios fechados, casas de alto
padrão, repletos de “qualidade de vida”.
A opinião da maioria dos indivíduos privilegiados financeiramente muda
quando o alvo do sistema penal são seus conhecidos, amigos ou filhos. A prisão
torna-se, a partir de então, algo injusto, absurdo, doloroso.
Todo discurso conservador, falso moralista, autoritário e defensor de
penas severas para “criminosos” dá lugar ao desespero ao ver membros de sua
prole atingidos pelo sistema que eles mesmos defenderam. Quando isso ocorre, em
razão da feliz condição financeira que esta privilegiada classe social pertence, a
fiança torna-se a mão direita para que se traga ao abastado lar o indivíduo infrator.
A grande parcela da sociedade sem recursos financeiros é novamente
prejudicada. A maioria sequer tem conhecimentos sobre as possibilidades jurídicas
de ver seu ente querido ao lar, e mesmo quando possuem tal conhecimento, não há
recursos financeiros para que isso seja efetivado.
40
Corrupção e violência nos órgãos do sistema penal:
Freqüentemente divulgam-se nos órgãos de imprensa casos de corrupção
entre juízes, advogados, promotores de justiça, policiais e demais funcionários que
compõem o Judiciário.
Casos de comércio de sentenças judiciais, desvios de dinheiro público,
corrupção e violência contra cidadãos praticada por policiais são de conhecimento
público e notório.
Desvios de dinheiro público, por exemplo, foram amplamente divulgados
no caso do juiz Nicolau dos Santos Neto que fôra acusado como responsável pelo
desvio de verbas da construção do Fórum Trabalhista de São Paulo.
Além disso há inúmeras ocorrências de prisões ilegais, torturas,
homicídios e participação nos “lucros” decorrentes de atividades ilícitas praticada por
agentes policiais. A violência policial merece destaque especial por se tratar de uma
afronta aos direitos e garantias fundamentais, além de denegrir a imagem do que se
considera um Estado Democrático de Direito.
A violência policial é um fato, não um caso isolado ou um "excesso" do
exercício da profissão como querem fazer crer as corporações policiais e as
autoridades ligadas ao sistema de justiça e segurança. E em se tratando de um fato
concreto deve ser encarada como um grave problema a ser solucionado pela
sociedade. Um grave problema porque a violência ilegítima praticada por agentes do
Estado, que detêm o monopólio legítimo do uso da força, ameaça substancialmente
as estruturas democráticas necessárias ao Estado de Direito.
A polícia constitui o aparelho repressivo do Estado que tem sua atuação
pautada no uso da violência legítima. É esta a característica principal que distingue o
policial do marginal. Mas essa violência legítima está ancorada no modelo de "ordem
41
sob a lei"; ou seja, a polícia tem a função de manter a ordem, prevenindo e
reprimindo crimes, mas tem que atuar sob a lei, dentro dos padrões de respeito aos
direitos fundamentais do cidadão – como direito à vida e à integridade física.
A ausência de respeito ao modelo de "ordem sob a lei" tem se perpetuado
dentro da estrutura policial brasileira por razões diversas – como a falência dos
modelos policiais, o descrédito nas instituições do sistema de justiça e segurança, a
impunidade – mas principalmente por uma certa tolerância da própria sociedade com
este tipo de prática. Analisando o problema do ponto de vista sócio-político percebe-
se que a violência policial tem raízes culturais muito antigas, e que estas têm uma
relação diretamente proporcional à ineficiência do Estado de punir, na maioria dos
casos, as práticas criminosas dos agentes de segurança.
É difícil admitir, mas existe uma demanda dentro da sociedade para a
prática da violência policial. É esta violência que serve à sociedade dentro de
diversos aspectos e circunstâncias, mas especialmente no tocante a solução dos
crimes contra o patrimônio e na repressão às classes perigosas. Por isso mesmo, a
dificuldade do Estado no âmbito da segurança pública continua sendo o controle da
violência legítima, do qual decorreria conseqüentemente a extinção do uso ilegítimo
da força por parte dos organismos policiais.
A questão da democracia é, então, um ponto de extrema importância
neste debate. Isso porque a violência policial inevitavelmente gera as mais graves
violações aos direitos humanos e a cidadania, que são elementos inerentes ao
regime democrático.
Para tentar se encontrar um caminho que ajuste os órgãos de segurança
à realidade democrática é importante, antes de tudo, que a sociedade descubra que
tipo de polícia ela quer: uma polícia que respeite os direitos do cidadão, que exista
para dar segurança e não para praticar violência; ou uma polícia corrupta (que livra
de flagrantes os filhos das classes abastadas) e arbitrária (que utiliza a tortura e o
extermínio como métodos preferenciais de trabalho e que atingem na sua grande
maioria as classes populares). Depois disto, é preciso pensar nas formas de
restringir as oportunidades da polícia utilizar a violência ilegítima, seja através do
rígido controle de armamentos ou do limite do reconhecimento da legitimidade do
42
uso da força a situações particulares. Questão de difícil, ou mesmo quase impossível
solução, pois abusos sempre ocorrerão quando se dá poderes de coerção nas mãos
de pessoas que, muitas vezes, não estão aptas.
Costumeiramente se observa diversos casos de policiais envolvidos na
facilitação do tráfico de drogas. No Rio de Janeiro, ou mesmo em São Paulo os
locais de venda de substâncias entorpecentes são conhecidos e mesmo assim o
tráfico continua com a “anuência” dos agentes policiais.
Finalmente, o que não se deve perder de vista dentro desta discussão é o
risco que a tolerância à violência policial acarreta para a democracia. Sem uma
polícia condizente com práticas democráticas e de respeito aos direitos
fundamentais do cidadão vão existir sempre vergonhosas e covardes ofensas aos
direitos individuais.
43
A ineficiência da “prevenção geral”:
Para que se possa questionar e desenvolver alguns arrazoados sobre o
tema, é necessário que se defina seu significado.
Entende-se por “prevenção geral” a tipificação de alguns atos e condutas
que passam a serem denominados “crimes” pelo ordenamento jurídico penal, com a
finalidade de atuar de forma repressiva àqueles que transgredirem suas normas,
objetivando o não cometimento dos mesmos.
A “prevenção geral” atua de maneira equivocada, pois não se observa o
diálogo e a educação prévia, tornando-a mero instrumento de medo. O castigo é
imposto a todos, considerando que há risco potencial à sociedade.
Apesar de sua finalidade, qual seja, o controle de indivíduos através da
repressão e do medo, a “prevenção geral” não atinge seu objetivo principal que é o
não cometimento de crimes.
Basta que se observe os presídios e delegacias superlotados e a
quantidade exorbitante de processos-crime em andamento.
É notório que a existência de leis penais como forma de prevenção, sejam
elas brandas ou severas (como no caso de alguns Estados americanos onde há
pena de morte), não diminuem, nem tampouco solucionam a questão criminal.
Segundo Willian Godwin: “Há homens de virtude tão inflexível que desafiam
qualquer imposição arbitrária. Há muitos outros, segundo geralmente se crê, de
natureza tão depravada que, se não existissem as penas e as ameaças,
subverteriam toda a ordem da sociedade com seus excessos. Mas, o que ocorre
44
com a grande maioria humana, que não é tão virtuosa como os primeiros, nem tão
depravada como os últimos?”.36
Questão importantíssima que é simplesmente ignorada são os métodos
reais de prevenção que deveriam ser observados. Educação pública eficiente,
campanhas constantes de conscientização sobre cidadania, drogas, doenças,
violência e saúde, políticas de emprego que realmente tragam resultados, seriam
alguns dos diversos modos de prevenção.
A família exerce papel fundamental para o crescimento e desenvolvimento
saudável da criança e do adolescente. Famílias desconstituídas por ausência de
algum dos genitores, violência familiar, má educação infantil, falta de dinheiro para a
própria subsistência são fatos que vão criando adolescentes problemáticos, muitas
vezes revoltados, o que os torna uma real ameaça à sociedade.
A simples existência de normas repressoras que inicialmente visam coibir
crimes e, caso os mesmos ocorram, ressocializar os indivíduos infratores, jamais
conseguirá alcançar o objetivo almejado. Tal conclusão se torna óbvia, pois crianças
e adolescentes que não tiveram condições mínimas de um crescimento normal por
falta de estrutura familiar, além de diversos problemas sociais que normalmente
enfrentam, não se intimidariam com meras leis de cunho repressivo.
A real prevenção deveria ocorrer através de uma educação
horizontalizada, isto é, atitudes e práticas que privilegiem a individualidade de cada
um, o modo de ser de cada ser humano, a facilitação para que se desenvolvam
soluções pacíficas dos conflitos e, principalmente, a abolição de imposições que
incentivem o castigo. O autoritarismo e a centralização de poder são questões que
contribuem para o aumento descontrolado de delitos.
36 GODWIN, Willian. Investigacion acerca de la Justicia Política y su influencia em la virtud y la dicha generales. Buenos Aires: Editorial Americalee, 1945, p. 64.
45
A solução estereotipada do direito penal:
Mais um item que gera desconformidade com o ideal abolicionista está
nas soluções estereotipadas pelo direito penal. Desconsiderando o interesse da
vítima, e a opinião do autor do fato, o direito penal traça soluções pré-estabelecidas
que muitas vezes não atingem as expectativas de nenhuma das partes.
Conflitos que poderiam perfeitamente serem resolvidos entre as partes de
forma amigável através da reparação de danos, ou mesmo com medidas sócio-
educativas, são levadas a julgamento que iniciará o perpétuo caminho da dor.
Cada indivíduo tem vontades e necessidades próprias, modos de pensar
diferentes, valores morais e éticos distintos. Soluções estereotipadas afrontam os
interesses dos mesmos, suprimindo seus desejos e ampliando injustiças.
Observa-se nesse modelo penal que a vontade, tanto da vítima quanto do
autor, são ignorados. A proposta abolicionista condena soluções já instituídas
previamente, dando lugar a soluções individuais, caso a caso. Daí surgem as
severas críticas ao ideal abolicionista, asseverando os defensores do “status quo”
que incumbe ao Estado dirimir os conflitos, em resposta à sociedade.
Em contrapartida, os abolicionistas defendem a idéia em que os reais
interessados são os envolvidos (no caso de homicídio a família da vítima), e não a
sociedade formalmente representada pelo Estado. O Ministério Público, segundo o
direito penal, atua como defensor dos interesses da sociedade. Dentro do processo-
crime atua como acusação, e muitas vezes de forma injusta, preocupando-se
apenas no “mérito” de alcançar seu objetivo que é levar o autor do delito à prisão.
Tribunais do Júri são verdadeiros espetáculos da dor. Indivíduos reclusos
por cometerem crimes dolosos contra a vida são levados ao julgamento elaborado
por sete indivíduos desconhecidos, e sentenciados pelo Estado-juiz. Assim como
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animais no circo, os réus em processos-crime dessa espécie são observados por
uma platéia que assiste ao destino de uma alma. O cenário se forma através de uma
platéia, o juiz ao centro, a defesa à direita da platéia, juntamente com o supliciado, à
esquerda o promotor de justiça, incumbido de fazer parte da acusação, e os jurados
que irão decidir o futuro do réu.
Foucault salienta:
“Punições menos diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer
sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de
ostentação, merecerá tudo isso acaso um tratamento à parte, sendo apenas o efeito
sem dúvida de novos arranjos com maior profundidade? No entanto um fato é certo:
em algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo supliciado, esquartejado,
amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto,
dado como espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão
penal”. 37
A pena corporal de fato foi extinta, pelo menos diante dos olhos da
sociedade. O espetáculo do castigo atualmente mudou sua roupagem, passando a
ser um novo ato de procedimento ou de administração.
Os reais interessados, ou seja, o autor do fato e nesse caso a família do
ente assassinado, são os realmente interessados no episódio; porém são os que
menos têm opinião de decisão final. Por mais que a família da vítima não tenha
interesse em uma pena privativa de liberdade ao réu, nada poderá fazer.
O Estado impõe através de suas normas reguladoras as penas
previamente estipuladas, amputando, dessa forma, qualquer outra forma de solução
entre os envolvidos. A solução estereotipada do direito penal seqüestra a vontade
dos indivíduos, tomando para si, e sentenciando conforme seus ditames legais.
37 FOUCAULT. Op. cit, p. 12.
47
Considerações finais:
A pesquisa elaborada chegou a uma conclusão que há muito tempo já era
notória, qual seja: o sistema penal não previne a maioria dos delitos; não
ressocializa o indivíduo; e, por fim, resulta em inúmeras injustiças – tanto para os
autores dos delitos como também para as vítimas.
A política criminal, ponto de partida do trabalho, é extremamente
importante para que se possa avaliar o contexto criminal e, se bem aplicada, resultar
em soluções positivas aos envolvidos e à sociedade.
A descriminalização, como se observou, pode ser uma etapa para a
efetivação do abolicionismo penal. Prolongando a questão concluiu-se que há
diferenças claras, que muitas vezes são ignoradas, entre descriminalização e
despenalização. Concluiu-se que a primeira refere-se à diminuição das condutas
alcançadas pelo direito, enquanto a segunda preocupa-se com a retirada das penas
contidas nos fatos criminais, sem, contudo, retirar a norma do estatuto repressor;
dando abertura a novas possibilidades de solução aos conflitos humanos.
Noções gerais sobre o abolicionismo penal foram elaboradas. Conceitos
divergentes como no caso de crime e “situação problema” foram salientados, assim
como algumas visões de estudiosos sobre o tema.
A “cifra negra” da criminalidade foi estudada de forma teórica e prática,
concluindo que o número de condutas não alcançadas pelo sistema penal é
extremamente numerosa.
Com relação ao sistema seletivo e marginalizador do direito penal, sem
sombra de dúvidas, há uma “seleção” feita pelo sistema penal, atingindo
principalmente as parcelas mais frágeis e pobres da população.
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Diferenças sociais e educacionais geram desigualdades que influenciam
em grande parte o cometimento de delitos por indivíduos claramente excluídos.
Obviamente a questão social não é a única razão para que o sistema
penal atinja fundamentalmente as classes desprivilegiadas. A criação de leis
visivelmente mais severas para determinados delitos que defendem a propriedade
privada, bem como a não solução de diversos casos de “crimes de colarinho
branco”, por exemplo, enfatizam os motivos que levaram a conclusão que o sistema
penal é marginalizador e seletivo.
Sobre a corrupção e violência nos órgãos do sistema penal a pesquisa foi
elaborada seguindo algumas críticas abolicionistas sobre a questão. Assim como em
qualquer outra instituição a corrupção faz parte dos diversos órgãos que compõem o
sistema repressor.
Observando a idéia principal desse sistema que é o alcance da justiça, a
realidade não corresponde ao objetivo almejado pois se dentro dos próprios órgãos
que visam a justiça já ocorrem comportamentos morais claramente negativos, não
se pode crer em tais instituições.
Além da corrupção existente nos mais diversos graus hierárquicos do
sistema penal há a violência policial que diariamente afronta a Constituição Federal
no que tange os direitos e garantias fundamentais, assim como qualquer ideal que
fundamente um Estado Democrático de Direito.
Assim como no período militar a ocorrência de torturas era admitida,
atualmente a sociedade de certa forma concorda com tal conduta. Concluiu-se que a
manutenção de um sistema repressivo que contribui para a perpetuação de
violências descabidas torna o sistema penal um mal à sociedade.
Item que mereceu destaque na pesquisa diz respeito à ineficiência do que
falsamente se crê como válida: a “prevenção geral”.
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Claramente falsa e ineficaz, a “prevenção geral” nada mais é que
soluções previamente tipificadas pelo ordenamento jurídico penal que, considerando
que a existência das mesmas fará com que indivíduos “perigosos” não cometam
condutas negativas aos olhos do Estado por medo imposto através das penas.
A “prevenção geral” na grande maioria dos casos não previne a
criminalidade.
Seguindo a idéia da “prevenção geral”, o ideal abolicionista condena as
soluções estereotipadas do direito penal, isto é, ignorando as diferenças físicas,
éticas, morais e religiosas de cada indivíduo o direito penal cria leis gerais que
muitas vezes vão na direção contrária aos interesses dos envolvidos na “situação-
problema”.
O abolicionismo penal, como se pôde observar durante a pesquisa, não
possui verdades absolutas nem soluções prévias. Contribuindo para o diálogo entre
os envolvidos, a conciliação se torna um eficaz método de resolução das questões
humanas.
Em casos de doenças psíquicas ou distúrbios psicológicos o método
terapêutico se torna um instrumento válido para o caso prático.
Não havendo conciliação pode-se tentar a solução através do método
compensatório, vale dizer, com imposições de cunho patrimonial, ou mesmo outras
formas de compensação do dano causado, o autor da “situação problema” poderia
contrabalançar a situação prejudicial à vítima.
O trabalho não possui cunho político ou qualquer intuito de incentivar
qualquer abolição do sistema penal. Trata-se tão somente de uma pesquisa
científica, baseada em obras sobre o tema e análises sociológicas do
comportamento humano, que concluíram a ineficiência do sistema penal e a
perpetuação das injustiças com a manutenção de tal organização ilusória e arcaica.
50
Não houve aplausos ao direito penal, nem tão pouco ao movimento
abolicionista; restringindo a pesquisa à demonstração da ineficiência do sistema
penal antigo (que se concretizava através de penas corporais), e atual (onde a
amputação da liberdade se perfaz, bem como a violência velada ocorrida nos órgãos
ostensivos como da polícia).
Por fim, concluiu-se que o Direito Penal, assim como todo o sistema que
engloba a matéria repressora foi instituído pelo Homem.
Portanto, a abolição torna-se uma opção.
Mais que isso.
A abolição do sistema penal é um possível futuro caminho na
incessante busca humana pela justiça!
51
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