View
0
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
I
Universidade de Brasília
Instituto de Psicologia
Departamento de Psicologia Clínica
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura
EXERCÍCIOS PARA LIBERAÇÃO DA TENSÃO E DO TRAUMA (TRE):
APLICAÇÃO A SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA CONJUGAL
DANIELLE SOARES DE MACEDO
Brasília DF
2013
II
Universidade de Brasília
Instituto de Psicologia
Departamento de Psicologia Clínica
Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura
Exercícios para Liberação da Tensão e do Trauma: aplicação a situações de violência
conjugal
DANIELLE SOARES DE MACEDO
ORIENTADORA: GLÁUCIA R. S. DINIZ, PhD
Dissertação submetida como
requisito parcial para obtenção do grau de
mestre em psicologia
Brasília, 2013
III
Universidade de Brasília
Instituto de Psicologia
Departamento de Psicologia Clínica
Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura
Exercícios para Liberação da Tensão e do Trauma: aplicação a situações de violência conjugal
Banca Examinadora:
____________________________________________________________
Presidente: Prof.ª Gláucia Ribeiro Starling Diniz, PhD.
PPG PsiCC/PCL/IP/UnB
____________________________________________________________
Membro Interno: Prof.ª Dr.ª Maria Inês Gandolfo Conceição
PPG PsiCC/PCL/IP/UnB
_______________________________________________________
Membro Externo: Dr.ª Damares de Castro Aleixo
____________________________________________________________Membro Suplente: Dr.ª Prof.ª Dr.ª Júlia Sursis Nobre Ferro Bucher-Malushcke
PPG PsiCC/PCL/IP/UnB
Brasília – DF,de setembro de 2013
IV
“A maldade é um pedido de socorro. Até mesmo aquela maldade que se manifesta
em um grau menor no seu dia a dia é um pedido de socorro. Quanto maior a
maldade, maior o desespero. E, muitas vezes, a pessoa nem sabe disso, porque se
tornou indiferente em relação ao próprio desespero. É quando o agressivo e o
indiferente dentro de você se juntam. Assim, você se torna uma pessoa perigosa
para si e para os outros; um perigo para a sociedade. E quanto maior o perigo que
você representa para a sociedade, maior o desespero e a dor que carrega.”
Sri Prem Baba
Dedico este trabalho a todas as
pessoas que percebem a necessidade
de mudança, dentro e fora, para que
as relações entre homens e mulheres
sejam de fato amorosas. Dedico à
Lara, semente do futuro. Dedico ao
Prem Baba, que vem iluminando o
amor verdadeiro em mim.
V
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, à vida, a Deus, à Mãe Divina, a esta ordem que rege o universo e dá sentido para tudo. Agradeço por ter sido sempre cuidada, protegida e amada. Agradeço às águas amorosas da vida, que levam o que não convém e trazem o que preciso.
Sou grata, do chão até o céu, à minha família. Meus irmãos e irmãs, minha mãe, meu pai, meu padrasto, minha madrasta, minhas tias, meus primos e primas. Essas pessoas me receberam e que me oportunizaram existir, da forma como conheço. Cresci com a presença e com a falta, com o acerto e com o erro. Acolho vocês no meu coração e reconheço entre nós um amor imenso.
A todas as mulheres da minha vida! Amigas da vida, irmãs, sobrinhas, cunhadas, terapeutas, amigas e colegas de trabalho, às professoras. Agradeço especialmente à minha mãe querida, que é uma luz na minha vida! Às minhas avós e a toda a linhagem de mulheres fortes, guerreiras e amorosas. É um presente e um merecimento fazer parte disso.
A todos os homens que fizeram e fazem parte da minha vida. Aos amigos - que me tratam com tanto carinho e respeito -, aos que tive a honra de ter como parceiros amorosos, aos professores, aos terapeutas. A você pai, com quem aprendo a amar, a soltar e me posicionar. Agradeço por ter me dado a vida e por construir comigo um espaço para a verdade.
Às minhas amigas e aos meus amigos, uma gratidão doce, alegre e suave. Foi e é maravilhoso descobrir, rir, amar e ser amada, encontrar e desencontrar, encontrar novamente. Um agradecimento especial à Mulherada, grupo de amigas amadas irmãs! Com vocês tenho aprendido a parte deliciosa desta experiência de SER mulher. Ao Sangha de Brasília, irmãos e irmãs de caminhada, de choro e de riso e de caravana rumo à nossa essência amorosa.
Agradeço a todas as pessoas que ajudaram a fazer-me profissional. Às professoras e professores da infância, adolescência, graduação e de hoje. À Marília Lobão, Sérgio Bittencourt, Márcia Borba e Michelle Tusi, por me acolherem no Serviço Público e me ensinarem o amor e a ética neste desafio que é servir à sociedade. À equipe do SERAV, por quem tenho tanto carinho e gratidão e com quem aprendo, compartilho, brinco e choro. Agradeço especialmente à equipe do SERAV Ceilândia, com quem trilhei um caminho bonito de descobertas e de assumir ser quem eu sou.
Sou muito grata à Gláucia Diniz, que me acompanha desde a graduação e hoje é minha orientadora neste trabalho. Obrigada pelo carinho, pela humanidade, pelo exemplo de amor à profissão, pelo espaço dado à minha expressão. Agradeço por ter me orientado neste tema, que é um pedaço da minha alma, e por ter me estimulado a ensinar o que tive a maravilhosa oportunidade de aprender.
A todas as pessoas que me apoiaram, escutaram e possibilitaram que este trabalho acontecesse. Raquel Noronha, Patrícia Brandão, Raquel Guimarães, Luciana
VI
Junqueira, Renata Chaves, Débora Cavalcante, Michelle Tusi, Martha Rocha, Juliana Telles, Marcelo Amaral, muito grata a vocês!
Leonardo Martins, Fabrício Guimarães e Marcela Medeiros agradeço imensamente pelo apoio no momento em que achei que não ia conseguir concluir este trabalho. A ajuda de vocês foi fundamental, técnica e afetivamente.
Ao Filipe Starling, minha verdadeira e intensa gratidão. Meu parceiro de trabalho e amigo de jornada! Sem você, na coleta de dados, nos desabafos, na formatação da dissertação e na vida, este trabalho não teria sido possível.
Ao Mariano Pedrosa, meu primeiro terapeuta corporal, meu amigo e professor! Agradeço para sempre por você ter me apresentado ao meu corpo. Obrigada por ter me ensinado TRE, que é uma das minhas principais ferramentas de cura e agora de trabalho.
Às/Aos participantes desta pesquisa, pela abertura, confiança, entrega e desejo de mudar. Agradeço imensamente a oportunidade de trabalhar com vocês e me encantar com o milagre da vida no corpo.
Às pessoas que aceitaram compor a banca para a defesa da minha dissertação. Inês Gandolfo, Damares Aleixo e Julia Bucher. Escolhi vocês por afinidade e por confiança na oportunidade de aprender.
VII
RESUMO
A violência conjugal tem sido considerada um grave problema de saúde pública. Reflete diferenças de poder entre homens e mulheres nas esferas privada e social. Está relacionada também ao uso de formas comunicacionais e de resolução de conflitos violentas. As condutas violentas constituem uma resposta extremada ao estresse e são também produtoras de estresse, trazendo consequências físicas e emocionais deletérias a todas as pessoas envolvidas. O foco deste trabalho foi conhecer relações entre estresse, gênero e violência, de forma a contribuir para o delineamento de intervenções inovadoras e eficazes. O objetivo geral foi avaliar os efeitos da aplicação dos Exercícios para Liberação da Tensão e do Trauma (TRE) em homens e mulheres em situação de violência conjugal, quanto aos níveis de estresse e enfrentamento à situação de violência. Participaram da pesquisa 14 mulheres e 15 homens envolvidos em processos judiciais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios devido às denúncias de mulheres vítimas de violência em seu relacionamento conjugal. As/os participantes foram divididas/os em dois Grupos de Intervenção – um de homens e um de mulheres – e em dois Grupos de Comparação – um de homens e um de mulheres. Aos Grupos Intervenção foi aplicada a técnica TRE e demais procedimentos da pesquisa. Nos Grupos Comparação foram aplicados todos os procedimentos de pesquisa, com exceção da técnica TRE. A técnica TRE mostrou-se adequada e eficaz como ferramenta interventiva nos casos de violência contra a mulher. As mulheres e os homens que receberam a intervenção demonstraram menos sinais de anestesia emocional, ampliaram sua capacidade de percepção de sinais corporais de estresse, fizeram uma avaliação mais acurada dos riscos de reincidência da violência e da tensão e estresse relacional e passaram a adotar estratégias mais ativas de prevenção a novos episódios de violência. A continuidade da prática regular de TRE mostrou-se fundamental para manutenção, consolidação e ampliação dos benefícios da técnica para todos os casos. Os resultados evidenciaram também uma clara relação entre as categorias gênero, estresse e violência. A comparação entre homens e mulheres, tanto dos Grupos Intervenção quanto dos Grupos Comparação, revelou que as experiências subjetivas de homens e mulheres em situação de violência são bastante distintas.
Palavras chaves: violência conjugal; gênero; estresse; Exercícios para Liberação da Tensão e do Trauma (TRE)
VIII
ABSTRACT
Marital violence has been considered a serious public health issue. It reflects the power differences between men and women in the private and social spheres. It is also related to the use of violent communications and conflict resolutions strategies. The violent behaviors constitute an extreme reaction to stress and are, at the same time, stress producers, generating deleterious physical and emotional consequences to everyone involved. The focus of this research was to understand the relationships between stress, gender and violence in order to contribute to the design of innovative and effective interventions. The general objective was to evaluate the effects of the application of Tension and Trauma Releasing Exercises (TRE) in the levels of stress and in the strategies used to deal with violence of men and women leaving in marital violent relationships. Participated in the research 15 men and 14 women involved in a domestic violence judicial process at the Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, related to a legal complaint made by women victims. The participants were assigned to two Intervention Groups - one of women and the other of men - and two Control Groups - one of women and the other of men. The participants of the Intervention Groups received the TRE technique and other research procedures; the Control Groups participants went through the research procedures only. The TRE technique proved to be an adequate intervention technique to be used in domestic violence cases. Men and women who were exposed to the intervention diminished their levels of emotional anesthesia, heightened their levels of perception of corporal stress signs, were able to give a more accurate evaluation of the level of risk of recidivism of violence and relational stress and tension and were able to adopt more active strategies to prevent new episodes of violence. The continuity of a regular practice of the TRE exercises was essential for the maintenance, consolidation and expansion of the benefits of the technique for all cases. The results also showed a clear relationship between gender, stress and violence. The comparison between men and women who participated in the Intervention Groups or in the Control Groups revealed that the subjective experiences of men and women who are part of a violent relationship are very distinct.
Key words: marital violence; gender; stress; Tension and Trauma Releasing Exercises - TRE.
IX
SUMÁRIO
Introdução ......................................................................... Erro! Indicador não definido.
Capitulo 1: Violência, Violência Doméstica e Violência Conjugal: definições,
contextualização e reflexões ........................................................................................... 16
Capitulo 2: A relação Gênero, Violência e Estresse ...................................................... 22
1. Estresse: conceitos e perspectivas ................................................................ 22
2. Gênero e estresse .......................................................................................... 25
3. Estresse e relacionamento conjugal.............................................................. 29
4. Estresse, gênero e violência: uma interação a ser desvelada ........................ 30
Capitulo 3: Manejo do Estresse e Estratégias de Intervenção ........................................ 38
Exercícios para Liberação da Tensão e do Trauma (Tension and Trauma Releasing
Exercices –TRE) ..................................................................................................... 39
Capítulo 4: Método ......................................................................................................... 46
Objetivo Geral ........................................................................................................ 46
Objetivos Específicos ............................................................................................. 46
Participantes ........................................................................................................... 47
Local da pesquisa.................................................................................................... 48
Procedimentos e coleta de dados ............................................................................ 49
Análise de dados ..................................................................................................... 54
Cuidados éticos ....................................................................................................... 55
Capítulo 5: Resultados e Discussão ................................................................................ 56
1. Apresentação dos/as participantes da pesquisa ............................................ 56
2. Estresse, Gênero e Violência: a experiência inicial de mulheres e homens . 59
3. Aplicação da Técnica TRE: reações imediatas, experiências e efeitos ........ 82
4. Estresse, gênero e violência: tremer ajudou em alguma coisa? ................... 94
5. Ser homem e Ser mulher: faz diferença? ................................................... 132
X
6. Reflexão sobre o uso da Técnica TRE na intervenção em casos de violência
conjugal ................................................................................................................ 142
Considerações finais ..................................................................................................... 146
Um final na primeira pessoa ................................................................................. 152
Referências ................................................................................................................... 155
Anexo I – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ............................................ 163
Anexo II – Termo de Autorização para Utilização de Imagem e Som de Voz para fins de
pesquisa ........................................................................................................................ 164
Anexo III – Aceite Intitucional ..................................................................................... 165
Anexo IV – Parecer consubistanciado do comitê de ética do instituto de ciências
humanas da universidade de brasília ............................................................................ 166
Anexo V – Questionário 1 ............................................................................................ 170
ANEXO VI – Questionário 2 ....................................................................................... 173
Anexo VII – Roteiro de entrevista da fase de follow up ............................................... 175
Anexo VIII – Inventário de sintomas de stres para adultos de Lipp ............................ 177
XI
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Dados sociodemográficos dos/as participantes ................................ ..............57
Tabela 2: Situação inicial das mulheres do Grupo Intervenção ...................................60
Tabela 3: Situação inicial das mulheres do Grupo Comparação .................................... 64
Tabela 4: Situação inicial dos homens do Grupo Intervenção ................................68
Tabela 5: Situação inicial dos homens do Grupo Comparação...............................71
Tabela 6: Evolução das mulheres do Grupo Intervenção entre as fases de teste, pós-teste
e follow up.............................................................................................................95
Tabela 7: Evolução das mulheres do Grupo Comparação entre as fases de teste, pós-
teste e follow up ...................................................................................................103
Tabela 8: Evolução dos homens do Grupo Intervenção entre as fases de teste, pós-teste e
follow up...................................................................................................................116
Tabela 9: Evolução dos homens do Grupo Comparação entre as fases de teste, pós-teste
e follow up..........................................................................................................121
12
Meu interesse pela inserção no Programa de Mestrado Acadêmico em Psicologia
Clínica e Cultura do Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da
UnB, surgiu a partir de questões percebidas no exercício de minha atividade
profissional. Além de atuar como psicóloga clínica de abordagem psicocorporal, sou
psicóloga do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, e estou atualmente
lotada no Serviço de Assessoramento aos Juízos Criminais (SERAV). Dentre os temas
com os quais trabalho está a Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.
O SERAV atua junto aos casos de violência intrafamiliar, assessorando Varas
Criminais e Juizados Especiais Criminais do DF. A assessoria psicossocial tem como
função contribuir para a ampliação da compreensão dos fatos jurídicos e da construção
de novas possibilidades interventivas, sociocultural e subjetivamente contextualizadas.
Nos casos de violência contra a mulher, as reflexões sobre os papéis sociais e
estereótipos de gênero são ferramentas fundamentais tanto para a análise das
experiências/dos casos quanto para a intervenção. Isso porque os papéis sociais de
homens e mulheres são ainda rigidamente divididos, naturalizados e cristalizados. Eles
servem como pano de fundo para a forma como se constituem as relações entre homens
e mulheres, bem como para a forma como se dão as negociações de limites e a
resolução de conflitos no contexto da conjugalidade.
O fenômeno da violência conjugal está relacionado ao uso de formas
comunicacionais e de resolução de conflitos violentas. Reflete também as estruturas
sociais de poder entre homens e mulheres. A violência, em suas múltiplas
manifestações, tem sido considerada um grave problema de saúde pública, pelos altos
índices de incidência e pelas consequências deletérias às mulheres vítimas de violência,
aos seus filhos e também aos homens. Tal violência é marcada pela multicausalidade,
exigindo análise complexa e esforços interdisciplinares de compreensão e intervenção.
(Angelim, 2004; Minayo & Souza, 1998).
Os movimentos sociais, especialmente os movimentos feministas, e os avanços
teórico-práticos e legais, contribuíram para a ampliação da visibilidade das variadas
formas de violência doméstica nos últimos anos. A indiferença e banalização têm sido
gradativamente dissolvidas. A família é atualmente compreendida como espaço de
proteção e cuidado e, também, muito frequentemente, de opressão e violência. Somado
a isso, tem-se testemunhado o avanço e fortalecimento de ações multiprofissionais e
13
interinstitucionais direcionadas às pessoas envolvidas em situação de violência
doméstica e familiar contra a mulher (Angelim & Diniz, 2009).
O Estado brasileiro reconhece juridicamente a natureza específica da violência
contra a mulher. Considera as questões de gênero e a desproporcionalidade com que a
violência afeta as mulheres em relação aos homens (Conselho Nacional de Justiça
[CNJ], 2010). Uma das mais importantes medidas adotadas pelo país com o intuito de
enfrentar o problema da violência contra as mulheres foi a promulgação de uma lei
específica de proteção: a Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, mais comumente
conhecida como Lei Maria da Penha.
Essa lei inaugura um novo tempo político e sociocultural, mais comprometido
com mudanças profundas e paradigmáticas e com a criação de novas referências para os
relacionamentos entre homens e mulheres (e também entre mulheres e mulheres e entre
homens e homens). Seu art. 5º define violência doméstica e familiar contra a mulher
como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero e que lhe cause morte, lesão, dano
moral, dano patrimonial, sofrimento físico, sexual ou psicológico” (Brasil, 2006).
Vários mecanismos inovadores e desafiadores das estruturas de manutenção da
violência doméstica contra a mulher estão contidos no texto da lei. A referida lei
cumpre, portanto, o papel de: a) diferenciar a violência contra as mulheres como
fenômeno diverso dos outros crimes; b) facilitar a apresentação e manutenção das
queixas e denúncias; c) garantir a segurança das mulheres por meio das medidas
protetivas de urgência, que prevêem inclusive a possibilidade de decretação de prisão
preventiva para o agressor; d) prever a promoção e o fomento de uma rede social de
serviços de prevenção e intervenção junto a casos de violência contra as mulheres; e)
impedir as transações penais; f) priorizar educação e ressocialização do autor (Angelim
& Diniz, 2009).
A necessidade de atenção e de programas de atendimento às mulheres e demais
participantes das dinâmicas relacionais violentas - homens e filhos/as – é, também,
devidamente observada pela Lei 11.340/06 (Angelim, 2009; Brasil, 2006). A violência
contra as mulheres afeta, portanto, todos os membros da família. Tal fato exige o
planejamento de ações, intervenções e políticas públicas voltadas a todos os
participantes da dinâmica relacional violenta (Ghesti, Roque & Moura, 2006).
14
Essa inovação legal, embora ainda precise de maior articulação e ampliação,
permitiu o fortalecimento de uma rede pública diversificada de atendimento aos casos
de violência. A rede de atendimento é composta por: Juizados de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher - que são parte da justiça ordinária e têm competência cível
e criminal para processar, julgar e executar as causas decorrentes de violência doméstica
e familiar contra a mulher; Centros de Referência; Casas-Abrigo; Delegacias
Especializadas de Atendimento à Mulher; Defensoria da Mulher; Central de
Atendimento à Mulher – Ligue ou Disque 180; Ouvidorias; Centros de Referencia da
Assistência Social (CRAS) e Centros de Referencia Especializado de Assistência Social
(CREAS); Serviço de Responsabilização e Educação do Agressor; Polícia Civil e
Militar (CNJ, 2010).
Todo esse aparato público busca não apenas a punição a atos violentos
praticados contra as mulheres nas relações familiares e de conjugalidade. De uma forma
mais ampla, é parte de um percurso histórico e de uma mudança paradigmática no
campo das relações de gênero. É também resultado de ações de movimentos sociais e
políticos, em especial os movimentos feministas, comprometidos com a mudança e a
dissolução dos papéis estereotipados de gênero e da opressão feminina pelos homens.
Juntamente com as inovações legais que visam à prevenção e coibição da
violência contra a mulher, tem-se testemunhado o avanço e o fortalecimento de ações
multiprofissionais e interinstitucionais direcionadas tanto às mulheres quanto aos
homens agressores e seus/suas filhos/as. A necessidade de ações desta natureza são
evidenciadas nos resultados de pesquisa realizada pela Data Senado (2013), segundo os
quais 80% da população feminina entrevistada acredita que as leis isoladamente não são
capazes de resolver o problema da violência doméstica e familiar contra as mulheres.
O delineamento de formas inovadoras de intervenção faz parte de um contexto
de revisão de paradigmas socioculturais e legais, marcado pelo crescente movimento
contrário à violência contra a mulher – tanto por parte da sociedade civil quanto do
Estado. Nesse sentido, o desenvolvimento de metodologias de intervenção baseadas em
referenciais teóricos sólidos constitui-se ao mesmo tempo necessidade e desafio. A
realização de pesquisas é também de fundamental importância para o desenvolvimento
de formas adequadas de trabalho com pessoas em situação de violência (Brasil, 2006;
Ghest et al., 2006; Angelim & Diniz, 2006; 2009).
15
Esta pesquisa pretende contribuir para a construção e avaliação de propostas
interventivas adequadas aos casos de violência doméstica contra a mulher. O foco do
trabalho foi conhecer relações entre estresse, gênero e violência e avaliar os efeitos da
aplicação dos Exercícios para Liberação da Tensão e do Trauma (Tension and Trauma
Releasing Exercises - TRE) em homens e mulheres em situação de violência conjugal
judicializada. Tal intento faz parte de um esforço atual da psicologia clínica por
promover a construção de práticas socialmente contextualizadas, comprometidas com a
transformação social e que contribuam para o projeto social maior de construção de uma
sociedade igualitária, com direito a uma vida sem violência (Ghesti et al., 2006;
Angelim & Diniz, 2006).
A dissertação está organizada em cinco capítulos e considerações finais. O
referencial teórico utilizado para a pesquisa está contido nos Capítulos 1, 2 e 3. No
Capítulo 1 apresentamos conceitos e reflexões sobre violência, violência doméstica e
violência conjugal. Estatísticas nacionais recentes e literatura especializada sobre o tema
foram utilizadas para contextualizar e compreender o fenômeno da violência contra a
mulher. As relações entre estresse, gênero e violência conjugal foram abordadas no
capítulo 2. As informações teóricas deste capítulo contêm: conceituação do estresse,
modelos de compreensão do processo de estresse referenciados na literatura; as relações
entre gênero e estresse, entre estresse e conjugalidade e entre estresse e conjugalidade
violenta. O capítulo 3 apresenta a técnica TRE em termos de mecanismos de
funcionamento, aspectos neurofisiológicos envolvidos, efeitos e benefícios potenciais.
A possível aplicabilidade da técnica aos casos de violência foi discutida com base em
seus efeitos de ativação dos mecanismos naturais de autorregulação e restauração
organísmicas.
O capítulo 4 trata do delineamento metodológico da pesquisa. O capítulo 5
apresenta e discute os resultados obtidos com a pesquisa em termos de níveis de
estresse, percepção de risco e estratégias de prevenção a novos episódios de violência.
As diferenças de gênero quanto aos resultados e às potencialidades e limitações da
técnica TRE nos casos de violência conjugal foram também explicitadas e discutidas. A
última parte trata das considerações finais sobre a relevância, forças e limitações do
trabalho e o significado pessoal do desenvolvimento da pesquisa para a pesquisadora.
16
CAPITULO 1
VIOLÊNCIA, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E VIOLÊNCIA CONJUGAL:
DEFINIÇÕES, CONTEXTUALIZAÇÃO E REFLEXÕES
A violência é uma expressão da normalidade social que transforma diferenças em
desigualdade, para que seja possível a dominação, exploração e opressão. Trata o sujeito
como coisa passiva e silenciosa, constituindo-se em violação da liberdade e do direito
de ser sujeito de sua própria história. Implica desejo de mando de um sobre o outro,
mediante interiorização das vontades e ações dominantes pela parte dominada (Gregori,
2008).
O tema violência é polissêmico, complexo e controverso. Algumas das razões para
isso são as seguintes: 1) o conceito de violência é dinâmico, ligado ao que é percebido
como uma transgressão de normas e valores socialmente instituídos em cada momento
histórico, em cada contexto e em cada tipo de relação, pelos diversos atores envolvidos;
2) a violência não é uma totalidade homogênea, uma vez quese manifesta de diversas
formas - física, sexual, psicológica, patrimonial, moral; 3) as várias formas de violência
têm causalidade plural. A compreensão e intervenção junto aos casos de violência
exigem, portanto, uma articulação de saberes. Essa articulação tem se dado
paulatinamente graças aos esforços de profissionais das mais diversas áreas de
conhecimento – antropologia, sociologia, ciências jurídicas, psicologia e demais
ciências da saúde (Minayo & Souza, 1998; Lisboa, Vicente & Barroso, 2005).
A utilização da violência implica na passagem de energia aos músculos para
preparar o corpo para ataque ou luta, bloqueando-se a capacidade comunicativa. As
respostas agressivas a uma situação de conflito surgem quando outras formas de
comunicação de necessidades e reivindicações falham ou não são vistas como
alternativa viável. Uma vez que as reações violentas são utilizadas como forma de
resolução de conflitos, elas impossibilitam o estabelecimento de formas efetivas de
comunicação. Ademais, quando repetida e reiterada, a violência pode se tornar, ela
própria, a forma de comunicação eleita e assume um papel tanto de descarga da tensão
quanto de busca de significação do sujeito, a partir de sua tentativa de reafirmar seu
poder e valor (Neves & Romanelli, 2006).
17
Neves e Romanelli (2006) afirmam que a violência pode ser entendida como uma
invasão da organização afetiva e corpórea do outro, com o intento de manter este último
num espaço de dominação e subjugação. Ela envolve o uso ilegítimo e arbitrário da
força, constituindo uma transgressão a normas sociais já estabelecidas. Trata-se, assim,
de uma perturbação da ordem social a partir do exercício do poder ou ameaça de assim
fazê-lo. Por este motivo, é passível de intervenção do Estado e gera consequências
legais (Lisboa et al., 2005; Angelim, 2009; Diniz & Angelim, 2009).
Uma das formas de manifestação da violência é a que ocorre nos espaços de
relações de intimidade e de convivência familiar – a violência doméstica. Esta forma de
violência está presente de maneira marcante em todos os países do mundo, independe de
etnia, classe social e nível educacional e se faz acompanhar por importantes prejuízos ao
bem-estar, à segurança e aos direitos humanos. Esses fatos contribuem para que a
violência doméstica seja atualmente vista, nacional e internacionalmente, como uma
questão de saúde pública (Diniz, 2011).
As dinâmicas violentas, seja no contexto familiar e/ou em outras relações íntimas,
são marcadas pela presença de medo e de atitudes de coisificação do outro e de
consequente negação de suas necessidades e desejos. Além disso, estão presentes a
privação afetiva, econômica e/ou social e os processos de distorção da realidade
subjetiva e interpessoal. Esse processo acaba por gerar sentimentos de indiferença de
uns para com os outros, trocas afetivas e comunicação precárias e a disseminação de
condutas violentas e destrutivas como a forma de interação entre todos os membros da
família e destes com a rede social (Angelim & Diniz, 2003).
Há diversos mitos e dificuldades em lidar com o tema violência doméstica,
especialmente devido à dificuldade que temos em compreender as contradições que
permeiam as relações íntimas e familiares. A família é em geral concebida como um
espaço de privacidade, impassível de críticas e intervenções. Assim, o uso da violência
como uma forma usual de negociação de limites e correção de adultos entre si e entre
adultos e crianças costuma ser frequentemente ignorada. Tal fato dificultou e ainda
dificulta a criação de parâmetros a partir dos quais avaliar a adequação ou inadequação
das formas relacionais no ambiente doméstico. Há uma naturalização da violência que
ocorre nos espaços privados da família e das demais relações de intimidade, o que
contribui para a manutenção e agravamento das relações violentas (Angelim & Diniz,
2003).
18
A violência contra a mulher é uma das formas de violência doméstica que mais
tem recebido atenção nos últimos anos, tanto das organizações governamentais quanto
da sociedade civil. Discussões, reflexões e reformulações paradigmáticas no que se
refere ao lugar social ocupado pelas mulheres têm ocorrido no Brasil e em diversas
outras nações.
Pesquisa recente (Data Senado, 2013) aponta que 19% da população feminina
brasileira, com 16 anos ou mais, já sofreu algum tipo de violência. Destas, 31% ainda
convivem com o agressor e, das que convivem com o agressor, 14% ainda sofrem
algum tipo de violência. Os dados mostram também que dentre 84 países, o Brasil
ocupa o 7.º lugar no ranking de homicídios femininos. A pesquisa mostra também que
aproximadamente uma em cada cinco brasileiras reconhece já ter sido vítima de
violência doméstica ou familiar provocada por um homem. Além disso, a probabilidade
de uma mulher ser agredida pelo companheiro ou ex-companheiro é maior do que a de
ser agredida por estranhos: 65% das mulheres agredidas o foram por seu próprio
parceiro e 13%, por ex-parceiros de relacionamento. O espaço privado de convivência
familiar configura-se, assim, como palco privilegiado para o uso arbitrário da força
como forma de manutenção do poder (Data Senado, 2013).
Dados do Ligue 180, serviço de utilidade pública que orienta as mulheres em
situação de violência sobre seus direitos, confirmam esta realidade. O relatório anual
elaborado pelo serviço apontou que no ano de 2012 houve 88.685 registros de violência
doméstica por parte das mulheres brasileiras, sendo que ocorreram mais de 240 destes
registros por dia. A violência física foi a mais relatada, correspondendo a 56,65% das
formas de violência relatadas. A violência psicológica foi registrada por 27,60% das
usuárias; a moral, por 11,70%; a sexual, por 1,90%; e a patrimonial por 1,60%. Houve
também atendimento a mais de um caso por dia de cárcere privado. O relatório traz
ainda a informação de que, em 70% dos registros, os autores de violência foram os
próprios cônjuges ou companheiros das mulheres. Namorados, ex-namorados,
companheiros/maridos e ex-companheiros/ex-maridos foram os autores de violência em
89% dos casos (Ligue 180, 2012).
A perspectiva feminista compreende a violência doméstica contra a mulher como
um fenômeno que se origina e se sustenta por uma visão androcêntrica de mundo e das
relações. A conduta violenta contra as mulheres nas relações de intimidade, de acordo
com esta perspectiva, é socialmente aprendida e transgeracionalmente reproduzida. É
19
vista como uma decorrência de expectativas relacionadas a valores e papéis rigidamente
atribuídos ao feminino e ao masculino em cada cultura e sociedade em um dado
momento histórico. A violência doméstica e familiar contra as mulheres está, assim,
ligada à ideologia do patriarcado, que possibilitou a construção e naturalização das
variadas formas de discriminação e subjugação feminina a relações de poder desiguais
(Diniz, 1999, 2003, 2011; Narvaz & Koller, 2006; Angelim, 2009).
A categoria gênero diferencia o sexo biológico do sexo social. Evidencia que este
último é, portanto, historicamente construído e constitui as relações entre homens e
mulheres. Ao longo da história ocorreu um processo que atribuiu maior valor às
características e competências ligadas ao masculino, e, que consequentemente desvalorizou
atributos ligados ao universo feminino. Ao enfatizar as diferenças, fez com que estas
passassem a ser vistas como inquestionáveis e naturais (Guedes, Silva & Fonseca, 2009).
Trata-se de um fenômeno complexo, que articula relações de poder assimétricas,
dominação e submissão socialmente construídas e internalizadas por homens e mulheres. A
violência de gênero decorre, assim, da conversão dessas diferenças em desigualdade e
opressão, levando a relações de poder do tipo dominador-dominado (Araújo, 2005; De
Paula & Cols., 2008; Hartmann, 2004).
Os movimentos feministas tiveram, portanto, um importante papel na definição e
reconhecimento do que hoje denominamos violência doméstica e familiar contra a
mulher. O espaço privado da família e do casamento se tornou passível de críticas por
meio da eleição da perspectiva da problematização das relações de gênero como
ferramenta principal para dar significado às relações de poder. Foi a partir desse
momento histórico que se começou a desnaturalizar a desigualdade de poder nas
relações de intimidade. Tal fato tem permitido que as violências sejam vistas, nomeadas
e denunciadas (Angelim, 2009; Sarti, Barbosa & Suarez, 2006).
No Brasil, as discussões sobre temáticas relacionadas às diferenças sexuais e às
violências contra a mulher ganharam visibilidade especialmente a partir da década de 1970.
A participação do país nessas discussões se deu inicialmente de forma tímida e pouco
comprometida com a transformação da realidade social de vulnerabilidade feminina.
Paulatinamente houve um avanço do envolvimento nacional quanto às questões femininas
e, especificamente, quanto à violência contra a mulher. Relacionada a esse processo
histórico está a subscrição brasileira aos seguintes documentos internacionais: Convenção
Americana dos Direitos Humanos (1992); Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
20
Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção do Belém do Pará, 1994); a Plataforma
de Ação da IV Conferência Mundial Sobre as Mulheres (1995); Protocolo Facultativo à
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres
(1999, assinado pelo Brasil em 2001 e ratificado pelo Congresso Nacional em 2002)
(Angelim, 2009; CNJ, 2010; Guimarães, 2011).
Sarti, Barbosa e Suarez (2006) apontaram o fato de que os movimentos sociais - e,
especialmente, os feminismos – têm possibilitado visibilidade e criticidade à violência
contra as mulheres. Por outro lado, consideram que esses movimentos parecem ter
contribuído para a invisibilidade de outras violências, com outra lógica de construção e
manutenção. As outras violências incluiriam, para as autoras, diversos episódios de
violência praticados por mulheres contra homens, sejam familiares, companheiros,
filhos.
A utilização dos termos “vítima” para as mulheres e “agressores” para os homens
é motivo para debates e questionamentos. A Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria
da Penha, utiliza a palavra vítima para mulheres por considerá-las mais suscetíveis a
violências graves que os homens, dado o histórico de retirada da possibilidade de
autorreferência, as relações de poder e subjugação do patriarcado, a divisão rígida de
papéis masculinos e femininos e os incontáveis episódios de violência/tortura/abuso
registrados ao longo da história e culturalmente justificados por um discurso sexista
naturalizado (Angelim, 2009).
Cartilha elaborada por Soares (2005), destinada aos profissionais e voluntários
envolvidos no enfrentamento à violência contra a mulher, nos traz elucidação
importante sobre diferenças de impacto entre as violências praticadas por homens e
mulheres nas relações domésticas. A este respeito, a autora faz os seguintes
questionamentos:
Você já deve ter conhecido alguns homens que se queixam da violência de suas
parceiras, mas já ouviu falar de um homem: 1. Que vive aterrorizado, temendo os
ataques da mulher? 2. Que seja abusado sexualmente por ela? 3. Que tenha se
isolado dos familiares e amigos por pressão ou por vergonha da situação que está
vivendo? 4. Que tenha perdido a liberdade de ir aonde quer, de trabalhar ou
estudar? 5. Que viva assustado por não conseguir proteger os filhos? 6. Que se
sinta o tempo todo humilhado e desqualificado, impotente e sem saída? 7. Que
viva pisando em ovos para não despertar a ira da mulher?8. Que seja totalmente
21
dependente dos ganhos da companheira e, portanto, sem nenhuma autonomia? 9.
Que tenha perdido a auto-estima e esteja destruído psicologicamente pela
parceira? 10. Que tenha medo de deixá-la e que acabe sendo morto por falta de
proteção? (p. 17-18).
Há casos em que os homens são vitimas de agressão nas relações de intimidade.
Essas situações exigem igualmente a tomada de medidas de responsabilização de quem
pratica a violência. Contudo, esta violência frequentemente está ligada a questões
relacionais e individuais. A violência contra as mulheres, por sua vez, está associada a
um contexto social, cultural e histórico opressivo e subjugador. Esta última situação tem
servido de pano de fundo e justificado atos de violência dos homens contra as mulheres.
Tal fato explica a atenção e proteção diferenciadas oferecidas às mulheres vítimas de
violência pelo Estado Brasileiro e pela sociedade civil organizada.
O fato é que todos os que fazem parte das dinâmicas relacionais violentas sofrem
– homens, mulheres, crianças, família extensa e outros membros da rede social. A partir
dessa realidade e visando contribuir para a liberdade e igualdade entre homens e
mulheres é que devemos planejar ações, intervenções e políticas públicas. Estas devem
incluir e atender a todas/todos as/os envolvidas/os e atingidas/os pela violência
doméstica e familiar contra as mulheres. Este estudo pretende examinar as interações
gênero e violência, prestando especial atenção às formas como os relacionamentos
conjugais - especialmente os violentos - podem desencadear respostas de estresse em
seus membros.
O próximo capítulo será dedicado ao exame do estresse como dimensão importante
de ser compreendida em contextos de violência conjugal. Nesse sentido, discutiremos as
formas como a socialização de gênero mobiliza diferentes respostas ao estresse por parte de
homens e mulheres. Em seguida, problematizaremos a presença do estresse nas relações
conjugais, em especial nos casos em que estão presentes diversos tipos de manifestações da
violência conjugal. A violência conjugal será vista/entendida ao mesmo tempo, como uma
resposta socialmente construída e extremada ao estresse e também como produtora de
estresse, gerando, portanto, consequências física e emocionalmente deletérias que
demandam atenção dos profissionais envolvidos com essa problemática.
22
CAPITULO 2
A RELAÇÃO GÊNERO, VIOLÊNCIA E ESTRESSE
A palavra estresse é utilizada com muita frequência pelos meios de comunicação
e por profissionais de saúde e está presente nas conversas cotidianas entre as pessoas.
As relações entre estresse e quadros de adoecimento emocional e físico são bem
conhecidas e divulgadas, seja por estudos científicos, seja pelas manchetes de jornais e
programas televisivos. O estresse é um fenômeno de causalidade múltipla e está ligado à
avaliação subjetiva que fazemos da realidade e aos recursos que temos para lidar com as
situações da vida. Tanto a avaliação quanto a presença e suficiência de recursos de
enfrentamento dependem de diversas variáveis pessoais, relacionais e socioculturais.
Este trabalho se propõe a avaliar e discutir as relações existentes entre algumas destas
variáveis: estresse, gênero e violência conjugal.
1. Estresse: conceitos e perspectivas
O estresse é uma resposta psicofiosiológica não característica do organismo
frente a situações estressoras - boas ou penosas- avaliadas pela pessoa como uma
sobrecarga ou extrapolação de seus recursos. Um fato ou situação estressora é aquela
que exige adaptação do organismo além de seus limites, ou seja, mudanças nas formas
habituais de lidar com eventos. Quanto maior a necessidade de adaptação, maior será a
necessidade de utilização, pela pessoa, de suas reservas de energia adaptativa, o que
pode levar a um enfraquecimento físico e mental. Nesse sentido, a resposta de estresse é
uma tentativa de vencer um desafio, sobreviver a uma ameaça ou lidar com uma
adaptação necessária ao momento (Berceli, 2010; Braz, 2010; Calais, Andrade & Lipp,
2003; Gallo, 2006; Sadir, Bignotto & Lipp, 2010).
O estresse se relaciona, de forma geral, a condições de vida caóticas, conflitos
familiares e interpessoais e responsabilidades aflitivas. Um processo de estresse pode se
desenvolver em virtude de demandas internas – ansiedade, pessimismo, pensamentos
disfuncionais, pressa, competição e falta de assertividade - ou externas – estresse
laboral, sobrecarga de papéis sociais, dificuldades financeiras, fazer parte de relações de
poder autoritárias (Sadir et al., 2010).
23
Scaer (2005) afirma que o estresse é o processo de reações físicas e emocionais a
fatores internos e externos que perturbam o equilíbrio fisiológico (homeostase) de um
animal ou pessoa. Nesse sentido, as experiências traumáticas, por perturbarem a
homeostase do organismo, estão incluídas na categoria de estresse. O autor esclarece,
contudo, que nem todo estresse é traumático. O estresse pode se tornar traumático se
ocorrer num contexto de impotência e perda de controle e se o evento estressante
guardar relação com traumas anteriores da pessoa. O processo de trauma envolve,
assim, experiências de ameaça, real ou percebida, à vida. Nestas situações, a pessoa se
vê em um estado de relativa impotência.
As reações organísmicas ao estresse são acompanhadas por uma elevação dos
hormônios do estresse, as catecolaminas, relacionados à ansiedade e desconforto
emocional e físico – características da ativação do sistema nervoso simpático. O estresse
prolongado provoca exaustão das glândulas adrenais e inibe as respostas do sistema
imunológico. Além disso, relaciona-se a ansiedade, depressão, hipertensão arterial,
doenças do coração, desequilíbrios gastrointestinais, câncer e envelhecimento. Sob
estresse, os seres humanos têm menor capacidade cognitiva para processamento de
informações afetivas (Berceli, 2007; Scaer, 2005).
A resposta de estresse é processual e em geral ocorre em fases já bem definidas e
conhecidas pela literatura (Braz, 2010; Calais, Andrade & Lipp, 2003; Gallo, 2006;
Lipp, 2005; Sadir, Bignotto & Lipp, 2010; Selye, 1976). Há, em cada fase,
características, sintomatologia e consequências específicas. O modelo trifásico do
estresse propõe uma divisão do processo em três fases: alerta, resistência e exaustão.
Na fase de alerta ocorre a exposição a um estressor que desencadeia a quebra da
homeostase organísmica. Tal fato ocasiona reações do sistema nervoso simpático,
levando a um aumento da liberação de adrenalina e uma preparação para a preservação
da vida. O organismo se prepara para a reação de luta ou fuga, como forma essencial de
preservação à vida. A produção de adrenalina gera vigor e energia na pessoa, motivo
pelo qual a fase de alerta é entendida como a fase positiva do estresse. Sendo temporário
o estressor, o organismo recupera o equilíbrio naturalmente (Braz, 2010; Calais et al.,
2003; Gallo, 2006; Lipp, 2005; Sadir et al., 2010; Selye, 1976).
A segunda fase é conhecida como fase de resistência. Ocorre quando o evento
estressor perdura por um longo período de tempo ou quando é muito intenso. Nesse
caso, o organismo lança mão de ações reparadoras, resistindo ao estresse, na tentativa de
24
recuperar o equilíbrio adaptativo. Para tanto, utiliza-se automaticamente de suas
reservas de energia, o que enfraquece e fragiliza o funcionamento corporal. Nesta fase,
há uma diminuição da produção de adrenalina e aumento da produção de
corticosteroides, o que pode afetar o funcionamento do sistema imunológico. O
organismo procura uma adaptação, em virtude da necessidade de buscar a homeostase
interna, o que se faz acompanhar por reações opostas à primeira fase e muitos dos
sintomas iniciais desaparecem, dando lugar à sensação de cansaço. Há, geralmente,
sensações de desgaste generalizado e dificuldades de memória (Braz, 2010; Calais et al.,
2003; Gallo, 2006; Lipp, 2005; Sadir et al., 2010; Selye, 1976).
A última fase do modelo trifásico do estresse é a fase de exaustão. Neste
momento o evento estressor excedeu os recursos de enfrentamento do indivíduo,
exaurindo-se, então, as reservas de energia adaptativa. As consequências
psicossomáticas do estresse estão geralmente presentes. Há grande debilidade
organísmica, com o aparecimento frequente de úlceras, gengivites, ansiedade,
hipertensão arterial, dermatoses, dificuldades sexuais, problemas respiratórios e
cardíacos (Braz, 2010; Calais et al., 2003; Gallo, 2006; Lipp, 2005; Sadir et al., 2010;
Selye, 1976).
Estudos recentes têm delineado o Modelo Quadrifásico do estresse, em que se
considera a existência de mais uma fase do processo - a quase-exaustão, que ocorre
entre a fase de resistência e a fase de exaustão. Na quase-exaustão o organismo se
enfraquece e começa a adoecer por não conseguir mais resistir ao estressor. Há, no
entanto, a preservação da funcionalidade. A pessoa ainda exerce suas atividades e cuida
de suas responsabilidades, embora já com dificuldade e comprometimento (Gallo, 2006;
Lipp, 2005; Sadir et al., 2010).
Deve-se esclarecer que o estresse é uma reação protetiva, adaptativa, necessária
e natural do organismo a uma situação ameaçadora. Este processo somente se torna um
problema quando é muito intenso (experiência traumática) ou quando a exposição aos
estímulos estressores se prolonga por muito tempo. Nessas situações, o retorno ao
estado homeostático natural de não ativação é dificultado, o que traz prejuízos à saúde, à
qualidade de vida e à produtividade das pessoas (Scaer, 2005; Sadir et al., 2010).
As consequências da exposição prolongada ao estresse são muitas, dentre elas:
prejuízo do sistema imunológico, baixa dos glóbulos brancos, infecções, doenças e
envelhecimento precoce (doenças de adaptação). Além das consequências somáticas,
25
apatia, depressão, desânimo, sensação de desalento, hipersensibilidade emotiva,
irritabilidade, raiva, ansiedade e retraimento social são algumas das consequências
emocionais possíveis (Braz, 2010).
Uma situação estressante para uma pessoa pode não o ser para outra. A forma
diferencial com que cada um/a é afetado/a pelas situações estressoras e mesmo a
avaliação ou não de uma situação como potencialmente estressora depende de histórias
de vida, fatores biológicos, fatores sociais, familiares e comunitários (Gallo, 2006). Este
estudo pretende dar ênfase à interação entre estresse e as construções sociais sobre o ser
homem e o ser mulher e também à forma como os relacionamentos conjugais violentos
podem desencadear respostas de estresse nas pessoas envolvidas.
2. Gênero e estresse
As diferenças entre os sexos quanto ao estresse e às formas de lidar com ele são
apontadas pela literatura (Calais et al., 2003; Gallo, 2006; Sadir et al., 2010; Rocha-
Coutinho, 2005) e tem sido frequentemente relacionadas a marcadores biológicos,
sociais e relacionais. Essas diferenças ainda não foram suficientemente analisadas e
compreendidas, o que faz desta questão uma área nova e controvertida de reflexões e
produção científica. De qualquer forma, pode-se afirmar que a rígida adesão/imposição
dos papéis sociais de gênero, em interação com outros marcadores sociais - etnia, classe
social, nível educacional, condições de acesso a bens e serviços, dentre outros
elementos - constituem frequente fonte de estresse interno e externo para homens e
mulheres (Diniz, 1999; 2004).
Calais et al. (2003) realizaram estudo sobre estresse e qualidade de vida em
estudantes de ambos os sexos, com idades variando entre 15 e 28 anos. Os resultados
revelaram níveis maiores de estresse para as mulheres participantes da pesquisa do que
os homens. Alguns dos fatores intervenientes na vulnerabilidade ao estresse estavam
relacionados aos hormônios femininos e à menopausa. As variações cíclicas de
estrogênio e progesterona, características da experiência de vida feminina, aumentam as
respostas ao estresse e a suscetibilidade para depressão e ansiedade.
Muitos dos eventos estressantes para as mulheres são, entretanto, de natureza
eminentemente relacional e social. Os resultados do estudo de Sadir et al. (2010)
indicaram maiores níveis de estresse para as mulheres. A combinação entre ser mulher,
26
excesso de trabalho, divisão entre as responsabilidades profissionais e domésticas,
vulnerabilidade socioeconômica e inadequado repertório de respostas para
enfrentamento de situações estressoras apareceram, na pesquisa, como fatores de
vulnerabilização feminina ao estresse.
As “ funções femininas” de cuidado e sustentação na família foram naturalizadas
ao longo dos anos de vigência do patriarcado.Viver para os outros teve (e tem) como
consequência a perda da noção de identidade e das necessidades individuais. Ser
mulher, nos tempos atuais, relaciona-se frequentemente a sobrecarga de atividades,
acúmulo de exigências profissionais, pessoais, conjugais, familiares biológicas,
hormonais, sexuais e sociais. A soma de demandas históricas – relacionadas aos papéis
de esposa e mãe - e atuais - decorrentes da inserção no mercado de trabalho - constitui
uma fonte de estresse importante na vida de mulheres (Diniz & Coelho, 2005; Rocha-
Coutinho, 2005).
Os movimentos feministas e os diversos desenvolvimentos tecnológicos
contribuíram para uma mudança identitária feminina. A possibilidade de contracepção
segura e eficaz dissociou a sexualidade da procriação e permitiu a redução da
quantidade de filhos por casal. Houve um aumento das oportunidades educacionais,
ocupacionais e de participação política e comunitária para as mulheres. Estes fatos têm
possibilitado às mulheres outras experiências gratificantes e emocionalmente relevantes
além da maternidade. A inserção das mulheres no mercado de trabalho levou-as a
dividir as responsabilidades pelo sustento familiar e tem possibilitado uma revisão dos
papéis de gênero (Diniz & Coelho, 2005; Perlin & Diniz, 2005; Rocha-Coutinho, 2005).
As conquistas das mulheres no que tange à maior qualificação profissional e a
melhores espaços no mercado de trabalho, entretanto, não se fez acompanhar por
transformações significativas nas relações de gênero e nas obrigações femininas quanto
aos cuidados com a casa e com a família. A política social que busca a igualdade entre
homens e mulheres coexiste com antigos padrões de feminilidade e de masculinidade
(Perlin, 2006; Rocha-Coutinho, 2005).
Homens e mulheres parecem acreditar que os cuidados com a casa, com o
marido e com os filhos são responsabilidade da mulher. Ainda hoje as diferenças entre
maternidade e paternidade são naturalizadas e atribuídas a características próprias dos
homens e das mulheres. Esse fato amplia o conflito feminino entre a maternidade e
27
outros aspectos importantes da vida, como a vida profissional. Isso porque as mulheres
buscam, mas nem sempre conseguem, uma conciliação entre sua vida pública e sua vida
privada, ou seja, entre suas responsabilidades e obrigações e com seus ganhos na vida
pública (Guedes, Silva & Fonseca, 2009).
O ônus de articular demandas da vida privada com demandas do mundo do
trabalho recai primordialmente sobre as mulheres. A multiplicidade de papéis, as
múltiplas e ininterruptas jornadas de trabalho e as obrigações no mundo privado do lar
geram estresse e trazem consequências deletérias à saúde. A mulher tem, assim,
trabalho em tempo integral - parte não remunerado - e muitas vezes reforçado pela
dependência econômica que ainda existe em relação ao marido. Tal fato produz nas
mulheres um estado de hipervigilância que, frequentemente, gera agravos à saúde
mental (Guedes et al., 2009; Rocha-Coutinho, 2005; Santos &Diniz, 2011).
Aos homens também são impostasrígidas regras sociais de masculinidade. Os
estereótipos de gênero, tanto conferem privilégios historicamente construídos aos
homens, quanto os confinam aos papéis sociais tradicionalmente masculinos e limitam
sua autonomia para gerir a vida e os relacionamentos. A despeito das mudanças sociais
que incluíram as mulheres no mercado de trabalho, pode-se dizer que ainda há uma
pressão para que os homens sejam os chefes da família, o centro das decisões familiares
e os provedores. Espera-se também que sejam fortes, viris, ativos, destemidos,
competidores e provedores da família (Calais et al., 2003).
O treinamento social dos homens frequentemente inclui a supressão das
manifestações de afeto e o estímulo à utilização de racionalizações para se referir aos
sentimentos e sensações, o que os impossibilita, muitas vezes, de reconhecer sinais
corporais sintomáticos. Por receberem pouco treino emocional e afetivo, têm geralmente
menores habilidades de comunicação e expressão emocional assertivas. Essas
expectativas e exigências sociais têm efeitos tanto nas esferas pública quanto na
privada, comprometendo as relações familiares, de amizade e de trabalho (Aguiar, 2009;
Machin et al, 2011).
Em relação à saúde, os homens frequentemente negam dores, sofrimento e
vulnerabilidade, de forma que seja assegurada a sua identidade masculina, com
características em geral opostas ao que é socialmente considerado feminino. Eles
apresentam maior dificuldade de buscar assistência médica e cuidados, vez que a tal
busca é associada a características próprias do universo feminino e desmereceria uma
28
subjetividade socialmente treinada para ser forte, assistir e prover. Tal concepção de
masculinidade acarreta a minoração de práticas de autocuidado e a elevação da
vulnerabilidade a situações de risco à saúde (Machin et al, 2011).
Usualmente homens e mulheres adotam diferentes estratégias de enfrentamento
às situações estressantes, em decorrência das diferenças de socialização. Gallo (2006)
pontua que, diante de estresse, os homens preferem se isolar e as mulheres, por serem
mais verbais, buscam conversar sobre o que vivem. Revisão de literatura realizada por
Carlotto (2011) evidencia que os homens em situação de estresse tendem a utilizar
estratégias de enfrentamento focadas no problema, enquanto que as mulheres
geralmente utilizam estratégias focadas na emoção. Em um relacionamento conjugal,
essas diferenças podem comprometer a comunicação e a expressão afetiva, com
consequente aumento da tensão.
Calais et al. (2003) afirmam que, embora as diferenças de gênero quanto à
instalação, manutenção e enfrentamento do estresse tenham sido identificadas em seu
estudo, não se pode concluir se elas se devem realmente a um maior nível de estresse ou
ao fato de as mulheres estarem mais aptas a expressarem este tipo de desconforto.
Defendem, assim, a necessidade de que novos trabalhos sejam dedicados a um maior
esclarecimento acerca de semelhanças e diferenças, entre homens e mulheres, quanto à
severidade e às formas de manifestação do estresse. Esse tipo de estudo é fundamental
para que se possamconstruir formas de prevenção e tratamento mais adequadas e
eficazes para cada realidade.
Os papéis de gênero socialmente estereotipados influenciam a forma como
homens e mulheres se relacionam e lidam com desafios de vida, estresse, dilemas e
conflitos. A conjugalidade assume, neste sentido, palco privilegiado para a percepção e
análise de diferenças no manejo de estresse e de como estas diferenças afetam a saúde
do relacionamento e as formas eleitas - mais ou menos adaptativas - para lidar com os
conflitos relacionais. Este estudo pretende dar ênfase à variável gênero e também à
forma como os relacionamentos conjugais violentos podem desencadear respostas de
estresse em seus membros.
29
3. Estresse e relacionamento conjugal
As relações conjugais constituem um terreno onde muitas emoções são
vivenciadas cotidianamente. Carinho, ternura, frustração, raiva, decepção e tensão
podem estar presentes nas interações em um mesmo dia. Um relacionamento saudável
pressupõe o equilíbrio favorável entre individualidade e conjugalidade, comunicação
clara e assertiva, respeito à individualidade e preservação do espaço coletivo.
A satisfação conjugal depende da capacidade de lidar adequadamente com os
conflitos, decisões compartilhadas, comunicação eficaz, confiança, respeito,
compreensão e equidade, intimidade sexual e psicológica. A expressão assertiva de
desejos, sentimentos e necessidades facilita a solução de conflitos relacionais e aumenta
o senso de autoeficácia e autoestima. Além disso, a satisfação conjugal fortalece o
sistema imunológico e aumenta o tempo de vida das pessoas (Sardinha, Falcone &
Ferreira, 2009).
A insatisfação no casamento é, por outro lado, um dos maiores estressores da
vida. Está relacionada ao surgimento de transtornos psiquiátricos e enfermidades físicas.
Ademais, aumenta o risco de desenvolvimento de psicopatologias e de doenças físicas,
de cometimento de suicídio, de atos de violência (Guimarães & Couto, 2011; Machado,
2007). Quando os elementos necessários à saúde relacional e à satisfação conjugal não
estão presentes, pode-se observar uma pressão intensa para o ajustamento, extremos de
pouco envolvimento ou interdependência excessiva, estagnação, resignação, raiva e
elevados níveis de estresse (Hartmann, 2004; Sadir et al., 2010).
Após o casamento, homens e mulheres frequentemente apresentam maiores
níveis de estresse, em decorrência do acumulo de papéis e responsabilidades (Hartmann,
2004; Sadir et al., 2010). Mesmo nos relacionamentos considerados saudáveis e em que
a satisfação conjugal está presente, o conflito é inerente ao desenvolvimento familiar. É
especialmente comum quando o casal/a família passa de uma fase para a outra do ciclo
vital e quando há uma mudança que exige alteração da forma habitual de se relacionar e
solucionar problemas.
Nesses momentos, há um estresse de transição, decorrente da divisão entre
manter o status quo e o desejo/necessidade de mudança. Os rearranjos conjugais podem
ser mais ou menos saudáveis e, quando são mal adaptativos, afetam o bem-estar
psicológico e a qualidade de vida das pessoas, além de aumentar os níveis de estresse
30
(Guimarães & Couto, 2011). O estresse no relacionamento conjugal pode ocasionar a
violência entre os parceiros, podendo chegar a homicídio e suicídio e traz consequências
negativas para filhos e demais familiares (Sardinha, Falcone& Ferreira, 2009).
A vivência de situações e/ou posturas extremadas em uma relação, como a
ênfase exagerada na individualidade ou na conjugalidade, frequentemente amplia o
nível de ansiedade experimentada pelo casal e leva a estratégias automáticas e rígidas de
resolução dos conflitos. A ansiedade pode gerar, ainda, pressão por
conformidade/adaptação/acomodação, como forma de reduzi-la. A adaptação ao
funcionamento do/a parceiro/a gera assimetria na relação, dependência interpessoal e
luta pelo poder, que são fatores de risco para a dinâmica relacional violenta (Hartmann,
2004).
A violência pode ser entendida como uma ansiedade relacional atuada e como
uma forma de regular a distância e os conflitos entre o casal. É uma tentativa de
submeter o outro à sua lei, a partir de uma reatividade emocional exagerada. Nesse tipo
de dinâmica estão frequentemente presentes conflitos conjugais explícitos, situações de
oposição constante e sistemática aparentemente sem saída, além de contínuas ameaças
de separação e sucessivas reconciliações. Esse processo, conhecido na literatura como
ciclo da violência (Walker, 1999) desgasta a convivência do casal e mantém os
cônjuges em um ciclo de estresse contínuo. Trata-se, assim, de uma impossibilidade de
o casal permanecer junto e também de se separar. A relação é então mantida pela
expectativa de que o outro mude ou se renda.
4. Estresse, gênero e violência: uma interação a ser desvelada
O estudo e a compreensão dos fatores envolvidos nas situações de violência
doméstica e familiar contra as mulheres constitui um desafio. Pesquisadoras e
pesquisadores (Angelim, 2004, 2009; Diniz & Angelim, 2005; Diniz & Pondaag, 2004,
2006; Guimarães, 2009; Medeiros, 2010; Pondaag, 2003, 2009) têm-se dedicado à
explicitação de fatores socioculturais, históricos, familiares, pessoais e relacionais que
permeiam a construção e manutenção de relacionamentos conjugais violentos.
O estresse é um fenômeno relacionado à violência nas relações de intimidade.
Ele figura tanto entre os fatores desencadeadores quanto entre as consequências dos
episódios violentos nas relações de intimidade. Pode, assim, aumentar a probabilidade
31
de respostas violentas aos conflitos e também se apresentar como consequência
esperada da exposição à violência (Cohn, 2005; Fincham, Bradbury, Byrne & Karney,
1997; Lisboa, Vicente & Barroso, 2005; Moore et al., 2008; Paiva & Figueiredo, 2003).
O desafio de entender a relação entre estresse, gênero e violência torna-se,
assim, evidente e premente. A rígida construção social dos papéis, tanto individuais
quanto relacionais, onera homens e mulheres. Parâmetros, exigências e expectativas -
associados a marcadores sociais como classe, raça, nível educacional, inserção no
mercado laboral, acesso a bens e serviços, acesso à cultura e lazer - demarcam as
experiências de ser homem, de ser mulher e de relacionar-se amorosamente (Diniz,
2004, 2011). Essas questões merecem atenção e reflexão.
4.1 Homens: a obrigatoriedade de correspondência aos estereótipos de gênero
e sua relação com comportamentos violentos
O lugar privilegiado dos homens foi ostensivamente questionado pelos
movimentos feministas, o que auxiliou na denúncia de formas relacionais naturalizadas
e conduzidas por estruturas de poder e ideologias de gênero bem demarcadas. A
evolução dos estudos feministas se fez acompanhar por uma ampliação da reflexão
sobre os papéis de gênero, a partir de uma visão não biologizante e mais relacional, que
inclui os homens e as masculinidades. Essa ampliação em muito tem contribuído para a
compreensão da vivência dos aspectos psicológicos e da masculinidade por parte dos
homens e sua relação com o uso da violência em contextos de intimidade (Aguiar, 2009;
Machin et al, 2011; Moore et al., 2008).
Os homens são as principais vítimas de violência no mundo público. Por outro
lado, são os principais perpetradores de violências no mundo privado - dentre elas a
violência contra as mulheres. Tal comportamento é influenciado pelo modelo histórico
de supremacia do poder masculino nas mais diversas esferas sociais, inclusive a
doméstica. A violência serviria, então, como forma de garantir o exercício do poder e
eliminar possíveis obstáculos a ele. A desigualdade gera violência ao mesmo tempo em
que esta produz e mantém a desigualdade (Angelim & Diniz, 2006; Angelim, 2009;
Diniz, 2011; Guimarães, 2009).
As mudanças até agora alcançadas quanto à flexibilização dos papéis de gênero
feminino e masculino não foram suficientes para promover a igualdade entre homens e
32
mulheres. Há ainda que considerar as diferenças de inserção dessa reflexão em função
de classe social. O fato é que predomina ainda um modelo hegemônico de
masculinidade, que coexiste com modelos alternativos e de crítica a ele. Este modelo
hegemônico prima, entre outros pontos, por enfatizar a relação entre masculinidade viril
e violência/competição. A violência surge, então, como uma forma de manutenção dos
atributos masculinos e imposição de respeito (De Paula et al., 2008).
A forma como os homens são socializados gera uma forte pressão para que eles
ajam em correspondência às exigências sociais. Ameaças às normas socialmente
impostas, especialmente no que diz respeito à proeza física e sexual e ao status na
família, levam a estresse ligado aos papéis de gênero. A rígida adesão aos papéis de
gênero socialmente estereotipados (“hipermasculinidade”) pode estar relacionada a altos
níveis de agressão direta, labilidade emocional, baixa autoestima, ansiedade, depressão,
uso abusivo de álcool e outras drogas e atitudes negativas relacionadas às mulheres
(Cohn, 2005; Hartmann, 2004; Moore et al., 2008).
O comportamento agressivo pode ser adotado como estratégia de enfrentamento
diante dos sentimentos negativos e estresse, gerados pela necessidade de corresponder
ao modelo ideal de masculinidade. Nas situações em que os homens sentem sua
masculinidade ameaçada ou questionada, costuma haver uma tentativa de manter o
senso de controle e poder através da adesão rígida a papéis socialmente normatizados.
Diante disso, aumenta-se o risco de emissão de comportamentos coercitivos ou abusivos
como forma de restabelecimento da masculinidade e de manutenção das normas sociais.
A violência teria o papel, portanto, de garantir o cumprimento das normas sociais, a
manutenção da dinâmica social dominante e o exercício do poder (Aguiar, 2009; Cohn,
2005; Diniz, 2011; Diniz e Pondaag, 2004, 2006; Moore et al., 2008; Pondaag, 2009).
A violência por parte dos homens nas relações de intimidade é entendida por
Hartmann (2004) como uma conduta aprendida social e transgeracionalmente. Os
homens se comportam de maneira violenta quando sentem não poder manter a
superioridade masculina por outros meios, de forma a confirmar a relação de
dominação-subordinação. Por outro lado, a violência afirma também a identidade de
submissão da pessoa agredida, de acordo com os mandatos sociais que a colocam em
situação de inferioridade (Hartmann, 2004).
Não há um perfil de homens autores de violência conjugal, conquanto seja
possível elencar algumas de suas características, dentre elas: a) concepções sexistas e
33
rígidas sobre os papeis sociais de homens e mulheres; b) dificuldade em comunicar seus
sentimentos, uma vez que a expressão emocional é relacionada à fraqueza e
feminilidade; c) limitação da expressão verbal em consequência do processo de
socialização; d) isolamento social e a falta de oportunidade de falar com os outros sobre
temores, dificuldades e conflitos, em virtude de baixas habilidades de comunicação; e)
necessidade de poder, dominância e respeito (Aguiar, 2009; Cohn, 2005; Hellmuth &
McNulty, 2008; Pondaag, 2009;).
Além do uso de formas violentas de resolução de conflitos, há uma forte
tendência entre homens a fazer uso de racionalização para explicar suas condutas. Tal
comportamento implica minimização ou ausência de autopercepção como pessoa
violenta. Frequentemente os homens autores de violência conjugal justificam a
violência a partir do que consideram provocações da esposa, problemas financeiros,
estresse gerado no trabalho ou nas relações sociais cotidianas, ingestão de bebida
alcoólica no dia da agressão, entre outros fatores. A violência aparece então como a
forma justificada e escolhida para comunicar desconfortos, solucionar problemas
relacionais e lidar com o estresse (Aguiar, 2009; Fincham et. al, 1997).
Homens autores de violência conjugal em geral não possuem antecedentes
criminais, com exceção de outros episódios de violência contra a mulher. O contexto
conjugal e familiar é, assim, selecionado como receptor das ações violentas. Em outros
contextos sociais e com outras pessoas que não a companheira geralmente há
autocontrole e as explosões de ira e as soluções violentas para os conflitos são evitadas
(Aguiar, 2009; De Paula et al., 2008; Fincham et al., 1997; Pondaag, 2009).
A consciência da gravidade do fenômeno da violência doméstica contra as
mulheres motivou a criação de programas de atendimentos às mulheres vítimas de
violência. Essas intervenções levaram à constatação sobre a necessidade de que os
homens também fossem atendidos, afim de que assumissem a violência, reconhecessem
a necessidade de mudança e recebessem o auxílio necessário para lidar com seu
sofrimento. A realização e avaliação de intervenções dedicadas a homens autores de
violência conjugal ou que os incluam são, porém, recentes e escassos(Aguiar, 2009).
Esta pesquisa incluiu homens e mulheres em situação de violência como
participantes, dada a necessidade de uma visão integral do fenômeno e diante da
escassez de estudos que oportunizem a compreensão sobre masculinidades e violência.
O intuito maior foi o de contribuir com o desenvolvimento de intervenções eficazes
34
tanto nos casos em que a dinâmica relacional violenta já está instalada, quanto na
prevenção à ocorrência de episódios de violência.
4.2 Mulheres: As Consequências Deletérias da Exposição à Dinâmica
Relacional Violenta
A exposição à violência doméstica traz prejuízos à saúde física, mental e
reprodutiva da mulher, constituindo uma ameaça à vida e produzindo diversos sintomas.
Tal exposição está associada a pior qualidade de vida, maior procura por serviços de
saúde, maior emissão de comportamentos de risco - sexo desprotegido, tabagismo,
abuso de álcool e outras drogas, suicídios e tentativas de suicídio. Por estes motivos, o
sistema de saúde é continuamente pressionado pelas demandas ligadas à violência, seja
nos serviços de urgência, seja nos contextos de atenção especializada, reabilitação física
e psicológica e de assistência social (Guedes et al., 2009).
A violência doméstica e familiar contra a mulher produz alterações e
consequências físicas, emocionais e sociais que podem ser imediatas ou manifestar-se
apenas tardiamente. As mulheres vítimas de violência relatam diversos sintomas, em
decorrência do estresse em lidar continuamente com agressões verbais, físicas,
patrimoniais e sexuais, além de humilhações e restrições dos direitos a tomar decisões, a
ir e vir e a conviver socialmente com amigos e familiares. O impacto na saúde física e
mental é tanto maior quanto mais grave a violência e maior o tempo de exposição a ela
(Adeodato et al., 2005; Andrade, Viana & Silveira, 2006; Guedes et al., 2009; Lisboa et
al., 2005; Medeiros, 2010; Minayo & Souza, 1998; Ribeiro et al., 2011).
A Associação Psiquiátrica Americana faz referência a um conjunto de sintomas
presentes nesse contexto: diminuição da modulação dos afetos, comportamentos
impulsivos e autodestrutivos, sintomas dissociativos e doenças somáticas. A autoestima
é afetada e as mulheres tendem a apresentar sentimentos de impotência e incapacidade,
vergonha, desespero, hostilidade, retraimento social, sensação de estar em perigo
constante, isolamento social, mudança das características de personalidade prévia
(Lisboa et al., 2005).
A exposição feminina à violência doméstica também pode gerar transtornos de
ansiedade, pânico, fobias, distúrbios obsessivos compulsivos, depressão, fadiga,
transtornos alimentares, abuso de álcool e de outras substâncias psicoativas, doenças
35
físicas com forte componente psicossomático (como síndrome do intestino irritável,
mudanças do sistema endócrino, fibromialgia e dor crônica), comportamentos de
automutilação. As taxas de suicídio e de comportamentos auto-lesivos são também mais
comuns entre as mulheres vítimas de violência doméstica (Adeodato et al., 2005;
Andrade et al., 2006; Diniz & Angelim, 2003; Guedes et al., 2009; Lisboa et al., 2005;
Medeiros, 2010; Waiselfisz, 2012).
Mulheres vítimas de violência conjugal apresentam menor satisfação com a
relação, maiores níveis de raiva e de ativação do sistema nervoso autônomo, maior
probabilidade de desenvolvimento de neoplasia cervical e problemas cardíacos e
somáticos. Além disso, referem maior quantidade de sintomas físicos como: dores
crônicas, problemas ginecológicos, doenças sexualmente transmissíveis, dor pélvica,
infecções do trato urinário, perda de apetite, problemas digestivos e gastrointestinais,
sintomas neurológicos, problemas cardíacos, hipertensão arterial, insônia (Paiva &
Figueiredo, 2003; Guedes et al., 2009).
Adeodato et al. (2005) realizaram pesquisa com mulheres que formalizaram
queixa contra seus parceiros na Delegacia da Mulher do Ceará por terem sofrido
violência conjugal. Os resultados revelaram que: 65% apresentaram escores elevados
em sintomas somáticos; 78% em sintomas de ansiedade e insônia; 26% em distúrbios
sociais; 40% em sintomas de depressão e 61% apresentaram pontuação na escala Beck
acima de oito, o que sugere depressão moderada ou grave. Além disso, 38% das
mulheres pensaram na possibilidade de suicídio. A pontuação para depressão era maior
quando as mulheres relatavam sentimentos de culpa pela agressão sofrida.
Lisboa et al. (2005) realizaram estudo com 2.300 mulheres portuguesas usuárias
de Centros de Saúde. Os resultados mostraram que houve maior incidência, entre as
mulheres que sofriam violência nas relações de intimidade: equimoses/hematomas,
hemorragia, intoxicações, lesões genitais, obesidade, asma, queimaduras, palpitações,
tremores, colite, cefaléias, vômitos, dermatites, úlcera, dificuldades respiratórias,
náuseas, hipertensão arterial, insônia, redução do desejo e/ou resposta sexual. Além
disso, muitas mulheres relataram sentirem-se sempre desesperadas, culpadas,
angustiadas, ansiosas, tristes, com uma sensação de vazio e de falta de valor pessoal.
As experiências mais comuns de estresse pós-traumático ocorrem entre as
mulheres vítimas de violência doméstica, estupro e abuso sexual (Berceli, 2007). O
estresse pós-traumático está relacionado a um acontecimento traumático, o qual é
36
internamente experenciado de forma repetitiva. A pessoa busca então evitar os
estímulos associados ao incidente e há um nível constantemente aumentado do estado
de vigilância/alerta (Berceli, 2010; Diniz & Angelim, 2003; Medeiros, 2010).
Possíveis sintomas de estresse pós-traumático incluem flashbacks (lembranças
intrusivas), perturbações do sono, perda de memória, falta de concentração, pesadelos,
evitação simbólica de pessoas/coisas/eventos, irritabilidade, desconexão emocional,
resposta exagerada a situações corriqueiras, restrição afetiva, ansiedade. Além disso,
este quadro de adoecimento causa mudanças químicas no sistema nervoso central. Os
efeitos cumulativos dessas mudanças químicas aumentam o risco de hipertensão,
deficiência imunológica e perturbações na percepção da dor (Berceli, 2007, 2010;
Lisboa et al., 2005; Medeiros, 2010).
Cabe, por fim, salientar as consequências negativas da violência sobre a saúde
reprodutiva da mulher. Os prejuízos são muitos e dentre eles podemos enumerar:
gravidez não desejada, infertilidade, dificuldade em estabelecer um planejamento
familiar, realização de abortos ilegais, complicações resultantes de gravidezes de alto
risco e da falta de acompanhamento médico, doenças sexualmente transmissíveis, medo
de contato e perda do prazer sexual. Ademais, pesquisas mostram que a violência
durante a gravidez é comum e cria risco para a saúde da mãe e do feto. A associação
entre estes prejuízos à saúde reprodutiva e a própria situação de violência têm se
constituído como fator de risco para a prevalência de transtornos mentais, limitado
desenvolvimento pessoal e profissional e dificuldade de estabelecer relacionamentos
interpessoais e afetivos. (Andrade et al., 2006; Lisboa, Vicente & Barroso, 2005).
Walker (2009) afirma que mulheres maltratadas em seu ambiente doméstico
frequentemente apresentam entorpecimento emocional e evitação comportamental da
situação, por meio de minimização, repressão, negação e depressão. Esses efeitos da
violência reduziriam a capacidade de autoproteção e a segurança acerca de seu valor e
de seus limites, aumentando a propensão a aceitar a vitimização como sendo parte de
sua condição de ser mulher. É comum ocorrer isolamento social, constrição afetiva e
autoconceito distorcido (Adeodato et al., 2005; Andrade et al., 2006; Medeiros, 2010;
Walker, 2009).
A violência conjugal deve ser entendida, portanto, como um forte agente
estressor, que desencadeia tanto avaliação primária – reconhecimento de uma situação
como perigosa – quanto avaliação secundária – revisão de recursos para enfrentamento
37
esta situação. De acordo com Paiva e Figueiredo (2003), a exposição repetitiva a
estresse psicológico pode fazer emergir depressão, hostilidade, raiva e agressividade,
visto serem estas emoções negativas relacionadas ao sistema imunitário, que guarda
íntima relação com a regulação organísmica ao estresse.
A revisão da literatura realizada revela uma escassez de estudos dedicados
especificamente às relações entre estresse e violência. A escassez é ainda maior quando
se pretende pesquisar as interações entre estresse, gênero e violência. Além disso, a
maior parte dos artigos e estudos encontrados sobre o tema faz menção apenas às
mulheres, tratando de estresse pós-traumático e outras consequências físicas e
emocionais da exposição à violência doméstica. Mesmo nesses estudos, entretanto, o
estresse é situado como uma dentre as muitas consequências deletérias da exposição à
violência, e não como o próprio objeto de pesquisa.
Uma melhor compreensão dos impactos da violência para mulheres e homens,
bem como de seus fatores desencadeantes, é fundamental para o planejamento de
intervenções adequadas. Essa compreensão deve ser utilizada de maneira política e
compromissada com a mudança social e não para justificar as condutas violentas ou
patologizar as pessoas envolvidas em situação de violência. O dimensionamento do
sofrimento envolvido nas dinâmicas relacionais violentas deve compor um diagnóstico
da gravidade e desumanidade da questão, auxiliando então na adoção de posturas
afirmativas de intervenção, combate à violência e formulação de políticas públicas.
38
CAPITULO 3
MANEJO DO ESTRESSE E ESTRATÉGIAS DE INTERVENÇÃO
O Sistema Único de Saúde - SUS - tem aberto espaço para revisão e crítica aos
modelos puramente biológicos de saúde pública tradicional. A proposta atual leva em
conta que os processos de saúde-doença são fenômenos também sociais (Guedes et al.,
2009; Diniz, 2004). Nesse sentindo, pode-se afirmar que as concepções identitárias de
gênero moldam não apenas as maneiras de conceber o corpo, a saúde e a doença, como
também os serviços de saúde e os modelos interventivos buscados e oferecidos – de
maneira distinta – para homens e mulheres (Machin el al, 2011). A crítica às concepções
de gênero estereotipadas e a detecção de seus efeitos deletérios à saúde física,
emocional e relacional fazem-se acompanhar pela necessidade de revisão dos modelos
de assistência e de políticas públicas de promoção e prevenção em saúde.
O modelo de saúde pública tradicional tende a ignorar as demandas socialmente
produzidas. A violência conjugal é permeada por contradições decorrentes de relações
de gênero socialmente construídas e desiguais. A abordagem e a intervenção nestes
casos de requerem a consideração dessa dimensão do fenômeno, que possibilite uma
conceituação ampliada de saúde, além de ações intersetoriais e integralidade da atenção.
Os prejuízos sociais, culturais, emocionais e corporais relacionados às dinâmicas
relacionais violentas, para todas as pessoas envolvidas, devem ser vistos como fatores
desencadeadores ou consequências da situação vivida e não como fatos fortuitos e
descontextualizados. Deve-se oferecer às mulheres e também aos homens recursos
adicionais para a percepção do ponto onde estão e para a tomada de decisões afirmativas
– incluindo busca de suporte e ampliação da rede social de apoio. Esta postura amplia as
chances de mudança e de interrupção da violência.
A compreensão das relações entre estresse e violência doméstica constitui tema
relevante de estudo e pesquisa, uma vez que pode servir de base para o delineamento de
intervenções adequadas, inovadoras e eficientes. Espera-se que este entendimento
ofereça um espelho a partir do qual mulheres e homens possam construir reflexões e
autopercepções acerca de sua história relacional, sobre o seu presente e sobre
possibilidades de transformação de sua realidade. Transformações estas decorrentes de
uma mudança social, mas também de uma busca autônoma de mudança da própria vida.
39
Esta pesquisa dedicou-se à compreensão das relações entre estresse e gênero em
homens e mulheres que vivenciaram situações de violência conjugal e que receberam
intervenção do Sistema Judiciário. Além disso, propôs-se a verificar os impactos da
aplicação de uma técnica de manejo de estresse – Exercícios para Liberação da Tensão e
do Trauma (Tension and Trauma Releasing Exercises - TRE) - sobre os níveis de
estresse, emissão de comportamentos violentos e outras variáveis importantes para a
construção/manutenção/dissolução das dinâmicas relacionais violentas. Dentre essas
variáveis dedicou-se atenção especial às estratégias de evitação da violência e de
autoproteção. Segue abaixo a apresentação da técnica e de sua aplicabilidade.
Exercícios para Liberação da Tensão e do Trauma (Tension and Trauma Releasing
Exercices TRE)
A sequência de Exercícios para Liberação da Tensão e do Trauma - TRE - foi
desenvolvida por David Berceli, terapeuta e pesquisador norte-americano. Estes
exercícios têm demonstrado ser uma forma segura de redução do estresse, da ansiedade
e das tensões corporais profundas. É também uma prática complementar muito útil no
processo de restabelecimento pós-trauma. A técnica é fruto de pesquisas realizadas pelo
autor ao longo dos últimos 15 anos. Já foi ensinada para milhares de pessoas, de
diversos lugares do planeta, apresentando resultados seguros e eficazes na redução da
tensão e recuperação de experiências traumáticas e estressantes (Berceli, 2006; 2007;
2008, 2010).
A sequência de exercícios foi criada com base nos conhecimentos científicos a
respeito das respostas corporais ao trauma e ao estresse. O processo de traumatização
pode ocorrer em todos os seres humanos e, da mesma forma, o processo de restauração
e cura é também inerente a todos os seres humanos. A premissa básica da TRE é a de
que os seres humanos possuem uma capacidade orgânica e natural de restauração e
restabelecimento seu estado de saúde após experiências estressantes e traumáticas
(Berceli 2006, 2010).
Todas as reações humanas aos traumas e situações estressantes estão
relacionadas a uma combinação de aspectos psicológicos, neurológicos e fisiológicos.
Essas reações são autônomas, inconscientes e instintivas e a anatomia, a neurologia e a
bioquímica mudam durante a exposição a situações traumáticas e/ou estressantes. As
intervenções terapêuticas que buscam contribuir para a recuperação do trauma e do
40
estresse devem, portanto, considerar essa intensa relação entre os processos do
funcionamento humano. Isto implica intervir não apenas para o insight e elaboração
cognitiva da experiência, mas de forma a favorecer a regulação das respostas corporais
às situações adversas (Berceli, 2010).
Os músculos são programados para contrair em situações de estresse, ansiedade
ou trauma, de forma a proteger o corpo de danos e até mesmo de possível morte.
Durante uma situação avaliada como perigosa, os músculos flexores (anteriores) se
contraem, curvando o corpo para frente de modo que suas partes mais vulneráveis -
órgãos vitais, genitais e cabeça - fiquem protegidas de possíveis danos contra a vida.
Além disso, há uma liberação de produtos bioquímicos – adrenalina, cortisol e opióides
- que permitem ao organismo as respostas naturais de defesa e autopreservação.
Cessado o risco, o natural é que o corpo possa descarregar o excesso de tensão muscular
e bioquímica. Esse processo possibilita o retorno ao estado de relaxamento e previne o
desenvolvimento de dores físicas e danos à saúde (Berceli, 2006, 2007, 2010).
O conjunto muscular que permite esses movimentos corporais é composto pelos
músculos psoas, que conectam as costas, as pernas e a pélvis e sobrepõem-se aos
músculos do diafragma e da espinha. Toda esta área é fundamental na defesa do
organismo e um grande número de nervos simpáticos, ligados às respostas de luta e
fuga, são encontrados nesta região do corpo. Assim, esses músculos possibilitam as
respostas corporais de autopreservação e se contraem durante qualquer experiência
traumática ou intensamente estressante. Para aliviar as respostas traumáticas seria
necessário o relaxamento desse grupo muscular.
Os tremores, considerados como sinais de medo e fraqueza na nossa cultura, são
na verdade mecanismos naturais e primitivos de autorregulação organísmica após
eventos estressantes ou traumáticos. Eles permitem a descargado excesso de tensão
muscular e de produtos químicos que sobrecarregam o corpo em virtude de um evento
estressante, permitindo o retorno ao estado de descanso e relaxamento. (Berceli, 2006,
2007, 2010; Levine, 2004, 2009).
Esses tremores, conhecidos como tremores neurogênicos, são respostas
neurológicas involuntárias e produzem relaxamento físico e redução da ansiedade. O
reequilíbrio corporal se dá por meio da interrupção do eixo hipotálamo-glândula
pituitária-glândula adrenal (HPA), envolvido na fisiologia do estresse. Esse eixo liga o
sistema límbico do cérebro às glândula adrenais, que produzem hormônios (as
41
catecolaminas: adrenalina, noradrenalina e cortisol) em resposta ao estresse físico ou
psicológico, preparando o corpo para as resposta de ataque ou fuga (Berceli, 2007).
Quando o eixo HPA é ativado no sistema límbico cerebral, o sistema nervoso
autônomo é também afetado em nome da sobrevivência do organismo. Assim, a
homeostase do organismo humano é desfeita. A ativação persistente e prolongada do
eixo HPA cria problemas secundários ao organismo humano, visto que ativa apenas as
funções diretamente relacionadas à sobrevivência e suspende todas as outras. Assim,
por exemplo, a produção dos hormônios de crescimento e reprodução, a digestão e as
atividades do sistema imunológico são interrompidas. Quando, por outro lado, o eixo
HPA é desativado, o sistema nervoso parassimpático fica dominante e a pessoa retorna
ao estado de relaxamento, com a redução do estresse e da ansiedade (Berceli, 2007).
O criador da técnica aponta que, embora cada um/a de nós possa facilmente
engatilhar as respostas de estresse e ansiedade, temos mais dificuldades em desativar o
eixo HPA quando sua atividade não é mais necessária. Assim, as respostas de estresse
podem persistir mesmo depois que o evento estressante já tenha passado. Os seres
humanos são socializados para inibir e/ou amortecer os mecanismos naturais de alívio
do estresse, utilizados pelos outros mamíferos. Isso porque os tremores são
experenciados como movimentos não controláveis – e por isso frequentemente
desconfortáveis - e são associados a medo e fraqueza. Gera-se, então, um descompasso
entre o corpo e o ego, dificultando a recuperação natural (Berceli, 2006).
A supressão se dá a partir de contrações musculares que impedem a descarga da
tensão. Caso não haja oportunidade posterior de descarga, o corpo continua em estado
de alerta, como se a situação de risco ainda estivesse presente, resultando em um estado
constante de prontidão e estresse. Dessa forma, cria-se um ciclo psicofiológico que
levará à repetição do padrão crônico de proteção e defesa, associado ao quadro de
transtorno do estresse pós-traumático. As reações pós-traumáticas, assim, derivam da
excitação residual não descarregada. Por outro lado, o mecanismo natural de liberação,
se permitido, envia ao cérebro um sinal de que o perigo passou e é então possível a
recuperação e o retorno ao descanso (Berceli 2006, 2007, 2010; Levine, 2004, 2012;
Scaer, 2001).
Situações de estresse e/ou trauma intensas e/ou repetidas provocam emoções e
sentimentos muito intensos e que superam a capacidade de elaboração e processamento
da experiência por parte de quem as vivencia. Nesses casos, são frequentes as respostas
42
defensivas de congelamento e dissociação, que são uma tentativa do organismo de
reduzir a dor diante da iminência de novas experiências ameaçadoras. A resposta de
congelamento está associada a altos níveis de ativação simpática e parassimpática,
simultaneamente, e o resultado é uma imobilização do sistema de autoproteção. A
dissociação é a perda temporária de conexão com os pensamentos, sensações ou
sentimentos. Nas duas reações as sensações normais são reduzidas e a pessoa pode
sentir frio, formigamento ou dormência (Berceli, 2008, 2010).
Reações de dissociação estão presentes em todas as pessoas traumatizadas, com
diferenças de intensidade e curso de acordo com as características de cada caso. Pode-se
dizer que a dissociação é uma das principais respostas ao estresse, variando entre
respostas mais sutis, como uma falta de conexão com as próprias sensações corporais,
até sintomas dissociativos severos e presentes nos quadros de transtorno de estresse pós-
traumático (Cassimo, 2009).
O estado de constante ativação, decorrente da excitação residual não
descarregada, é preocupante tanto pelo mal estar que provoca quanto pelas limitações
que impõe. Os efeitos neurológicos do trauma e estresse crônico dificultam a
autopercepção dos sinais corporais e ambientais e também a tomada de decisões. A
exposição contínua ou repetida a situações traumáticas pode obscurecer a objetividade
quanto a decisões ligadas ao cuidado com a saúde, com a segurança e com a integridade
física. Isso ocorre porque há um ajustamento à situação de perigo, considerada natural
depois de certo tempo. Nesse caso, uma ajuda externa é necessária para a tomada de
decisões responsáveis (Berceli, 2010; Levine, 2012).
Em casos de traumas prolongados, como a exposição a múltiplos episódios de
violência, o neocórtex é “sequestrado” pelo sistema límbico do cérebro, que toma
decisões apenas com base nas emoções. Pessoas expostas à violência doméstica podem,
assim, perder ou ter reduzida sua capacidade de autoproteção e ponderação sobre
alternativas de autopreservação. A ativação do sistema límbico tem, sem dúvida, uma
função protetiva, pois ajuda as vítimas de violência a suportar situações de extrema
tensão e ameaça, amortecendo o sofrimento físico e emocional. Este processo, no
entanto, obscurece a capacidade de reconhecer o perigo e a tomar medidas efetivas de
autoproteção(Berceli, 2010; Levine, 2012).
Flores e Ajnhorn (1997) e Moskowitz (2004) afirmam que também nos autores
de violência as capacidades de avaliação e reação adequada à situação relacional estão
43
prejudicadas. Os autores defendem a relação entre estados dissociativos e condutas
violentas, uma vez que os autores de violência muito frequentemente foram expostos à
situação traumática de sofrerem ou presenciarem violência durante seu
desenvolvimento. Nesses casos, são comuns as reações emocionais desproporcionais,
não racionais, pouco empáticas e agressivas, pela maior propensão destas pessoas a
perceber estímulos externos – ambientais ou relacionais – como ameaça à sua
integridade.
Congelamento e dissociação são correlatos neurofisiológicos do conceito de
anestesia emocional, descrito por Ravazzola (1997, 1998), que é uma importante
referência nos estudos sobre a violência doméstica contra as mulheres. A autora afirma
que a anestesia emocional é experimentada tanto pelos homens quanto pelas mulheres
em situação de violência doméstica, que “não vêem que não vêem”, naturalizam a
violência e também os danos dela decorrentes. Esse fenômeno é o que permite a
construção e perpetuação da violência nas relações de intimidade, a despeito do caráter
absurdo de sua utilização e das consequências deletérias para autores, vítimas e
sociedade.
A anestesia emocional, de acordo com Ravazzola (1997, 1998) é oposta à reação
natural esperada diante da vivência de situações de violência na vida cotidiana. A
resposta natural das pessoas que sofrem, praticam ou testemunham a violência seria
sentir dor, indignação, raiva, impotência e vergonha. Esse mal-estar é o que
possibilitaria às pessoas envolvidas a tomada de medidas para simples interrupção da
violência. A presença das anestesias emocionais, o que também poderíamos chamar de
congelamento e/ou dissociação, impede essa reação natural de autoproteção e de
empatia e cuidado em relação às outras pessoas. Diante disso, é fundamental oferecer às
pessoas em situação de violência contra a mulher ferramentas para redução dos
processos de anestesia, tanto para lidar com suas consequências da dinâmica relacional
violenta já instalada quanto para prevenir as soluções violentas aos conflitos relacionais.
Os Exercícios para Liberação da Tensão e do Trauma (TRE) induzem os
tremores neurogênicos artificialmente por meio de uma série de sete exercícios. Esses
exercícios favorecem a liberação de contrações musculares profundas oriundas de
traumas e choques, a liberação dos excessos bioquímicos produzidos pelo organismo
depois das respostas de fuga, luta e congelamento e o retorno ao estado de relaxamento.
Os tremores são induzidos a partir do centro de gravidade do corpo, o que facilita sua
44
reverberação por todo o corpo, dissolvendo suas tensões. Eles se iniciam na parte
superior das coxas e atingem então o músculo psoas. Depois disso, atingem a pélvis, a
lombar, a espinha, o pescoço, os braços e as mãos. Depois dos exercícios, pode-se
chegar a um estado de cansaço muscular como o que sentimos depois de musculação,
ou pode-se chegar a um estado de muita disposição e vigor (Berceli & Napoli, 2006;
Berceli, 2010).
Massagens e exercícios físicos dissolvem tensões localizadas na superfície do
corpo, visto que provocam a liberação de noradrenalina, dopamina e serotonina -
substâncias estimulantes e de efeito antidepressivo. Essas ferramentas, entretanto, não
dissolvem as tensões profundas oriundas de experiências traumáticas ou estressantes
repetidas e que atingem o grupo muscular psoas. Isso porque os exercícios aeróbicos
estão sob o controle do córtex, ou seja, estão sob o controle da vontade consciente. A
pessoa que os pratica, então, alcança apenas o relaxamento permitido por esta estrutura
cerebral (Berceli, 2007).
As intervenções puramente verbais são focadas nas tarefas cognitivas e também
exigem a participação do neocórtex. Estas intervenções têm eficácia reduzida durante
ou imediatamente depois de um evento estressante e/ou traumático, quando em geral as
atividades corticais se encontram significativamente reduzidas. As respostas ao estresse
(de ataque, fuga ou congelamento), em contrapartida, são mediadas pelas estruturas
cerebrais subcorticais - sistema límbico, cérebro reptiliano e sistema nervoso autônomo
- que não estão sob o controle consciente. Essa disparidade entre o controle consciente
do córtex e o controle inconsciente do sistema límbico é o que faz com que haja uma
resposta de estresse a um evento, mesmo que a pessoa tente ficar calma e tome atitudes
conscientes com este propósito (Berceli, 2007, 2010; Nascimento, 2010).
As técnicas que atuam sobre o campo somático são, portanto, fundamentais para
o equilíbrio das respostas de estresse traumático congeladas na musculatura e nos
tecidos, possibilitando o estabelecimento de novas conexões cerebrais e a modificação
de sintomas psicossomáticos. Os Exercícios para Liberação da Tensão e do Trauma
(TRE) atuam sobre os processos neurológicos instintivos, independentes da atividade
cortical. Os tremores neurogênicos, ativados com o auxílio da técnica, são gerados pelo
sistema límbico do cérebro e reduzem automaticamente as respostas não voluntárias ao
estresse. Essa característica permite o auxílio a pessoas severamente estressadas e/ou
traumatizadas, com menores riscos de retraumatização e sem a necessidade de confronto
45
das defesas psicológicas e dos sintomas de evitação da situação traumática, comuns nos
casos de transtorno do estresse pós-traumático (Berceli, 2006, 2007, 2010; Berceli &
Napoli, 2006; Nascimento, 2010; Scaer, 2001).
A sequência de TRE é um método que tem o potencial de transcender as
limitações culturais e sociais, visto que ativa mecanismos naturais e universais do
organismo humano. Os exercícios podem ser realizados individualmente ou com
grandes grupos e são facilmente integrados à rotina diária de autocuidado. A técnica
pode ser uma alternativa ou um complemento às intervenções psicoterapêuticas e dá
autonomia às pessoas para que administrem seu próprio processo de recuperação do
trauma e do estresse. Isso porque pode ser autoaplicada com segurança e sem a
necessidade obrigatória de um facilitador ou terapeuta, o que é uma importante
consideração quando se trabalha com grandes populações traumatizadas que não têm
acesso a psicoterapias e outros tipos de atendimento. Esta pesquisa propõe a avaliação
do uso da técnica como ferramenta de manejo de estresse em situações de violência
conjugal (Berceli, 2007, 2010; Berceli & Napoli, 2006).
46
CAPÍTULO 4
MÉTODO
Esta pesquisa teve natureza qualitativa, de forma a melhor compreender a
complexidade e profundidade dos fenômenos estudados. Teve também caráter
exploratório. Apresentamos a seguir os objetivos e o delineamento da estratégia
metodológica.
Objetivo Geral
O objetivo geral foi avaliar os efeitos da aplicação dos Exercícios para Liberação
da Tensão e do Trauma (Tension and Trauma Releasing Exercises -TRE) em homens e
mulheres em situação de violência conjugal judicializada, quanto aos níveis de estresse
e enfrentamento à situação de violência.
Objetivos Específicos
1. Verificar e comparar os níveis de estresse das/os participantes nas diferentes
fases da pesquisa;
2. Investigar as relações entre os tipos e frequência de comportamentos violentos e
a severidade dos níveis de estresse experimentados na fase inicial da pesquisa;
3. Verificar os efeitos da aplicação de TRE quanto aos níveis de estresse, avaliação
de risco e estratégias de autoproteção e prevenção à violência;
4. Investigar se o tempo de exposição à violência influencia a severidade dos níveis
de estresse e os resultados da aplicação da técnica TRE;
5. Discutir as diferenças de gênero em relação aos níveis de estresse e resultados da
aplicação da técnica TRE;
6. Verificar se a aplicação de TRE contribui para a redução da emissão de
comportamentos violentos durante a realização da pesquisa;
7. Discutir as potencialidades e limitações da aplicação da técnica TRE ao contexto
da violência conjugal.
47
Participantes
Participaram da pesquisa homens e mulheres, casados/as ou separados/as,
envolvidos em processos judiciais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e
Territórios, da circunscrição de Ceilândia. Essas pessoas estavam envolvidas no sistema
de justiça, devido à denúncia de mulheres vítimas da presença de violência em seu
relacionamento conjugal.
As/os participantes foram divididas/os em dois Grupos de Intervenção – um de
homens e um de mulheres – e em dois Grupos de Comparação – um de homens e um de
mulheres. Aos Grupos de Intervenção foi aplicada a técnica TRE e demais
procedimentos da pesquisa. As pessoas dos Grupos de Comparação participaram de
todos os procedimentos de pesquisa, com exceção da aplicação da técnica TRE.
Optou-se pela realização de grupos de homens e de mulheres, em separado, uma
vez que a própria interação entre homens e mulheres poderia se constituir em variável
estressora cujo impacto seria de difícil mensuração. Acreditou-se ainda que este formato
de agrupamento das/os participantes melhor atenderia ao interesse de conhecer as
diferenças de gênero quanto à percepção de sintomas de estresse, às estratégias de
autoproteção e prevenção à violência, à simbolização da experiência e aos possíveis
resultados da aplicação da técnica.
Todos/as os/as participantes foram escolhidos aleatoriamente dentre usuários da
Justiça (TJDFT) da Região Administrativa de Ceilândia que atendessem aos seguintes
critérios de seleção: a) serem partes em processo judicial, no ano de 2012, em virtude
de uma queixa de violência física contra a mulher em seu relacionamento
amoroso/conjugal. A ocorrência de outros tipos de violência não foi critério de
exclusão; b) terem participado de Grupo de Avaliação (de apenas um encontro)
realizado por profissionais do SERAV/Ceilândia, em virtude de encaminhamento do
magistrado responsável pelo julgamento do processo. O grupo de avaliação é apenas
uma das modalidades de atendimento aos casos de violência doméstica no SERAV e foi
escolhida por ser a que menos envolve a realização de intervenções psicossociais junto
às partes. Procurou-se, assim, reduzir a influência de outras variáveis, que não a
aplicação da técnica, sobre os resultados encontrados pela pesquisa.
Pretendia-se ter em cada um dos quatro grupos pelo menos oito participantes e
no máximo 12, quantidade que proporcionaria dados suficientes para a pesquisa e não
48
ultrapassaria a quantidade de pessoas para uma boa condução grupal. Para tanto, foram
convidados para cada um dos grupos o dobro da quantidade mínima de participantes
desejada. Assim, dados os critérios de seleção, foram aleatoriamente convidadas/os a
participar da pesquisa 32 mulheres e 32 homens.
Dentre os 32 homens convidados, compareceram 18 ao encontro inicial
(descrito mais adiante). Destes, dois foram convidados equivocadamente, pois
constavam como supostos autores de violência contra as irmãs, e não contra as
companheiras ou ex-companheiras. Um homem compareceu ao primeiro encontro do
grupo intervenção, mas não participou de todos os procedimentos necessários para a
análise de seus dados. Sendo assim, dos 18 homens que compareceram, foram
consideradas as informações oferecidas por 15 deles (oito do grupo comparação e sete
do grupo intervenção).
Das 32 mulheres convidadas para a pesquisa, compareceram 17. Duas delas
foram convidadas por engano, visto que eram parte de processo judicial aberto em
virtude de violência praticada por irmãos e não por companheiros ou ex-companheiros.
Uma mulher compareceu ao primeiro encontro do grupo intervenção, mas não
participou de todos os procedimentos necessários para a análise de seus dados. Assim,
das 17 mulheres que compareceram ao primeiro encontro, somente 14 (seis do grupo
comparação e oito do grupo intervenção) tiveram seus dados considerados.
Local da pesquisa
A pesquisa foi realizada com o apoio institucional do SERAV (Serviço de
Assessoramento aos Juízos Criminais). Esse Serviço compõe a Secretaria Psicossocial
do TJDFT e atua junto aos casos de violência doméstica e familiar atendidos por este
Tribunal.
A gerência deste serviço autorizou, conforme termo de Aceite Institucional
(Anexo III), a realização da pesquisa com as pessoas usuárias do serviço que
atendessem aos critérios de seleção acima explicitados. Os procedimentos de coleta de
dados da pesquisa também foram realizados em espaço físico cedido pelo SERAV, com
tamanho adequado ao número de participantes e cadeiras. Os colchonetes, necessários à
aplicação da técnica TRE foram providenciados pela pesquisadora.
49
Procedimentos e coleta de dados
A pesquisa foi dividida em quatro momentos: teste, aplicação dos Exercícios para
Liberação da Tensão (TRE), pós-teste e follow up. As fases de teste, pós-teste e follow
up foram realizadas com todos os grupos, em intervalos de tempo iguais. Apenas aos
Grupos de Intervenção foi aplicada a técnica TRE. O intervalo entre as fases de teste e
pós-teste foi de cinco semanas. Entre as fases de pós-teste e follow up o intervalo foi de
10 semanas. Os procedimentos realizados e os momentos em que cada um ocorreu estão
explicitados a seguir:
A. Procedimentos iniciais
As pessoas de ambos os grupos de Intervenção e Comparação, homens e
mulheres foram convidados/as para um momento inicial de apresentação dos/as
participantes, da pesquisadora e da equipe de apoio. Essa apresentação ocorreu em dias
separados. Nesse encontro realizaram-se a leitura dos Termos de Consentimento Livre
e Esclarecido (Anexo I), o esclarecimento de dúvidas e a coleta das assinaturas dos/as
participantes para o TCLE.
Aos Grupos Intervenção foi oferecida, nessa ocasião, uma breve explicação
teórica sobre a técnica a ser utilizada na pesquisa e suas aplicações desde que foi criada.
Foi reservado tempo suficiente para esclarecimentos de dúvidas. Os procedimentos da
fase de teste foram realizados nesses mesmos dias para os quatro grupos.
B. Preenchimento de Questionários
Este procedimento foi realizado nas fases de teste e pós-teste. Questões
relacionadas ao risco percebido, às estratégias de autoproteção e prevenção à violência,
à participação em acompanhamento junto a serviços e à participação em atendimentos
oferecidos pela Justiça estiveram presentes nos Questionários utilizados em todas as
etapas da pesquisa, para fins de comparação. A percepção de risco de ocorrência de
novos episódios de violência, por cada participante, foi avaliada a partir da atribuição,
por cada participante, de uma pontuação para o risco percebido. A pontuação variava de
0 (nenhum risco) a 10 (altíssimo risco). Uma avaliação de risco 5 correspondia a um
risco moderado. Algumas informações, contudo, eram adequadas e necessárias a apenas
uma fase da pesquisa, e não às outras. Esse fato justificou a confecção de um
50
questionário para cada uma delas. As informações específicas a cada questionário estão
especificadas a seguir.
O Questionário 1 (Anexo V), aplicado na fase de teste, permitiu obter
informações sobre o perfil sócio-demográfico dos/as participantes, os tipos de
violências sofridas e praticadas e a frequência com que ocorriam (episódios únicos ou
múltiplos), a quantidade de denúncias feitas, a ocorrência ou não de violência em outros
relacionamentos familiares e/ou amorosos, a ocorrência de reconciliações, o tempo de
separação (nos casos em que ela ocorreu) e a postura quanto a esse processo de
separação (dúvida/desejo de reatar a relação/certeza quanto à decisão).
Constou nesse questionário a orientação para que as/os participantes
assinalassem comportamentos violentos sofridos e praticados com base em uma lista de
diversos exemplos de violências físicas, morais, psicológicas, patrimoniais e sexuais. Os
tipos de violência utilizados estão abarcados pela Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) e
exemplos de cada um deles são oferecidos no próprio texto da lei (Brasil, 2006) e
também na literatura (Soares, 2005).
O Questionário 2 (Anexo VI) permitiu obter informações sobre a situação
pessoal e relacional na fase de pós-teste. As perguntas foram pensadas no intuito de
identificar mudanças no estado conjugal (separações e/ou reconciliações), qualidade da
relação com a outra parte; ocorrência ou não de episódios de violência no intervalo entre
teste e pós-teste.
Ambos os questionários foram preenchidos individualmente por cada
participante após orientações gerais oferecidas pela pesquisadora. A pesquisadora e sua
equipe de apoio estiveram disponíveis para esclarecer possíveis dúvidas de
preenchimento e para auxiliar as/os participantes que por ventura tivessem dificuldades
de leitura e escrita.Em virtude da importância dos dados para a pesquisa, realizou-se
uma entrevista por telefone com as pessoas que não compareceram ao encontro de pós-
teste, de forma a se obter informações idênticas às obtidas com os/as demais
participantes presentes.
C. Aplicação do Inventário de Sintomas de Stress para Adultos (ISSL)
Esse procedimento foi realizado nas fases de teste, pós-teste e follow up com
todos os/as participantes. O Inventário de Sintomas de Stress para Adultos (ISSL) é um
51
instrumento psicológico criado e padronizado no Brasil por Lipp e Guevara (1994). Sua
aplicação pode ser feita por pessoas que não tenham treinamento em psicologia.
Entretanto, a correção e a interpretação devem ser feitas por um/a profissional de
psicologia.
O instrumento (Anexo VIII) permite a realização de um diagnóstico preciso do
estresse, bem como a identificação da fase do processo de estresse em que se encontra a
pessoa. Possibilita identificar a existência de sintomas de estresse, o tipo de sintoma e a
fase do processo de estresse em que a pessoa se encontra. Sua construção foi baseada no
modelo trifásico de estresse de Selye (1976), em que os sintomas do estresse ocorrem
em três fases – alerta, resistência e exaustão -, de acordo com sua gravidade e gradação,
e podem ser tanto físicos quanto psicológicos.
Uma fase intermediária (entre a resistência e a exaustão) fase foi identificada,
clínica e estatisticamente, durante o processo de validação do instrumento por Lipp e
Guevara (1994). Essa fase foi chamada de quase-exaustão e se caracteriza pelo
insucesso na tentativa de adaptação aos estressores. O Inventário divide, então, o
processo de estresse em quatro fases - alerta, resistência, quase-exaustão e exaustão – e
resultou em um Modelo Quadrifásico do Estresse (vide capítulo 2 para mais
informações).
A aplicação do ISSL dura aproximadamente 10 minutos e, segundo orientação
oferecida pelo manual do instrumento (Lipp, 2005) deve restringir-se a jovens, com
idade superior a 15 anos, e adultos. Não exige que os/as participantes sejam
alfabetizados/as, pois os itens podem ser lidos pelo/a avaliador/a. Há previsão de
utilização de uma linguagem mais popular nos casos em que o instrumento for aplicado
a pessoas com baixo nível de escolaridade. A aplicação pode ser feita tanto
individualmente quanto em grupo.
O instrumento é composto por três quadros de sintomas característicos de cada
fase. O Quadro 1 é utilizado para avaliar a fase de alerta a partir de 12 sintomas físicos
e três sintomas psicológicos que a pessoa tenha experimentado nas últimas 24 horas. Os
sintomas físicos dessa fase de estresse são: mãos e pés frios, boca seca, nó no estômago,
aumento da sudorese, tensão muscular, aperto da mandíbula/ranger de dentes, diarreia
passageira, insônia, taquicardia, hiperventilação, hipertensão arterial súbita e passageira,
mudança de apetite. Os sintomas psicológicos dessa fase do estresse são: aumento
súbito de motivação, entusiasmo súbito, vontade súbita de iniciar novos projetos.
52
O Quadro 2 possibilita a identificação das fases de resistência e de quase
exaustão, por meio de 10 sintomas fiscos e cinco psicológicos experimentados na
última semana. Os sintomas físicos desta fase são: problemas com a memória, mal-estar
generalizado/sem causa específica, formigamentos nas extremidades, sensação de
desgaste físico constante, mudança de apetite, aparecimento de problemas
dermatológicos, hipertensão arterial, cansaço constante, aparecimento de úlcera,
tontura/sensação de estar flutuando. Os sintomas psicológicos dessa fase são:
sensibilidade emotiva excessiva, dúvida quanto a si própria/o, pensar constantemente
em um só assunto, irritabilidade excessiva, diminuição da libido.
O Quadro 3 permite a identificação da fase de exaustão, a partir de 12 sintomas
físicos e 11 sintomas psicológicos, experimentados no último mês. Os sintomas físicos
para esta fase do estresse são: diarréia frequente, dificuldades sexuais, insônia, náuseas,
tiques, hipertensão arterial continuada, problemas dermatológicos prolongados,
mudança extrema de apetite, excesso de gases, tontura frequente, úlcera, enfarte. Os
sintomas psicológicos para esta fase do estresse são: impossibilidade de trabalhar,
pesadelos, sensação de incompetência em todas as áreas, vontade de fugir de tudo,
apatia/depressão/raiva prolongada, cansaço excessivo, pensar/falar constantemente em
um só assunto, irritabilidade sem causa aparente, angústia/ansiedade diária,
hipersensibilidade emotiva, perda do senso de humor.
Há mais sintomas físicos que psicológicos, em razão da própria constituição do
processo de estresse. Por esse motivo, a verificação da presença e da fase do estresse se
dá a partir de cálculos de percentual (fornecidos pelas tabelas de avaliação do manual do
inventário) e não apenas pela contagem dos sintomas em cada quadro.
Além disso, a presença de alguns sintomas dentre os quadros de sintomas
característicos do estresse não significa que haja um quadro clínico de estresse. Para o
diagnóstico é necessário que a pessoa apresente um conjunto de sintomas, em
quantidade superior ao escore crítico de cada fase, e que esses sintomas se prolonguem
por um período determinado de tempo - 24 horas, uma semana e um mês. É importante
notar que a obtenção de escore bruto superior ao escore crítico em mais de um quadro
sugere que o estresse está em processo de agravamento. A ausência de intervenção
adequada, nesses casos, pode levar a um agravamento do estresse.
53
D. Aplicação dos Exercícios para Liberação da Tensão e do Trauma (TRE)
Aos Grupos de Intervenção foram aplicadas cinco sessões, uma por semana, da
técnica TRE. Cada sessão incluía, nesta ordem: acolhimento dos/as participantes,
realização da sequência de exercícios e partilha das experiências. Todas as atividades
foram realizadas em grupo.
Essa técnica foi escolhida por uma série de motivos, dentre eles: afinidade
pessoal da pesquisadora com a técnica; reconhecimento da necessidade de realização de
pesquisas científicas sobre a aplicabilidade e impacto da técnica; construção de hipótese
de que a técnica poderia ser útil para minimização dos níveis de estresse de homens e
mulheres em situação de violência conjugal e contribuir para a diminuição da
reincidência de violência e para a minoração de suas consequências negativas. A
aplicabilidade da técnica em grupos de pessoas inseridas em contextos comunitários
socialmente desfavorecidos e carentes de intervenções eficazes e acessíveis também
motivou a escolha.
E. Procedimentos de Follow up
Na fase de follow up foi realizada uma entrevista (Anexo VII) e também o
preenchimento do Inventário de Sintomas de Stress, por telefone, com todas/os
participantes tanto dos grupos experimentais quanto dos grupos controle com quem foi
possível estabelecer contato. Os dados obtidos nessa fase da pesquisa permitiram obter
níveis de estresse e informações sobre estado conjugal, separações e reconciliações,
qualidade do relacionamento com a outra parte, ocorrência ou não de novos episódios
violentos e continuidade da prática de TRE após as 10 semanas de intervalo entre as
duas últimas fases da pesquisa.
F. Gravação das rodas de partilha
As rodas de partilha foram realizadas com os grupos experimentais após cada
sessão de aplicação da técnica TRE. Elas foram gravadas e transcritas. A pergunta
inicial feita pela pesquisadora, como estímulo à partilha das experiências, era sempre a
mesma: “Como vocês estão se sentindo?” , ao que cada participante respondia
livremente. Ao longo das partilhas, não foram realizadas intervenções diretivas nem
interpretações. As verbalizações da pesquisadora e da equipe de apoio eram na forma de
54
perguntas, predominantemente abertas, e de espelhamentos das falas das/os
participantes.
Análise de dados
Os dados da pesquisa foram obtidos por meio das repostas aos Questionários 1 e
2 e à Entrevista de follow up, do preenchimento aos Inventários de Sintomas de Estresse
e da gravação das rodas de partilha após as sessões de aplicação de TRE. As
informações obtidas foram analisadas de maneira articulada.
As informações fornecidas pelas respostas aos Questionários e à Entrevista de
follow up permitiram a caracterização sociodemográfica das/os participantes. Tipos de
violência sofridas e praticadas, tempo de exposição e frequência da violência, adesão a
acompanhamentos especializados e percepção de risco foram dados obtidos por meio de
respostas a itens objetivos dos Questionários e Entrevista. Estratégias de autoproteção e
prevenção a novos episódios de violência foram obtidas por meio da pergunta “O que
você faz para evitar que esses comportamentos aconteçam novamente?” , presente nos
dois questionários e também no roteiro da entrevista de follow up.
As gravações das partilhas, realizadas ao final de cada sessão de TRE com os
Grupos Intervenção foram transcritas e analisadas por meio da estratégia de análise de
conteúdo de Bardin (1977). Esta técnica permitiu obter classificação e agrupamento de
categorias de sentido a partir das verbalizações individuais da cada participante. Seidl
de Moura e Ferreira (2005) afirmam que a análise de conteúdo é a técnica de criação de
categorias mais frequentemente utilizada. As categorias podem surgir do referencial
teórico que norteou o estudo, ser desenvolvidas durante a fase de análise dos dados ou
ser fornecidas pelos próprios participantes da pesquisa. Neste estudo, as categorias
foram obtidas indutivamente na fase de análise dos dados a partir da análise das
verbalizações dos/as participantes.
Os níveis de estresse de todas/os participantes, nas fases de teste, pós-teste e
followup, foram diagnosticados, comparados e relacionados às outras informações
obtidas. A análise dos níveis de estresse foi feita com base no Manual do Inventário de
Sintomas de Stress para Adultos (Lipp, 2005).
55
Cuidados éticos
A coleta dos dados desta pesquisa foi iniciada após a aprovação do Projeto de
Pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências Humanas da
Universidade de Brasília (CEP/IH), conforme Anexo IV. A todas as pessoas convidadas
a participar do estudo foi garantido o direito de recusa à participação. Àqueles/àquelas
que se dispuseram a participar da pesquisa, foi entregue o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido (Anexo I). O TCLE foi lido em voz alta juntamente com os
participantes de modo que a pesquisadora pudesse fornecer esclarecimentos e se
certificar da compreensão de seu conteúdo.
As intervenções foram cuidadosamente planejadas e executadas no sentido de
minimizar riscos e prejuízos aos/às participantes. Com o objetivo de garantir a
qualidade da coleta de dados e também o bom atendimento às/aos participantes, foi
formada uma equipe de apoio técnico. Essa equipe foi composta por dois psicólogos -
um com formação na aplicação da técnica utilizada (TRE) e outro com experiência na
condução de grupos de homens e mulheres em situação de violência - e uma estudante
de psicologia. Suas atividades incluíram o auxílio ao recrutamento dos participantes;
participação em treinamento para aplicação dos questionários e do instrumento de
avaliação do estresse e para condução das ligações necessárias na fase de follow up;
presença nas sessões de aplicação da técnica.
A gravação das partilhas grupais realizadas após cada aplicação da técnica
esteve condicionada à autorização, por escrito, de todas/os participantes. Salienta-se,
também, que a realização da pesquisa com as/os jurisdicionadas/os do Tribunal de
Justiça do Distrito Federal e Territórios esteve condicionada à autorização desta
instituição (Anexo III).
A proposta da pesquisadora foi a de que esta pesquisa-intervenção servisse não
apenas para a coleta de dados e produção de conhecimento, mas que beneficiasse os
participantes por meio do oferecimento de ferramentas para manejo do estresse. A
pesquisadora e sua equipe de apoio estiveram inteiramente disponíveis às/aos
participantes que por ventura tivessem necessidade de apoio extra, esclarecimento de
dúvidas, orientações e encaminhamentos.
56
CAPÍTULO 5
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise dos dados da pesquisa revelou resultados interessantes. Alguns destes
resultados eram esperados, diante da experiência profissional com o tema – violência
conjugal – e das leituras realizadas ao longo de alguns anos de trabalho. Outros foram
surpreendentes. O contato, na prática e a partir de um olhar científico, com questões
frequentemente referenciadas na literatura - anestesias emocionais observáveis em
pessoas em situação de violência, diferenças de gênero quanto à percepção e
enfrentamento do estresse e das dificuldades emocionais de maneira geral, minimização
da violência por parte dos homens e das mulheres - auxiliou a conferir maior sentido e
consistência para um saber pré-existente.
Algumas informações obtidas, no entanto, desafiaram este saber prévio, o que
estimulou novas reflexões sobre as relações entre estresse, gênero e violência. Pesquisar
é um convite para que se dê atenção ao que é dito, de maneira verbal e não verbal,
pelas/os participantes. É importante atentar às situações em que este discurso contradiz
o que se espera encontrar, o que já foi dito pela literatura utilizada até então e, inclusive,
o que dita o(s) sistema (s) de crenças daquela/e que conduz a pesquisa. O convite
também é para lançar um olhar ingênuo aos dados, mesmo àqueles frequentemente
referenciados pela literatura. É desta forma que o “fazer ciência” contribui para
fortalecer caminhos já trilhados, traçar outros caminhos, beber da mesma fonte teórica e
ir em busca de outras que possibilitem a produção de novos sentidos.
1. Apresentação dos/as participantes da pesquisa
Sessenta e quatro (64) pessoas - 32 homens e 32 mulheres - foram convidadas
via telefone a participar dessa pesquisa. Dentre os 32 homens convidados,
compareceram 18. Foram consideradas as informações oferecidas por 15 deles (oito do
grupo comparação e sete do grupo intervenção). Das 32 mulheres convidadas para a
pesquisa, 17 mulheres compareceram ao primeiro encontro e 14 (seis do grupo
comparação e oito do grupo intervenção) tiveram seus dados considerados
Os dados sociodemográficos e os dados dos intrumentos da fase de teste foram
coletados com as/os participantes que compareceram aos encontros iniciais dos Grupos
57
Intervenção e dos Grupos Comparação. A Tabela 1 condensa os principais dados
sóciodemográficos das mulheres e homens que participaram da pesquisa.
Tabela 1. Dados sociodemográficos dos/as participantes
Grupo Comparação Grupo Intervenção
Mulheres(6) Homens(8) Mulheres (8) Homens (7)
Idade Média 34,6 anos 33,6 30,3 anos 34,9 anos
Variação 25 a 47 anos 22 a 43 anos 17 a 58 anos 21 a 54 anos
Escolaridade
Sem Alfabetização - 2 - -
Ens. Fund. Incompleto - 2 3 3
Ens. Fund.Completo 1 2 2 -
Ens. Méd. Incompleto 4 - 1
Ens. Méd. Completo - 2 2 3
Ens. Sup. Incompleto 1 - 1 -
Ens. Sup. Completo - - -
Ocupação
Desempregada(o) - - 3 -
Empregada(o) 5 7 3 2
Autônomo(a) - 1 1 5
Do lar 1 - 1 -
Filhos Média por participante 1,5 1,8 1,5 1,7
Variação no grupo 0 a 3 filhos 0 a 3 filhos 0 a 4 filhos 0 a 4 filhos
Situação
Conjugal
Casada(o) 2 5 2 6
Separada(o) 3 1 6 1
Solteira(o) 1 1 - -
Relacionamento
entre as partes
Casal 2 5 2 6
Ex-casal 4 3 6 1
As informações da Tabela 1 mostram que 60% da amostra masculina (nove
homens) tem o ensino fundamental como escolaridade máxima atingida, enquanto que
40% (seis homens) ingressaram no ensino médio. Pode-se notar, ainda, que os dois
participantes sem escolaridade são do sexo masculino. As mulheres, por sua vez, são
todas alfabetizadas, sendo que duas ingressaram no nível superior de ensino. Segundo o
perfil demográfico, 42,85% da amostra feminina (seis mulheres) tem o ensino
fundamental como escolaridade máxima, 42,85% (seis mulheres) ingressou no ensino
médio e 14,3% das mulheres ingressaram no nível superior de ensino. Nenhum/a
participante concluiu o nível superior. Nessa amostra de participantes, as mulheres
atingiram maior nível de escolaridade que os homens. Contudo, a precariedade do nível
58
instrucional ainda é marcante para homens e mulheres.
As informações acerca da situação ocupacional das/os participantes da pesquisa
revelaram que três mulheres (21,4) estavam desempregadas na fase de teste, oito
mulheres (57,1%) estavam empregadas, duas mulheres (14,3%) intitularam-se donas de
casa e uma mulher (7,1%) disse ser autônoma. Quanto aos homens, observou-se que
nenhum estava desempregado na fase de teste. Nove homens (60 %) relataram vínculo
empregatício com carteira assinada e 6 homens (40%) relataram exercer atividades
laborativas autônomas.
Conquanto tenha-se constatado maior desemprego entre as mulheres, o
percentual de mulheres formalmente empregadas foi alto e assemelhou-se ao percentual
masculino, com a diferença de que as atividades autônomas estão presentes de forma
marcante na amostra masculina. Perguntas sobre o tipo de atividade laborativa exercida
por homens e mulheres e também sobre a renda mensal recebida não foram incluídas no
questionário, o que foi uma falha da pesquisa. Essas informações teriam sido
importantes para melhor avaliar o grau de estabilidade financeira e de dependência das
mulheres em relação aos homens.
A média de filhos, tanto para os homens quanto para as mulheres, pode ser
considerada baixa. Das mulheres participantes da pesquisa, apenas uma não tem filhos.
Vale pontuar que a mulher mais velha da amostra (58 anos) é a que possui maior
quantidade de filhos (quatro). Duas mulheres possuem três filhos e todo o restante teve
no máximo dois filhos. Três homens da amostra relataram não ter filhos. Em
compensação, dois homens jovens, de 22 e 34 anos de idade relataram ter quatro filhos.
Dois homens relataram ter três filhos e o restante da amostra disse possuir no máximo
dois filhos. Os dados da pesquisa do último Censo (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística [NAD/IBGE], 2010) corroboram esses resultados. A pesquisa mostra que a
taxa de natalidade está diminuindo em todas as camadas sociais, embora ainda exista
uma tendência a ser maior nas classes menos favorecidas.
Um dado interessante refere-se à situação conjugal das pessoas participantes da
pesquisa. A maioria das mulheres (10 mulheres/71,42%), incluindo as que mantiveram
anteriormente relacionamento conjugal (nove mulheres) ou namoro (uma mulher),
estava separada. Por outro lado, a maior parte dos homens (11 homens/73,3%) estava
em um relacionamento conjugal na fase inicial da pesquisa. Importante mencionar
também que as mulheres casadas (quatro mulheres/28,5%) tinham como parceiro o
59
autor de violência conjugal e as separadas tinham como ex-companheiro ou ex-
namorado mais recente também o autor de violência. A situação era a mesma para 14
dos homens participantes.
Pode-se pensar que, a baixa média de filhos para as mulheres e o fato de que a
maior parte delas estava formalmente empregada tenham sido fatores facilitadores de
autonomia e da decisão pela separação. A separação conjugal costuma ser tanto uma
medida de interrupção da violência, quanto uma situação de estresse e sofrimento
emocional para as mulheres, devido ao rompimento do vínculo, à frequente redução do
poder aquisitivo e à sobrecarga com o cuidado dos filhos/as (Soares, 2005; Organização
Mundial de Saúde [OMS], 2005).
A decisão da maior parte dos homens foi a de permanecer no vínculo conjugal. É
possível que a continuidade do relacionamento tenha ampliado a percepção da
necessidade de cuidados, mobilizando os participantes a fazer parte de uma pesquisa em
que seria aplicada uma técnica de redução de estresse.
2. Estresse, Gênero e Violência: a experiência inicial de mulheres e homens
Esta seção tem o objetivo de apresentar e discutir as relações entre os tipos e
frequência de comportamentos violentos, sofridos e praticados, e a severidade dos
níveis de estresse experimentados por homens e mulheres na fase inicial da pesquisa.
Além disso, buscou-se compreender a relação entre os níveis de estresse, percepção de
risco de ocorrência de novos episódios de violência e situação conjugal. Para tanto,
foram utilizadas as informações oferecidas por todas/os participantes que compareceram
ao encontro inicial. Os dados utilizados nas Tabelas 2, 3, 4 e 5 foram obtidos na fase de
teste, por meio do preenchimento do Inventário de Sintomas de Estresse e do
Questionário elaborado para este momento da pesquisa.
2.1 Situação inicial das mulheres
As Tabelas 2 e 3 referem-se à situação inicial das mulheres dos Grupos
Intervenção e Comparação, respectivamente. Nelas, é possível identificar os níveis de
estresse, as violências praticadas, as violências sofridas, a frequência relatada dos
episódios de violência conjugal, a percepção de risco (de 0 – nenhum risco – a 10 –
altíssimo risco) e a situação conjugal de cada uma das participantes. A tendência a
60
agravamento do quadro de estresse e a qualidade dos sintomas predominantes
(psicológicos ou físicos) também estão especificadas. Para as violências sofridas e
praticadas, foram utilizadas as siglas VF (Violências Físicas), VPS (Violências
Psicológicas), VS (Violências Sexuais), VP (Violências Patrimoniais) e VM (Violências
Morais). Quanto à situação conjugal, consta também a informação de tempo de
separação – quando foi o caso – e certeza ou dúvida quanto à manutenção da situação.
2.1.1 Grupo Intervenção
Tabela 2. Situação inicial das mulheres do Grupo Intervenção
Nome Nível de Estresse
Violências Praticadas Violências Sofridas Frequência da Violência
Risco Situação Conjugal
Maria
Quase-exaustão Agravamento
Predominância
de Sintomas Psicológicos
VM: xingamento
VF: tapas, empurrões, apertões, chutes
VPS: ameaças, humilhações, impedir de sair
VP:esconder objetos
VM: acusações, xingamentos VS: exigir ou insistir para
fazer sexo
Episódio Único
1 Casada
(confusa)
Patrícia
Resistência Agravamento
Predominância
de Sintomas Psicológicos
VF: tapas, empurrões, atirar objetos
VPS: humilhações VP: estragar objetos,
destruir objetos VM: xingamentos
VF: tapas, empurrões, chutes, puxar cabelo
VPS: humilhações, ameaças, impedir de sair, perseguir na
rua VP: estragar/destruir/esconder
objetos, estragar/esconder documentos
VS: exigir ou insistir para fazer sexo, toques/carícias não
desejadas
Uma vez por semana, há seis anos
8
Separada há 1 ano e 5 meses (certa)
Lana
Quase-exaustão,
Agravamento
Sintomas Físicos e
Psicológicos
VF: tapas, empurrões, puxar cabelo, morder,
beliscar VPS: humilhar,
ameaçar, impedir de falar com as pessoas VP: estragar objetos,
rasgar roupas VM: xingamento, inventar mentiras
sobre a pessoa
VF: empurrões, apertões, puxar cabelo, morder, beliscar VPS: ameaças, ameaça com
faca, humilhações, impedir de sair e de falar com as pessoas VP: estragar/destruir/esconder
objetos, rasgar roupas VM: xingamento, inventar
mentiras sobre a pessoa
Uma vez por semana,
durante o ano de 2011
3 Casada (Certa)
Marta
Resistência, Agravamento,
Predominância
de Sintomas Psicológicos
VF: tapas VP:humilhações; VM: xingamento
VF: tapas, empurrões, chutes, puxar cabelo
VPS: humilhação, ameaças, impedir de sair e manter
contato com família e amigos, perseguir na rua, impedir de
trabalhar/estudar VP: estragar objetos,
estragar/esconder documentos VM: ofensa à honra
2 vezes por mês
5 Separada
há 4 meses (certa)
61
Nome Nível de Estresse
Violências Praticadas Violências Sofridas Frequência da Violência
Risco Situação Conjugal
Diva
Quase-exaustão,
Agravamento, Predominância
de Sintomas Psicológicos
VF: chutar, puxar cabelo
VM: xingamento
VF: tapas, empurrões, apertões, atirar objetos, tentativa de homicídio
VPS: ameaças com faca VM: xingamento, inventar mentiras, ofensa à honra,
espalhar fofocas
Todos os fins de semana
5 Separada
há 3 meses (certa)
Gal
Resistência, Agravamento, Predominância
de Sintomas Psicológicos
VF: tapas VP: vender objetos
sem permissão, estragar/ esconder
documentos
VF: tapas, empurrões, chutes, apertões, puxar cabelo
VP: ameaça, impedir de falar com as pessoas
VM: espalhar fofocas
Episódio Único
0 Separada há 1 ano (certa)
Ana
Quase-exaustão,
Agravamento, Predominância
de Sintomas Psicológicos
VF: tapas, empurrões, apertões, chutes, atirar
objetos VP: destruir objetos
VM: xingamento
VF: tapas, empurrões, apertões, chutes, puxar cabelo,
mordida, atirar objetos, beliscões
VPS: humilhações, ameaças, impedir de sair e de manter
contato com a família; VP: estragar objetos, esconder objetos, rasgar roupas, desviar
dinheiro
Diariamente há 12 anos
8 Casada
(confusa)
Márcia
Resistência, Agravamento, Predominância
de Sintomas Psicológicos
VF: Atirar objetos VPS: impedir contato
com a família e amigos
VP: estragar/destruir objetos
VM: xingamento
VF: tapas, empurrões, apertar, chutar, enforcar, puxar cabelo,
tentativa de homicídio VP: ameaçar com faca, ameaçar, impedir de sair
VM: xingamento VS: exigir/insistir para fazer sexo, insistir para fazer sexo
anal, não querer usar camisinha
2 vezes por mês
0
Separada há 2 anos
(certa)
A análise das informações contidas na Tabela 2 revela que todas as mulheres do
Grupo Intervenção identificaram sintomas compatíveis com um quadro de estresse.
Metade das mulheres estava, na fase de teste, com estresse no nível de quase-exaustão.
A outra metade apresentou quadro de estresse no nível de resistência. O preenchimento
do Inventário revelou tendência ao agravamento dos quadros de estresse para todas as
participantes.
Um dado interessante diz respeito à natureza dos sintomas de estresse apontados
pelas mulheres. Sete mulheres identificaram predominantemente sintomas psicológicos,
ao invés de físicos. Apenas uma das mulheres assinalou sintomas físicos e psicológicos
em igual proporção.
Todas as mulheres relataram ter sofrido violência física e psicológica. Dentre as
violências físicas; os empurrões foram mencionados por todas as mulheres; os tapas, por
sete delas; e os chutes, puxões de cabelo e apertões, por seis. Ainda em relação às
62
violências físicas, houve relato de duas tentativas de homicídio. Quanto às violências
psicológicas, as mais frequentes foram as ameaças – relatadas por todas as mulheres -,
sendo que três mulheres relataram ameaças com faca. Humilhações e impedimento de
sair de casa foram violências mencionadas por cinco mulheres. Quatro mulheres
mencionaram o comportamento de impedir contato com a família e com os amigos.
Cinco mulheres disseram ter sofrido violência patrimonial, sendo que
esconder/estragar/destruir objetos foi a violência patrimonial mais frequente e
mencionada por todas elas. Das seis mulheres que relataram ter sofrido violência moral,
quatro mencionaram terem sido xingadas pelo companheiro/ex-companheiro. A
violência sexual foi mencionada por três mulheres, sendo que as três relataram que o
parceiro/ex-parceiro exigiu/insistiu para fazer sexo. Outras condutas sexualmente
agressivas relatadas foram toques e carícias não desejados, insistir para fazer sexo anal e
se negar a usar preservativo.
Das três mulheres severamente estressadas, duas relataram episódios múltiplos
de violência física e psicológica. Uma delas (Ana) relatou frequência diária de violência
conjugal, há 12 anos, enquanto que duas (Diva e Márcia) mencionaram ter sofrido grave
ameaça à vida (ameaça com faca e tentativa de homicídio). Chama atenção que Maria,
em estado de quase-exaustão no teste, tenha mencionado violências de todos os tipos
(física, psicológica, moral, patrimonial e sexual), que teriam ocorrido em episódio
único.
Márcia relatou ter sofrido múltiplos episódios graves de violências - tentativa de
homicídio, ameaça com faca e diversos episódios de violência sexual. Ela, no entanto,
identificou sintomas de um quadro de estresse menos severo. É possível que a
separação, há dois anos, tenha auxiliado na redução dos sintomas. A presença de
anestesia emocional é uma possibilidade também, vez que alguns tipos de violências
continuavam a ocorrer mesmo após a separação.
Todas as mulheres relataram a prática de violência contra seus companheiros e
ex-companheiros. Contudo, sete das oito mulheres relataram mais violências sofridas
que praticadas. As violências físicas praticadas mais frequentes foram os tapas –
mencionados por cinco mulheres – e os empurrões – mencionados por três. Quanto às
violências psicológicas, a humilhação foi mencionada por quatro mulheres, enquanto
que apenas Lana mencionou a prática de ameaça. Quatro mulheres relataram a prática
de violência patrimonial de estragar/destruir/esconder objetos pessoais. Sete mulheres
63
afirmaram, em relação a condutas de violência moral, terem xingado seus
companheiros/ex-companheiros. Nenhuma mulher relatou a prática de violência sexual,
tentativa de homicídio, ameaça com faca, enforcamento, impedimento de sair de casa.
A frequência dos episódios de violência parece estar relacionada à percepção de
risco e também aos níveis de estresse experimentados por estas participantes. Das seis
mulheres que relataram múltiplos episódios de violência, apenas Márcia percebeu risco
nulo. Três delas (Lana, Diva e Ana) estavam severamente estressadas – fase de quase-
exaustão – e relataram frequência pelo menos semanal dos episódios de violência.
As duas mulheres que relataram episódio único de violência avaliaram como
nulo ou quase nulo o risco de ocorrência de novos episódios. Maria estava severamente
estressada e Gal em fase de resistência. O restante do grupo percebeu risco moderado e
alto. As duas mulheres com maior tempo de exposição à violência (Patrícia e Ana)
foram as que avaliaram como mais alto o risco de ocorrência de novos episódios
violentos. Ana relatou maior frequência de violência, que ocorria diariamente há 12
anos, e estava com estresse em fase de quase-exaustão.
Um dado interessante diz respeito à relação entre estresse, avaliação de risco e
situação conjugal. Das cinco mulheres separadas, todas estavam certas da separação e
quatro apresentaram sintomas de estresse menos severo. Três mulheres (Marta, Patrícia
e Márcia) apresentaram quadros menos severos de estresse, embora tenham relatado
episódios múltiplos de violência. Elas já estavam separadas do autor de violência - e
certas da separação - há quatro meses, um ano e dois anos respectivamente. A
separação, nestes casos, pode ter contribuído para o menor nível de estresse, embora o
risco tenha sido avaliado como alto e moderado por duas delas.
Das quatro mulheres com quadros de estresse em fase de quase-exaustão, três
(Maria, Lana e Ana) estavam casadas e uma (Diva) havia se separado há apenas três
meses. Duas delas (Maria e Lana) relataram risco reduzido, a despeito da menção a
graves violências sofridas. Por outro lado, duas mulheres, uma em estado de resistência
(Marta) e outra de quase-exaustão (Diva), relataram risco moderado de ocorrência de
violência, mesmo após a separação. Nesses casos, a separação havia ocorrido há menos
de seis meses. Ana estava casada e confusa quanto à permanência na relação. Sua
dúvida, somada ao alto risco percebido e às violências sofridas parecem ter configurado
o quadro de quase-exaustão.
64
2.1.2 Grupo Comparação
Tabela 3. Situação inicial das mulheres do Grupo Comparação
Nome Nível de Estresse
Violências Praticadas
Violências Sofridas Frequência
da Violência
Risco
Situação Conjugal
Graça
Quase-exaustão,
Agravamento Predominância
de Sintomas Psicológicos
Sem violência
VF: tapas, empurrões, apertões, chutes
VPS: humilhações, ameaças VP: estragar/destruir objetos,
estragar/ esconder documentos, rasgar roupas
VM: xingamento, ofensa à honra
Todos os fins de
semana, há 3 anos
7
Separada há 4 meses (certa)
Clara Sem Estresse Sem Violência
VF: tapas, puxar cabelo, atirar objetos
VPS: Impedir de sair e de ter contato com a família e amigos,
perseguir na rua VP: destruir objetos
Episódio Único
2
Separada há 1 mês
(desejo de reconciliação)
Alice
Quase-exaustão,
Agravamento Predominância
de Sintomas Físicos e
Psicológicos
VF: tapas, empurrões, chutes,
apertões, atirar objetos
VPS: ameaça com chave de fenda,
humilhações VP:
estragar/destruir objetos
estragar/esconder documentos
VM: xingamento, ofensa à honra
VF: tapas, empurrões, apertões, chutes, enforcamento, puxar cabelo
VPS: humilhações, impedir contato com a família e amigos, machucar animais de estimação,
perseguir na rua VP: estragar objetos,
estragar/esconder documentos, rasgar roupas
VM: xingamento, ofensa à honra VS: exigir ou insistir para fazer
sexo
Uma vez por semana, há 7
anos 5
Casada (confusa)
Rosa
Quase-exaustão,
Agravamento, Predominância
de Sintomas Psicológicos
VF: tapas, empurrões
VPS: impedir de sair, perseguir na
rua
VF: tapas VPS: humilhações VM: xingamento
Episódio Único
0 Separada (desejo de
reconciliação)
Carol
Exaustão, Agravamento, Predominância
de Sintomas Psicológicos
VP:destruir objetos, rasgar
roupas
VF: tapas, empurrões, chutes, puxar cabelo
VPS: humilhações, ameaças a si e a pessoas queridas, machucar
animais de estimação VP: destruir/ estragar objetos
VM: xingamento, inventar mentiras sobre a pessoa
VS: toques/carícias não desejadas
Mais de uma vez por
semana, há cinco anos
8 Separada (confusa)
Luara
Resistência, Agravamento, Predominância
de Sintomas Psicológicos
VF: atirar objetos VP: destruir
objetos
VF: tapas, empurrões, enforcamento, mordidas;
VPS: humilhações, ameaças, impedir de sair, perseguir na rua
VM: xingamentos, ofensa à honra
Episódio Único
2 Casada (certa)
Clara, dentre as seis mulheres do grupo comparação, foi a única que não
identificou sintomas em quantidade suficiente para um diagnóstico de estresse. Quatro
das cinco mulheres estressadas apresentaram um quadro de estresse severo - três (Graça,
65
Alice e Rosa) na fase de quase-exaustão com tendência a agravamento e uma (Carol) na
fase de exaustão, também com tendência a agravamento.
No Grupo Comparação, assim como no grupo intervenção, houve maior
detecção de sintomas psicológicos de estresse, em detrimento dos físicos. Quatro das
cinco mulheres diagnosticadas com estresse identificaram predominantemente sintomas
psicológicos, ao invés de físicos. Apenas Alice assinalou sintomas físicos e psicológicos
em igual proporção.
Todas as mulheres do grupo comparação relataram ter sofrido violência física e
psicológica. As violências físicas mais assinaladas foram tapas – mencionados por todas
as mulheres – e empurrões – mencionados por quatro delas. É importante frisar que a
violência de tentativa de enforcamento foi trazida por duas mulheres (Alice e Luara).
Em relação às violências psicológicas, as mais frequentes foram as humilhações –
mencionadas por cinco mulheres. Ameaças, impedir a mulher de sair de casa e de
manter contato com amigos e familiares e perseguí-la na rua foram comportamentos
violentos mencionados por três mulheres. Interessante notar a menção feita por duas
mulheres (Alice e Carol) a maus tratos praticados pelo companheiro e ex-companheiro
contra animais de estimação.
Quatro mulheres mencionaram ter sofrido violência patrimonial, sendo mais
frequente o comportamento de estragar/esconder/destruir objetos pessoais. Cinco
mulheres relataram ter sofrido violência moral - mais frequentemente o xingamento,
mencionado pelas cinco. Por fim, duas mulheres disseram ter sofrido violência sexual,
que consistiu em exigir/insistir para fazer sexo e tocar e/ou fazer carícias indesejadas.
Das quatro mulheres severamente estressadas – quadros de exaustão e quase-
exaustão -, três (Graça, Alice e Carol) relataram episódios múltiplos de violência física,
moral, patrimonial e psicológica. Duas delas, Carol com estresse em fase de exaustão e
Alice em fase de quase-exaustão, disseram ter sofrido violência sexual. A frequência de
violência relatada por essas três mulheres foi alta, com pelo menos um episódio
semanal. Tapas, humilhações e xingamentos foram violências comuns relatadas pelas
quatro mulheres com maiores níveis de estresse.
Quanto às violências praticadas, pode-se observar que quatro das seis mulheres
relataram ter agido com violência contra seus companheiros/ex-companheiros,
conquanto tenham relatado mais violências sofridas que praticadas. Todas elas
66
obtiveram diagnóstico de estresse e três delas (Alice, Rosa e Carol) estavam com
sintomas de estresse severo, nas fases de quase-exaustão e exaustão, no momento de
teste.
Três mulheres (Alice, Rosa e Luara) relataram ter praticado violência física,
sendo que tapas e empurrões foram mencionados por duas mulheres. Violências
patrimoniais foram relatadas por três mulheres, sendo que o comportamento de
estragar/destruir/esconder objetos foi o comportamento praticado mais citado entre
todos os tipos de violência – por três participantes. Os demais comportamentos
violentos não foram relatados de maneira expressiva pelas mulheres, visto que cada um
– ameaças, humilhações, impedir de sair, perseguir na rua, xingar e ofender a honra –
foi mencionado por apenas uma mulher. Nenhuma mulher relatou a prática de violência
sexual, tentativa de homicídio, ameaça com faca, enforcamento, impedimento de fazer
contato com amigos e familiares.
Metade das mulheres afirmou que as violências conjugais ocorreram em
episódio único. Este relato ocorreu a despeito da quantidade e variedade de
comportamentos violentos assinalados, que pouco provavelmente poderiam ter ocorrido
em um único dia. Quanto à percepção de risco, é digno de nota que apenas Rosa tenha
identificado ausência de risco de ocorrência de novos episódios de violência, duas
(Clara e Luara) tenham percebido risco reduzido e todas as outras tenham percebido
riscos moderados e altos.
A frequência dos episódios de violência parece, também nesse grupo, estar
relacionada à percepção de risco assim como aos níveis de estresse pelas participantes.
Quanto à relação entre essas variáveis, pode-se notar que as mulheres que relataram
múltiplos episódios de violência estavam severamente estressadas e perceberam risco
alto ou moderado de reincidência da violência.
Das três mulheres que relataram episódios únicos de violência (Clara, Rosa e
Luara), Clara apresentou ausência de estresse e Luara identificou sintomas de estresse
menos severo. Apenas uma das mulheres severamente estressadas (Rosa) relatou
episódio único de violência e percebeu como ausente o risco de reincidência. Neste
caso, o discurso da participante estava carregado de sentimento de culpa pela denúncia,
pela separação e pelas violências praticadas por ela. Além disso, o sofrimento
emocional diante da recente separação parece ter atuado como forte fator estressor.
Carol, a mulher mais severamente estressada, percebeu o maior risco de reincidência e
67
relatou a maior frequência de episódios violentos. Clara, a única mulher sem
diagnóstico de estresse, relatou episódio único de violência e percebia como reduzido o
risco de ocorrência de novos eventos.
A situação conjugal - e a certeza ou dúvida em relação a ela - parece ter afetado
os níveis de estresse detectados e as avaliações de risco. Somente duas mulheres, Alice
e Luara, estavam casadas. A maior avaliação de risco por Alice, somada à ocorrência de
múltiplos episódios de violência, provavelmente contribuiu para a severidade de seu
quadro de estresse.
As duas mulheres separadas que desejavam reconciliação (Clara e Rosa)
avaliaram como ausente o risco de reincidência de violência. Clara identificou sintomas
em quantidade insuficiente para diagnóstico de estresse e pareceu atribuir somente a si a
responsabilidade pelos conflitos relacionais, minimizando seu sofrimento emocional
diante da situação. Rosa expressou intenso sofrimento emocional diante da separação,
fato a que associava os sintomas de severo estresse. A prática de violência por parte dela
e a culpa pela separação pareciam produzir uma minimização da violência sofrida e dos
riscos envolvidos na sua situação.
Carol, severamente estressada, demonstrou ambiguidade de sentimentos quanto
à manutenção da separação. A dúvida e a percepção da gravidade das violências
sofridas, do risco de violência e de suas consequências deletérias estavam relacionadas
ao estado de exaustão em que se encontrava. Mesmo separada e certa da separação,
Graça ainda percebia como alto o risco de reincidência da violência, que havia ocorrido
em alta frequência nos últimos três anos.
2.2 Situação Inicial dos Homens
As Tabelas 4 e 5 referem-se à situação inicial dos homens dos Grupos
Intervenção e Comparação, respectivamente. Nelas, é possível identificar os níveis de
estresse, as violências praticadas, as violências sofridas, a frequência relatada dos
episódios de violência conjugal, a percepção de risco (de 0 – nenhum risco – a 10 –
altíssimo risco) e a situação conjugal de cada uma das participantes. A tendência a
agravamento do quadro de estresse e a qualidade dos sintomas predominantes
(psicológicos ou físicos) também estão especificadas. Para as violências sofridas e
praticadas, foram utilizadas as siglas VF (Violências Físicas), VPS (Violências
68
Psicológicas), VS (Violências Sexuais), VP (Violências Patrimoniais) e VM (Violências
Morais). Quanto à situação conjugal, consta também a informação de tempo de
separação – quando foi o caso – e certeza ou dúvida quanto à manutenção da situação.
2.2.1 Grupo Intervenção
Tabela 4. Situação inicial dos homens do Grupo Intervenção
Nome Nível de Estresse
Violências Praticadas
Violências Sofridas Frequência da Violência
Risco Situação Conjugal
João
Resistência, Predominância
de Sintomas Psicológicos
VF: tapas, apertões, chutes
VPS: humilhações
VP: xingamento
VF: empurrões, atirar objetos VPS: ameaça com faca, humilhar, impedir de sair e de manter contato
com a família e com amigos, impedir de trabalhar/ estudar:
perseguir na rua VP: estragar/esconder documentos, destruir objetos, desviar dinheiro,
rasgar roupas VM: xingamento, inventar mentiras sobre as pessoas, espalhar fofocas
Episódio Único
0 Casado (certo)
Vilmar Sem estresse
VF: empurrar, chutes, puxar
cabelo VPS: humilhar
VM: xingamento
VF: tapas, chutes, puxar cabelo, empurrões, beliscões
VPS: humilhar VM: xingamento
1 vez por mês há 2
anos 0
Casado (certo)
José Sem estresse
VF: beliscar VPS: impedir contato com
família e amigos VM: xingamento
VF: beliscar; VM: xingamento
Episódio Único
0 Casado (certo)
Pedro
Resistência, Predominância
de Sintomas Físicos
VF: tapas VPS: humilhar VM: acusar a pessoa de ter cometido um
crime
VF: tapas, apertar, morder, atirar objetos, beliscar
VPS: humilhar, ameaçar, perseguir na rua
VP: destruir/esconder objetos, rasgar roupas
VM: xingamento, acusar a pessoa de ter cometido um crime, ofender a
honra
Episódio Único
0 Casado (ceto)
Dinho Sem estresse VF: tapas, empurrar
VPS: ameaçar
VM: xingamento VPS: ameaçar, humilhar,
Episódio Único
0 Separado
(certo)
Paulo
Resistência, Predominância
de Sintomas Físicos
VF: dar tapas, empurrar, atirar
objetos, tentativa dehomicídio
VPS: impedir de sair e de manter contato com a
família e amigos; VP: estragar
objetos
VF: tapas, empurrar, apertar, chutar, puxar cabelo, atirar objetos, beliscar VPS: humilhar, impedir de sair e de manter contato com a família e com
os amigos, perseguir na rua VP: estragar objetos, vender
objetos/imóveis/bens sem permissão, rasgar roupas
Diariamente em dois anos
0 Casado (certo)
69
Nome Nível de Estresse
Violências Praticadas
Violências Sofridas Frequência da Violência
Risco Situação Conjugal
Cleumar
Quase-exaustão,
Agravamento, Predominância
de Sintomas Psicológicos
VPS: machucar animais de estimação,
impedir contato com a família e
amigos, VM: xingamento, inventar mentiras sobre a pessoa, espalhar fofocas sobre a pessoa
VF: atirar objetos VPS: humilhar, ameaçar, impedir de
sair e de mantercontato com a família e amigos, ameaçar pessoas
queridas VP: esconder/estragar objetos e documentos, desviar dinheiro;
VM: xingamento, acusar a pessoa de ter feito um crime;
Episódio Único
3 Casado (certo)
A Tabela 4 mostra que quatro, dos sete homens do grupo intervenção,
identificaram sintomas suficientes para o diagnóstico de estresse. Três deles (João,
Pedro e Paulo) apresentaram um quadro de estresse na fase de resistência, sem
tendência a agravamento. Cleumar estava seriamente estressado, pois apresentou um
quadro de quase-exaustão. A tendência de agravamento do estresse apareceu apenas
nesse caso. Dos homens estressados, dois relataram predominância de sintomas
psicológicos e dois, de sintomas físicos.
Todos os homens assumiram ter praticado e sofrido – por parte da
companheira/ex-companheira - algum tipo de violência. Com exceção de Cleumar,
todos os outros assumiram terem sido fisicamente violentos com suas companheiras/ex-
companheiras. Tapas e empurrões foram os atos mais mencionados – por quatro e três
homens, respectivamente. É relevante que Paulo tenha assumido a tentativa de
homicídio. Seis homens assumiram também a prática de violência psicológica, sendo
que as humilhações e impedimento de contato foram as mais frequentes. A violência de
ameaça foi mencionada apenas por Dinho. O xingamento foi a violência moral mais
frequente, tendo sido mencionado por quatro homens. Apenas Paulo relatou ter
praticado violência patrimonial – estragar objetos pessoais.
Chama atenção o fato de que, com exceção de José, todos os homens relataram
mais violências sofridas que praticadas. Seis homens disseram ter sofrido violência
física por parte das companheiras/ex-companheiras. Atirar objetos, beliscões -
mencionados por quatro homens -, tapas e empurrões – mencionados por três homens -
foram as violências sofridas mais relatadas.
Seis homens disseram ter sofrido violência psicológica, sendo que as
humilhações foram mencionadas pelos seis e ameaças foram mencionadas por três
homens. Um homem relatou ter sofrido ameaça com faca. Dos quatro homens que
70
disseram terem sido ameaçados, três (João, Pedro e Cleumar) apresentaram sintomas de
estresse. Interessante perceber que três homens (João, Paulo e Cleumar) relataram terem
sido impedidos de sair de casa e de manter contato com amigos e familiares. Os homens
que relataram essas últimas violências receberam diagnóstico de estresse.
A violência patrimonial foi assinalada por quatro homens como violência
sofrida, sendo que todos eles relataram que tiveram objetos pessoais estragados,
escondidos ou destruídos. Os seis participantes do grupo que disseram ter sofrido
violência moral fizeram referência aos xingamentos. Dois homens (Pedro e Cleumar)
disseram que foram acusados pela companheira/ex-companheira de cometer um crime.
O discurso desses homens indica que eles não percebiam a prática de violência como
um crime que justifique a denúncia e a intervenção do Estado.
A quantidade e variedade de violências relatadas tornam improvável que todas
elas tenham ocorrido em apenas uma oportunidade. Apenas dois homens (Vilmar e
Paulo), contudo, relataram a ocorrência de episódios múltiplos de violência. Outro dado
que chama atenção diz respeito ao fato de que apenas Cleumar identificou risco de
ocorrência de novos episódios de violência, salientando-se que, ainda nesse caso, o risco
foi avaliado como reduzido. A percepção de ausência de risco ocorreu mesmo diante do
fato de seis dos sete participantes manterem relacionamento com a outra parte do
processo, sem relato de qualquer apoio profissional para a mudança da dinâmica
relacional.
No tocante às relações entre estresse, frequência da violência e percepção de
risco de reincidência, nota-se que três (João, Pedro e Cleumar) dos quatro homens em
que se identificou estresse relataram episódios únicos de violência no relacionamento.
Dois deles (João e Franscico) percebiam como ausente o risco de reincidência da
violência. Cleumar foi o único homem que percebeu risco de reincidência da violência e
também o mais severamente estressado. Paulo foi o participante que relatou maior
frequência dos episódios de violência, que teriam ocorrido diariamente. Ainda assim,
avaliou como nulo o risco de reincidência, a despeito de permanecer casado e apresentar
quadro de estresse. Todos os homens sem estresse perceberam como ausente o risco de
reincidência da violência, sendo que apenas Vilmar afirmou terem ocorrido múltiplos
episódios de violência.
Nesse grupo, apenas Dinho estava separado. Nenhum dos homens tinha dúvida
quanto ao seu estado conjugal, ou seja, os que estavam casados desejavam permanecer
71
casados e Dinho, que estava separado, não desejava a reconciliação. A certeza quanto ao
estado conjugal é um provável fator de proteção ao surgimento e agravamento dos
sintomas de estresse. Cinco dos seis homens casados perceberam como nulo o risco de
ocorrência de novos episódios violentos, embora se mantivessem no relacionamento
conjugal com a mulher que fez a denúncia e não tivessem, até o momento, recebido
qualquer auxílio profissional para construção de formas não violentas de resolução de
conflitos.
2.2.2 Grupo Comparação
Tabela 5. Situação inicial dos homens do Grupo Comparação
Nome Nível de Estresse
Violências Praticadas
Violências Sofridas Frequência da Violência
Risco Situação Conjugal
Ian
Resistência, Predominância
de sintomas psicológicos
VF: empurrar VPS: humilhar, impedir de sair
VP: destruir objetos
VM: xingamento
VF: empurrar, apertar VPS:humilhar
VP: Destruir/estragar/esconder objetos
VM: xingamento
1 vez a cada 15 dias
1 Casado (certo)
Ailton Sem estresse VF: empurrar VF: empurrar
VM: xingamento, espalhar fofocas sobre a pessoa
Episódio único
0 Separado
(certo)
Vítor Sem estresse
VF: tapas, empurrar, puxar
cabelo VPS: humilhar
VM: xingamento
VF: atirar objetos
VPS: humilhar, impedir de sair e de falar com as pessoas
VP: destruir/estragar objetos, estragar/ esconder documentos
VM: xingamento
Episódio único
0 Casado (certo)
Ricardo Sem estresse
VF: tapas, puxar o cabelo, empurrar,
apertar; VP: estragar
objetos; VM: xingamento
VPS: ameaçar VM: xingamento
Episódio único
0
Separado (desejo de
reconciliação)
Nildo Sem estresse
VF: empurrar VPS: ameaçar
VP: destruir/estragar/es
conder objetos VM: xingamento
VF: empurrar, atirar objetos; VPS: humilhações, ameaças,
impedir de falar com as pessoas VM: xingamento, acusar a
pessoa de ter feito um crime, inventar mentiras sobre a pessoa, espalhar fofocas sobre a pessoa
VP: estragar/esconder documentos, esconder objetos
Episódios Múltiplos,
mas não sabe a frequência
0 Casado (certo)
Caio Sem estresse
VF: tapas, empurrar, chutes,
apertar, puxar cabelo
VPS: ameaçar VM: xingamento
VF: empurrar; VPS: ameaçar impedir de sair; VP: esconder objetos, desviar
dinheiro, VM: xingamento, ofensa à honra
a cada 3 meses, mais ou menos
4 Casado (certo)
72
Nome Nível de Estresse
Violências Praticadas
Violências Sofridas Frequência da Violência
Risco Situação Conjugal
Tiago
Exaustão, Agravamento, Predominância
de Sintomas Psicológicos
VF: empurrão, tapas
VM: xingamento
VF: tapas, empurrar VPS: impedir de sair
VP: vender objetos sem permissão, estragar ou esconder documentos, vender imóveis e bens sem permissão, esconder
objetos VM: xingamento, inventar
mentiras sobre a pessoa
Episódio único
0 Casado (dúvida)
James
Exaustão, Agravamento, Predominância
de Sintomas Psicológicos
VF: empurrão, apertão;
VPS: humilhar; VP:
estragar/destruir objetos, rasgar
roupas; VM: xingamento
VF: atirar objetos, VPS:
ameaçar com faca, ameaçar, perseguir na rua, impedir de sair
e de contato com a família e amigos
VP: estragar/ esconder documentos, vender objetos sem
permissão; esconder objetos VM: espalhar fofocas sobre a
pessoa VS: deixar a pessoa constrangida
durante o sexo
1 vez a cada 3/4 meses
5 Separado
(certo)
As informações da Tabela 5 permitem perceber que dos oito homens do Grupo
Comparação, apenas três (Ian, Tiago e James) identificaram sintomas suficientes para o
diagnóstico de estresse. Tiago e James apresentaram níveis severos de estresse,
chegando à exaustão, enquanto que Ian identificou sintomas em quantidade suficiente
para o diagnóstico de estresse na fase de resistência. Os três apresentaram
predominância de sintomas psicológicos em detrimento dos físicos.
Todos os homens assumiram ter praticado violência contra suas
companheiras/ex-companheiras. É interessante notar, por outro lado, que todos
relataram também ter sofrido algum tipo de violência no relacionamento e quase todos
identificaram mais violências sofridas que praticadas. Tiago e James, que
apresentaramos quadros mais severos de estresse, foram os participantes que mais
relataram violências sofridas. É importante frisar que, mesmo diante do relato das
violências sofridas, mais da metade dos homens relataram ausência de estresse.
A prática de violência física foi relatada por todos os homens, sendo que os
empurrões foram mencionados por todos eles e os tapas foram mencionados por quatro.
O xingamento foi a única violência moral relatada e foi praticado por sete homens.
Quatro homens mencionaram a violência patrimonial de destruir/estragar/esconder
objetos pessoais. A humilhação apareceu como a violência psicológica mais frequente e
foi assumida por cinco homens. Apenas Nildo e Caio assumiram a prática de ameaça.
73
Nenhum homem afirmou ter praticado violência sexual e ter impedido a mulher de
manter contato com familiares e amigos. Violências graves como enforcamentos,
tentativa de homicídio e ameaças com faca também não foram mencionadas pelos
participantes do Grupo Comparação.
O grupo inteiro relatou ter sofrido violência moral por parte das
companheiras/ex-companheiras. O xingamento foi mencionado por sete homens.
Interessante notar que Nildo pontuou a violência de acusar a pessoa de ter cometido um
crime, referindo-se à queixa policial realizada pela companheira. Ele, contudo, assumiu
a prática de violência. Esse dado faz pensar que ele, como alguns dos homens do Grupo
Intervenção, acredita que a violência conjugal não deve ser passível de intervenção
policial e judicial.
Sete homens relataram ter sofrido violências físicas e psicológicas. Dentre as
violências físicas, o empurrão foi a conduta mais frequente – mencionada por cinco
participantes. Quatro homens disseram que foram impedidos de sair pelas
companheiras/ex-companheiras, três disseram que foram impedidos de manter contato
com familiares e amigos e três mencionaram ameaças. Por fim, seis homens afirmaram
ter sofrido violência patrimonial, sendo que destruir/estragar/esconder objetos pessoais
foi um comportamento mencionado por todos eles. James disse ter sido constrangido
pela ex-companheira durante a relação sexual.
Quanto às relações entre estresse, frequência da violência e avaliação de risco,
pode-se notar que cinco homens - mais da metade do grupo - tiveram a percepção de
ausência de risco de ocorrência de novos episódios de violência. Quatro deles
afirmaram também que as violências, tanto sofridas quanto praticadas, ocorreram em
episódio único. Tiago foi o único, dentre os homens que relataram episódio único de
violência e ausência de risco percebido, que identificou sintomas compatíveis com um
quadro de estresse. Chama atenção a aparente incongruência entre severidade do nível
de estresse diagnosticado (exaustão) e os relatos deste participante.
Dos três homens estressados, dois (Ian e James) assumiram que a violência
ocorreu por diversas vezes em seu relacionamento e perceberam risco de reincidência.
Ian, na fase de resistência ao estresse, foi o homem que relatou maior frequência de
episódios de violência. Ele, ainda assim, percebeu um risco reduzido de reincidência.
James percebeu maior risco de reincidência da violência – risco moderado - e estava
severamente estressado no teste (exaustão). Apenas um homem sem diagnóstico de
74
estresse (Caio) percebeu risco de reincidência. Este homem também relatou episódios
múltiplos de violência.
No Grupo Comparação, havia cinco homens casados e três homens separados.
Quanto às relações entre estresse, situação conjugal e avaliação de risco pode-se notar
que dos três homens estressados, dois (Ian e Tiago) eram casados. Tiago, como dito
anteriormente, apresentou um quadro de exaustão, relatou violências praticadas e
diversas violências sofridas - em episódio único - e ainda assim considerou ausente o
risco de reincidência da violência. Ian percebeu um risco reduzido de reincidência e
relatou múltiplos episódios de violência. Caio foi o que percebeu o segundo maior risco
dentre os homens do Grupo Comparação, assumindo que os episódios de violência
teriam ocorrido a cada três meses. Mesmo estando casado e tendo percebido um risco
moderado, este participante não identificou sintomas para um diagnóstico de estresse.
Dos cinco homens sem estresse, três (Ailton, Ricardo e James) estavam
separados, sendo que dois (Ailton e James) estavam certos da separação. James foi o
único homem separado que reconheceu risco de reincidência, mesmo que reduzido, e
também a ocorrência de múltiplos episódios de violência.
2.3 Reflexões sobre as experiências de homens e mulheres em situação de
violência
O que faz as experiências de homens e mulheres em situação de violência tão
distintas? As informações referentes às situações iniciais dos/as participantes da
pesquisa revelam diferenças marcantes quanto aos níveis de estresse e percepção de
risco de ocorrência de novos episódios de violência. Diante do fato de que homens e
mulheres relataram violências sofridas e praticadas, é relevante refletir sobre possíveis
explicações para esta questão.
Apenas uma mulher, dentre as 14 participantes, não obteve diagnóstico de
estresse. Mais da metade - oito mulheres - apresentaram quadros de estresse severos. As
outras participantes apresentaram quadros de estresse na fase de resistência, mas todos
com tendência a agravamento. Esses dados contrastam com os obtidos da amostra
masculina. Dos 15 participantes, mais da metade – oito – não identificaram sintomas em
quantidade suficiente para o diagnóstico de estresse. Dos sete homens estressados,
quatro estavam com sintomas de estresse na fase de resistência, sem tendência a
75
agravamento constatada. Somente três homens apresentaram quadros mais graves de
estresse.
Essas diferenças deixam clara a influência das questões de gênero envolvidas no
processo de estresse. Há diversas reflexões a serem feitas a esse respeito. A primeira
delas diz respeito à desproporcionalidade com que homens e mulheres são, em geral,
afetadas/os pelo fato de fazerem parte de uma relação conjugal violenta. Essa
desproporção, tanto em termos de gravidade das violências sofridas quanto de
consequências deletérias à saúde, é mencionada pela literatura especializada no tema
(Angelim, 2009; Fortin, Guay, Lavoie, Boisvert & Beaudry, 2012; Soares, 2005;) e foi
confirmada pelos resultados da pesquisa. Pode-se então dizer que as mulheres da
pesquisa apresentaram sintomas de estresse em maior quantidade e severidade pelo fato
de terem sido expostas a violências em geral também mais graves, diversificadas e que
envolvem maior risco à sua integridade física e mental.
Merece atenção a alta frequência dos relatos de violência por parte das mulheres,
bem como a sua gravidade. Todas as mulheres participantes da pesquisa relataram ter
sofrido violência em seu relacionamento amoroso atual ou mais recente. Alguns atos
violentos impuseram risco à vida das mulheres. Ressalta-se que as violências físicas e
psicológicas foram mencionadas por toda a amostra feminina. Violências físicas muito
graves, como enforcamento e tentativa de homicídio, também foram relatadas.
As ameaças, que tornam o risco à integridade física uma possibilidade premente
e têm forte impacto deletério sobre a saúde emocional de quem as sofre, também
apareceram em frequência bastante elevada. O isolamento social se constitui em fator de
risco importante nos casos de violência contra a mulher (Day et al., 2003; Soares,
2005), além de comprometer seriamente a saúde emocional. Os dados mostram que pelo
menos sete mulheres tiveram as atividades sociais impedidas pelos companheiros e ex-
companheiros durante o relacionamento. A violência sexual foi mencionada por menos
da metade da amostra feminina. Esse dado corrobora pesquisas nacionais recentes, que
apontam uma tendência a que as violências sexuais sejam menos relatadas pelas
mulheres que os outros tipos de violência (Data Senado, 2013; Ligue 180, 2012).
É comum que muitos dos homens autores de violência conjugal não apenas
minimizem, mas neguem a prática de qualquer conduta violenta, mesmo após as
intervenções psicossociais e mesmo quando há indícios claros de autoria da violência. A
negação se explica tanto pelo fato de muitos deles não compreenderem a própria
76
conduta como violenta, naturalizando-a e justificando-a, como pelo temor das possíveis
consequências processuais da assunção de suas condutas. Chama atenção, diante disso,
que a despeito da presença de minimização, todos os homens participantes desta
pesquisa tenham assumido a prática de condutas violentas. É provável que isso tenha
acontecido em virtude da explicitação do propósito da pesquisa – compreender as
relações entre estresse e violência, para o desenvolvimento de formas interventivas e de
apoio a todos os envolvidos nas situações de violência contra a mulher. A proposta de
cuidado, também aos homens autores de violência, e a postura não julgadora ou
confrontativa da pesquisadora e da equipe de apoio podem ter auxiliado na redução das
defesas.
As práticas violentas mais relatadas pelos homens - empurrões, xingamentos e
tapas - também foram alguns dos mais mencionados pelas mulheres ao assinalarem as
violências sofridas. Chama atenção que um homem tenha assumido tentativa de
homicídio. É importante notar, contudo, que os homens praticamente não relataram a
prática de ameaças e de impedimento do convívio social. Tentativa de enforcamento,
ameaças com facas e outras armas e violência sexual não foram relatadas por nenhum
participante. A experiência com grupos de homens revela que eles frequentemente não
compreendem a ameaça e as condutas sexualmente abusivas dentro de um
relacionamento amoroso como atos de violência. Os sentimentos de posse e autoridade
em relação à mulher também costumam naturalizar os mandos e as limitações à
autonomia e socialização das parceiras.
É digno de nota que quase todas as mulheres – com exceção de duas - tenham
afirmado a prática de violência contra os companheiros/ex-companheiros. Todos os
homens, por sua vez, afirmaram terem sofrido violência em seus relacionamentos, sendo
intrigante notar que quase todos eles tenham relatado mais violências sofridas que
praticadas. As violências mais praticadas pelas mulheres – xingamentos, tapas,
empurrões, atirar objetos e estragar/esconder/destruir objetos pessoais - diferem
claramente em intensidade e frequência de menção das violências sofridas. É importante
dizer que apenas duas mulheres mencionaram ter feito ameaças e impedido o homem de
falar com as pessoas. Os homens mencionaram ter sofrido mais violências morais e
patrimoniais, que sem dúvida podem produzir danos emocionais significativos.
Contudo, não houve relato de violências que impusessem grave risco à integridade
física e mesmo à vida, como ocorreu no caso das mulheres.
77
O relato de ameaças e de impedimento de sair por sete homens nos leva a refletir
sobre uma limitação da pesquisa. O questionário utilizado para a coleta de dados não
permitiu adequado aprofundamento em relação a essas e também às outras formas de
violências. Não é possível, pelos dados obtidos, comparar a forma como essas
violências foram praticadas (como os homens e as mulheres impediram seus
parceiros/as de sair e de manter contato social, por exemplo) e de que tipo de ameaças
homens e mulheres estão falando. Também não foi possível comparar intensidade e
frequência das violências praticadas por homens e mulheres. Essa foi uma limitação da
pesquisa, uma vez que explorar melhor essas dimensões poderia enriquecer a análise
dos dados e esclarecer questões importantes a respeito da dinâmica relacional violenta.
Neste sentido, a falta dessas informações constitui uma lacuna a ser considerada em
pesquisas futuras.
Não se pretende, com essas reflexões, minimizar ou desconsiderar o fato de que
as mulheres são capazes de praticar violências e que estas são, também, maneiras
inadequadas de resolução de conflitos. Todas as pessoas envolvidas em uma relação
violenta sofrem e comumente lhes falta recursos para a resolução adequada de seus
conflitos relacionais. Contudo, faz-se premente reconhecer que historicamente as
mulheres têm ocupado lugares mais vulneráveis em seus relacionamentos familiares e
especialmente amorosos, que as violências sofridas relatadas por mulheres trazem maior
risco à integridade física e à vida e que elas muito frequentemente apresentam maiores
sinais de sofrimento emocional e traumatização em decorrência da vivência violenta
(Angelim, 2004, 2009; Diniz & Pondaag, 2004, 2006; Diniz, 2011; Machin et al, 2011;
Medeiros, 2010). Os homens, em função da força física e do poder social da
masculinidade, em geral exercem maior poder de controle e coerção, agridem de forma
mais contundente e causam mais dano às mulheres.
Parece improvável, a partir da literatura sobre o tema (Ligue 180, 2012; OMS,
2005; Soares, 2005) e da experiência profissional da pesquisadora, que a maior parte
dos homens tenha sofrido mais violência que praticado. Deve-se pensar, em relação a
esta informação, na influencia exercida pela minimização das próprias condutas
violentas e pela manutenção de uma postura de vitimização e de atribuição da
responsabilidade pelo conflito às mulheres. Os homens autores de violência tendem a
perceber mais condutas negativas das parceiras que de si próprios, atribuindo a elas a
78
responsabilidade pelos conflitos relacionais e também pela violência (Enrique Gracia &
Herrero, 2012).
O fato de a pesquisa ter sido realizada no espaço físico do Tribunal de Justiça e
Territórios, onde estes homens respondem a um processo criminal, pode também ter
influenciado esta postura por parte dos participantes. Por um lado, a proposta da
pesquisa parece ter contribuído para a não negação da violência. Por outro, é possível
que o ambiente e o vínculo com a pesquisadora não tenham sido percebidos como
seguros o suficiente para a assunção de todas as condutas violentas.
Ficaram evidentes as diferenças quanto aos níveis de estresse de homens e
mulheres. Além da gravidade das violências sofridas, dois fatores estão possivelmente
relacionados a essas diferenças: a frequência de ocorrência da violência e as percepções
de risco de reincidência. Nove mulheres relataram episódios múltiplos de violência.
Segundo as informações fornecidas por elas, o intervalo entre os episódios de violência
foi de no máximo um mês. Cinco mulheres relataram episódios únicos de violência. Já
entre os homens, seis relataram episódios múltiplos de violência, sendo que o intervalo
entre eles foi de no máximo quatro meses. Nove homens afirmaram que as violências
ocorreram uma única vez em seu relacionamento.
Conquanto seja intrigante que a quantidade de comportamentos violentos
sofridos e praticados assinalados pelos homens tenha ocorrido em um único dia, a
minimização da violência frequentemente presente em seus relatos justificaria este
dado. Chama atenção, contudo, o fato de que cinco mulheres, dentre as 14 que
participaram da pesquisa, tenham também relatado a ocorrência de episódios únicos de
violência. A lista de comportamentos violentos assinalados por estas mulheres também
torna improvável que todos eles tenham ocorrido em um único dia.
Há algumas hipóteses explicativas para estas respostas, predominantes entre a
amostra masculina, mas também presentes na feminina. Novamente, faz-se necessário
dizer que a naturalização de algumas condutas violentas, por homens e mulheres, faz
com que elas não sejam percebidas como tal e, dessa forma, não sejam computadas
como episódios de violência. É frequente que apenas as violências físicas mais graves
sejam consideradas e que os outros tipos de violência - psicológica, moral, patrimonial e
sexual - passem despercebidos ou não sejam percebidos como violência.
79
Há que se considerar, especialmente em relação aos homens, a dificuldade de
assunção de ocorrência da violência na frequência e intensidade que realmente
ocorreram. Isto porque o processo de autorresponsabilização se constitui, quase sempre,
em grande desafio para eles. Ademais, vale lembrar que estes homens estavam sendo
processados judicialmente pelo crime de violência contra a mulher, o que se supõe
exercer um efeito de acuamento. Afinal, reconhecer uma conduta violenta corresponde a
reconhecer um crime cometido, passível de intervenção estatal e responsabilização
criminal. Mesmo que se tenha declarado a desconexão entre a pesquisa e a justiça, é
possível que essa relação não tenha sido desfeita mental e emocionalmente para os
participantes. Até mesmo porque a pesquisadora e a maior parte de a equipe de apoio
são servidores do Tribunal de Justiça.
Algumas mulheres também tenderam a minimizar a violência sofrida. Nossa
hipótese é de que esse comportamento esteja ligado a sentimentos de culpa pela
denúncia e pela violência. Ademais, algumas delas (Clara e Rosa) mencionaram o
desejo/necessidade de continuidade da relação e tenderam, diante disso, a adotar
posturas de proteção em relação ao companheiro/ex-companheiro. Além disso, pôde-se
notar que em alguns casos a prática de comportamentos violentos pelas mulheres teve o
efeito de justificar/naturalizar/minimizar a gravidade da situação vivida.
As diferenças de gênero quanto aos níveis de estresse provavelmente guardam
relação, também, com as exigências e treinamentos sociais distintos oferecidos a
homens e mulheres. Ao que tudo indica, os homens minimizam não apenas a violência
cometida, mas também as consequências emocionais e físicas deletérias de ser ou ter
sido parte de uma relação amorosa permeada pela violência. Chama atenção o fato de
todos os participantes da pesquisa serem identificados pela Justiça como supostos
autores de lesão corporal contra a mulher, além de outros tipos de violência. As
possíveis consequências legais para esse tipo crime são severas e as consequências
indiretas do fato de responder a um processo judicial também são diversas. Por
exemplo, muitos homens são prejudicados em seus empregos, tanto em virtude da ficha
criminal quanto das faltas necessárias para comparecer a audiências e atendimentos
psicossociais. Além disso, o estigma de responder a um processo judicial é significativo
e implica muitas vezes em constrangimento diante de policiais, familiares, colegas de
trabalho e amigos.
Recommended