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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ
CENTRO DE EDUCAÇÃO E LETRAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO SCRICTO SENSU EM SOCIEDADE, CULTURA E
FRONTEIRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SOCIAIS E HUMANIDADES
CLAUDIA CRISTINA HOFFMANN
FRONTEIRAS DE UM QUILOMBO EM “CONSTRUÇÃO”: UM ESTUDO SOBRE O
PROCESSO DE DEMARCAÇAO DAS TERRAS DA COMUNIDADE NEGRA MANOEL
CIRÍACO DOS SANTOS – GUAÍRA/PR
FOZ DO IGUAÇU – PR
2012
CLAUDIA CRISTINA HOFFMANN
FRONTEIRAS DE UM QUILOMBO EM “CONSTRUÇÃO”: UM ESTUDO SOBRE O
PROCESSO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS DA COMUNIDADE NEGRA MANOEL
CIRÍACO DOS SANTOS – GUAÍRA/PR
Dissertação apresentada à Universidade Estadual do
Oeste do Paraná – UNIOESTE – para a obtenção do
título de Mestre em Sociais e Humanidades, junto ao
Programa de Pós-Graduação Scricto Sensu em
Sociedade, Cultura e Fronteiras.
Linha de Pesquisa: Território, História e Memória.
Orientador: Prof. Dr. Valdir Gregory.
FOZ DO IGUAÇU-PR
2012
Dedico esse trabalho às negras e aos negros.
Para Edson Belo, meu companheiro amado e grande
incentivador na minha trajetória.
Para Glória, nossa filha, sonho realizado.
E para Sofia, a menina mais corajosa que conheci.
AGRADECIMENTOS
À Unioeste, instituição pública que possibilitou minha qualificação gratuita.
Ao professor Valdir Gregory, sábio, dedicado e admirável orientador.
Aos demais professores do Programa de Mestrado: Geraldo, Regina, Tarcísio, José
Carlos, Ivo, Maria Helena, João e Erneldo.
Aos colegas mestrandos: Kleber, Washington, Carmen, Ana, Dione, Nara, Lara,
Juliane e Celso, pelos importantes diálogos.
Ao professor Edson Belo, pelas suas esclarecedoras intervenções.
À Vânia, secretária do programa, dedicada e eficiente.
À minha mãe, Beatriz, que muitas vezes cuidou da minha filha, da minha casa, de
tudo, enquanto eu estudava.
Às pessoas que indiretamente fizeram parte e auxiliaram na construção desse trabalho,
como minha irmã Darli e as amigas Suleine, Adriane, Sonia, Neusa e Marisa.
À todos integrantes da comunidade negra Manoel Ciriaco dos Santos, mas
especialmente Adir, Solange, Eva, Joaquim, Geralda, Fernanda, Chiquinha, Luciano e
Sebastião, que carinhosamente forneceram informações e muito mais para esta pesquisa.
Aos funcionários do Incra-PR, que permitiram a consulta aos documentos.
Aos funcionários da biblioteca da Unioeste, sempre prestativos, em especial, Clair,
Marcia, João, Noeli, Helena, Caroline, Miriam e Raquel.
Aos meus colegas professores da rede estadual de ensino, pelos dias em que pude
contar com a colaboração destes, já que não foi possível o afastamento para cursar o
mestrado.
Aos meus alunos mais entusiasmados, também por eles me inspirei.
Deixemos à astúcia de uns, à ingenuidade de outros,
a Fronteira Natural: não há senão Fronteiras
Humanas. Elas podem ser justas ou injustas, mas
não é a natureza quem dita a equidade ou aconselha
a violência.
Lucien Febvre - O Reno
HOFFMANN, Claudia Cristina. Fronteiras de um quilombo em “construção”: um estudo
sobre o processo de demarcação das terras da Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos
– Guairá/PR. 2012. 120 f. Dissertação (Mestrado em Sociedade, Cultura e Fronteiras) –
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Foz do Iguaçu.
RESUMO
A presente pesquisa analisou vivencias da Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos,
localizada em Maracaju dos Gaúchos, Guaíra-Pr. Esta comunidade esta envolvida num
processo de identificação de comunidade quilombola remanescente e de demarcação de terras,
num contexto de políticas públicas de promoção da igualdade racial, valorização dos negros e
dos quilombolas no Brasil e no estado do Paraná. O texto foi escrito com base em entrevistas,
visitas à comunidade, levantamento de dados e fontes como documentos, fotografias e
memórias registradas sobre a comunidade. Os processos de demarcações de terras
quilombolas no Brasil ocorrem após o interesse e solicitação de integrantes da comunidade
que tenham esse objetivo, para a Fundação Cultural Palmares (FCP), alegando sinais de
africanidades, traços de comunidade tradicional e autorreconhecimento de quilombo
remanescente, baseados no Decreto Federal nº. 4887-2003 e praticado pelo Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A partir do interesse de integrantes da
comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos em ser quilombo remanescente, percebeu-se
mudanças históricas, identitárias, espaciais e culturais que afetaram o cotidiano deles. Dentre
as principais mudanças destacam-se conflitos e interesses diversos diante de transformações
territoriais e fronteiriças. Nesse sentido, analisam-se as múltiplas fronteiras relacionadas ao
território da comunidade negra em questão, porque essas são fluídas e vão para além das
demarcações visíveis como cercas, muros ou documentos. São fronteiras entre grupos,
pessoas, instituições e posições ideológicas que indicam tensões e revelam dinâmicas do viver
em comunidade e em sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: quilombo remanescente, comunidade negra, demarcação de terras,
fronteiras, identidades.
HOFFMANN, Claudia Cristina. Frontiers from a quilombo under "construction": a study
on the process of land demarcation of the Black Community Manoel Ciriaco Dos Santos –
Guaíra/PR. 2012. 120 f. Dissertation (Master in Society, Culture and Borders) – Universidade
Estadual do Oeste do Paraná, Foz do Iguaçu.
ABSTRACT
The present study examined experiences of the Black Community Manoel Ciríaco dos Santos,
located in Maracaju dos Gauchos, Guaíra, PR. This community is involved in a process of
identifying the remaining quilombola community and demarcation of land, in a context of
public policies to promote racial equality, appreciation of blacks and quilombolas (maroons)
in Brazil and in the state of Paraná. The text was written based on interviews, community
visits, data collection and data sources such as documents, photographs and memories
recorded on the community. The processes of demarcation of Quilombola lands in Brazil
occur after the interest and request of community members who have this goal, to the
Palmares Cultural Foundation (PCF), citing signs of africanities, features of traditional
community and self recognition of remnant quilombo, based on Federal Decree 4887-2003
and practiced by the National Institute of Colonization and Agrarian Reform (INCRA). From
the interest of members of the black community Manoel Ciríaco dos Santos to be remnant
quilombo, historical, identity, cultural and spatial changes were perceived and these changes
affected their daily lives. Among the major changes it’s possible to highlight conflicts and
different interests in face of territorial and border changes. Accordingly, the multiple
boundaries related to the territory of the black community in question were analyzed, because
these are fluid and go beyond the visible boundaries such as fences, walls or documents. They
are boundaries between groups, individuals, institutions and ideological positions that indicate
tension and reveal the dynamics of living in community and society.
KEYWORDS: remnant quilombo, black community, demarcation of land, boundaries,
identities.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01 - Mapa de Localização da Área de Estudo ............................................................... 19
Figura 02 - Faixa Afixada no Palácio do Planalto em Brasília, durante a instalação da
SEPPIR, em 2003. ................................................................................................. 36
Figura 03 - Mapa da Distribuição das Construções na Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos
Santos: ................................................................................................................... 45
Figura 04 - Foto da Casa do Líder da Comunidade Adir Rodrigues dos Santos ...................... 47
Figura 05 - Sala de Informática da Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos ............... 48
Figura 06 - Foto da Sede da Comunidade e da Capoeira ......................................................... 49
Figura 07 - Cartazes Expostos no Galpão ................................................................................ 50
Figura 08 - Cartazes Expostos no Galpão ................................................................................ 51
Figura 09 - Foto da Igreja Católica em Maracaju dos Gaúchos ............................................... 52
Figura 10 - Foto do Artesanato ................................................................................................. 53
Figura 11 - Foto do Altar Religioso.......................................................................................... 54
Figura 12 - Foto da Casa de Joaquim e Eva ............................................................................. 55
Figura 13 - Foto da Casa de João e Kelly ................................................................................. 56
Figura 14 - Foto da Casa do Luciano e Chiquinha ................................................................... 57
Figura 15 - Foto da Horta e Plantações .................................................................................... 58
Figura 16 - Foto da Plantação de Pimentas .............................................................................. 59
Figura 17 - Foto da Plantação de Batata-Doce e Vista Parcial do Galinheiro e do Chiqueiro . 60
Figura 18 - Foto dos Pequenos Animais ................................................................................... 61
Figura 19 - Foto do Caminho que dá Acesso ao Rio Barigui ................................................... 62
Figura 20 - Foto do Rio Barigui ............................................................................................... 63
Figura 21 - Foto da “Estrada da Capelinha”, em Maracaju dos Gaúchos, que dá Acesso à
Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos .................................................... 64
Figura 22 - Foto da Capela que Caracteriza o Nome da Estrada: “Estrada da Capelinha” ...... 65
LISTA DE SIGLAS
ACONEMA – Associação da Comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos.
ADCT – Atos das Disposições Transitórias.
ADIN – Ação Direta de Inconstitucionalidade.
EMATER - Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural
FCP – Fundação Cultural Palmares.
GTCM – Grupo de Trabalho Clóvis Moura.
GTI – Grupo de Trabalho Interministerial pela Valorização da População Negra.
IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.
INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
MST – Movimento dos Sem-terra.
PLANAPIR – Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
SEDH – Secretaria Especial de Direitos Humanos.
SEED – Secretaria Estadual de Educação.
SEPPIR - Secretaria Especial de Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial.
SETI – Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.
SUS – Sistema Único de Saúde.
UNEGRO – União de Negros pela Igualdade.
UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
1 COMUNIDADE NEGRA MANOEL CIRÍACO DOS SANTOS E AS POLÍTICAS
PÚBLICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL NO BRASIL ............... 19
1.1 DE REPENTE: QUILOMBO ............................................................................................. 20
1.2 PROCESSOS HISTÓRICOS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROMOÇÃO DE
IGUALDADE RACIAL NO BRASIL .............................................................................. 27
1.3 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA QUILOMBOLAS NO ESTADO DO PARANÁ .......... 39
2 A VIDA NA COMUNIDADE ............................................................................................. 42
2.1 HISTÓRIAS, TRAJETÓRIAS E COTIDIANO ................................................................ 42
2.2. IDENTIDADE, MEMÓRIA E CULTURA. ..................................................................... 67
3 CONFLITOS E VOZES SOBRE A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS .......................... 75
3.1 CONFLITOS E TENSÕES ................................................................................................ 75
3.2 A COMUNIDADE NEGRA E O LAUDO ANTROPOLÓGICO PRODUZIDO PELA
EQUIPE DA UNIOESTE ................................................................................................. 84
3.3 A VERSÃO DO INCRA .................................................................................................... 92
4 PARA ALÉM DAS FRONTEIRAS E SEUS TERRITÓRIOS ....................................... 96
4.1 DISCURSOS IDEOLÓGICOS .......................................................................................... 97
4.2 FRONTEIRAS, TERRITÓRIOS E SIGNIFICADOS MÚLTIPLOS .............................. 104
CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 111
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 117
11
INTRODUÇÃO
Esta dissertação é um estudo sobre a Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos e
trata de histórias, conflitos e disputas geradas pela pretensão na obtenção da titulação e
demarcação das terras, localizadas em Maracaju dos Gaúchos, distrito do município de
Guairá/PR, como remanescente de quilombo. O assunto envolve integrantes da Comunidade
Negra, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), antropólogos,
agricultores da região, políticos, intelectuais, dentre outros representantes e segmentos do
governo e da sociedade em geral.
Segundo Oliveira (2006), as comunidades remanescentes dos quilombos ainda são
desconhecidas de grande parte dos brasileiros e para a maioria o quilombo é algo do passado,
que teria desaparecido com o fim da escravidão. Assim, costuma causar surpresa a informação
da existência de muitas centenas de comunidades quilombolas espalhadas por todas as regiões
do país. Apenas a partir de 1988, quando a Constituição brasileira reconheceu às comunidades
remanescentes dos quilombos o direito à propriedade de suas terras, é que esta questão passou
a ganhar espaço no cenário nacional.
A origem da palavra Kilombo, segundo Munanga, (1996) vem da língua banto
umbundo, que diz respeito a um tipo de instituição sociopolítica militar conhecida na África
Central, mais especificamente na área formada pela atual República Democrática do Congo
(Zaire) e Angola.
E, segundo Georgina Nunes (2006), quilombo é um termo umbundo, e constituía-se
em um agrupamento militar de jovens guerreiros.
No Brasil, os acampamentos de ex-escravos fugitivos, que chegaram a se tornar
cidades, também receberam o nome de quilombos. Segundo Boris Fausto (2002, p. 52) os
quilombos, ou seja, os estabelecimentos de negros que escapavam à escravidão pela fuga e
recompunham no Brasil formas de organização social semelhantes às africanas, existiram às
centenas no Brasil colonial.
As comunidades quilombolas contemporâneas (MUNANGA, 1996) recebem várias
denominações, como terras de pretos, mocambos, comunidades negras rurais. E num processo
de mobilização, as nomenclaturas convergiram para o termo quilombo ou comunidade
quilombola, que, ao longo do tempo e de novas leis vigentes, mudaram para remanescente de
quilombo. No Estado do Paraná existem 86 comunidades negras em processo de
regularização ou que já foram demarcadas como remanescentes de quilombo.
12
O território quilombola, segundo Georgina Nunes (2006), tem características próprias,
enquanto para alguns pode ser pensado enquanto um lugar de isolamento ou segregação.
Integrantes desses territórios afirmam que esse conceito avança no sentido de condição de
grupo e continuidade de referências simbólicas.
Nesse sentido, o território quilombola se constitui enquanto agrupamento de pessoas
que se reconhecem com a mesma ascendência étnica, que passam por inúmeros processos de
transformações culturais como formas de adaptação resultantes do caminhar da história, mas
se mantém, se fortalecem e redimensionam as suas redes de solidariedade. (RATTS, 2003).
Segundo o então presidente da Fundação Cultural Palmares, Joel Rufino dos Santos
(SILVA, 2007), o conceito de quilombo mudou de tal forma que, para as comunidades
beneficiárias serem consideradas remanescentes de quilombos, não é preciso que elas tenham
sido constituídas por escravos fugidos. E ainda define quilombo como um modelo de
sociedade alternativa à sociedade colonial escravista e adota uma definição da Associação
Brasileira de Antropologia, sendo quilombola: “Toda comunidade negra rural que agrupe
descendentes de escravos, vivendo da cultura de subsistência e onde as manifestações
culturais tem forte vínculo com o passado”. (SILVA, 2007, p. 47).
O quilombo vem sendo associado também como luta contra o racismo, bem como as
políticas de reconhecimento da população afrobrasileira são reflexos do engajamento dos que
estão comprometidos com os Direitos Humanos, conforme consta:
O Quilombo emerge como movimento identitário nos anos 70 do século XX,
fazendo referência à legislação e aos atos jurídicos que historicamente
impossibilitaram os africanos e seus descendentes à condição de
proprietários plenos. A inversão deste fato no plano dos direitos humanos,
culturais e sociais, inscreve uma nova ordem na legislação brasileira dos
anos 80, instaurando no plano do reconhecimento estatal novos sujeitos de
direitos. Expressão e palavra amplamente utilizada em diversas
circunstâncias da história do Brasil, “Quilombo’ foi primeiramente
popularizada pela administração colonial, em suas leis, relatórios, atos e
decretos para se referir às unidades de apoio mútuo criadas pelos rebeldes ao
sistema escravista, bem como às suas lutas pelo fim da escravidão no país.
Em seguida, foi também expressão dos afrodescendentes para designar a sua
trajetória, conquista e liberdade, em amplas dimensões e significados. O caso
exemplar é o Quilombo dos Palmares, que resistiu à administração colonial
por quase dois séculos. Após a abolição do sistema colonial em 1888, o
quilombo vem sendo associado à luta contra o racismo e às políticas de
reconhecimento da população afrobrasileira, propostas pelos movimentos
negros com amplo apoio de diversos setores da sociedade brasileira
comprometidos com os Direitos Humanos. (FERNANDES; LEITE, 2000, p.
10)
13
Desde que os integrantes da comunidade negra em Maracaju dos Gaúchos deram
início ao processo de demarcação de suas terras, através da solicitação à Fundação Cultural
Palmares, foram percebidas mudanças nas suas histórias de vida e, principalmente, nas suas
identidades.
Neste estudo foram utilizadas fontes como fotografias, reportagens jornalísticas,
documentos e relatos, atribuindo à oralidade um papel decisivo.
Na intenção de construir um saber diferenciado sobre esse tema, capaz de produzir
uma história com outras versões e opiniões, contou-se com a contribuição de diversos saberes.
Além da História, pois foi imprescindível dialogar com a Antropologia, a Sociologia, a
Geografia, dentre outras. Por isso essa pesquisa tem cunho interdisciplinar, pois contribui para
a construção de um conhecimento que não está fragmentado, mas que contempla uma
temática, ao contrário de uma única disciplina. Esta forma de construção de conhecimento é
respaldada por Boaventura de Sousa Santos. Para ele: “os temas são galerias por onde os
conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros. E o conhecimento avança à medida que
o objeto se amplia em busca de novas e mais variadas interfaces”. (SANTOS, 1999, p. 43)
Conforme pontuou Ecléa Bosi (2003, p. 16) que destaca e valoriza o papel do
pesquisador que trabalha com histórias recentes, amparando-se em testemunhos vivos para
reconstruir comportamentos e sensibilidades de uma época, tensões implícitas e
subentendidas, trazendo à tona questões que foram somente sugeridas ou encobertas pelo
medo. Segundo a autora, “a fonte oral sugere mais que afirma, caminha em curvas e desvios,
obrigando a uma interpretação sutil e rigorosa” (BOSI, 2003, p. 20).
Foi através de relatos que se percebeu uma maior riqueza em detalhes, pois a voz dos
próprios integrantes da comunidade negra e dos envolvidos no processo de demarcação das
terras, contrapostas às versões documentais, transformou o que já estava dado, em objeto de
questionamentos.
Nesse sentido, ao longo do ano de 2008 e 2009 ocorreram visitas à Comunidade
Quilombola e registros das impressões e das conversas em um caderno de anotações. Ainda
nesse ano houve envolvimento no trabalho de elaboração do Regimento das Equipes
Multidisciplinares1, da Secretaria de Educação do Estado do Paraná, para promover o estudo
das relações Étnico Raciais. A participação na elaboração desse Regimento levou a autora ao
1 Professores da rede pública de ensino podem participar das equipes multidisciplinares, as quais são obrigatórias
em todas as escolas do Estado do Paraná, na intenção de promover a discussão da temática “Relações Étnico
Raciais”, bem como combater o preconceito e a discriminação racial. Para saber mais, site:
www.diaadiaeducacao.gov.br
14
estudo mais aprofundado da temática e visitas mais constantes à Comunidade Negra em
Maracaju dos Gaúchos.
Em 2010 surgiu o interesse e a oportunidade para o desenvolvimento de uma
dissertação de mestrado sobre a comunidade e o conflito de terras, aproveitando-se então, dos
relatos anotados juntamente com as impressões do que se via desde 2008. A isso foram
acrescentados os registros que já existiam a respeito desta comunidade, como por exemplo, o
material sobre as comunidades tradicionais negras do Estado do Paraná, publicado em site
pela Secretaria Estadual de Educação do Paraná, além de documentos, fotos, reportagens
jornalísticas, mapas, laudo antropológico, dentre outros.
Conforme destacou Antonio Torres Montenegro, no livro História Oral e Memória: “A
fala é um instrumento decisivo para as populações pobres, que vivem a radicalidade cotidiana
do ‘não ter’.” (MONTENEGRO, 2001, p. 38).
Vale ainda destacar que os integrantes da comunidade negra já estavam tensos com
toda a situação conflituosa que se instaurava. Qualquer tipo de instrumento que pudesse ser
utilizado, como um gravador, naquele momento, poderia inibi-los. A pretensão era mesmo a
de escrever uma história mais próxima possível da representação do real, diferenciá-la das
histórias documentais. Por isso, o papel da oralidade foi fundamental na construção deste
conhecimento.
Na historiografia faz-se também a crítica desse método e ao uso das fontes orais.
Burke (1992, p. 165) observa que:
A oposição à evidência oral é muito mais fundamentada no sentimento do
que no princípio. A geração mais velha dos historiadores que ocupam as
cátedras e detêm as rédeas é instintivamente apreensiva em relação ao
advento de um novo método. Isso implica que eles não mais comandem
todas as técnicas de sua profissão. Daí os comentários depreciativos.
No entanto, se desejamos um conhecimento inovador, necessitamos também de novos
métodos. Não há como negar que a informalidade e a descontração nas falas dos integrantes
desse processo que envolveu os integrantes da comunidade negra, agricultores, instituições e
sociedade em geral, revelaram mais detalhes dessa história.
Faz-se uma abordagem referente à nomenclatura que se adotou durante a construção
do texto, pois esta causava embaraço, ficava a dúvida, chamá-los ou não de quilombolas.
Muitas fontes utilizadas para esta pesquisa referiam-se aos integrantes da comunidade negra
já como quilombolas e, no início da elaboração dos primeiros textos, parecia evidente que
essa era a melhor forma de denominá-los. No entanto, foi durante o processo de reflexão e
15
escrita da dissertação que se concluiu que seria mais prudente chamá-los de comunidade
negra, ou integrantes da comunidade negra, porque até o final deste trabalho o Incra não
havia, ainda, demarcado suas terras, ou seja, o processo continua tramitando. E assim,
juridicamente, eles ainda não são quilombolas porque, apesar de obterem a certidão de
autorreconhecimento fornecida pela Fundação Cultura Palmares (FCP), a demarcação e
titulação das terras coletivas como de quilombo remanescente ainda não existe.
Os relatos são descritos, interpretados e organizados conforme a compreensão, não
necessariamente de forma linear ou cronológica. Durante as visitas à comunidade negra foram
registradas fotografias da paisagem, das moradias e das plantações. Os diálogos entre os
integrantes da comunidade Manoel Ciriaco dos Santos e a autora, ficaram, a princípio,
registrados em um diário de campo, ou ainda, somente na memória, mais tarde, escritos e
descritos durante o processo de construção deste texto.
Estabeleceu-se uma relação de amizade entre a autora e integrantes da comunidade
negra. Por isso, no aflorar das tensões pela demarcação das terras quilombolas, não foram
raros os momentos de desabafos, pedidos de ajuda e e-mails trocados.
Durante as visitas à comunidade, a autora dormiu em suas moradias de madeira, bebeu
do café forte, os viu cozinhando, experimentou sarapatel (comida típica), tomou cachaça com
raízes típicas da região que eles produzem, acompanhou a matança dos porcos que servem de
alimento, participou das rodas de capoeira e das reuniões ao redor do fogo ao cair a noite, bem
como, acompanhou de perto a angústia deles diante do conflito provocado pelo processo de
demarcação das terras como quilombolas.
A autora também ouviu relatos de crianças negras, contanto episódios de situações em
que foram vítimas de segregação e racismo2. Esses e outros relatos só foram possíveis porque
as falas não foram gravadas.
A partir da nomenclatura definida, das fontes e da metodologia utilizada, no primeiro
capítulo foram abordados elementos que fazem parte da Comunidade Negra Manoel Ciríaco
dos Santos e o objetivo deles em demarcar seu território como quilombo remanescente.
O interesse em ser quilombo ocorreu depois da comunidade receber a visita de um
grupo de representantes do governo do Estado do Paraná, o qual fazia levantamentos sobre
comunidades negras tradicionais no estado.
2 Segundo relatos das crianças e do atual líder da comunidade negra, Adir Rodrigues dos Santo (Em 27.04.2010),
as crianças negras, foram, em vários momentos, segregadas pelas crianças brancas no ônibus do transporte
escolar, e nas escolas, depois do início do processo de demarcação das terras como remanescente de quilombo.
16
Iniciado o processo de demarcação das terras, acentuaram-se as mudanças da
comunidade, pois buscaram respaldo na declaração de autorreconhecimento da Fundação
Cultural Palmares (FCP) e no Decreto Federal nº 4887/2003. Formaram uma associação para
os integrantes da comunidade e solicitaram junto ao Incra o pedido para transformar seu
território em quilombo remanescente. Diante desses fatos, ocorreram situações que chamaram
atenção de vários setores da sociedade, inclusive episódios conflituosos.
Para compreendermos melhor a história dessa comunidade, faz-se necessário analisar
em qual contexto histórico nacional e estadual a comunidade se encontra em se tratando de
políticas públicas para promoção da igualdade racial e para quilombolas, no Brasil e no
Estado do Paraná.
Para tanto, faz-se um mapeamento das leis, decretos e ações referentes às políticas
públicas de promoção da igualdade racial, destacando marcos históricos de lutas pela
valorização do negro e, principalmente, dos quilombolas, no Brasil e no estado do Paraná.
Ainda, como essas conquistas são, na prática, aplicadas, como é o caso, por exemplo, do
Decreto Federal nº. 4887/2003, que regulamente a demarcação das terras quilombolas no
Brasil.
A comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos foi visitada por agentes do governo
estadual e reconhecida como uma comunidade com culturas tradicionais. Foram apontadas
características de identidades contendo aspectos de africanidades, e indicada para estudo e
levantamento antropológico para se tornar quilombola, como aconteceu com outras
comunidades tradicionais no estado do Paraná. Neste momento as mudanças na comunidade
negra se acentuam, elas aconteciam paulatinamente, como ocorre com qualquer grupo, no
entanto, a busca pela demarcação de terras fez com que as transformações se tornassem mais
perceptíveis, nos aspectos históricos, culturais, identitários, econômicos e espaciais.
Nesse sentido, para melhor conhecermos esse grupo, no segundo capítulo, destacam-se
histórias, memórias, trajetórias e parte do dia a dia da Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos
Santos. Evidenciaram-se mudanças ocorridas na vida deles a partir da inclusão da
comunidade na relação de comunidades que poderiam ser consideradas quilombolas. Para
tanto, discutem-se conceitos como cotidiano, identidades, memórias e cultura.
Durante as visitas percebeu-se que integrantes da comunidade não sabiam ao certo o
significado da palavra quilombo. E até desconfiaram das pessoas que trouxeram essa
discussão para dentro da comunidade, pensando que poderia ser algum tipo de golpe.
Trazendo à tona parte das histórias dos integrantes da comunidade negra, percebeu-se
também ao longo da pesquisa, fronteiras e limites que permeiam os espaços e as relações. São
17
pretendentes à titulação quilombolas que pensam, agem e se articulam de formas variadas. As
identidades foram se reformulando ao longo dos tempos, bem como mudaram suas vidas e
seus interesses desde que o processo de demarcação das terras foi desencadeado.
No inicio da pesquisa, pensava-se que o grupo dos integrantes da comunidade negra
era homogêneo, que todos pensavam e almejavam o mesmo ideal, o de ser quilombola. Aos
poucos a historia foi se revelando mais dinâmica, percebeu-se certa fluidez, inconstância e
fronteiras inimagináveis, com relação aos lugares, conflitos, aos comportamentos e discursos.
Nesse sentido, o território em questão é fundamental para os integrantes da
comunidade negra. Se houver a demarcação das terras como de quilombo remanescente,
haverá uma expansão da área, e, segundo o Incra, os agricultores, atuais proprietários de terras
que residem aos arredores, serão indenizados. E essa é uma das causas dos conflitos.
Nesse sentido, no terceiro capítulo, faz-se uma abordagem mais detalhada sobre os
conflitos que afloraram em Maracaju dos Gaúchos, a partir do processo de demarcação das
terras dos integrantes da comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos como remanescente de
quilombo.
Esses conflitos foram evidenciados principalmente através da mídia, entrevistas,
documentos como o Laudo Antropológico feito por professores antropólogos da Unioeste, e
pelos próprios relatos de moradores de Maracaju dos Gaúchos.
Fizeram parte desse processo conflituoso, episódios de discussões, desentendimentos,
sequestro, ameaças de morte, tumulto e até de obstrução de estrada em Maracajú dos
Gaúchos. Ocorre que a partir do desenrolar desses conflitos, surgiram posicionamentos
distintos, pois foram diversos os desdobramentos e vozes referentes a essa causa e sobre os
quilombos de maneira geral no Brasil.
Dentre essas vozes, estão as opiniões de antropólogos da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná (Unioeste), responsáveis pelo Laudo Antropológico, de antropólogos do
Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra), de integrantes da comunidade negra Manoel
Ciriaco dos Santos, de agricultores da região, que são vizinhos da comunidade negra em
análise, de agentes da Polícia Federal que trabalham no posto de Guaíra. PR, de
representantes do Movimento Negro (Unegro), de integrantes da Secretaria Especial de
Políticas Públicas de Igualdade Racial (Seppir), de políticos como, por exemplo, deputados da
região, de setores da mídia e sociedade.
No quarto capítulo faz-se uma abordagem sobre os discursos ideológicos que surgem
sobre as demarcações de terras quilombolas que já foram feitas e as que estão em processo no
Paraná e no Brasil. Intelectuais, representantes de setores do governo, políticos, jornalistas,
18
representantes de segmentos da sociedade civil, todos tem sua opinião sobre as demarcações
das terras quilombolas, alguns a favor, outros contra, revelando ideologias.
No campo ideológico, esses discursos se diferenciam principalmente com relação aos
critérios estabelecidos pelo Decreto Federal nº. 4887/2003, para as comunidades pretendentes
a demarcação de terras. Pelo decreto, na teoria, basta a comunidade negra pretendente à
titulação “remanescente de quilombo”, se auto afirmar, como foi o caso em Maracaju dos
Gaúchos, para conseguir a titulação e a demarcação das terras. Por isso, existe uma ação
judicial contra o decreto, a ADI nº. 3239/ 2008, que prevê a inconstitucionalidade do Decreto
Federal nº. 4887/2003.
Na localidade de Maracaju dos Gaúchos não se percebia grandes problemas até o Incra
iniciar o processo da demarcação das terras como quilombolas para a comunidade negra
Manoel Ciríaco dos Santos.
Foi a partir desse processo de início da demarcação das terras que a sociedade passou
a perceber e dar mais atenção para a Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos. Nesse
estudo, surgem as micro-histórias, dentro de um contexto de macro-histórias, articulados pelas
análises dos conceitos de fronteiras e territórios.
Ainda, faz-se uma análise dos múltiplos significados para as fronteiras e os territórios
que existem nesta problemática. Esses significados são permeados pela discussão das
diferentes ideologias que perpassam a história. Nesse sentido, o território, autorreconhecido
como quilombola, tornou-se palco para várias interpretações que revelam interesses
defendidos pelos envolvidos no processo de demarcação das terras, conforme veremos.
19
1 COMUNIDADE NEGRA MANOEL CIRÍACO DOS SANTOS E AS POLÍTICAS
PÚBLICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL NO BRASIL
Neste primeiro capítulo serão abordados elementos da Comunidade Negra Manoel
Ciríaco dos Santos, que pretende a titulação e demarcação das terras como remanescente de
quilombo, bem como as Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial no Brasil, das
quais a comunidade em análise pretende se beneficiar.
Em área de fronteira do Brasil com o Paraguai, na região conhecida como Costa Oeste,
lindeira ao Lago de Itaipu, no município de Guaíra3, distrito chamado Maracaju dos
Gaúchos4, moram homens, mulheres e crianças negras que, em 2006, formaram a Associação
Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos (ACONEMA).
Figura 01 - Mapa de Localização da Área de Estudo
3 O município de Guaíra está localizado a oeste do Estado do Paraná, às margens do rio Paraná. Faz limite a
oeste com o Lago de Itaipu (região de fronteira, com a cidade de Salto del Guairá, no Paraguai, na outra
margem em frente); ao norte com o município de Mundo Novo, no estado do Mato Grosso do Sul, e com o
município de Altônia, no Paraná; a leste com o município de Terra Roxa, no Paraná; e ao sul com o município
de Mercedes, no Paraná. 4 A denominação da localidade Maracaju dos Gaúchos surge como empreendimento rural no ano de 1954,
administrado pela Sociedade Agro-Pecuária Industrial Maracaju Ltda, com sede no Rio Grande do Sul.
20
Esses moradores vêm sendo percebidos e registrados com características identitárias
diferenciadas em relação a outros moradores das imediações. Esses aspectos serão tratados no
decorrer deste texto.
1.1 DE REPENTE: QUILOMBO
A formação da ACONEMA, em 2006, foi consequência do desejo dos integrantes da
comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos em serem considerados remanescentes de
quilombolas, fato esse que vem revelando uma nova identidade ao grupo. A partir de meados
de 2008, a comunidade negra em Maracaju dos Gaúchos passa a ser chamada de quilombola
por pessoas da sociedade local ou que representam instituições como mídia, escolas, dentre
outras. Nesse sentido, percebe-se que somente a partir do interesse dos integrantes da
comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos em ser “Quilombola” é que eles passam a
utilizar essa denominação. Antes desse período, não eram conhecidos nem reconhecidos
assim.
Neste texto, optou-se por denominá-los de comunidade negra, conforme consta no
Estatuto da ACONEMA, pois a regulamentação fundiária das comunidades remanescentes de
quilombos é de competência do Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do
Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), com acompanhamento da Secretaria
Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir)5, e da Fundação Cultural Palmares
(FCP)6. A denominação quilombola gerou polêmicas, que serão analisadas neste trabalho.
A demarcação e titulação da terra dessa comunidade negra como remanescente de
quilombo está ainda tramitando no Incra e, até o final da elaboração desta dissertação, não
ocorreu. A decisão de denominá-los de comunidade negra e não de quilombolas ocorreu
depois de muita reflexão, porque, mesmo que em várias fontes consultadas eles sejam
chamados de quilombolas, houve, no entanto, a preocupação com o resultado final do
processo de demarcação, pois somente o Incra poderá regularizar a propriedade da terra como
coletiva. Aí, sim, serão legalmente quilombolas remanescentes.
Os integrantes da ACONEMA pretendem a titulação “Remanescente de Quilombo”
para se beneficiarem das políticas públicas destinadas a essa categoria, uma vez que eles não
5 A Seppir foi criada durante o governo Lula.
6 A FCP foi criada pela Lei Federal nº 7.668, de 22 de agosto de 1988.
21
têm acesso a esses direitos somente enquanto “comunidade negra”. Dentre os benefícios
estabelecidos para as comunidades quilombolas remanescentes no Brasil, destacam-se apoio
financeiro para a geração de renda, valorização cultural, garantia de terras coletivas, dentre
outros.
Segundo o Estatuto da ACONEMA7, a sede está localizada em Guaíra/ PR, Serra
Maracaju, Gleba nº 4, Colônia C, lotes rurais número 186, com 9,2390 alqueires paulistas, e
número 186-A, com 0,9925 alqueires paulistas, totalizando 10,2315 alqueires paulistas, ou
seja, 247.602,30 metros quadrados. Os lotes fazem parte do patrimônio da Associação.
Pertenciam ao falecido Manoel Ciríaco dos Santos, e ainda não passaram pelo processo de
inventário de herança, mas está tramitando na Justiça Comum. Esse processo judicial ocorreu
antes de os integrantes da comunidade negra manifestarem o interesse de serem reconhecidos
como quilombola.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) (JACCOUD, 2009), o
processo de regulamentação de titulação das terras ancestrais inicia-se com a solicitação junto
à Fundação Cultural Palmares de uma certidão de autorreconhecimento, o documento que
promove o reconhecimento oficial da existência da comunidade. Na certidão atribuída pela
Fundação Cultural Palmares à comunidade em análise, em 2006, consta:
CERTIDÃO DE AUTO RECONHECIMENTO
O Presidente da Fundação Cultural Palmares, no uso de suas atribuições
legais conferidas pelo art. 1º da Lei 7.668 de 22 de Agosto de 1988, art. 2º,
&& 1º e 2º, art 3º, & 4º do Decreto n. 4887 de 20 de novembro de 2003, que
regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes
das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias e artigo 216, I e V, && 1º e 5º da
Constituição Federal de 1988, CERTIFICA que a Comunidade de Manoel
Ciriaco dos Santos, localizada no município de Guaíra, Estado do Paraná,
registrada no Livro de Cadastro Geral n. 007, Registro n. 691, fl. 02, nos
termos do Decreto supramencionado e da Portaria Interna da FCP n.06, de
01 de março de 2004, publicada no Diário Oficial da União n. 43, de 04 de
março de 2004, Seção 1, f. 07, É REMANESCENTE DAS
COMUNIDADES DOS QUILOMBOS8
Esse documento certifica, portanto, que a Comunidade Manoel Ciríaco dos Santos é,
para a Fundação Cultural Palmares, remanescente de quilombo, podendo, a partir desse
documento, buscar os benefícios das políticas públicas destinadas para esse segmento,
7 Conforme processo do Incra nº. 54200.0001075/2008-46.
8 Texto extraído da "Certidão de Auto Reconhecimento", inserido no Processo nº. 54200.0001075/2008-46 de
Demarcação das Terras do Incra.
22
incluindo a demarcação das terras. Ocorre, porém, que o processo de demarcação das terras
tem outras etapas a serem seguidas antes da efetiva regulamentação.
As comunidades que pretendem essa titulação devem, ainda, encaminhar à
Superintendência Regional do Incra em seu Estado uma solicitação de abertura de
procedimentos administrativos visando à regularização fundiária. Esses procedimentos têm
início com um estudo de área, estudo destinado a compor um relatório técnico que identifica e
delimita o território da comunidade. Uma vez aprovado este relatório, o Incra publica uma
portaria de reconhecimento que declara os limites do território quilombola.
A fase final do procedimento corresponde à regularização fundiária, segundo
documentos do Incra9, com a retirada de ocupantes não quilombolas mediante a
desapropriação e/ou pagamento das benfeitorias e a demarcação do território. Ao final do
processo, é concedido o título de propriedade à comunidade, título que é coletivo e em nome
da associação dos moradores da área, por isso a necessidade de formação dessa associação.
Sendo assim, é necessário o reconhecimento do território e da comunidade a partir do
Processo de Demarcação e Reconhecimento das terras e de um Laudo Antropológico que
garantirá o título pretendido. No caso da Comunidade Manoel Ciríaco dos Santos, o processo
tramita desde 2006.
Por meio de um convênio firmado entre a Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia
e Ensino Superior do Paraná (SETI) e o Instituto Nacional de Colonização Agrária (INCRA),
as famílias descendentes de escravos que vivem em áreas rurais do estado do Paraná não
demarcadas como áreas de remanescentes quilombolas recebem auxílio das universidades
estaduais para adquirir o direito legal sobre essas áreas.
No caso da Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos, a universidade para a qual
foi atribuída a função de produzir o laudo foi a Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(UNIOESTE), que daria a eles a garantia da titulação quilombola. Dentro da Universidade
formou-se uma equipe composta por dois professores antropólogos (Antonio Pimentel Pontes
Filho e Roberto Biscoli) e duas alunas (Ana Cristina Bochnia Cabral e Franciele Cristina
Neves), que foram designados responsáveis pelo trabalho de elaboração do relatório
antropológico. O laudo que esta equipe produziu não reconheceu os integrantes da
comunidade em análise como quilombolas remanescentes. Mesmo sendo negativo, logo após
a entrega do laudo houve a solicitação do Incra para que o laudo fosse refeito, mas a equipe
manteve a sua posição.
9 Processo nº. 54200.0001075/2008-46.
23
Durante o processo de demarcação das terras da Comunidade Negra Manoel Ciríaco
dos Santos, ocorreu, então, o rompimento do convênio entre o Incra e a Unioeste, em
dezembro de 2010, porque o Laudo Antropológico negativo à condição remanescente de
quilombolas, feito pela equipe designada pela Unioeste, não foi aceito pelo INCRA.
Tanto a "Certidão de Auto-Reconhecimento" como o "Laudo Antropológico" são
documentos importantes que legitimam a demarcação das terras quilombolas, e ambos são
regulamentados pelo Decreto Federal nº. 4887/2003. É no Decreto Federal nº. 4887/2003, de
20 de novembro de 2003, que a comunidade se baseia para justificar sua identidade, conforme
o artigo 1º:
Os procedimentos administrativos para identificação, o reconhecimento, a
delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o
art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, serão
procedidos de acordo com o estabelecido neste Decreto.
E artigos 3º, parágrafo 2º:
Para fins desse Decreto, o INCRA poderá estabelecer convênios, contratos,
acordos e instrumentos similares com órgãos da administração pública
federal, estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações não-
governamentais e entidades privadas, observada a legislação pertinente.
Ao longo dessa dissertação, serão abordadas as etapas, os avanços, os recuos e os
conflitos da luta dessa comunidade no processo de identificação e de demarcação de suas
terras para serem consideradas como remanescentes de quilombo. Desde já cabe informar
que, desde o início do processo de demarcação das terras como quilombolas, houve mudanças
nas vidas dos moradores da região, gerando diferentes tipos de tensões e conflitos que serão
discutidos mais adiante neste texto.
Nesse sentido, os integrantes da Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos vivem
atualmente na expectativa do reconhecimento de suas terras como quilombolas, Esse objetivo
foi formalmente manifestado em 2006, pois foi e é percebido por eles como uma das
alternativas para melhorar a condição de vida, a geração de renda e unir os integrantes da
comunidade.
No Estado do Paraná existem oitenta e seis comunidades negras tradicionais
identificadas pelo governo, das quais trinta e seis já receberam a certidão de
autorreconhecimento expedido pela Fundação Cultural Palmares. Segundo Barreto (2008, p.
134), faltam entrar mais treze comunidades nesse processo, totalizando noventa e nove.
24
Nesse contexto encontra-se a Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos. Os
terrenos deles foram comprados em Maracaju dos Gaúchos, povoado fundado na década de
1950. Os primeiros moradores da comunidade negra chegaram na chamada “segunda leva” de
moradores da localidade, quando também chegaram paulistas e mineiros, por volta da década
de 1960. Depois de adquirirem seus lotes, foram trabalhando e vivendo ali. Alguns integrantes
da comunidade negra venderam seus terrenos, enquanto outros mantiveram suas propriedades
e/ou as herdaram.
A denominação “Comunidade Quilombola Remanescente Manoel Ciríaco dos Santos”
é como eles atualmente se apresentam, mesmo ainda não publicado o Laudo Antropológico
definitivo e o Incra não ter dado a Certidão de Posse coletiva das terras. Apesar disso, a
Comunidade negra se autoafirma como tal, baseados na primeira etapa vencida, ou seja, pelo
documento fornecido a eles pela Fundação Cultural Palmares, a Certidão de Auto-
Reconhecimento.
Nesse sentido, como já destacado anteriormente, a denominação dessa comunidade em
análise é um fator importante nesta dissertação. Cabe ressaltar que também é fator intrigante,
uma vez que vários dos documentos analisados para a construção deste texto abordam a
comunidade já como quilombola, ou como remanescente de quilombo. Dentre esses
documentos estão o Relatório do Grupo de Trabalho Clóvis Moura10
, o livro "Cozinha
Quilombola do Paraná"11
, o site Comunidades Tradicionais Negras do Estado do Paraná12
, a
certidão de autorreconhecimento emitida pela Fundação Cultural Palmares, documentos do
Incra que constam no laudo antropológico e fazem parte do processo de demarcação das
terras13
, site da Secretaria de Educação14
, Inquérito Judicial15
sobre os conflitos na região e,
ainda, a própria mídia16
também se refere a eles como quilombolas. E, em outros casos,
depara-se com documentação que mostra a situação dos integrantes dessa comunidade ainda
10 Terra e Cidadania. Terras e Territórios Quilombolas. Grupo de Trabalho Clóvis Moura. Relatório 2005-2008.
Curitiba, 2008. Esse grupo de trabalho paranaense denomina-se “Clóvis Moura” em homenagem ao sociólogo,
jornalista, escritor e historiador brasileiro chamado Clóvis Steiger de Assis Moura, que militou no Partido
Comunista Brasileiro, migrando posteriormente para o PCdoB. Destacou-se pela militância pioneira no
movimento negro brasileiro, colaborando com artigos para jornais da Bahia e São Paulo. 11
Financiado pela SEED, pois faz parte dos incentivos do governo do Estado na implementação das políticas
públicas de promoção da igualdade racial no Paraná. 12
www.comunidadesnegrastradicionais.org.br 13
Conforme processo do Incra nº. 54200.0001075/2008-46. 14
www.diaadiaeducacao.pr.org.br Último acesso em 21/12/2011. 15
Inquérito Policial nº. 443/2009 – 0000025-132010.4.04.7017. Este processo diz respeito à denúncia de
sequestro de que funcionários do Incra foram vítimas dos agricultores, quando tentavam fazer o trabalho de
levantamento de dados agroambientais da comunidade negra em Maracaju dos Gaúchos. Mais informações no
terceiro capítulo desta dissertação. 16
www.opresente.com.br; www.aquiagora.net; www.gazetadopovo.com.br. As notícias jornalísticas apontam a
comunidade negra como quilombolas. Últimos acessos em 21/12/2011.
25
indefinida, como é o caso do Laudo Antropológico feito pela equipe designada da Unioeste e
o fato de ainda não ter sido concluído o processo de demarcação das terras deles como
remanescentes de quilombo e nem ter sido dada a titulação definitiva de propriedade coletiva.
Por essas razões, acredita-se que seja mais adequado, neste momento de construção do
texto, que coincide com o momento do processo, chamá-los de comunidade negra.
Os integrantes da comunidade negra se apoiam no artigo 2º do Decreto Federal nº.
4.887, de 20 de novembro de 2003, no qual consta:
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para fins
deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição,
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas,
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à
opressão histórica sofrida.
E ainda, no mesmo artigo:
Parágrafo 1º:
Para fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das
comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria
comunidade.
Parágrafo 2º:
São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as
utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e
cultural.
Desde que a Fundação Cultural dos Palmares atribuiu a eles a Certidão de
Remanescentes de Quilombos, os integrantes da comunidade estão lutando para conseguir a
demarcação das terras, enfrentando diversos problemas por causa disso, como discriminação
racial, conflitos com os vizinhos, problemas para conseguir trabalho, problemas para vender
seus alimentos que são produzidos no campo, geração de renda, entre outros.
Nesse sentido, como já foi citado, a comunidade negra se reconhece e autoidentifica
como tal e está no meio de um processo pela demarcação de suas terras, processo esse
baseado no Decreto Federal nº. 4887/2003, já mencionado acima e respaldado pelas políticas
públicas.
Por ser recente o objetivo da comunidade em lutar pelo título de quilombo
remanescente, constatou-se, em entrevistas, relatos e conversas, que alguns moradores da
comunidade negra não sabiam ao certo o que significava a palavra quilombo quando o
processo de demarcação das terras foi iniciado. Esse fato pode ser justificado pela opressão
histórica sofrida pelos afrodescendentes, seja pela dificuldade em frequentar a escola, seja
26
pela falta de oportunidades ou, ainda, resultado das tensões próprias da modernidade, onde o
modelo de propriedade mais tradicional na atualidade é particular, individual e/ou familiar.
Os integrantes da comunidade negra foram comunicados que poderiam obter o título e
a demarcação de suas terras a partir da visita de integrantes do Grupo de Trabalho Clóvis
Moura, vinculado à Secretaria de Educação do Estado do Paraná, os quais fizeram, em 2006,
um levantamento e mapeamento das comunidades negras no Estado do Paraná. Este
levantamento de dados foi publicado e pode ser consultado17
.
O Grupo de Trabalho Clóvis Moura foi criado em 2005, pelo governo estadual, sendo
Roberto Requião o governador. É uma instituição estatal que reúne funcionários de diversas
secretarias para efetuar o levantamento de comunidades tradicionais negras no Estado do
Paraná e levar políticas públicas a essas comunidades de acordo com suas necessidades18
.
Barreto (2008, p. 134), em seu livro "A Revolução Quilombola", faz uma crítica ao
fato de essa entidade já ter identificado 86 (oitenta e seis) comunidades negras tradicionais em
26 (vinte e seis) municípios paranaenses, 36 (trinta e seis) das quais já possuem certificado da
Fundação Cultural Palmares reconhecendo-as como comunidades quilombolas, como é o caso
da Comunidade Manoel Ciríaco dos Santos em Maracaju dos Gaúchos. Porém, ainda deverão
conseguir essa certidão mais 13 (treze) comunidades, totalizando um número de 99 (noventa e
nove) comunidades quilombolas no Estado do Paraná.
Nem todos os integrantes das comunidades negras aceitam a ideia da delimitação das
terras como remanescentes de quilombo, nem em Maracaju dos Gaúchos, nem em outras
comunidades que receberam a certidão de autorreconhecimento da Fundação Cultural dos
Palmares.
Na Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos, alguns chegaram a desconfiar que
“essa conversa” seria um golpe para tirar-lhes suas terras, conforme relatos de moradores da
comunidade para integrantes do Grupo de Trabalho Clóvis Moura, encarregados de
levantamentos sobre as comunidades negras no Paraná, quando iniciaram as discussões sobre
os benefícios que teriam se assim fossem denominados19
. Outros foram embora e não lutam
por esta causa, mas há, também, aqueles que não moram na comunidade e, caso aconteça a
demarcação das terras como quilombolas, afirmaram que virão morar nela. Foi o que disse
Sebastião Domingues da Silva, parente da família Santos e proprietário de terras a seis
17 Para mais informações sobre o Grupo de Trabalho Clóvis Moura e as Comunidades Negras no Estado do
Paraná, ver site: http://quilombosnoparaná.spaceblog.com.br/2/. Acesso em março de 2010. 18
http://quilombosnoparaná.spaceblog.com.br/2/. Acesso em março de 2011. 19
Esses dados foram extraídos do Laudo Antropológico da Unioeste.
27
quilômetros da comunidade negra. Mora sozinho e aparenta ter aproximadamente sessenta
anos. Nesse dia da conversa, Sebastião estava acanhado, sua fala era lenta, baixa e
compreendeu-se que há o desejo de morar na comunidade caso seja quilombola de fato,
através de seus gestos e mexer da cabeça.
Barreto (2008) também faz uma crítica ao processo e às leis criadas na intenção de
demarcar terras e dar títulos coletivos aos afrodescendentes. Compara esse movimento
quilombola ao Movimento dos Sem Terras (MST) e posiciona-se veementemente a favor dos
outros proprietários de terras, moradores das redondezas, que são notificados e indenizados a
fim de ceder o território, caso isso seja necessário, conforme citação abaixo:
Desprezados e apavorados, esses pequenos produtores rurais estão sendo
vítimas da Revolução Quilombola, a mais cruel, rápida e traiçoeira forma de
expropriação inventada pelo Governo Lula para arrancar a propriedade de
particulares e torná-la coletiva, usando para isso a bandeira de defesa dos
direitos afro-descendentes. É a manifestação mais recente do ódio socialista
à propriedade particular! (BARRETO, 2008, p. 133).
No livro citado acima não consta nenhuma entrevista ou dado específico da
comunidade negra analisada nesta dissertação, mas o autor destaca a grande mudança cultural,
espacial e econômica que está ocorrendo na demarcação do território nacional a partir das
políticas públicas que beneficiam os negros, e isso, para ele, é muito negativo.
As políticas públicas de promoção da igualdade racial revelam a trajetória de muitas
lutas no caminho para diminuir e transformar as desigualdades e injustiças que a história
revela em se tratando de negros no Brasil.
1.2 PROCESSOS HISTÓRICOS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROMOÇÃO DE
IGUALDADE RACIAL NO BRASIL
A análise dos processos históricos (marcos históricos como leis, decretos e ações, e
ainda algumas das políticas públicas de promoção da igualdade racial no Brasil, as quais
contribuíram para significativas mudanças na história do país) auxilia no sentido de permitir a
compreensão do período histórico no qual a Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos se
insere.
28
Nas propostas de Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial no Brasil,
destacam-se o combate ao racismo e a necessidade de criação de instrumentos de promoção
de uma igualdade racial, inclusive a demarcação das terras quilombolas no território nacional,
que seria o principal objetivo da comunidade.
O debate acerca da problemática sobre raça, racismo e igualdade racial gera polêmica.
Existem áreas do conhecimento que negam o emprego do termo raça, pois o entendimento é o
de que existe somente a raça humana. Sabe-se, no entanto, no campo das ciências sociais, que
há a necessidade de se trabalhar com o termo raça a partir do significado das práticas racistas,
que são reconhecidas historicamente. Já o termo igualdade racial sugere a busca por um
tratamento que projeta uma etnia desfavorecida e promove diversas formas de tentativa para a
equiparação de condições de vida mais dignas e equivalentes.
No território da Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos, que tem diferentes
significados, há histórias, desejos, mudanças. Enfim, há toda a dinâmica que faz parte da vida,
inclusive, os conflitos. Nos últimos anos, porém, esse “território negro” passou a agregar algo
mais, a partir do processo de demarcação das terras como remanescente quilombola, que é o
racismo. Esse racismo precisa ser combatido, da mesma forma que precisam ser eliminadas as
desigualdades entre negros e brancos, no Brasil. Citando Osório:
A equalização racial exige que os negros avancem relativamente mais do que
os brancos, a cada geração. Acabar com a discriminação racial nos processos
de mobilidade é condição necessária, mas não suficiente. [...] a
discriminação racial funciona para os brancos como calçados que usam para
correr contra negros descalços. Torna a corrida tranquila para os primeiros e
extenuante para os últimos […] No Brasil, faltam ainda políticas mais
eficientes de combate à desigualdade racial [...]. (OSORIO, 2008, p. 95).
Destaca-se o caminho já percorrido no Brasil diante das desigualdades, apontando a
seguir políticas públicas, leis, decretos e parte da história da luta da promoção da igualdade
racial.
Segundo Osório (2008, p. 69), existe, no Brasil, o problema da persistência da
desigualdade entre grupos raciais, e este tem sido objeto de pesquisas das ciências sociais
brasileiras. Esse autor afirma que "[...] os negros brasileiros chegam ao fim da primeira fase
de sua vida com uma razoável desvantagem educacional. Isso se reflete decisivamente nas
oportunidades que terão no mercado de trabalho". (OSÓRIO, 2008, p. 89).
Nesse sentido, existe a necessidade de combate à desigualdade racial no Brasil e
compreende-se a existência dos processos, marcos históricos e políticas públicas de promoção
da igualdade racial no Brasil.
29
A justificativa para as políticas públicas de promoção de igualdade racial no Brasil se
dá principalmente pelas desigualdades que existem entre brancos e negros. A desigualdade
entre brancos e negros é hoje reconhecida como uma das mais perversas dimensões do tecido
social do Brasil, seja na educação, na saúde, na renda, na violência ou na expectativa de vida:
O Brasil é a segunda maior nação negra do mundo. Nossos milhões de
negros e negras estão cada vez mais conscientes e orgulhosos de suas
origens. No entanto, sobre esta população ainda pesa a herança da escravidão
e de um longo período de invisibilidade, que traduz em preconceito,
discriminação e exclusão social.20
Durante três séculos e meio, os negros e as negras que chegaram ao Brasil foram
submetidos à escravidão, à tortura e aos trabalhos forçados. No período posterior não
receberam oportunidades para, livres, terem acesso às terras onde poderiam produzir. Não
tiveram acesso à educação, a qual poderia lhes proporcionar a ascensão intelectual e posições
mais qualificadas no mercado profissional. Restou, à esmagadora maioria dos negros, a
informalidade, o subemprego e a miséria. Negar essa realidade é fechar os olhos para a
história de nosso país. Conforme pesquisa divulgada pelo governo federal em 2008 e
publicada no Painel do SUS21
:
Negros e negras no Brasil estão nas camadas sociais mais pobres, o que gera
uma crônica situação de desigualdade, agravada pelo racismo, este
responsável pelas diversas formas de discriminação presentes em seu
cotidiano, dentro e fora das instituições, razão porque essa população é mais
vulnerável ao sofrimento por violências. O racismo se reafirma no dia-a-dia,
pela linguagem comum, mantém-se e alimenta-se da tradição e da cultura,
influencia a vida, o funcionamento das instituições e as relações
interpessoais. Histórico de herança escravocrata, ele traz consigo o
preconceito e a discriminação que afetam a população negra de todas as
camadas sociais, residente na área urbana ou rural e, de forma redobrada, as
mulheres negras, também vitimadas pelo machismo e pelos preconceitos de
gênero, fatores que acentuam ainda mais as vulnerabilidades a que estão
expostas.
Durante muito tempo, o Estado brasileiro insistiu em não identificar essa temática
como problema, no entanto, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), a crescente presença do tema das desigualdades raciais no país é facilmente
constatável não apenas como tema de debate público e acadêmico, mas como objeto de
preocupação governamental em torno do qual tem se constituído um conjunto de iniciativas.
20 Palavras do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no texto de apresentação do
PLANAPIR/2008. 21
Estudo para Prevenção de Violência e Cultura de Paz.
30
Segundo Sader (2006), o Brasil tem entre 46% e 70% da sua população
afrodescendente, o que corresponderia a aproximadamente 111 milhões de pessoas.
No período de 1980 a 2010, foram elaboradas políticas públicas de promoção da
igualdade racial no Brasil, num contexto de redemocratização. Mesmo assim, no entanto, as
políticas públicas de promoção da igualdade racial no Brasil demonstram uma trajetória que
não se limita aos últimos vinte anos somente, conforme veremos.
Nesse sentido, vale destacar que os integrantes da comunidade quilombola
remanescente Manuel Ciríaco dos Santos vivem em situação difícil, não só pela violência que
vem sofrendo, mas também pelas condições de trabalho, pois muitos precisam ir até o
município de Guaíra para trabalhar no mercado informal. Ou seja, as políticas públicas ainda
não estão garantidas na prática.
As políticas de promoção da igualdade racial no Brasil indicam que a emergência do
tema no debate público propiciou o fim da invisibilidade da questão racial e que importantes
iniciativas têm permitido o enfrentamento do preconceito no âmbito dos sistemas que
compõem a área social, educação e saúde. Todas essas questões apontam, no entanto, para a
existência de um conjunto de dificuldades a serem enfrentadas, desde a descontinuidade de
programas e de ações até a limitada cobertura de benefícios oferecidos.
O processo histórico de construção de políticas públicas de promoção da igualdade
racial, nas quais se incluem as demarcações de terras quilombolas, no Brasil, não se restringe
somente à esfera governamental, pois toda trajetória de políticas públicas é um reflexo de
pressões exercidas pela sociedade, através do Estado. Podemos perceber que, apesar de a
Comunidade em análise já ter a certidão de autorreconhecimento fornecida pela Fundação
Cultural Palmares, isso ainda não garante a eles o acesso aos benefícios da demarcação,
porque o trâmite perpassa por outros setores.
Segundo Theodoro (2008), as chamadas políticas públicas, mediante as quais o Estado
se faz presente, consolidando direitos, desfazendo iniquidades, fortalecendo a coesão social e
mesmo obstruindo ciclos viciosos de reprodução de desigualdades, parecem ainda ausentes no
campo do problema racial. De uma forma trágica e até emblemática, face a esse problema,
onde as políticas públicas mais se fazem necessárias, é lá que o Estado se omite e essas
políticas escasseiam. Esse autor afirma que há uma certa “paralisia” do Estado, a qual se
parece com a “paralisia” da sociedade, onde largos setores resistem a enfrentar o problema.
Talvez um dos exemplos dessa chamada paralisia à qual o autor acima citado se refere
possa ser considerado a distância que existe entre as leis sobre a temática e o acesso a elas na
31
prática, como é o caso da comunidade negra tratada nesta dissertação, que luta para conseguir
a titulação quilombola.
Em 1978 foi assinada a Lei nº. 7.055 no Estado do Paraná, lei que estabelece critérios
administrativos e técnicos para a titulação de terras estaduais e que se inspira no Estatuto da
Terra e antecipa os princípios e parâmetros da Constituição Federal de 1988, sobre posse e
propriedade de terras, conforme Relatório GT Clóvis Moura (2008, p. 5).
A promoção de igualdade racial no Brasil afirmou-se e ainda se afirma como objeto de
ação estatal, com a proliferação de instituições, programas e ações em diversas áreas de
atuação das políticas públicas e nas diferentes esferas de governo.
Segundo Jaccoud (2009), desde 1988 se constatam avanços significativos no campo
dos direitos e da promoção da população negra brasileira, sendo que um dos primeiros passos
foi consolidado pela elaboração da Constituição Federal Brasileira de 1988, cuja proposta
principal consagrou-se por ser um documento voltado aos cidadãos, tanto que ficou conhecida
até os dias atuais como a “Constituição Cidadã”. Assim, se, por um lado, a Constituição
brasileira de 1988 estabelece uma série de garantias à população, destacando-se o tratamento
igualitário, sem distinção de cor e raça, o combate ao racismo e à discriminação e o direito de
garantia de uma educação sem preconceitos, essas preocupações tomaram mais espaço nas
agendas públicas e gestões governamentais. De outro lado, a consolidação dos direitos sociais
e a ampliação no acesso de programas e políticas no campo social resultaram em benefícios
consideráveis, embora comprovadamente insuficientes.
Um exemplo disso é que o texto da Constituição Federal de 1988 reconheceu, de
forma inédita, no Brasil, o racismo e o preconceito racial como fenômenos presentes na
sociedade brasileira, sustentando a necessidade de combatê-los e essa meta como
responsabilidade da República, assim como determina a valorização dos diferentes grupos que
compõem a sociedade brasileira. A inclusão do tema racial neste contexto foi, porém, resposta
ao trabalho dos integrantes do Movimento Negro, que fez uma reinterpretação da questão
racial no Brasil.
Segundo Hanchard (2001, p. 48), o Estado de São Paulo teria sido a sede do primeiro
Movimento Negro no Brasil e, nessa obra citada, o autor situa o movimento negro no
contexto dos movimentos nacionalistas e em prol dos direitos civis no plano global,
destacando que os debates sobre a consciência negra no Brasil podem ser vistos como parte
de uma história, uma teoria e uma política mais amplas a respeito dos significados da
identidade e do poder nos “negros”. Nominar o início das manifestações dos movimentos
32
sociais dos negros no Brasil é complicado, pois se sabe que essa e uma realidade complexa
para a territorialidade brasileira.
Em 1988 criou-se a Fundação Cultural Palmares (FCP), vinculada ao Ministério da
Cultura (THEODORO, 2008, p. 143). A Fundação Cultural Palmares é um órgão federal
voltado à promoção e à preservação da influência negra na sociedade brasileira. Dentre os
objetivos destacam-se a identificação das comunidades quilombolas remanescentes e o apoio
à demarcação e à titulação de suas terras. Para a Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos
Santos, a FCP forneceu a certidão prontamente, logo depois de os integrantes dela terem feito
a solicitação, conforme já mencionado.
E em 1989 foi promulgada a Lei Caó, que definia como crimes de preconceito as
ações que impedissem ou dificultassem o acesso ou o atendimento em espaços públicos,
comerciais e a empregos, em função da cor ou raça, determinando penas de reclusão para
diversos casos. Na sequência, surgiram outras determinações legais no sentido de determinar
e penalizar crimes referentes à discriminação, racismo e à injúria racial, como, por exemplo, a
criação de delegacias especializadas em crimes raciais, sendo a primeira inaugurada no Rio de
Janeiro, em 1991.
Ainda no contexto das políticas públicas, destacam-se as chamadas Ações
Afirmativas. Segundo Jaccoud (2008, p. 141), o conceito de ação afirmativa inclui o conjunto
das iniciativas do Estado no sentido de se contrapor à atitude passiva de afirmar a não
discriminação como princípio na esfera do Direito. Ou seja, fora do campo criminal, todas as
ações em prol da promoção da igualdade poderiam ser classificadas como afirmativas. Adota-
se, contudo, uma conceituação mais restrita do termo, com fins não apenas analíticos, mas
também com o objetivo de melhor caracterizar os objetivos e as complementaridades dos
programas e das políticas públicas.
Segundo Theodoro (2008, p. 173), a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso,
o Estado brasileiro passa a avançar no reconhecimento da existência da desigualdade racial
como um problema do país, após a criação Grupo de Trabalho Interministerial pela
Valorização da População Negra (GTI).
Na Constituição Federal de 1988, inscreve-se o artigo 68, constante dos Atos das
Disposições Transitórias (ADCT). O referido artigo textualmente expressa que: "Aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos".
Como pode ser visto, a Constituição Federal brasileira prevê a necessidade de
tratamento diferenciado aos cidadãos remanescentes das comunidades quilombolas,
33
consagrando-lhes o direito à propriedade de suas terras, sendo considerado um importante
instrumento jurídico para fundamentar a construção de uma política fundiária baseada no
princípio de respeito aos direitos territoriais dos grupos étnicos tradicionais.
Branco (2007) reconhece que foi a partir do artigo 68 da Constituição Federal que a
história dos negros começou a tomar novos rumos:
Numa sociedade onde o racismo é camuflado, em que o menosprezo pela
população negra é tido como natural, a inserção do artigo 68 nas disposições
transitórias da Constituição Federal do país e consequentes reuniões de
comunidades (…) foi uma alternativa que a população negra encontrou para
lutar. Mais que isso, esse artigo possibilitou a criação de uma rede de
solidariedade entre as comunidades negras. Hoje são frequentes os encontros
regionais e nacionais entre as comunidades remanescentes de quilombos.
(BRANCO, 2007, p. 70).
E, pautado no compromisso com o cumprimento do artigo 68 da Constituição Federal
Brasileira, o governo federal criou, em 2004, o Programa Brasil Quilombola, que é:
[…] uma metodologia pautada em um conjunto de ações, possibilitando o
desenvolvimento sustentável dos quilombolas em consonância com as
especificidades históricas e contemporâneas, garantindo os direitos à
titulação e a permanência na terra, à documentação básica, alimentação,
saúde, esporte, lazer, moradia adequada, trabalho, serviços de infraestrutura
e previdência social, entre outras políticas públicas destinadas à população
brasileiras22
.
Mais dois preceitos constitucionais se somaram em prol dos descendentes de africanos
escravizados, que são os artigos 215 e 216 da Constituição Federal. O artigo 215 estabelece
que o Estado deve proteger as manifestações culturais afro-brasileiras, enquanto o 216
assegura que:
[…] constitui patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente e ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressão; os
modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e
tecnológicas; e as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais [...].
Nesse ideário dos artigos 215 e 216, as comunidades quilombolas devem ser
‘Território Cultural Afro-Brasileiro”, tal como determinando pelo artigo 6º da Portaria de nº
22 BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Programa Brasil Quilombola. Disponível em:
<http://www.mda.gov.br/aegre/arquivos/0788109471.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2011.
34
6, de 1º de março de 2004, da Fundação Cultural Palmares, tornando-se, assim, “[...] um bem
cultural a ser protegido pela sociedade brasileira”.
A mobilização do Movimento Negro em escala nacional foi decisiva no processo da
Constituição de 1988, disso resultando o artigo 68 do ADCT, e assim que a batalha da Carta
Magna na época cessou, as organizações negras se compuseram para garantir essas conquistas
nas Constituições que seguiram. Como resultado desse esforço, também as Constituições dos
Estados da Bahia (artigo 51 do ADCT), de Goiás (artigo 16 do ADCT), do Maranhão (artigo
229 do ADCT) e do Pará (artigo 322) reconheceram o direito dos remanescentes dos
quilombos à propriedade de suas terras.
Como num processo sucessivo, é estabelecido o Decreto Federal nº 4887, de 20 de
novembro de 2003, o qual está relacionado diretamente com o artigo 68 do ADCT e na
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que vê na autodefinição,
“[...] o elemento fundamental para a identificação das comunidades”.
O citado Decreto nº 4887 tem como finalidade, portanto, “[...] regulamentar o
procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das
terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos”. Nesse decreto, além dos
critérios para o reconhecimento das comunidades remanescentes quilombolas, que já foram
evidenciados no decorrer deste texto, destacam-se, ainda, alguns artigos que definem as
competências dos diversos setores do governo, conforme consta:
Art. 3º Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, a
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das
terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem
prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios.
Art. 4º Compete à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial, da Presidência da República, assistir e acompanhar o Ministério do
Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações de regularização fundiária,
para garantir os direitos étnicos e territoriais dos remanescentes das
comunidades dos quilombos, nos termos de sua competência legalmente
fixada.
Art. 5º Compete ao Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural
Palmares, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e
o INCRA nas ações de regularização fundiária, para garantir a preservação
da identidade cultural dos remanescentes das comunidades dos quilombos,
bem como para subsidiar os trabalhos técnicos quando houver contestação
ao procedimento de identificação e reconhecimento previsto neste Decreto.
Em torno do Decreto nº 4887/2003 contraposições se estabeleceram advindas de
setores os mais conservadores da sociedade e que colocam empecilhos de todas as ordens,
35
levando órgãos governamentais a reverem suas estratégias no sentido de possibilitar o
reconhecimento das comunidades quilombolas, em especial no tocante à questão fundiária,
conforme veremos no quarto capítulo desta dissertação.
Apresenta-se ainda o artigo 7º da Instrução Normativa de nº 16, do Instituto Nacional
de Colonização Reforma Agrária (INCRA), de 24 de março de 2004, que assegura a:
“Caracterização dos remanescentes das comunidades de quilombos será atestada mediante
autodefinição da comunidade”.
Conforme o mesmo documento citado acima, o parágrafo 1º da referida Instrução
complementarmente diz que a: “Autodefinição será demonstrada através de simples
declaração escrita da comunidade interessada ou beneficiária, com dados de ancestralidade
negra, trajetória histórica, resistência à opressão, culto e costumes”.
Considerada um marco legal significativo estabelecido por meio da Medida Provisória
nº 111, de 21 de março de 2003, e que se tornou a Lei Federal nº 10.678, foi a criação da
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). Conforme
Theodoro (2008), A Seppir vem “[...] com a tarefa institucional de coordenar e articular a
formulação, coordenação e avaliação das políticas de promoção da igualdade racial e de
combate à discriminação racial ou étnica [...]”, durante o governo Lula, para o fortalecimento
das ações afirmativas e para a construção de um projeto mais estruturado de combate ao
racismo, à discriminação e às desigualdades raciais.
36
Figura 02 - Faixa Afixada no Palácio do Planalto em Brasília, durante a instalação da
SEPPIR, em 2003.
FONTE: Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe, 2006, p. 1016.
A Seppir criou o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), que traçou as diretrizes
gerais para o Programa Nacional de Quilombos, indicando as ações necessárias para a
garantia dos direitos sociais e de regularização fundiária das comunidades remanescentes de
quilombos.
Dentre as ações promovidas ou inspiradas pela criação da SEPPIR, destacam-se, no
âmbito federal: o Programa de Combate ao Racismo (PCRI); ações afirmativas de promoção
de aceso ao Ensino Superior; ações de implementação da Lei Federal nº 10.639.2003, que
estabelece a obrigatoriedade da inclusão no currículo do Ensino Básico do estudo da História
e da Cultura Afro-Brasileira; e o Programa de Promoção da Igualdade de Oportunidades para
Todos, do Ministério Público do Trabalho (MPT).
37
Em 2010, durante o segundo mandato do governo Lula, foi elaborado e aprovado o
Estatuto da Igualdade Racial. Segundo o então ministro da Seppir, Elói Ferreira Araújo23
, o
Estatuto é uma lei que pretende construir e dar passos rumo à promoção da igualdade racial.
Esse documento trata de temas como educação, saúde, terras quilombolas, justiça, segurança,
cultura e outros.
A Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) foi criada também durante o
governo Lula. Um dos fatos marcantes provenientes dessa secretaria foi a organização do
evento em comemoração aos sessenta (60) anos da elaboração da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, que aconteceu em Brasília, de 15 a 18 de dezembro de 2008.
Nessa ocasião, da comemoração dos 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos,
ocorreu o encontro e discussões de aproximadamente 5 (cinco) mil pessoas que
representavam a sociedade civil de todas as regiões do Brasil, agregando representantes,
denominados de delegados, de vários segmentos, dentre eles: movimentos sociais, educação,
saúde, justiça, órgãos governamentais e não governamentais. Nesse evento, a autora desta
dissertação foi representante e delegada da Educação do Estado do Paraná, região do Núcleo
Regional de Educação de Toledo-PR.
Na oportunidade de participação desse evento, foi possível acompanhar e discutir
vários projetos contra violência, contra racismo, contra discriminação, contra preconceito e
contra outros procedimentos sociais inconstitucionais. Além disso, foi possível dimensionar a
gravidade dos problemas raciais no Brasil, bem como apontou o então Ministro da Igualdade
Racial do Brasil, Edson Santos, na apresentação do Plano Nacional de Promoção da Igualdade
Racial no Brasil (PLANAPIR) (2009, p. 10):
A desigualdade gerada pela escravidão, crime inafiançável e imprescritível,
deverá ser reduzida pelo Estado brasileiro, que é o responsável pelos
interesses coletivos e difusos, através da solidariedade de toda a sociedade.
Não há injustiça nisso. Quando no futuro enxergarmos os negros e negras em
condições de igualdade com todos os demais brasileiros, preenchendo um
vazio de cor que antes existia em determinados espaços sociais,
compreenderemos a grandeza do esforço que hoje fazemos para construir
uma sociedade livre e justa.
A nacionalidade brasileira dos afrodescendentes permite a eles lutar pelo acesso às
políticas públicas voltadas para esse segmento. Segundo Nascimento (1985, p. 41),
23 ARAÚJO, Elói Ferreira. Entrevista concedida a rádio em 08 out. 2010. Disponível em:
<http://blog.planalto.gov.br>. Acesso em: 20 dez. 2011.
38
O quilombo representa um instrumento vigoroso no processo de
reconhecimento da identidade negra brasileira para uma maior auto-
afirmação étnica e nacional. O fato de ter existido como brecha no sistema
em que negros estavam moralmente submetidos projeta uma esperança de
que instituições semelhantes possam atuar no presente ao lado de várias
outras manifestações de reforço à identidade cultural.
O Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial no Brasil (PLANAPIR), de 2008,
indica ao Estado brasileiro objetivos e metas para superar as injustiças raciais existentes no
país por meio de adoção de políticas de ações afirmativas, associadas às políticas universais.
Nesse contexto, consta uma política específica voltada às comunidades quilombolas
remanescentes, que prevê, dentre as metas, as seguintes:
a) promover o desenvolvimento econômico e sustentável, inserido no potencial
produtivo nacional das comunidades remanescente de quilombos;
b) promover o efetivo controle social das políticas públicas voltadas às comunidades
remanescentes de quilombos;
c) garantir a regularização fundiária das comunidades remanescentes de quilombos,
urbanas e rurais;
d) estimular a implementação de medidas de proteção dos territórios quilombolas;
e) garantir a preservação do patrimônio ambiental e do patrimônio cultural material e
imaterial das comunidades remanescentes de quilombos;
f) estimular estudos e pesquisas voltados às manifestações culturais de comunidades
remanescentes de quilombos;
g) estimular a troca de experiências (cultura e história) entre comunidades
remanescentes de quilombos do Brasil, África e Diáspora;
h) promover a identificação e o levantamento socioeconômico de todas as
comunidades remanescentes de quilombos do Brasil;
i) ampliar os sistemas de assistência técnica que fomentem e potencializem as
atividades produtivas das comunidades, visando o apoio à produção diversificada,
seu beneficiamento e comercialização, gestão do território, fortalecimento das
formas de organização e conhecimentos tradicionais.
Dentre todas as metas indicadas no Planapir, a comunidade negra Manoel Ciríaco dos
Santos ainda não teve acesso a nenhuma, porque a demarcação de seu território ainda não está
regulamentada pelo Incra.
39
1.3 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA QUILOMBOLAS NO ESTADO DO PARANÁ
Segundo informações da Secretaria Estadual de Educação do Estado do Paraná,
publicadas na página eletrônica24
, até o início do século XXI pouco se sabia sobre a existência
e as condições de vida das comunidades remanescentes de quilombo neste estado. O Estado
do Paraná tem características próprias, onde predomina um discurso de que a imigração
europeia é o principal elemento constituinte de sua identidade e de sua trajetória de
desenvolvimento.
Segundo dados do Relatório do GT Clóvis Moura25
, os poucos indícios que eram
apontados advinham ou de denúncias e campanhas feitas por pastorais, sindicatos e pelos
movimentos sociais negros, ou por alguns pesquisadores que destoavam do discurso
hegemônico.
Foi, sobretudo, a partir do I Encontro de Educadores/as Negros/as do Paraná, chamado
pelo Movimento Negro e realizado em novembro de 2004 com apoio do Governo do Estado,
através das Secretarias de Estado de Educação, Cultura e Assuntos Estratégicos, que esse
quadro começou a modificar-se. Os participantes do referido evento trouxeram informações
que indicavam a existência de no mínimo 8 (oito) comunidades, gerando a expectativa em
conhecer melhor essas realidades.
Neste contexto destacou-se a Lei Federal nº. 10639/2003, que instituiu a
obrigatoriedade do ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira no currículo da educação
básica, sendo este um dos motivadores do interesse da Secretaria de Estado da Educação.
Com a criação do GT Clóvis Moura em 2005, foi a primeira vez que um governo deste
estado empreendeu a iniciativa de realizar um levantamento socioeconômico e cultural com
vistas à garantia de direitos a essas comunidades. O GT Clóvis Moura é um grupo
intersecretarial, cujo objetivo é investigar a existência de Remanescentes de Quilombos,
Comunidades Negras Tradicionais, Rurais e Urbanas, e/ou “Terras de Preto” do Paraná, bem
como, diagnosticar a situação dessas comunidades em seus aspectos sociais, econômicos,
culturais, visando contribuir para seu desenvolvimento comunitário e a manutenção de seu
modo de vida.
24 Site www.diaadiaeducacao.gov.pr.br. Último acesso em 5/3/2012.
25 GRUPO DE TRABALHO CLÓVIS MOURA. Terra e cidadania: terras e territórios quilombolas. Relatório
2005-2008. Curitiba, 2008.
40
A partir do levantamento realizado pelo GT Clóvis Moura valorizaram-se e passaram a
ser contempladas matizes étnicas diferentes daquelas predominantemente veiculadas por
órgãos oficiais e pelos meios de comunicação, como as principais definidoras da identidade
paranaense.
A construção da Proposta Pedagógica Quilombola e o Colégio Estadual Diogo Ramos,
criado na Comunidade Remanescente de Quilombo João Surá e que funciona com estrutura
provisória, no município de Adrianópolis, são partes desse processo. No dia 12 de maio de
2006, através de uma iniciativa do GT Clóvis Moura, foi realizada, na referida comunidade,
uma Ação Publica Articulada para as Comunidades Remanescentes de Quilombo do Paraná,
onde estiveram presentes, além de cerca de 1000 quilombolas, autoridades municipais,
estaduais e federais, que apresentavam os programas e as políticas de suas instituições com
vistas a atender aos quilombolas26
.
A nova conjuntura apresentou demandas que ainda não estavam contempladas no
primeiro momento. No início de fevereiro de 2007, a publicação do Decreto Federal nº
6040/2007 instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades e
Povos Tradicionais do Brasil (PNPCT). A Secretaria de Estado da Educação criou uma
comissão (formada por representantes do Departamento do Ensino Fundamental, do
Departamento de Educação de Jovens e Adultos, e da Assessoria de Relações Externas e
Interinstitucionais) com a finalidade de estudar a oferta de uma escola para a Comunidade
Remanescente de Quilombo João Surá e construir uma proposta pedagógica para essa e outras
escolas em áreas quilombolas. Isso indica novos elementos para a oferta de escolarização em
territórios de Comunidades e Povos Tradicionais, nos quais se incluem as comunidades
quilombolas, além da população indígena, faxinalenses, ribeirinhas, etc.
Mesmo assim, apesar dos avanços das políticas públicas de promoção da igualdade
racial no país e no estado do Paraná, e da possibilidade real de poderem estudar na própria
comunidade, vale destacar que os integrantes da comunidade quilombola remanescente
Manuel Ciríaco dos Santos vivem em situação difícil, não só pelos conflitos, pela violência
que vêm sofrendo, mas também pelas condições de trabalho, pois muitos precisam sair de sua
comunidade para ir até o município de Guaíra para trabalhar no mercado informal. Ou seja, as
políticas públicas ainda não estão garantidas.
As políticas de promoção da igualdade racial no Brasil e as políticas públicas
destinadas aos quilombolas no Estado do Paraná, bem como leis e decretos, fazem parte de
26 Site www.diaadiaeducacao.gov.pr.br. Último acesso em 5/3/2012.
41
um conjunto de marcos históricos que indicam que a emergência do tema no debate público
propiciou o fim da invisibilidade da questão racial e que importantes iniciativas têm permitido
o enfrentamento do preconceito no âmbito dos sistemas que compõem a área social, educação
e saúde.
Todas essas questões apontam, no entanto, para a existência de um conjunto de
dificuldades a serem enfrentadas, como as descontinuidades de programas e ações e a limitada
cobertura de benefícios oferecidos. Mesmo assim, deve-se reconhecer que, apesar das
dificuldades, há um avanço do Brasil no sentido de elaborar políticas públicas para segmentos
antes abandonados.
Nesse sentido, podemos perceber que as iniciativas governamentais interferem
diretamente nas vivências, nas culturas e nas tradições das comunidades tradicionais do
Estado do Paraná ou no Brasil. São legislações, órgãos institucionais e servidores que se
articulam para cumprir as propostas de políticas públicas. Toda essa movimentação causa
impacto direto no cotidiano das comunidades, mesmo quando não ocorre o acesso delas às
políticas públicas.
Muitas vezes, o processo que esses segmentos precisam enfrentar para ter acesso às
políticas públicas existentes transforma sua realidade, como aconteceu no caso da
Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos.
Na intenção de obterem os benefícios das políticas públicas, integrantes da
comunidade negra sofreram mudanças culturais, identitárias, econômicas e espaciais, desde
que iniciaram o processo de luta para conseguir a demarcação das terras como quilombo
remanescente. Nesse sentido, para melhor conhecermos esse grupo, destacam-se algumas de
suas histórias, trajetórias, identidades e parte de seu cotidiano.
42
2 A VIDA NA COMUNIDADE
Neste segundo capítulo contemplam-se algumas histórias de integrantes da
Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos, bem como detalhes da forma como se
organizam. Destacam-se, nesse texto, fotografias que revelam a maneira como conduzem suas
vidas, como são suas moradias, suas plantações, seus animais e as práticas do dia a dia.
Com o objetivo dos integrantes da comunidade negra em análise em transformar o seu
território em terras quilombolas, muitas mudanças ocorreram. Essas mudanças podem ser
percebidas nos relatos, nas identidades e nos significados que dão à memória que já tinham.
2.1 HISTÓRIAS, TRAJETÓRIAS E COTIDIANO
A comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos começou a ganhar maior destaque a
partir de momentos em que foi objeto de políticas públicas. Um desses fatos foi a publicação,
na internet, do levantamento das Comunidades Negras do Estado do Paraná27
, coordenado
pela Secretaria Estadual de Educação (SEED), através do Grupo de Trabalho Clóvis Moura,
conforme já visto no primeiro capítulo. O conflito gerado pela possibilidade da demarcação
das terras quilombolas ficou evidente a partir de reportagens jornalísticas, relatos feitos pelos
moradores da região e a elaboração dos documentos como o Laudo Antropológico, o Processo
do Incra sobre demarcação das terras, o já citado relatório do Grupo de trabalho Clóvis
Moura, entre outros.
Antes disso, não havia tantos registros de investigações feitas sobre essa comunidade
negra em Maracaju dos Gaúchos. Eram moradores comuns, que não chamavam muito a
atenção, como qualquer outro grupo étnico regional. Nesse sentido, constata-se que viviam e
conviviam na sociedade local, mesmo porque os integrantes da comunidade negra relataram
que, até o início do conflito pela demarcação das terras, homens e mulheres trabalhavam para
os agricultores vizinhos, na maioria descendentes de italianos. Eram frequentemente
chamados para prestar serviços nas lavouras como os chamados “boias-frias” ou como
“empregados domésticos”.
27 www.quilombosdoparana.com.br
43
Segundo integrantes da comunidade negra, houve uma certa exploração nos
pagamentos feitos pelos descendentes de italianos aos negros. Afirmam que, como os brancos
sabiam que os negros estavam precisando de trabalho, pois têm famílias para sustentar e não
negariam o trabalho, e sua geração de renda nesse período era precária e, pela pouca
quantidade de terras que lhes restava, aceitavam o trabalho por um valor muito menor,
comparado à média paga na região.
Conforme relatos28
de moradores da comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos, a
história dessa coletividade teve início com o escravo negro José João Paulo, casado com a
escrava negra Maria Joana, que trabalhavam no garimpo de Minas Gerais e tiveram seis
filhos. Um dos filhos, Joaquim Paulo dos Santos, casou-se com Maria Zidora e tiveram três
filhos, dentre eles, Manoel Ciríaco dos Santos.
Quando Manoel Ciríaco dos Santos se casou já era alforriado. Ele e sua esposa
trabalhavam no garimpo e nas lavouras de cana e café. Moravam em casa de pedra, chamada
Lapa. Tiveram um filho e deram-lhe o nome do pai, Manoel Ciríaco dos Santos. Este se
casou-se com Maria Olina e tiveram quatro filhos. Trabalhavam em Santo Antônio do
Intambé do Serro, em Minas Gerais, nas lavouras de mandioca, carvão e garimpo de ouro.
Manoel Ciríaco dos Santos ficou viúvo e casou-se com Ana Rodrigues dos Santos e
tiveram quatro filhos em Minas Gerais, e mudaram-se para o Estado de São Paulo, no
município de Caiabu, em 1956, trabalhando com a terra. E tiveram mais dois filhos. Em 1964,
mudaram-se para Maracaju dos Gaúchos, Guaíra, Paraná, onde descendentes residem até hoje.
Na nova moradia, tiveram mais três filhos, inclusive Adir Rodrigo dos Santos, atual
líder da comunidade Manoel Ciríaco dos Santos. Segue trecho na íntegra de entrevista29
feita
com um dos moradores da comunidade negra de Maracaju dos Gaúchos, em 2007, pelo GT
Clóvis Moura:
Mais na chegada aqui era tudo mato, aí eu, meu pai e meus irmãos mais
velhos ajudamo meu pai a roçar e derrubar o mato. Fizemos uma barraca de
lona e acampamos no meio do mato, aí com o tempo, fizemos um rancho
com talbinha de cedro e cercado de coqueiro e no chão passava argila,
misturada com esterco de vaca, nóis dormia no chão e minha mãe cozinhava
no fogão de barro, mais mesmo assim, nóis passava necessidade, tinha dia
que nós não tinha nem o angu pra comer, nem feijão. Caçava caça do mato,
pescava, assava e comia porque a gordura nóis não tinha. Minha mãe lavava
a nossa roupa, no lugar do sabão — porque não tinha —- usava cinza de
madeira e lavava na mina. Aí com o tempo nóis fomo roçano, fomo
preparando a terra e aí saiu a lavoura, que nóis comecemo a plantar [...]
28 http://quilombosnoparaná.spaceblog.com.br/2/. Acesso em: 11 fev. 2010.
29 http://quilombosnoparaná.spaceblog.com.br/2/. Acesso em: 10 mar. 2010.
44
A preparação da terra, o trabalho e a história dessa comunidade, formada por homens,
mulheres e crianças negras, também se insere num contexto de colonização da região, quando
migrantes brancos, descendentes de alemães e italianos iniciaram suas atividades. Uma
parcela dos moradores da comunidade trabalhavam, até pouco tempo atrás, para os pequenos
agricultores da mesma região, nas lavouras ou nas casas, em serviços domésticos.
Em outro depoimento de integrantes da comunidade, são ressaltadas dificuldades
enfrentadas por eles quando chegaram às terras pretendidas como quilombolas:
Fizemos um rancho com taibinha de cedro e cercado de coqueiro e no chão
passava argila, misturada com esterco de vaca, nóis dormia no chão e minha
mãe cozinhava no fogão de barro, mais mesmo assim, nóis passava
necessidade, tinha dia que nós não tinha nem angu pra comer, nem feijão.
Caçava caça do mato, pescava, assava e comia porque a gordura nóis não
tinha. Minha mãe lavava a nossa roupa, no lugar do sabão – porque não tinha
– usava cinza de madeira e lavava na mina. Aí com o tempo nóis fomo
roçando, fomo preparando a terra e aí saiu a lavoura, que nóis comecemo a
plantar30
.
Em outros depoimentos de moradores constata-se que a madeira era extraída da mata
da propriedade e beneficiada pela própria família, utilizando serrotes traçadores, machados,
facões. Depois de 1974, foram construídas novas casas, que são de madeira, ou mistas com
concreto, onde residem os filhos e netos dos primeiros moradores.
Atualmente a comunidade quilombola é formada por 45 (quarenta e cinco) pessoas,
compostas por 07 (sete) famílias, morando em casas distribuídas mais ou menos em forma de
círculo sobre o terreno.
Dos 15 (quinze) alqueires, restaram aproximadamente 07 (Sete) alqueires de terras,
que pertencem à família Santos, onde também estão localizadas as moradias. Mas o território
será expandido, caso consigam a demarcação pretendida. Em entrevista31
com João Aparecido
dos Santos, a comunidade não sabe ao certo quanto será expandido o território, pois essa
informação estaria com o Incra. De qualquer forma, isso está em disputa e é o Incra que
propõe as mudanças de território a partir dos trâmites processuais. No processo do Incra sobre
a demarcação das terras da comunidade em análise, essa informação não consta, pois o Incra
não autorizou cópia de todo texto, somente de fragmentos.
No laudo antropológico feito pela equipe designada da Unioeste consta o mapa da
comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos, vista aérea que foi escaneada para esse
30 http://quilombosnoparaná.spaceblog.com.br/2/. Acesso em: 04 mar. 2010.
31 HOFFMANN, C. C. Entrevista realizada na comunidade negra. Guairá, 11 jun. 2011.
45
trabalho. Nessa imagem é possível observar que há uma espécie de círculo formado pela
distribuição das casas, sob esse aspecto, há semelhanças com um quilombo, que, por se tratar
de comunidade, preferem construir suas moradias assim, ninguém na frente ou atrás, todos
iguais, no centro do terreno.
Figura 03 - Mapa da Distribuição das Construções na Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos
Santos:
Fonte: Processo do Incra nº. 54200.0001075/2008-46.
A história da dinâmica do espaço e do território quilombola pode ser analisada a partir
do cotidiano deles. Nesse cotidiano estão suas práticas, seus costumes, trabalho, lazer. O que
fazem no cotidiano integra sua história. Segundo Agnes Heller, na obra "O Cotidiano e a
História", consta:
A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na
vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua
personalidade. Nela, colocam-se “em funcionamento” todos os seus sentidos,
todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus
sentimentos, paixões, idéias, ideologias. (HELLER, 2008, p. 31)
Diferentemente da História, que só valoriza os “grandes dias”, “os grandes líderes” e
os “grandes acontecimentos”, o trabalho que se pretende aqui está pautado nos registros das
46
atitudes mais comuns, nos gestos cotidianos, nos detalhes que compõem a dinâmica do
território da Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos. Pretende-se ainda destacar
elementos étnicos e as africanidades desse espaço, como a religião, a culinária, dentre outros
aspectos.
Na intenção de contemplar uma história rica em detalhes, construindo um objeto o
mais próximo possível das vivências da comunidade em análise, destacaram-se nesse texto as
particularidades do cotidiano, do dia a dia da comunidade, com fotografias do seu espaço,
moradias, a estrada por onde passam, o galpão principal onde fazem seus rituais, a paisagem,
o rio onde pescam e os pequenos animais que criam. Pois, assim como apontou Heller,
acredita-se também que: “A vida cotidiana não está ‘fora’ da história, mas no ‘centro’ do acontecer
histórico: é a verdadeira ‘essência’ da substância social”. (HELLER, 2008, p. 34)
Na comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos, os integrantes desenvolvem seus
papéis, seja dentro de casa, nos afazeres domésticos, nas lavouras, nas práticas religiosas, nos
estudos, nas reuniões e nos eventos de que participam, dentre outros. A dinâmica e a história
dessa comunidade quilombola vão se construindo a partir dos significados que eles atribuem
às suas práticas.
Segundo dados do Laudo Antropológico32
, da Unioeste, José Maria Gonçalves,
falecido em dezembro de 2009, era o filho mais velho do segundo casamento de Manoel
Ciríaco dos Santos, daqueles que moram na Comunidade. Enquanto viveu, era o líder da
comunidade. Era casado com Nilza Aparecida Gonçalves e tiveram três filhos: Cleuzimar
Aparecida Gonçalves, Cleuzilene Aparecida Gonçalves e Claudir Gonçalves. Quando José
Maria faleceu, em 2009, foi recebida, pela autora, uma ligação telefônica de Adir Rodrigues
dos Santos, informando da morte de seu tio, lamentando seu estado de saúde frágil e
atribuindo sua morte ao estresse provocado pelo conflito de terras.
O líder da comunidade, Adir Rodrigues dos Santos, não é o integrante mais velho, no
entanto desenvolve o papel de orientador, conselheiro e articulador político do grupo. Esse
aspecto representa uma mudança, pois, tradicionalmente, nessa comunidade, quem liderava
era o mais velho, conforme informação dada em entrevista33
. Adir Rodrigues dos Santos é
casado com Solange Aparecida Fortunato da Silva e tem três filhos: Tainara da Silva dos
Santos, Bruno Antonio da Silva dos Santos e Michel da Silva dos Santos.
32 Conforme processo do Incra nº. 54200.0001075/2008-46. Página 519.
33 HOFFMANN, C. C. Entrevista realizada na comunidade negra. Guairá, 20 abr. 2010.
47
Figura 04 - Foto da Casa do Líder da Comunidade Adir Rodrigues dos Santos
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
A filha mais velha de Solange, que nasceu de um relacionamento anterior ao do
casamento com Adir, Juliana da Silva Graciano, não mora mais na comunidade, pois se casou
com um agricultor, Fábio Rocha Graciano, descendente de italianos, que é vizinho. Durante
os conflitos de terras, sua filha ficou do lado de seu marido. Inclusive, revoltou-se contra a
mãe que luta pela demarcação de terras quilombolas34
.
A comunidade conta com aulas do Ensino Fundamental para adultos, ofertadas pelo
programa Ação Pedagógica Descentralizada (APED), com professores da rede estadual de
ensino que se deslocam de colégios de Guaíra até a comunidade para ministrarem aulas, de
segundas-feiras às quintas-feiras. Trata-se de uma modalidade específica de Educação de
Jovens e Adultos (EJA)35
.
34 No dia em que mãe e filha se desentenderam, registrou-se Boletim de Ocorrência na Delegacia de Guaíra, dos
integrantes da comunidade negra contra os agricultores, incluindo a filha de Solange. HOFFMANN, C. C.
Entrevista realizada com Solange. Guairá, 20 abr. 2010. 35
Vale destacar a Lei Federal nº 10 639/2003, implantada para garantir a educação das relações étnico-raciais
nas escolas públicas e privadas de todo país.
48
Em depoimento feito pela diretora do Colégio Estadual no Encontro do Fórum das
Relações Étnico-Raciais36
, realizado em abril de 2010, na própria comunidade, ela relatou que
a possibilidade de os alunos terem aulas na própria comunidade irá beneficiá-los, pois, como a
maioria deles tem família, seria difícil se deslocarem, à noite, até Guaíra, para estudarem. As
aulas iniciaram em 2010, contando com a participação de 06 (seis) adultos frequentando.
Na comunidade há uma sala de informática, agregada à casa do líder Adir, com rede
de internet, resultado de um Projeto do governo federal, do Programa Luz para Todos e
Inclusão Digital (UID). Esse projeto visa garantir a cidadania através do desenvolvimento
energético. Os integrantes da comunidade podem estudar, pesquisar e conseguem uma maior
comunicação a partir desse incentivo. Inclusive, algumas vezes, foi possível obter
informações e esclarecer dúvidas desta pesquisa através do contato por e-mail com o líder da
comunidade.
Figura 05 - Sala de Informática da Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
36 O Encontro do Fórum Estadual das Relações Étnico-Raciais na Comunidade Quilombola Remanescente
Manoel Ciríaco dos Santos foi sugestão da Secretaria Estadual de Educação do Estado do Paraná quando o
conflito pela demarcação de terras estava evidente. Nessa reunião estiveram presentes autoridades e
representantes dos órgãos de governo federal e estadual, além de representantes da Unegro, para discutir a
situação e tentar alternativas de amenizar a situação tensa.
49
As crianças menores frequentam a Escola Municipal José de Alencar, localizada em
Maracaju dos Gaúchos. Já as crianças maiores se deslocam até Guaíra, e estudam no Colégio
Estadual Castelo Branco. As crianças acordam às quatro horas da manhã para pegar o
transporte municipal. Voltam para casa, auxiliam nos trabalhos domésticos e brincam. Uma
das situações que chamou a atenção na comunidade foi o comportamento das crianças.
Recebem uma educação rígida, são alegres e carinhosas, apesar da convivência conflituosa
que se instaurou por conta do processo de demarcação das terras.
Próximo da casa do líder Adir está localizada a sala principal da comunidade negra,
uma espécie de sede da comunidade, conhecida como galpão, onde estão expostos cartazes,
objetos de decoração, símbolos religiosos (católicos, evangélicos e do candomblé),
artesanatos e um painel com registros históricos da comunidade. Nesse local são realizadas as
reuniões, as festas, rituais religiosos, celebrações e é onde funcionam, à noite, as aulas do
Colégio Estadual.
Aos sábados, o professor de capoeira Djalma Mariano da Silva, que reside em Guaíra,
dá aulas de capoeira para integrantes da comunidade. Em visita à Comunidade num sábado,
ouviu-se o som do batuque do berimbau de longe e, quando da aproximação, pôde-se
constatar e registrar a participação deles neste ritual, conforme Figura 5.
Figura 06 - Foto da Sede da Comunidade e da Capoeira
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
50
Ainda nessa sala principal estão expostas obras de artesanato da comunidade, bem
como há um altar, com objetos que representam sua crença nas religiões Católica, Evangélica
e Umbanda, com plantas específicas, água e velas.
Nessa foto pode-se visualizar a faixa que os integrantes da comunidade expõem
quando se apresentam no próprio galpão, ou quando são convidados a se apresentarem em
outros lugares, como, por exemplo, escolas de Guaíra ou de outros municípios. Nela consta o
nome “Comunidade Quilomobola Manoel Ciríaco dos Santos”, tal qual como foi certificada
pela Fundação Cultural Palmares.
Figura 07 - Cartazes Expostos no Galpão
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
Nos cartazes está escrito: “Não fiz o melhor, mas fiz tudo para que o melhor fosse
feito” e “Não sou o que deveria ser, mas não sou o que era antes”. Nessas frases dos cartazes
pode-se observar primeiramente, destacado em vermelho, a afirmação da comunidade negra
em ser quilombola, e a busca por melhores condições de vida, quando demonstram o interesse
pelo desenvolvimento. Ainda, no cartaz acima, os integrantes da comunidade negra anunciam
uma mudança de identidade quando afirmam que não são mais o que eram antes.
51
Figura 08 - Cartazes Expostos no Galpão
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
Nesses cartazes está citado: “Tenho um sonho: Que um dia os negros vivam em uma
nação onde não sejam julgados pela cor de sua pele, mas pelo seu caráter”, e ainda, “Temos
aprendido a voar como pássaros, a nadar como peixes, mas ainda não aprendemos a sensível
arte de vivermos como irmãos”.
Já nesses cartazes pode-se perceber a existência da defesa contra o racismo,
discriminação e preconceito que sofrem. Nessa primeira frase, onde destacam que querem ser
julgados pelo caráter e não pela cor, indicam o desejo pela igualdade racial. No cartaz logo
abaixo existe uma menção ao conflito, pois confirmam que desejam viver como irmãos,
provavelmente referindo-se à relação deles com os vizinhos, agricultores.
A responsável pela prática dos rituais da Umbanda é Geralda dos Santos, ela não mora
mais na comunidade, porém faz visitas regulares aos seus parentes e coordena rituais
religiosos.
Sebastião Domingues da Silva é o responsável pelo Catecismo, visita a comunidade e
coordena também os rituais religiosos. Ele também não mora na comunidade, porém relatou
52
em entrevista37
que, se a demarcação ocorrer, virá se juntar ao grupo, conforme já exposto
anteriormente.
Há uma igreja Católica em Maracaju dos Gaúchos, no entanto, segundo relatos, os
integrantes da comunidade negra sentiram-se rejeitados e deixaram de frequentá-la quando os
conflitos pela demarcação das terras emergiram.
Figura 09 - Foto da Igreja Católica em Maracaju dos Gaúchos
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
Segundo Adir, houve uma certa predisposição do padre da paróquia em “atender”
melhor os agricultores brancos, e de não dar mais atenção aos negros.
37 HOFFMANN, C. C. Entrevista realizada na comunidade negra. Guairá, 11 jun. 2011.
53
Figura 10 - Foto do Artesanato
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
O artesanato exposto no galpão da comunidade, chamada também de sede, é resultado
de um trabalho que os integrantes da comunidade negra começaram a realizar recentemente,
ou seja, não é característica antiga desse lugar.
54
Figura 11 - Foto do Altar Religioso
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
Como podemos perceber, as práticas religiosas na comunidade são variadas: há
adeptos e seguidores do candomblé e da umbanda, católicos e evangélicos. Percebe-se que há
tranquilidade dos integrantes da comunidade em falar das várias práticas religiosas que
acontecem dentro do território da comunidade negra e as fronteiras religiosas não estão
estabelecidas com rigidez.
O santo padroeiro é São João e, em sua festa, um grupo da comunidade dança
quadrilha. Outros santos venerados são Nossa Senhora Aparecida, Santo Antônio, São Pedro
e São Benedito. Vale destacar que uma das tradições mais antigas trazidas junto com eles é o
ritual da Folia de Reis e o batuque, conforme consta em Relatório do GT Clóvis Moura (2008,
p. 105).
Joaquim dos Santos e Eva dos Santos são moradores da Comunidade e têm duas filhas
Jaqueline Aparecida dos Santos e Janaína Cristina dos Santos. São eles os proprietários do
único automóvel da comunidade. Esse carro é utilizado por todos, quando necessário, para ir
até a cidade, entregar verduras, etc. Outros meios de transporte são cavalos e carroças. Eva
55
recebe em sua casa outras moradoras da comunidade negra com certa frequência, pois ela tem
um forno elétrico e, juntas, fazem bolos, pães e bolachas.
Figura 12 - Foto da Casa de Joaquim e Eva
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
Fernanda Amâncio dos Santos, sobrinha de Eva, também morava nessa casa, com os
tios Eva e Joaquim. Sua mãe já foi embora da comunidade há algum tempo. Atualmente, ela
também decidiu sair da comunidade, e reside em Marechal Cândido Rondon/PR, trabalhando
como empregada doméstica. Fernanda tem, segundo relatos na comunidade, essa
característica, às vezes sai, às vezes volta à comunidade.
Nessa outra casa, da Figura 13 moram João Aparecido dos Santos e Kelly Cristina
Martiliano Antunes Santos. Eles também têm três filhos, sendo João Vitor, Tauane e Cristina.
56
Figura 13 - Foto da Casa de João e Kelly
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
Em outra casa moram Luciano Odoxio Ferreira e Cleuzimar Aparecida Gonçalves,
esta mais conhecida pelo apelido de Chiquinha, casados, são pais de um bebê. Em entrevista
feita na época do auge do conflito, em que haviam perdido o trabalho com os vizinhos,
relataram a importância de receberem o benefício Bolsa Família e Bolsa Escola, pois, se não
fosse esse dinheiro, teriam passado fome.38
38 O governo Lula implantou esse benefício em 2002, beneficiando as famílias de baixa renda.
57
Figura 14 - Foto da Casa do Luciano e Chiquinha
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
Luciano, que aparece na foto acima, tem um irmão, Nilson Odoxio Ferreira, casado
com Cleuzilene Aparecida Gonçalves, que é a irmã de sua mulher, Chiquinha. E a casa de
Nilson e “Lena” fica ao lado dessa casa que aparece na Figura 9.
Como é possível observar, as casas são construídas utilizando materiais de concreto e
madeiras. Os pisos nas moradias se diferenciam, pois em algumas há assoalho de madeira, em
outras há piso de cimento e em outras é chão batido. Em nenhuma casa foi visto forro,
somente as vigas e o telhado. Outro detalhe são as grandes aberturas que existem, frestas entre
as paredes, janelas e portas, que não fecham totalmente.
De qualquer forma, as moradias dos integrantes da comunidade negra são diferentes
das moradias dos vizinhos, brancos. As moradias dos vizinhos brancos são maiores, de
concreto e não foram avistadas frestas.
O trabalho dos integrantes da comunidade negra consiste em plantar pimentas, chás,
milho, mandioca e verduras variadas, além da pesca no pequeno rio. As mulheres também
cuidam da casa, das crianças e auxiliam no serviço da roça.
58
Figura 15 - Foto da Horta e Plantações
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
Próximo das casas estão as hortas, árvores frutíferas, plantações e o Rio Barigui.
A comunidade entregava suas hortaliças para serem vendidas através de um projeto da
Emater39
, chamado “Horta comunitária”. No entanto, numa das últimas visitas feitas
constatou-se, a partir da entrevista com João Aparecido40
, que atualmente toda a produção
está sendo encaminhada para a comunidade indígena de Guaíra, num projeto em parceria com
a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
Conforme reportagem jornalística (aquiagora.com. em 25/04/2011) o convênio da
Comunidade Quilombola com a Conab foi assinado pelo governo municipal de Guaíra, com
respaldo do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que é uma das ações do Programa
Fome Zero, para atingir grupos que estão em situação de risco alimentar, promovendo a
inclusão social e a economia no campo por meio do fortalecimento da agricultura familiar.
Além das hortaliças e vegetais, a comunidade também fornecerá bolachas e pães para
três comunidades indígenas de Guaíra: Rio Azul, Tekohá Porá e Tekohá Marangatu.
39 Esse projeto prevê o incentivo a construção de hortas comunitárias, através de subsídios técnicos e doação de
sementes. E tudo é comprado pela prefeitura para abastecer creches, escolas e a aldeia indígena. 40
HOFFMANN, C. C. Entrevista realizada na comunidade negra. Guairá, 11 jun. 2011.
59
Figura 16 - Foto da Plantação de Pimentas
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
Quando integrantes da comunidade negra participam de eventos, conferências e
simpósios que tratam da temática sobre quilombolas, fazem conservas caseiras de pimentas e
comercializam estes produtos.
60
Figura 17 - Foto da Plantação de Batata-Doce e Vista Parcial do Galinheiro e do Chiqueiro
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
Há na comunidade a criação de pequenos animais, como galinhas, patos e porcos. O
trabalho se dá na condição de parcerias entre os moradores ou cuidados individuais, conforme
acordo ou necessidade entre eles.
61
Figura 18 - Foto dos Pequenos Animais
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
Conforme relatos de integrantes da comunidade negra, o Rio Barigui já foi maior e
tinha mais peixes, ainda assim, a pesca continua sendo uma prática comum e o peixe,
alimento constante.
62
Figura 19 - Foto do Caminho que dá Acesso ao Rio Barigui
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
63
Figura 20 - Foto do Rio Barigui
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
A estrada que dá acesso à comunidade e a outras propriedades em Maracaju dos
Gaúchos tem uma particularidade, pois se chama “Estrada da Capelinha”, nome dado depois
da construção de uma capela, conforme foto abaixo. A capela está localizada fora da área da
comunidade negra, no entanto, pode ser vista no percurso que dá acesso a esta.
64
Figura 21 - Foto da “Estrada da Capelinha”, em Maracaju dos Gaúchos, que dá Acesso à
Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
Vale destacar que foi nesta estrada, vista na figura 21, que funcionários do Incra foram
barrados e sequestrados por agricultores da região, quando faziam seu trabalho de
levantamentos de dados agroambientais para compor o relatório do processo de demarcação
das terras como quilombolas. Este episódio está mais detalhado no terceiro capítulo desta
dissertação.
65
Figura 22 - Foto da Capela que Caracteriza o Nome da Estrada: “Estrada da Capelinha”
Fonte: Claudia Cristina Hoffmann
Integrantes da comunidade negra já prestaram serviços para os agricultores da região,
como boias-frias ou como empregados domésticos, como já exposto anteriormente. Depois,
no entanto, a partir do aflorar das tensões provocadas pelo início dos trabalhos do Incra na
intenção de demarcar o território quilombola, os agricultores procuram evitar chamar os
integrantes da comunidade negra para trabalharem em suas lavouras ou casas, prejudicando,
assim, a geração de renda da comunidade, que não sobrevive somente com o plantio e a
colheita nas suas terras. Esse fato, isolado, provocou uma série de mudanças nas vidas dos
integrantes da comunidade negra, ou seja, mesmo antes de conseguirem a pretendida
demarcação das terras, já foram excluídos dessa modalidade do mercado de trabalho.
Mais do que isso, os problemas dos integrantes da comunidade negra não se resumem
em relação ao trabalho. Trata-se de problemas que vão muito além da falta de trabalho,
perpassam por vários momentos a vida cotidiana deles, mexem com seus laços de amizade,
familiares, transformam relações, destacam e alteram identidades e interferem em suas
histórias.
66
Os conflitos e as tensões que vieram à tona pela possibilidade de demarcação das
terras e pela afirmação de quilombo fizeram com que alguns se desentendessem, acabando
com vínculos de trabalho entre agricultores e integrantes da comunidade negra. Também
passaram a ter destaque diferenças que antes eram amenizadas pelas relações de vizinhança e
de trabalho, pois a demarcação das terras como quilombolas provocou também o acirramento
de acusações racistas e não somente de conflito de terras.
Conforme entrevistas41
, os integrantes da comunidade negra destacaram que, além da
segregação que as crianças sofrem no ônibus escolar, pelas crianças brancas, outros episódios
indicam a existência de discriminação e racismo. Por exemplo, o fato de chegarem na
comunidade funcionários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (IBAMA) perguntando onde estavam os quarenta e cinco macacos mortos, pois
haviam recebido um telefonema anônimo de uma pessoa que pediu para buscar os animais
naquele endereço. Não havendo nenhum macaco na comunidade, logo todos concluíram que
se tratava de um “trote”. Este fato teria causado tristeza e angústia aos negros.
Kabengele Munanga (1996, p. 79) afirma que as sociedades produzem novas formas
de racismo, e a luta deve ser contra esse presente concreto, atual, cotidiano e visível. Florestan
Fernandes reforça essa teoria, considerando que: “[...] os mecanismos de dominação social
tradicional restaram intactos e a organização da sociedade não pode afetar significativamente
os modelos pré-estabelecidos de concentração racial de renda, de prestígio social e de poder”.
(BASTIDE; FERNANDES, 1995, p. 57).
Por isso, justifica-se a necessidade de pontuar que há diferença na cor entre os
pequenos agricultores que são brancos, pois têm ascendência europeia, e os integrantes da
comunidade negra, que são negros, com ascendência africana.
Percebe-se, então, que o processo de demarcação das terras quilombolas fez com que
as tensões e os conflitos se destacassem. Não que não existissem, mas estavam camuflados.
Os conflitos serão abordados com maiores detalhes no terceiro capítulo desta dissertação.
Enquanto esse processo de demarcação das terras está em andamento, os integrantes
da comunidade negra seguem suas vidas, enfrentando principalmente os problemas da
geração de renda, pois, segundo relatos de integrantes da comunidade negra, a atual
quantidade de terras não é suficiente para a sobrevivência e a permanência deles no local.
Para os integrantes da comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos alguns conceitos
mudaram suas vidas, como é o caso da identidade do grupo, pois passaram a se
41 HOFFMANN, C. C. Entrevistas realizadas na comunidade negra. Guairá, 10 abr. 2010.
67
autorreconhecerem e a se autoafirmarem como quilombolas. As histórias que confirmam uma
ancestralidade negra, ex-escrava e afrodescendente têm importância nesse processo para
conseguirem a demarcação de suas terras como quilombolas. A história deles necessita de
memórias de alguns integrantes do grupo da comunidade negra, principalmente dos mais
velhos, para serem registradas. Já a cultura, que se revela no cotidiano, em suas práticas do
dia a dia, de integrantes do grupo, também passou por mudanças, conforme consta no texto a
diante.
2.2. IDENTIDADE, MEMÓRIA E CULTURA.
Desde que a comunidade negra iniciou o processo de luta pelo reconhecimento de suas
terras e a demarcação, iniciou também um processo de mudanças nas suas histórias de vida e
na sua identidade. As memórias que cada um guardava precisaram ser registradas, pois
poderiam contribuir para a conquista da demarcação. Agentes do Estado e pesquisadores
voltaram seus olhares para eles, fazendo perguntas sobre a história de seus antepassados42
.
Por isso se pode constatar que a memória deles passou a ser elemento de luta, e a
instrumentalização dessa memória pode auxiliar no processo de demarcação das terras como
remanescente de quilombo.
Nem todos da comunidade compactuam dos mesmos ideais. Há os que pretendem
abertamente a titulação e outros que não se posicionam contra, mas demonstram certa
resistência, ou até desconhecimento dos benefícios que terão com a demarcação das terras.
Isso consta no Laudo Antropológico feito pelos professores antropólogos da Unioeste, já
citado, inserido no processo do Incra43
: “A identidade como algo contrastivo se faz presente
desde antes desse pedido de reconhecimento, porém, a construção de uma identidade
quilombola é recente como pode ser observado através das instâncias da vida social” (grifo
nosso).
De qualquer forma, mesmo a comunidade não tendo um discurso único e homogêneo,
há uma grande distinção entre aqueles que pertencem ao grupo negro e aqueles vizinhos
brancos que não aceitam a demarcação das terras, os agricultores.
42 Até o presente momento já foram elaborados dois trabalhos sobre a Comunidade em análise, de conclusão do
Programa de Desenvolvimento da Educação do Paraná (PDE). 43
Processo nº 54200.0001075/2008-46 (p. 590).
68
O líder Adir é respeitado internamente, tem certa ascendência, representa o grupo em
reuniões, eventos, mas não pode falar por todos. Mesmo a maioria querendo a demarcação,
alguns integrantes da comunidade mudaram-se, não participando do processo. Como há
também parentes deles que querem vir morar no quilombo, caso haja sucesso no processo de
demarcação.
Para Barth (1998, p. 11), as identidades individuais ou coletivas são construídas e
transformadas na interação de grupos sociais através de processos de exclusão e de inclusão
que estabelecem limites entre tais grupos, definindo os que os integram ou não. Então,
precisamos saber em que consistem os processos de organização social, através dos quais se
mantêm, de forma duradoura, as distinções entre “nós” e os “outros”, mesmo quando mudam
as diferenças que, para “nós”, assim como para “os outros”, justificam e legitimam tais
distinções.
Estudar a identidade quilombola ou de comunidades negras tradicionais requer atenção
especial na forma de organização do grupo, pois ela não pode ser vista como uma identidade
homogênea, única, totalmente coletiva. Ou ainda, a identidade do grupo, agora
autorreconhecido como quilombola, não precisa, necessariamente, ser rígida, imutável. Isso
está bem apontado em Boaventura de Sousa Santos no texto “Modernidade, Identidade e a
Cultura na Fronteira” (SANTOS, 1994, p. 135):
Sabemos hoje que as identidades culturais não são rígidas nem, muito
menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos
de identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a
de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou país europeu,
escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de
temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis em
última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época
para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, pois,
identificações em curso.
Um exemplo de que as práticas culturais estão mudando, assim como as identidades
do grupo estão em constante construção, é o fato de que, atualmente, se pratica com certa
regularidade, no quilombo, a capoeira. Mesmo assim, no entanto, essa dança, luta, jogo ou
brincadeira, como é conhecida, foi ensinada recentemente por um professor da cidade de
Guaíra, que passou a frequentar o quilombo aos sábados para dar essas aulas.
O grupo incorporou a capoeira nas suas atividades cotidianas, e isso também é um
aspecto de sua atual cultura. O interesse em conseguir a demarcação das terras quilombolas
fez com que uma nova identidade fosse construída em torno dessa temática, e a prática da
capoeira contribui para caracterizar o “novo” grupo, agora quilombola. Há a construção e a
69
reconstrução da identidade quilombola motivada por várias circunstâncias. A capoeira revela
a aceitação deles em práticas novas, identificando-se, no caso da capoeira, porque essa
manifestação cultural estava “adormecida” e passou a ter outros sentidos.
Já outras práticas culturais, como a religiosidade do candomblé e a católica, as rodas
de samba, o culto ao fogo, os hábitos alimentares e a noção de trabalho coletivo estão com
eles há mais tempo, pois foram valores e significados passados ao longo de gerações. Mesmo
assim, também essas práticas culturais vão sendo incorporadas e ressignificadas.
Adam Kuper (2002), no livro “A Visão dos Antropólogos”, afirma que a cultura é
aprendida, e que não é uma questão de raça, nem transmitida por genes, mas uma questão de
ideias e valores, uma atitude mental coletiva, que é expressa por símbolos, mensagens. Por
isso, cultura poderia ser um sistema simbólico.
Assim, os valores são culturalmente variáveis. O autor citado acima destaca também a
importância das identidades coletivas, ou seja, negros, mulheres, homossexuais e imigrantes.
Ao mesmo tempo, ele preza o direito individual. Pensando esses dois valores, identidades
coletivas contra identidades pessoais, o sacrifício da individualidade é em prol da
solidariedade cultural coletiva.
Dentro da comunidade negra há também contradições, diferentes opiniões. Como se
observa nos relatos, algumas pessoas que moravam na comunidade negra saíram e não lutam
pela demarcação das terras, como é o caso, por exemplo, de Sebastião, ou da mãe da
Fernanda, ou da filha de Solange. Isso se deve também à própria condição econômica
vivenciada por eles, dificuldades para plantar, como falta de tratores e colheitadeiras. Alguns,
então, procuraram outras alternativas, como, por exemplo, vendendo ou arrendando a terra, ou
trabalhando para os vizinhos. Percebe-se que os laços afetivos, compromissos familiares,
relações econômicas e outros fatores interferem nessas relações.
Para compreendermos melhor essa dinâmica de construção e formação de um
quilombo, em que alguns aceitam lutar pela causa da demarcação de terras quilombolas e
outros não, ou seja, quando essa causa nem sempre é de todos os do grupo, recorre-se à noção
identitária de Salman Rushdie, que utiliza a expressão “homens traduzidos”, para exprimir a
ideia de homens e mulheres que são simultaneamente plurais e parciais (apud BHABHA,
1998), porque o fato de nem todos se identificarem com uma ou outras causas, não os
desqualifica enquanto grupo.
Ainda, busca-se explicação nas palavras de Milton Santos para pensar a complexidade
de um quilombo:
70
[…] numa mesma área, ainda que as produções predominantes se
assemelham, a heterogeneidade é de regra. Há, na verdade, heterogeneidade
e complementaridade. Desse modo, pode-se falar na existência simultânea de
continuidades e descontinuidades. (SANTOS, 2001, p. 10).
Assim, a partir de agora, pode-se lidar com as diversas identidades que aparecem
dentro de um grupo, neste caso, um quilombo, pois já se sabe que ela não é homogênea. Há
divergências, diferentes interesses. São identidades múltiplas.
Considerando as ideias de Barth, pode-se entender que os integrantes da comunidade
negra que pretende ser quilombola se inserem num contexto cujas características se
diferenciam dos outros moradores do distrito de Maracaju dos Gaúchos. Ou seja, o
comportamento, os costumes, o alimento, a cultura, a religião e outros elementos destacam
elementos constitutivos identitários, por vezes da sua etnicidade. Ou seja:
[...] etnicidade é uma forma de organização social, baseada na atribuição
categorial que classifica as pessoas em função de sua origem suposta, que se
acha validada na interação social pela ativação de signos culturais
socialmente diferenciadores. (BARTH, 1998, p. 141).
Nem todos se sentem pertencendo a um quilombo, mesmo vivendo na comunidade
negra. Já outros, que nem moram nela, querem passar a viver depois de a terra demarcada, se
isso vier a ocorrer. Nesse sentido, bem conceituou Roberto Cardoso de Oliveira: “[…] no que
diz respeito ao processo identitário, que se trata de um espaço marcado pela ambiguidade das
identidades – um espaço que, por sua própria natureza, abre-se à manipulação pelas etnias e
nacionalidades em conjunção”. (OLIVEIRA, 2000, p. 4).
Constata-se, então, uma articulação entre a etnicidade, a nacionalidade e o processo
identitário que faz parte do cotidiano das famílias que compõem a comunidade negra
abordada. O autor citado acima não faz uma análise específica dos quilombolas em seu texto,
no entanto se percebe que os integrantes da comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos são
negros e vivem no Brasil, dentro de um contexto de modernidade. É claro que são
influenciados e sofrem alterações de comportamento, costumes, hábitos, interesses e
significados, mas principalmente o grupo negro em questão sofreu consequências pela cor e
pela dinâmica econômica e social que não está voltada para esse coletivo específico, mas, sim,
o individual e particular, que é característica da modernidade.
Como bem apontou Boaventura de Souza Santos, em “A Construção Multicultural da
Igualdade e da Diferença”, houve uma intenção clara do Estado brasileiro de manter as
71
minorias à margem, seja pela escravidão ou pela falta de políticas públicas voltadas aos ex-
escravos quando a escravidão chegou ao fim:
A regulação social da modernidade capitalista se, por um lado, é constituída
por processos que geram desigualdades e exclusão, por outro, estabelece
mecanismos que permitem controlar ou manter dentro de certos limites esses
processos. (SANTOS, 1999, p.5).
Se eles não fossem afrodescendentes brasileiros, ou seja, se não tivessem todo o
histórico de opressão no passado, característica de quem descende de escravos ou de ex-
escravos, não estariam querendo a demarcação e o título quilombola.
É bem isso o que apontou o ministro da Igualdade Racial do Brasil, Edson Santos, na
apresentação do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial no Brasil (Planapir):
A desigualdade gerada pela escravidão, crime inafiançável e imprescritível,
deverá ser reduzida pelo Estado brasileiro, que é o responsável pelos
interesses coletivos e difusos, através da solidariedade de toda a sociedade.
Não há injustiça nisso. Quando no futuro enxergarmos os negros e negras em
condições de igualdade com todos os demais brasileiros, preenchendo um
vazio de cor que antes existia em determinados espaços sociais,
compreenderemos a grandeza do esforço que hoje fazemos para construir
uma sociedade livre e justa44
.
Já a nacionalidade brasileira dos afrodescendentes lhes permite o acesso às políticas
públicas voltadas para esse segmento. Segundo Nascimento (1985, p. 41):
O quilombo representa um instrumento vigoroso no processo de
reconhecimento da identidade negra brasileira para uma maior auto-
afirmação étnica e nacional. O fato de ter existido como brecha no sistema
em que negros estavam moralmente submetidos projeta uma esperança de
que instituições semelhantes possam atuar no presente ao lado de várias
outras manifestações de reforço à identidade cultural.
Nesse sentido, é pertinente a pesquisa para o conhecimento histórico, bem como
registro de mais um movimento social de luta pelo direito de propriedade, de respeito aos
afrodescendentes e das políticas públicas.
Estudar uma comunidade negra e dar atenção, investigar e ouvir os menos favorecidos
na história significa estar em consonância com Michel Pollak:
Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a
história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como
44 Texto extraído da apresentação do Planapir, 2009, p. 10
72
parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõe à ‘memória
oficial’, no caso a memória nacional. (POLLAK, 1989, p. 4).
Isso significa que dar voz aos negros também é inovar, transgredir padrões dominantes
e preestabelecidos, dentro da própria historiografia e da academia. E quando ouvimos o
“outro lado da história”, ou seja, das minorias45
, estamos construindo identidades e não
somente optando em contar alguns fatos isolados que ocorrem com a elite dominante. Ainda
no raciocínio de Michel Pollak (1989, p. 4):
Essa predileção atual dos pesquisadores pelos conflitos e disputas em
detrimento dos fatores de continuidade e de descontinuidade deve ser
relacionada com as verdadeiras batalhas da memória a que assistimos, e que
assumiram uma amplitude particular nesses últimos quinze anos na Europa.
Michel Pollak (1989, p. 6) ainda complementa afirmando que o silêncio tem razões
bastante complexas, ou seja, o que lembramos ou esquecemos pode ser consequência de um
grande projeto. Nessa linha de raciocínio, em Gregory (2010) também podemos perceber
como as diferentes memórias são construídas e desconstruídas de acordo com as diferentes
intenções. Nesse sentido, explica-se por que, durante tanto tempo, pessoas simples,
representantes do povo, indígenas, mulheres, crianças ou quilombolas não foram
contemplados pela historiografia como foram outros grupos e outras temáticas.
Hugo Lovisolo (1989) destaca que a memória histórica ou coletiva repete-se, e que é
fundamental para o sentimento nacional, para a consciência de classe, étnica ou das minorias,
sendo constitutiva das lutas contra a opressão ou a dominação. Ela ocorre a partir de um
fenômeno, pois a memória esquece e lembra no mesmo movimento, daí o questionamento
sobre a importância dada à história dos brancos e dos negros, o que foi ou é realmente
lembrado ou esquecido. Os negros compõem a maioria da população brasileira, conforme
dados do IPEA (THEODORO, 2008)46
, no entanto, proporcionalmente a esse dado, a
população branca sofre menos violência e tem maior renda per capita, segundo dados do
SUS, em Painel Prevenção e Violências (2008, v.3, p. 20).
A Constituição Federal, em seu artigo 216, estabelece que as identidades, as ações, as
memórias dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira devem ser preservadas.
Para tanto, temos o testemunho de José Maria Gonçalves, um dos moradores da comunidade
45 O termo minorias aqui é empregado para representar os segmentos ou categorias que são excluídas ou
marginalizadas pela sociedade, não necessariamente minorias no número de integrantes. 46
Para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Theodoro, 2008), desde 2007 a população negra superou a
branca no Brasil.
73
quilombola de Maracaju dos Gaúchos, contando sua história para a equipe técnica e
pedagógica da SEED/G.T, Clóvis Moura e Clemilda Santiago47.
Baseado na memória que
guardava, lembra:
Conto a história de nosso bisavô escravo negro chamado José João Paulo,
casado com a negra Maria Joana. O lugar que eles moravam em Minas
Gerais, na cidade de Santo Antonio do Intambé do Serro, aonde eles eram
escravizados pelo sinhô na época da escravidão. Eles eram escravizados no
garimpo, tirano ouro e pedras preciosas, ele e sua esposa naquela época
trabalhavam junto no garimpo e tiveram filhos e filhas. Seus filhos eram:
negra Maria Bernarda, negra Doralina Domingos dos Santos, negra Jorgina
Domingos dos Santos, negro Sebastião Dama Domingos dos Santos, negro
Raimundo Domingo dos Santos. Eles criavam seus filhos com os restos, que
seu Sinhô dava, e às vezes ficavam até sem comer, e às vezes misturavam
terra no meio da comida para render mais porque a comida era pouca, até a
água era retirada da mina, eles tinham que beber água suja para poder até
cozinhar, aí se um negro chegasse perto dessa mina, eles era amarrado e
chicotiados e ficavam preso numa das parte da senzala e ficavam muitos dia,
até sem comer e doentes por causa das chicotadas que eles levavam em
Minas Gerais. Seu lugar de descanso eram chamados de Lapa (caverna ou
casa de pedra). Ali se abrigavam em muitos para poder dormir, acendia um
fogo para poder aquecer do frio, porque não tinham roupa e nem sapato,
andavam descalço, e assim criaram os seus filhos. Como meu avô, Joaquim
Paulo dos Santos que se casou com Maria Zidora dos Santos, seus filhos
chamados: Manoel Ciriaco dos Santos, Sebastião Vicente dos Santos, Ana
Raimunda dos Santos. Na época que eles se casaram, eles não eram mais
escravos, já eram alforriados e trabalhavam para os senhores do retiro nos
garimpo e na lavoura de cana e café. A cana para poder fazer a cachaça, a
rapadura e o melado. Eles vivia disso, trabalhava mais não tinha valor o seu
serviço e moravam também na Lapa (casa de pedra), que nem foram criado,
nos seus costumes, porque não era valorizado e ali criaram seus treis filhos
junto no trabalho da lavoura e os alimentavam. Aí casou um de seus filhos, o
que era meu pai, Manoel Ciriaco dos Santos, com a Maria Olina do primeiro
casamento que teve quatro filhos com sua primeira esposa. Jovelina Ciriaco
dos Santos, Luíza Ciriaco dos Santos, Olegário da Silva, João Loriano dos
Santos.
José Maria faleceu em 2009. Ainda antes de morrer, ele declarou, em entrevista que
consta no Laudo Antropológico da Unioeste48
, que seu nome foi em homenagem a um
fazendeiro, em cuja fazenda seus avôs teriam trabalhado após a alforria. Assim se explica o
porquê de seu sobrenome ser Gonçalves e não Santos.
Essas histórias, memórias e referências a uma identidade que foi sendo construída
estão sendo valorizadas pelas políticas públicas que pretendem registrar e divulgar a cultura
brasileira, constituindo um patrimônio.
47 Disponível em http://quilombosnoparaná.spaceblog.com.br/2/.
48 Processo do Incra nº 54200.0001075/2008-46 (p. 572 e 573)
74
Nesse sentido, constitui patrimônio cultural brasileiro o que pertence ao Brasil. Esses
valores podem ser materiais ou imateriais49
. O patrimônio cultural material do quilombo
abordado pode ser visto como a própria terra, as construções, as plantações. E o patrimônio
cultural imaterial desse quilombo pode ser o valor que eles atribuem à sua cultura, a seus
pensamentos, a sua história, a sua memória. Esse patrimônio cultural imaterial é muito difícil
de ser mensurado, pois não estão em questão valores financeiros, mas o significado que se dá
aos aspectos da vida cotidiana, desde a convivência até pequenas cantigas ensinadas pelos
mais velhos. Não preservar um quilombo, não contar a história de luta de quilombolas ou,
ainda, não contribuir para que as terras quilombolas sejam reconhecidas, seria, no mínimo,
infringir a Constituição Federal.
Eclea Bosi (2003, p. 16), em “O Tempo Vivo da Memória”, afirma que, “[...] quando
se trata da história recente, feliz é o pesquisador que se pode amparar em testemunhos vivos e
reconstituir comportamentos e sensibilidades de uma época”. Nessa linha de pensamento,
acredita-se que, apesar das dificuldades em processar e sistematizar todas as informações
desse chamado “tempo vivo” ou “tempo presente” ao qual a autora citada acima se refere, é
também muito gratificante vivenciar um pouco das emoções que só a realidade atual
proporciona. No caso da demarcação das terras como remanescentes de quilombo em
Maracaju dos Gaúchos, existe o conflito e todo o processo de luta dos integrantes da
comunidade para que a terra seja demarcada, mas não há nenhuma resposta ainda sobre o
desenrolar dessa história. E toda essa expectativa não será vivida por um historiador futuro,
que se debruçará sobre a mesma história, depois que ela já tenha um fim, ou seja, há um certo
privilégio em ser contemporâneo à história, assim como há garantias em olhar para um objeto
de pesquisa que já não é mais vivo.
Esquecer e lembrar, ouvir ou não as minorias, dar atenção aos excluídos ou não, são
opções que se fazem no cotidiano, na revelação das identidades e no escrever a história. Cada
uma dessas opções será carregada de representações, dificuldades, limites e conflitos.
Os inúmeros conflitos gerados a partir do interesse de integrantes da comunidade
negra em ser quilombo remanescente representam mais alguns episódios na vida cotidiana
deles.
49 O Patrimônio Material, segundo o Iphan, é composto por um conjunto de bens culturais, divididos em bens
móveis e bens imóveis. Já o Patrimônio Imaterial são as práticas, representações, expressões e conhecimentos
de um determinado grupo. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br. Acesso em: jan. 2011.
75
3 CONFLITOS E VOZES SOBRE A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS
Neste terceiro capítulo faz-se uma abordagem dos conflitos que afloraram em
Maracaju dos Gaúchos a partir do processo de demarcação das terras quilombolas
remanescentes da Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos. Esses conflitos podem ser
percebidos porque foram evidenciados em relatos, entrevistas, reportagens jornalísticas e
documentos sobre acontecimentos envolvendo o posicionamento das partes.
A partir do desenrolar desses conflitos, surgiram posicionamentos distintos, pois foram
diversos os desdobramentos e as vozes referentes a essa causa e sobre os quilombos de
maneira geral no Brasil.
Dentre essas vozes, estão opiniões da equipe de pesquisadores da Unioeste,
responsáveis pelo Laudo Antropológico, de antropólogos do Incra, de integrantes dessa
comunidade negra, de agricultores, de policiais da Polícia Federal, de representantes da
Unegro, de intelectuais, de integrantes da Seppir, da mídia e de setores e indivíduos da
sociedade em geral.
3.1 CONFLITOS E TENSÕES
Momentos de conflitos são inerentes às relações humanas. Mesmo assim, no entanto,
na localidade de Maracaju dos Gaúchos não se percebiam grandes problemas, até o Incra
iniciar o processo da demarcação das terras quilombolas para a comunidade Manoel Ciríaco
dos Santos.
Conforme reportagem jornalística, “Incra é novamente barrado em Maracaju dos
Gaúchos” (5/11/2009)50
, agricultores da região não permitiam a entrada de funcionários do
Incra na comunidade negra. Em 8 de julho de 2011, o Ministério Público Federal de
Umuarama entrou com processo contra sete agricultores da região de Maracaju dos Gaúchos,
denunciando-os pelo sequestro de dois funcionários do INCRA, baseado na denúncia destes
feita pelo Inquérito Policial nº. 443.2009.0000025.132010.4.04.7017. O Ministério Público
entrou com essa ação meses depois do dia do sequestro, provavelmente porque a denúncia na
50 INCRA é novamente barrado em Maracaju dos Gaúchos. AquiAgora, Marechal Cândido rondon, 05 nov.
2009. Disponível em: <http://www.aquiagora.net/verNoticia.php?nid=3814>. Acesso em: mar. 2010.
76
delegacia passa por vários trâmites até chegar à Promotoria. Em matéria publicada na página
da internet do Ministério Público Federal (PROPRIETÁRIOS, 14.07.2011)51
pode-se
acompanhar o trâmite do processo, a partir da denúncia feita pelos funcionários do Incra.
Na ocasião, segundo o processo já mencionado, por volta das 8h30min da manhã do
dia 30.9.2009, dois funcionários públicos federais do Incra dirigiam-se à comunidade negra
Manoel Ciríaco dos Santos para fazer levantamentos agroambientais para compor laudo
antropológico, quando foram abordados por sete agricultores da região de Maracaju dos
Gaúchos, que fizeram uma espécie de barreira com os seus automóveis, um caminhão e um
trator. Os funcionários do Incra ficaram presos ali por aproximadamente cinco horas. Segundo
o processo judicial, tal oposição deveu-se ao receio dos agricultores da região com a
possibilidade de perderem terras em favor da comunidade negra, caso sejam demarcadas
terras quilombolas. Os agricultores teriam ameaçado jogar fogo no carro dos funcionários do
Incra, caso retornassem.
A partir do início do processo de demarcação das terras quilombolas foi possível
perceber o aflorar das tensões, que foram evidenciadas através de opiniões, de entrevistas,
relatos, reportagens jornalísticas e documentos, como o Laudo Antropológico e Processos
Judiciais envolvendo a comunidade negra de Maracaju dos Gaúchos.
A comunidade negra adotou o nome de Manuel Ciríaco dos Santos em homenagem ao
primeiro morador, pai do atual líder, Adir Rodrigues dos Santos, e teve início em 2006 com o
objetivo de obter certificado pela Fundação dos Palmares (FCP), ligada ao Ministério da
Cultura, e foi eleita para a identificação e delimitação do território pelo governo federal52
. Em
10 de fevereiro de 2007, atendendo a um dos critérios para que o pedido de reconhecimento
de quilombo fosse aceito, a comunidade constituiu-se em Associação Comunidade Negra
Manoel Ciríaco dos Santos (ACONEMA).
Depois que foi feita a Certidão de Reconhecimento da Comunidade Remanescente
Quilombola pela Fundação dos Palmares, a identificação da área de terra tem sido realizada
pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em parceria com a
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), financiada pela Secretaria de
Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI) do Estado do Paraná, para atender a
requisitos do Decreto Federal nº 4.887/2003, o qual determina e regulamenta os
51 Consulta no site: www.prpr.mpf.gov.br/news/14-07-2011. Último acesso em 28/2/2012.
52 A Fundação Cultural Palmares foi criada pela Lei n. 7668, de 22 de agosto de 1988, através da Diretoria de
Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro, ligada à República Federativa do Brasil, Ministério da Cultura,
certifica, em Certidão de Auto-Reconhecimento, que a Comunidade de Manoel Ciríaco dos Santos é
Remanescente das Comunidades dos Quilombos.
77
procedimentos para identificação, reconhecimento, demarcação e titulação de terras ocupadas
pelos quilombolas.
Ocorre que em dezembro de 2010 o convênio com a Unioeste foi interrompido em
razão do laudo antropológico feito pelos antropólogos da universidade, pois, segundo o Incra,
não atendeu às solicitações, sendo esse laudo negativo à demarcação e à titulação da
comunidade como “remanescente de quilombo”53
.
Na primeira fase do trabalho foi feito estudo bibliográfico e em agosto de 2009
começou a emissão das notificações, pelo Incra, aos proprietários rurais localizados nas
proximidades da área a ser considerada quilombola. Foi nessa fase que se intensificaram as
hostilidades e o conflito entre integrantes da comunidade negra e agricultores, percebidos
através da resistência dos agricultores da região na pretensão dos negros em conseguir a
demarcação de suas terras como quilombolas, conforme notícia do dia 5.11.2009: “Nem
mesmo a presença da Polícia Federal intimidou os moradores e servidor do Incra foi impedido
de entrar na comunidade”54
.
Foi a partir desse momento, em que iniciaram os trabalhos do Incra, que ocorreram
inúmeras situações de tensão vivenciadas entre os grupos, incluindo comentários que
revelaram racismo e, principalmente, ameaças de morte, conforme relatos adiante.
Em reportagens jornalísticas, entrevistas e pronunciamentos percebe-se o aflorar das
tensões e dos conflitos, pois é nesses relatos que se evidencia a situação conflituosa. Não que
essas tensões não existissem antes, mas laços de vizinhança e de cordialidade eram
minimamente mantidos entre os moradores, até pelas relações de trabalho que havia. A partir
do início do processo de demarcação das terras quilombolas pelo Incra, o conflito emerge, no
entanto, com intensidade, gerando variados tipos de tensões.
Essas tensões podem ser percebidas também dentro da comunidade negra, quando nem
todos estão compreendendo da mesma maneira os possíveis benefícios da demarcação das
terras. Alguns ficaram desconfiados de estarem sendo enganados pela demarcação. Isso
ocorre entre os agricultores, que têm medo de perder suas terras para os negros e não querem
sair do seu território, mesmo que sejam ressarcidos pelo governo; entre negros e agricultores;
entre uma ex-integrante da comunidade negra e agora atual esposa de agricultor (caso da
enteada do líder Adir, que casou com um filho de agricultor e agora rejeita a família negra);
nos arredores de Maracaju dos Gaúchos, porque até os pesquisadores foram alertados de que a
53 Conforme processo do Incra nº. 54200.0001075/2008-46. (p. 648).
54 INCRA é novamente barrado em Maracaju dos Gaúchos. AquiAgora, Marechal Cândido rondon, 05 nov.
2009. Disponível em: <http://www.aquiagora.net/verNoticia.php?nid=3814>. Acesso em: mar. 2010.
78
situação estava tensa e era perigoso circular por lá; ou, até mesmo, em nível mais global, pois
esse tipo de conflito não ocorreu somente no Estado do Paraná; entre outros.
O conflito gerado pelo início da demarcação fez com que autoridades promovessem
um encontro para discussão e levantamento de possibilidades de resolução consensual. Nessa
reunião estiveram presentes integrantes da comunidade negra, agricultores, representantes de
vários órgãos e instituições, bem como a mídia.
Conforme reportagem jornalística, em dezembro de 200955
, os agricultores da região
de Maracaju dos Gaúchos impediram novamente a entrada de funcionários do Incra, que iriam
ingressar no território pretendido como quilombola, para estudo de uma área que poderia ser
destinada à Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos, caso seja demarcada como
remanescente de quilombo.
Diante do conflito e do processo de demarcação dessas terras como quilombolas,
inúmeros foram os posicionamentos e os discursos proferidos pelas instituições como o
próprio Incra, a Unioeste, a mídia, polícia federal, moradores da região, intelectuais e os
próprios quilombolas, dessa comunidade e de outras.
Segundo a antropóloga do Incra, Juliane Augusta Sadri56
, o estudo da área é
primordial para a validade do procedimento administrativo e do relatório antropológico, que
resultará na proposta de território a ser demarcado como quilombola. Ainda na mesma notícia
jornalística, Rossini Barbosa Lima, chefe da Divisão de Ordenamento Fundiário do Incra,
garante que se houver desapropriação será obedecida toda a legislação vigente, inclusive com
indenização prévia.
Em entrevista57
, o líder da comunidade, Adir Rodrigues dos Santos, afirma que não há
um órgão que possa dizer se eles são ou não quilombolas remanescentes, pois a comunidade
já se reconhece como tal. Nesse caso, o autorreconhecimento deles pautou-se no Decreto
Federal nº 4887/2003, que destaca como um dos critérios a autodefinição do grupo. Em outro
momento da conversa, Adir destaca a importância das reuniões com a Secretaria Especial para
a Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), do Governo Federal, que, além de reforçar a
segurança para os integrantes da comunidade, está acompanhando o processo de demarcação
das terras. Esse líder constrói a sua fala a partir das legislações e interesses nas políticas
públicas.
55 CASO quilimbolas: reunião sobre impasse tem pouco avanço em Guaíra. O Presente, Marechal Cândido
Rondon, 03 dez. 2009. Disponível em: <http://www.opresente.com.br/geral/caso-quilombolas-reuniao-sobre-
impasse-tem-pouco-avanco-2229/>. Acesso em: 28 fev. 2012. 56
Idem 57
HOFFMANN, C. C. Entrevista realizada na comunidade negra. Guaíra, 21 abr. 2010.
79
A segurança para os integrantes da comunidade teve que ser reforçada desde o ano de
2009, quando o líder sofreu ameaças de morte58
e os agricultores impediam a passagem deles,
obstruindo a estrada. Como o município de Guaíra fica na região de fronteira, há um posto
policial da Polícia Federal. Os policiais procuram fazer a mediação do conflito gerado pela
demarcação das terras quilombolas sempre que são chamados ou julgam necessário. Em
entrevista59
um policial desse posto de serviço afirmou que eles não agem com violência,
tentam convencer os agricultores a desbloquearem a estrada com conversas e diálogos.
Em outro episódio de conflito, no dia 20 de novembro de 2009, um ônibus da
prefeitura de Marechal Cândido Rondon saiu da cidade para buscar os integrantes da
comunidade negra em Maracaju dos Gaúchos para se apresentarem em duas escolas estaduais.
Na ocasião, os agricultores, em protesto ao Dia da Consciência Negra60
, fecharam a estrada e
agiram com violência, ameaçando incendiar o ônibus, o motorista e o grupo.
O dia dessa “Consciência Negra” provoca ações nas escolas que visam um trabalho
sobre a cultura dos negros, mas provocam reações contrarias também. No estado do Paraná
esse trabalho do Dia da Consciência negra é cobrado pela Secretaria de Educação.
Segundo o historiador José Bento Rosa da Silva, no artigo “A construção do dia 20 de
novembro”61
,
[...] pensar no dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência
Negra, remete-nos a pensar a história do Brasil, onde os africanos e seus
descendentes foram e são partes indispensáveis no processo de construção da
nação. E é bom lembrar José Bonifácio de Andrada e Silva: “sem cidadãos
não teremos nação”. Então para que o Brasil seja de fato uma nação, é
preciso que estes milhares de quase-cidadãos tornem-se cidadãos, já que a
referida Lei Áurea não teve esta pretensão.
Segundo entrevista com o motorista do ônibus, Ivo62
, foi necessário fazer boletim de
ocorrência na Polícia Federal e, após cinco horas de negociação, o grupo teve que burlar a
barreira. Andaram a pé e entraram no ônibus 2 km distante da comunidade, só assim,
conseguiram viajar de Guaíra até Marechal Cândido Rondon para fazer apresentações de
Capoeira e Samba, conforme combinado com as escolas.
58 Em evento realizado pela Secretaria de Educação do Estado do Paraná (SEED), em Faxinal do Céu, em abril
de 2009, sobre a temática Afro, Adir deu depoimento emocionado sobre as ameaças de morte que vinha
sofrendo. 59
HOFFMANN, C. C. Entrevista realizada na comunidade negra. Guaíra, 20 nov. 2009. 60
Disponível em: <www.sindprevs-sc.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1056:a-
construcao-do-dia-20-de-novembro&catid=60:ultimas-noticias&Itemid=79>. Acesso em: 26 abr. 2011. 61
Idem. 62
HOFFMANN, C. C. Entrevista realizada na comunidade negra. Guaíra, 20 nov. 2009.
80
Depois desse episódio do ônibus e da estrada ter sido bloqueada pelos agricultores, os
policiais federais continuavam com a mesma postura de somente dialogarem e agirem com
cautela, tentando convencer os agricultores a deixar os quilombolas seguirem o percurso que
tinham naquele dia.
Nesse mesmo dia, os professores que aguardavam os integrantes da comunidade negra
para as apresentações nas escolas em Marechal Cândido Rondon/PR. e, quando souberam da
situação complicada que se estabeleceu em Maracaju dos Gaúchos, comentavam, entre outras
opiniões, que:
Será que, se fosse uma situação contrária, em que no ônibus estivessem os
agricultores e fora dele, bloqueando a estrada, estivessem os negros
provocando desordem e fazendo ameaças de morte, de incendiarem o ônibus
e o motorista, a Polícia Federal agiria também com tanta paciência e cautela?
Fiquemos na dúvida.
Na versão dos agricultores, conforme reportagem jornalística63
, os o local pretendido
como território Quilombola é formado por pequenas propriedades, e que nenhum agricultor
entregará seus imóveis. Fizeram ameaças, afirmando que a cada ação haveria uma reação,
pois não são contra os direitos da comunidade, mas “não acreditam ser possível qualquer
projeto social para ser desenvolvido lá”, ou ainda, que “Não acreditamos ser possível que eles
plantem ou trabalhem direito”.
O presidente da Sociedade Rural de Guaíra, Silvanir Rossett, afirma que os integrantes
da comunidade negra não pediram terras aos vizinhos, mas os agricultores estão indignados
com o Incra, afirmando que os servidores não avisaram sobre o início da identificação e
delimitação do território quilombola64
.
Em outra notícia jornalística65
, logo após o episódio do dia 20 de novembro, o
deputado estadual do Paraná, Élio Rusch, que representa os Democratas, posicionou-se
abertamente a favor dos agricultores, afirmando: “Esta região nada tem a ver com possíveis
remanescentes de quilombos, já que a colonização aconteceu quase um século depois da
abolição da escravatura”. Para Rusch o que há é a noção de um vazio demográfico antes da
colonização moderna e de migrações de europeus somente.
63 CASO quilimbolas: reunião sobre impasse tem pouco avanço em Guaíra. O Presente, Marechal Cândido
Rondon, 03 dez. 2009. Disponível em: <http://www.opresente.com.br/geral/caso-quilombolas-reuniao-sobre-
impasse-tem-pouco-avanco-2229/>. Acesso em: 28 fev. 2012. 64
Idem 65
PARA Rusch, caso de Maracaju dos Gaúchos é agressão ao estado de direito. AquiAgora, Marechal Cândido
rondon, 21 nov. 2009. Disponível em: <http://htwww.aquiagora.net/verNoticia.php?nid=4221>. Acesso em: 28
fev. 2012.
81
Segundo o presidente do movimento negro do Paraná (UNEGRO), Denis Denilton
Laurindo66
, que participou da reunião também como representante da Secretaria Estadual de
Educação do Paraná (SEED), que ocorreu dia 19/2/2010 em Curitiba, o encontro foi
importante porque sensibilizou várias instituições que ainda não dimensionavam a gravidade
do conflito. Relatou que, durante o velório do irmão do líder quilombola, ocorrido dia
22/12/2009, agricultores soltaram fogos de artifício para comemorar, além de impedirem
constantemente a entrada das cestas básicas para as famílias quilombolas.
O presidente da UNEGRO destacou também que a ideia seria de que, ainda em março
de 2010, uma comissão do governo federal, juntamente com o governo do estado e sociedade
civil organizada fosse até Guaíra explicitar a real necessidade de se obedecer à lei sob pena de
sanções. Isto se daria por meio de uma convocação do Incra para a Prefeitura, Câmara
Municipal e sociedade rural.
Conforme declaração do presidente da UNEGRO, que também é funcionário da
SEED, os representantes da Fundação Cultural Palmares solicitaram que funcionários da
mesma instituição monitorassem as crianças negras, integrantes da comunidade, que estudam
no entorno desta e também no município de Guaíra. E que o líder Adir ficou muito
emocionado ao relatar as pressões sofridas e o assédio moral e psicológico que todos da
comunidade vêm sofrendo.
Em abril de 2010, atendendo às solicitações da Fundação Cultural Palmares,
aconteceu, dentro da Comunidade Negra, uma reunião entre os integrantes da comunidade
negra com representantes da Secretaria Estadual de Educação do Estado do Paraná, do
Movimento Negro Unegro, representantes do governo municipal de Guaíra, representantes do
Fórum das Relações Étnico-Raciais do Estado do Paraná, representantes da Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e amigos dos integrantes da
comunidade que se solidarizaram com as situações de tensão que eles vivenciam. Nesse
encontro foram comentados alguns dos episódios conflituosos e feitos relatos das dificuldades
que a comunidade enfrenta, dentre muitas delas destacou-se a dificuldade de geração de
renda, o desemprego e o racismo. Foram registrados os depoimentos em Livro Ata da
comunidade negra.
Depois desse encontro, a comunidade recebeu, por alguns dias, a visita e o
acompanhamento de um representante da SEED e outro da SEPPIR (este, representante da
UNEGRO também). Respectivamente, Denis Laurindo e Luiz Henrique Fontes conviveram
66 HOFFMANN, C. C. Entrevista realizada na comunidade negra. Guairá, 20 fev. 2010.
82
na comunidade para registrar e passar informações para os órgãos do governo. Uma situação
que foi destacada por eles67
, depois dessa convivência, foi a grande dificuldade das crianças,
que são maltratadas pelas crianças dos agricultores no percurso entre a comunidade e a escola,
no carro do transporte escolar, porque são hostilizadas e segregadas pelas crianças brancas
dentro do ônibus. Diante desse fato, procuraram a Secretaria de Transporte do município de
Guaíra para conversar.
Percebe-se que o conflito fica evidente a partir dos relatos e das reportagens
jornalísticas divulgadas na região. Nesse sentido, é importante compreender o papel da mídia,
a qual se manifesta através do discurso.
Em nenhum momento houve um posicionamento explícito da mídia contra a
demarcação das terras quilombolas em Maracaju dos Gaúchos, mas quando algumas palavras
são omitidas intencionalmente, há sim interesses defendidos. Bem como afirmou Jean Ziegler,
em documentário feito em 2008 para a televisão espanhola, sobre “A ordem criminosa do
Mundo”:
De nenhum modo devemos permitir que as grandes organizações de
comunicações nos intimidem, nem as fábricas das teorias neoliberais das
grandes corporações, pois todas as corporações se ocupam, primeiro, de
controlar as consciências, de controlar como podem a imprensa e o debate
público. (A ORDEM CRIMINOSA DO MUNDO, Espanha, 2008).
Nesse documentário, os autores falam da globalização e da atual ordem capitalista, não
exatamente de racismo e de demarcação de terras, no entanto destacam que há uma
mentalidade das pessoas que faz perpetuar o que está dado, e é isso que se quer combater. Há
ainda uma grande resistência às mudanças, principalmente se essas mudanças atendem a
reivindicações de minorias e desfavorecem os que, historicamente, levaram vantagens, nesse
caso, brancos e agricultores.
Não foram muitas as matérias e notícias publicadas na região Costa Oeste do Paraná
sobre o conflito gerado pela demarcação das terras quilombolas da Comunidade
Remanescente Manoel Ciríaco dos Santos. Sobre as ameaças de morte por parte dos
agricultores para o líder quilombola, inclusive com data marcada para acontecer o
assassinato68
, a mídia não publicou nenhuma nota. Há indícios, segundo relatos, de que houve
67 HOFFMANN, C. C. Entrevista realizada na comunidade negra. Guairá, jul. 2010.
68 O Líder da comunidade negra declarou que recebeu um bilhete em que estava escrito que seria assassinado em
13 de janeiro de 2010. Essa declaração foi feita em Faxinal do Céu, em curso da SEED, em abril de 2009,
evento esse em que a autora desta dissertação estava presente.
83
certo zelo por parte da mídia em denunciar os agricultores que estavam cada vez mais
agressivos no auge do conflito.
Nas matérias publicadas, destaca-se que os jornalistas citavam nomes de políticos que
se posicionavam contra os integrantes da comunidade negra, notícias sobre as reuniões,
citando nomes de antropólogos, agricultores, advogados ou promotores. Mas a citação de
nomes dos integrantes da comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos restringia-se, e ainda
se restringe enquanto grupo, pertencentes à categoria “os quilombolas”, não apontando nomes
próprios, como se os mesmos não os tivessem.
Nem mesmo foi apontado o nome completo do líder da comunidade negra, Adir
Rodrigues dos Santos, na reportagem do Jornal O Presente, em dezembro de 2009,
contrastando com os nomes completos do promotor de justiça, do representante dos
agricultores rurais, nome da antropóloga do Incra, entre outros. Esse líder da comunidade
negra, Adir, que representa seu grupo não foi contemplado pela mídia para ver seu nome
completo no noticiário. Vale destacar que, por trás de todo discurso, há uma intenção clara,
específica e objetiva, bem como podemos observar em Foucault:
[...] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar
seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade [...]
(FOUCAULT, 2009, p. 8-9).
Nesse sentido, a própria mídia gerou mais um tipo de tensão, a partir do conflito de
terras provocado pela demarcação do território, como quilombola, em análise. Enquanto parte
das reportagens jornalísticas omitiam a gravidade do conflito, ou o nome dos integrantes da
comunidade negra, a mesma estava, ainda que não intencionalmente, mantendo os já
oprimidos à margem.
Fazendo uma análise do papel da mídia, das estruturas da sociedade e de como os
poderes permeiam as relações, determinando os caminhos da história, percebe-se que existem
símbolos dentro de um determinado contexto. Segundo Bourdieu (2007), esses símbolos
podem compor um jogo de distinções simbólicas, assim como existem diferentes classes
sociais, diferentes valores, diferentes moedas. É a chamada “Economia das Trocas
Simbólicas”, pelo autor, conforme citação abaixo:
O jogo das distinções simbólicas se realiza, portanto, no interior dos limites
estreitos definidos pelas coerções econômicas e, por esse motivo, permanece
um jogo de privilégios das sociedades privilegiadas, que podem se dar ao
84
luxo de dissimular as oposições de fato, isto é, de força, sob as oposições de
sentido. (BOURDIEU, 2007, p. 18).
Nesse “jogo” a que Bourdieu se refere, atitudes, práticas, grupos de poder e de
decisão, níveis de discurso e estruturação de imagens informam o campo ideológico de uma
dada cultura. Por isso é necessário o estudo das simbolizações. No caso do estudo da
comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos, revelam-se os diferentes interesses que
permeiam as relações dos envolvidos no processo de demarcação das terras.
3.2 A COMUNIDADE NEGRA E O LAUDO ANTROPOLÓGICO PRODUZIDO PELA
EQUIPE DA UNIOESTE
A Seti firmou convênio com a Unioeste para trabalhar no processo de demarcação das
terras como quilombo remanescente da comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos. Uma
equipe de professores e de alunos ficou responsável para elaborarem, a partir das pesquisas e
dos trabalhos de campo, o Laudo Antropológico.
Em entrevista69
feita com o antropólogo professor Antonio Pontes Filho, da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), coordenador dos trabalhos para a
elaboração do Laudo Antropológico da Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos, o
mesmo declarou que o Laudo Antropológico havia sido entregue ao Incra. O professor
adiantou que a comunidade de Maracaju dos Gaúchos não atendia aos critérios para ser
quilombola e, na sua visão, eles não seriam, então, quilombolas, referindo-se a eles como
“Família Santos”70
.
Posteriormente à entrevista com o professor antropólogo, entrando em contato por e-
mail para conseguir mais algumas informações, solicitou-se cópia do Laudo Antropológico.
Em 21/2/2011 veio resposta do professor Antônio Pontes Filho, também por e-mail, no qual o
professor afirmava que o Laudo não poderia ser visto. Procurou-se, então, o contato com o
Incra de Curitiba, inicialmente via telefone, depois através de solicitação oficializada através
de Requerimento encaminhado via correios. A partir disso, houve autorização para a cópia de
parte do Processo nº. 54200.0001075/2008-46 referente ao Reconhecimento e Titulação de
69 HOFFMANN, C. C. Entrevista realizada na comunidade negra. Guairá, jul. 2010.
70 Em dezembro de 2010, o Incra contesta o trabalho da Unioeste, mesmo depois de refeito.
85
áreas de terras da Comunidade Manoel Ciríaco dos Santos, bem como do Laudo
Antropológico feito pela Unioeste.
Na cópia do processo do Incra é possível observar que, depois de o Laudo
Antropológico produzido pelos professores antropólogos da Unioeste ter sido entregue ao
Incra, antropólogos do Incra, de Brasília, exigiram que o documento fosse refeito porque
estaria incompleto e com alguns pontos falhos.
Na oportunidade de ser refeito, os antropólogos da Unioeste decidiram deixá-lo com a
mesma estrutura, posicionando-se contra a demarcação das terras de Maracaju dos Gaúchos
como remanescentes de quilombo, mesmo depois de terem sido alertados a reformular os
pontos ditos pelo Incra como falhos, conforme havia sido acordado em reunião com o Pró-
Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Unioeste e representantes do Incra71
.
Seguem algumas afirmações que constam no Laudo Antropológico feito pelos
antropólogos da Unioeste: “[...] sobre a “auto-identificada comunidade quilombola” (p. 479 e
outras). Em vários momentos, os membros da equipe da Unioeste, responsáveis pelo laudo,
referem-se aos integrantes da comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos como “auto-
denominados” à frente de suas argumentações. Percebe-se que há certa ironia nessa
expressão, uma vez que, ao longo do Laudo, eles se posicionam contra a titulação quilombola
e demarcação de suas terras.
[...] como o Decreto lei [referindo-se ao 4887/2003] determina/reconhece a
identidade como a base dos critérios de auto-atribuição, resta-nos
percebermos a existência ou não de uma trajetória histórica própria dos
grupos autodenominados quilombolas, verificando ainda a existência ou não
de relações territoriais específicas, pois a própria identidade quilombola
enquanto marco legal, passa pela construção da territorialização étnica.
(Processo nº. 54200.0001075/2008-46, p. 490).
No documento citado acima, os membros da equipe da Unioeste afirmam que não
reconhecem as relações territoriais específicas de um quilombo neste local. Ignoram os
depoimentos sobre a prática da Umbanda72
, roda de samba, capoeira, símbolos e
representações que constam na parede do galpão onde integrantes da comunidade realizam
suas rezas, reuniões, celebrações e festas73
. O altar composto por símbolos religiosos,
71 Conforme documentos no processo nº. 54200.0001075/2008-46, os antropólogos da Unioeste não
compareceram na reunião. 72
Algumas vezes por mês integrantes da comunidade frequentam a Associação Espírita Reino de Omolum
Obaluaê, em Terra Roxa/PR, conforme Laudo Antropológico feito pela Unioeste. 73
No segundo capítulo dessa dissertação há uma foto que mostra o altar citado.
86
inclusive da Umbanda, é composto por plantas, imagens de santos, água e a própria
distribuição deles está repleta de significados, conforme entrevista feita com Dona Geralda74
.
Em outro momento desse Laudo Antropológico há um julgamento sobre o relato de
um integrante da comunidade quilombola, quando este conta um pouco da história de seus
antepassados e do processo de escravidão. Tal depoimento é utilizado contra a comunidade
como uma espécie de “prova” contra eles, ou foi visto como um empecilho pelos
antropólogos da Unioeste. Estes não ficam satisfeitos em constatar a opressão histórica vivida
por essa família ao longo de tantas gerações, com a escravidão, e queriam, como segue
citação deles abaixo, que os mesmos falassem em “quilombos” para aprovar a demarcação
das terras, sendo que o próprio Decreto Federal nº. 4887/2003 confirma que o critério para ser
terra remanescente de quilombo é a autoidentificação do grupo. Em nenhum momento os
integrantes pretendentes a essa titulação precisam ser descendentes de quilombolas, ou de
saber o que isso significa. Como se o depoimento de José Maria desabonasse o pedido de
demarcação das terras quilombolas.
As memórias de José Maria, conforme depoimento acima, remontam à
escravidão e ao período quando seus avós foram alforriados, não existindo
referênciais a reminiscências de um quilombo e sim reminiscências a
escravidão. (Processo nº. 54200.0001075/2008-46, p. 573).
Constam neste Laudo contradições, pois, em outro momento, eles negam a memória
sobre escravidão e a recordação dita por José Maria75
, conforme segue afirmação:
Quanto a uma possível memória da escravidão eles têm para si serem
descendentes de escravos, postos serem ‘pretos’, ‘negros’, porém não há
recordação presente sobre parentes que tenham sido escravos, afora a fala de
José Maria acima referida. (Processo nº. 54200.0001075/2008-46, p. 597).
Ou ainda:
[...] se constatou que, com relação à presunção de ancestralidade da família
Santos, primeiro, não há nenhuma memória sobre escravismo na região em
que vivem hoje; segundo, que eles mesmos não descrevem esta
ancestralidade como sendo do local onde estão, pois se dizem filhos de
mineiros (e, por exemplo, o mineirismo, a mineralidade são demonstrados
pela culinária que praticam, pelo que cultivam em suas hortas, entre outros
aspectos). (Processo nº. 54200.0001075/2008-46, p.597).
74 HOFFMANN, C. C. Entrevista realizada na comunidade negra. Guairá, 20 abr. 2010.
75 O relato na íntegra sobre a escravidão está no segundo capítulo desta dissertação.
87
Isso pressupõe a determinação de que os quilombos tivessem que continuar existindo
exatamente na região do escravismo. Ou se características de mineiros eliminassem
características afrodescendentes ou vice-versa. Nenhum desses critérios utilizados pelos
antropólogos da Unioeste para impedir que os integrantes da comunidade negra Manoel
Ciríaco dos Santos consigam a demarcação de suas terras, pois isso já foi estipulado pela
Fundação Cultural dos Palmares ou mesmo consta como critério no Decreto Federal nº.
4887/2003. Tanto a Fundação Cultural dos Palmares, através das certidões de Auto
Reconhecimento, como o Decreto Federal nº 4887/2003 estabelecem os critérios que do que é
ou não remanescente de quilombolas no Brasil, e nenhum outro órgão mais, pesquisador ou
universidade recebeu essa atribuição do governo federal.
Em outro momento desse Laudo Antropológico, os membros da equipe da Unioeste
afirmam que se trata de uma família, negando a existência de uma comunidade, como
podemos observar na citação:
Com esse quadro genealógico se buscou mapear as origens históricas da
família Santos, mas, também, evidenciar os critérios de inclusão e exclusão,
demonstrando que sua visão é enquanto uma família e não como uma
Comunidade, pois as pessoas que são consideradas membros da auto
denominada Comunidade Negra Manoel Ciriaco dos Santos são herdeiros do
Seu Manoel Ciriaco dos Santos, e ainda mais, como já citado anteriormente,
aqueles filhos que não venderam o seu quinhão hereditário. (Processo nº.
54200.0001075/2008-46, p. 576).
Para os integrantes da Comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos, eles não são
apenas uma família, mas sim uma comunidade, e isso também está representado
documentalmente, para eles, desde que fundaram a ACONEMA.
Além disso, houve algumas situações, durante a pesquisa para esta dissertação de
mestrado, que chamaram a atenção. Em alguns momentos em que se precisava visitar a
comunidade para tirar mais algumas fotos, esclarecer dúvidas, abria-se contato por e-mail ou
por telefone com o líder Adir Rodrigues dos Santos. Em uma dessas situações não foi possível
visitá-los e remarcava-se a data pois ocorreu de terem uma festa de casamento em outra
cidade, e todos da comunidade não estariam em casa, ou seja, todos integrantes da
comunidade negra, aproximadamente quarenta e cinco pessoas, sairiam de casa, confirmando
uma característica de que não são apenas uma família e, sim, comunidade.
Em outro momento, tinha nascido uma criança fora da comunidade e todos os
integrantes da comunidade negra iriam até a maternidade e não estariam disponíveis. Ainda,
em outra situação, quando perguntado à esposa do líder da comunidade negra, Adir Rodrigues
88
dos Santos, se acaso pudéssemos fazer um almoço de confraternização, entre a família da
autora da dissertação e a família dela, pensando em retribuir pelas gentilezas das entrevistas,
pelo fornecimento de dados e documentos para a pesquisa, perguntou-se para quantas pessoas
deveríamos nos programar, pensando que seria para o líder, sua esposa e seus três filhos. Veio
a surpresa. A resposta foi de que seriam aproximadamente quarenta e cinco pessoas. Nesse
sentido, percebe-se, pela fala dos integrantes da comunidade negra, que a noção de família
deles está atrelada à noção de comunidade, pois onde um vai, vão todos. Quando tem almoço,
tem que ser para todos.
Os membros da equipe da Unioeste afirmam nesse seu Laudo:
De uma maneira geral, ‘as teorias da etnicidade acentuam o fato de que o nós
constrói-se em oposição ao eles’ (POUTIGNAT et al., 1998, p.122). Esse
aspecto relacional é fundamental nas teorias interacionistas, para as quais a
identidade não é algo fixo e imutável, pelo contrário, é relacional, ou seja, é
construída nas relações que a pessoa estabelece ao longo de sua vida. (nº.
54200.0001075/2008-46, p. 579).
Nessa citação, compreende-se que eles reconhecem que as identidades não são fixas
para sempre. Há variações de comportamento, de significados e valores. Além disso, a
identidade constrói-se a partir das relações que as pessoas estabelecem durante suas vidas.
Então, compreende-se que é nesse raciocínio que seguem os integrantes da comunidade negra
em questão. Afirmam-se como remanescentes de quilombolas, pois eles estão trabalhando
para conseguir a titulação e a demarcação de suas terras. E a Fundação Cultural Palmares
atribuiu-lhes a Certidão de Auto Reconhecimento, baseada no Decreto Federal nº. 4887/2003.
Na página 581, do processo do Incra nº. 54200.0001075/2008-46, ainda na parte deste
Laudo Antropológico haja uma espécie de “denúncia” feita pela equipe da Unioeste, quando
esses querem descaracterizar a comunidade e seus símbolos artesanais, afirmando que o
artesanato que há na comunidade foi “aprendido” e que o mesmo não é característica própria
deles, conforme a citação que segue: “[...] a participação de membros da auto denominada
comunidade Negra em cursos de artesanato que pudessem lembrar hábitos de seus
antepassados [...]” (Processo nº. 54200.0001075/2008-46, p. 581).
E ainda: “Apesar de todo esse esforço de construção de uma nova identidade se
entende que a família Santos continua a se caracterizar enquanto uma família e não como um
grupo étnico [...]” (Processo nº. 54200.0001075/2008-46, p. 587).
89
Afirmam que a comunidade já tinha uma identidade de grupo construída antes mesmo
da pretensão em titulação quilombola, contendo características próprias que os diferenciavam
dos outros habitantes de Maracaju dos Gaúchos. Conforme citação abaixo:
[...] a construção dessa identidade tem uma origem, tem uma data, tem um
direcionamento, procura incutir novos valores, uma nova visão de mundo
aos membros da auto denominada comunidade Negra Manoel Ciriaco dos
Santos, mas é evidente o desconhecimento pela maioria dos seus membros
dos sinais diacríticos que deveriam os diferenciar dos seus vizinhos, ficando
evidente sim os sinais diacríticos que os igualam no seu modo de ser ao
modo de ser dos demais moradores da comunidade de Maracaju dos
Gaúchos. (Processo nº. 54200.0001075/2008-46, p. 591).
Ao mesmo tempo que afirmam que não há diferença entre os agricultores e os
quilombolas para que os mesmos não consigam a demarcação de suas terras como
remanescentes de quilombos, ao mesmo tempo eles entrevistam os integrantes da comunidade
negra e percebem que eles sofrem preconceito, pois são constantemente chamados de apelidos
vexatórios, conforme citação:
[...] a equipe de pesquisa percebeu a existência da discriminação de pessoas
do entorno com relação aos membros da auto denominada comunidade
Negra, pois é recorrente surgir nessas falas termos como ‘morenos’, ‘pretos’,
‘preguiçosos’, ‘acomodados’, ‘maus pagadores’. (Processo nº.
54200.0001075/2008-46, p. 590).
Acredita-se, nesse caso, que só pode haver discriminação quando se percebe alguma
diferença. Nesse sentido, o simples fato de haver apelidos pejorativos para os integrantes da
comunidade negra revela as distinções entre os grupos. Os integrantes da comunidade negra
também têm denominações próprias para referirem-se aos seus vizinhos, chamando-os de
“italianos”, “alemães”, “ratos brancos”, conforme constatação dos próprios antropólogos, que
consta no laudo antropológico76
.
Além disso, membros da equipe da Unioeste não destacam a existência do conflito
quando discorrem sobre a história dessa comunidade, e fazem questão de afirmar a
cordialidade entre os vizinhos quilombolas e italianos, conforme podemos perceber na
citação:
Pode-se constatar, no trabalho de campo na região da comunidade de
Maracaju dos Gaúchos, que, apesar de seus vizinhos serem, em sua maioria,
assinalados etnicamente como italianos, e de algumas manifestações de
preconceito por parte destes em relação à família Santos, tanto os ‘italianos’
76 Processo nº. 54200.0001075/2008-4, p. 589.
90
como os ‘morenos’ sempre mantiveram relações cordiais de vizinhança.
(Processo nº. 54200.0001075/2008-46, p. 597).
Durante a fase de trabalho de campo feito pela equipe da Unioeste, já havia o conflito,
inclusive o próprio Incra solicitou que a equipe juntamente com os professores da Unioeste se
afastasse um pouco das atividades de campo e evitasse ir até a comunidade, pois as ameaças
de morte que partiam por parte dos agricultores eram constantes e era perigoso qualquer
pessoa circular pela região de demarcação do território quilombola. Mesmo alertados, os
antropólogos dizem que o conflito de terras não existia, pois eles “sempre mantiveram
relações cordiais de vizinhança [...]”. (Processo nº. 54200.0001075/2008-46, p. 597).
Com relação ao conflito, o próprio Laudo Antropológico feito pela equipe da Unioeste
retrata a existência do conflito, conforme lista de atividades realizadas pela equipe de
pesquisa, na qual se pode perceber uma referência sobre o conflito gerado pelas atividades
para a demarcação de terras feita pelo Incra:
[…] Reunião com funcionária do INCRA, Juliane Sandri, na cidade de
Guaíra, em 30/09/2009, dia em que houve o bloqueio da estrada na
comunidade de Maracaju dos Gaúchos, e a perda por parte dos funcionários
do INCRA do mapa do território preliminar (o qual foi proposto pela
ACONEMA). Este mapa estava de posse de integrantes do INCRA – sendo
que o território proposto pela ACONEMA era, até então, apenas de
conhecimento de seus associados, da equipe de pesquisa, e do INCRA. Tal
manifestação foi amplamente noticiado pela mídia de nossa região, o que
tornou público na região oeste, o território pretendido pela ACONEMA,
gerando inúmeros transtornos para todos os envolvidos. Além do que neste
mesmo período o INCRA nos determinou, peremptoriamente, o
cancelamento temporário dos nossos trabalhos de campo. (Processo nº.
54200.0001075/2008-46, p.508).
Além disso, ainda há referência, nesse Laudo Antropológico77
, à Nota Pública que o
Incra teve que publicar para esclarecer o real território pretendido como quilombola, pois teria
ocorrido um episódio de perda de um mapa, fato esse que acirrou ainda mais o conflito de
terras, pois o mapa teria sido, depois de roubado, mal interpretado e a notícia teria circulado
de forma equivocada, como se o território quilombola fosse muito maior do que o real
pretendido, causando indignação e medo por parte dos agricultores, provocando ainda mais
tensões.
Concluído o Laudo Antropológico, a equipe de trabalho da Unioeste destaca:
77 Processo nº. 54200.0001075/2008-46 (p. 596).
91
E tomando-se a bibliografia referida a questão quilombola, de quilombos e
terras, igualmente não há como se sustentar em argumentos plausíveis, sejam
acadêmicos e/ou etnográficos, a reivindicação feita pela família Santos, auto
denominada comunidade Negra. (Processo nº. 54200.0001075/2008-46,
p.598).
Ou seja, afirmaram que não se constata nesse território nenhum sentido diferente dado
ao território ocupado por cada agricultor da região. Esse Laudo Antropológico deixa
transparecer que todos os moradores de Maracaju dos Gaúchos são semelhantes, tanto negros
como brancos, não concordando, então, com a necessidade de demarcação das terras como
sendo de quilombolas remanescentes. Reafirmam, desse modo, como a todo momento ao
longo da descrição do Laudo Antropológico, que eles são “auto denominados” comunidade
negra, como se assim não o fossem.
Ficou claro e evidente para a equipe de pesquisa a inexistência de um
território quilombola, seja ele demarcado por fronteiras geográficas e/ou
fronteiras socioculturais. Ressalvando que, como cabe ao trabalho
antropológico, partiu-se da categoria do auto-reconhecimento. Desta forma,
ao analisar os dados de campo, cruzando-os com todas as outras fontes
levantadas na pesquisa, de modo nenhum se viu ou vê a existência de um
território quilombola, a ser indicado à família Santos pela equipe de pesquisa
neste Relatório. (Processo nº. 54200.0001075/2008-46, p. 600).
A partir da análise desse Laudo antropológico feito pelos antropólogos da Unioeste,
percebe-se que as fronteiras geográficas e socioculturais que separam os grupos em análise,
não foram evidenciadas, conforme citação acima, que “de modo nenhum se vê a existência de
um território quilombola”, como se todos, inclusive os vizinhos brancos, os agricultores
descendentes de italianos também cultuassem a Umbanda, praticassem a capoeira, comessem
“sarapatel”, guardassem símbolos afro e morassem com as casas distribuídas em forma de
círculo ou, então, que organizassem suas vidas da mesma forma como os integrantes da
comunidade quilombola em questão organizam. E, ainda, vale destacar que são constantes as
atitudes de preconceito e de discriminação, que, por si só, representam a grande diferença
sociocultural entre agricultores brancos e os integrantes da comunidade negra.
E ainda:
Por fim, a equipe de pesquisa esclarece que o que se viu, constatou e
verificou foram somente dois lotes rurais, de números 186 A, e 186
(pertencentes por herança aos filhos de seu Manoel C. Santos) assim como
os lotes rurais de seus vizinhos, como constatado no mapa da Gleba nº. 4-A,
colônia ‘C’, Serra Maracajú, não havendo distinção entre eles, portanto não
há qualquer territorialidade quilombola possível na região da comunidade de
Maracajú dos Gaúchos. (Processo nº. 54200.0001075/2008-46, p. 601).
92
Nesse trecho do Laudo Antropológico há uma referência ao fato de os lotes terem sido
herdados, ou seja, o primeiro morador, Manoel Ciríaco dos Santos, comprou os lotes que,
depois de sua morte, foram repassados para seus filhos e netos, respectivamente.
Ocorre que a demarcação das terras quilombolas, segundo o Decreto Federal nº.
4887/2003, não está atrelada a uma propriedade quilombola, em sua forma original
especificamente. Ou seja, o território, para ser demarcado como remanescente de quilombo,
precisa ter características próprias, não necessariamente ter sido, no passado, um quilombo.
Conforme consta em relatório feito pelo Grupo de Trabalho Clóvis Moura:
As comunidades de remanescentes de quilombos estão em áreas que trazem
consigo as marcas da história da resistência negra à escravidão no Brasil.
Hoje, as comunidades quilombolas caracterizam-se pela especificidade
cultural, com o reconhecimento da ancestralidade negra, que as distingue
como comunidade negra de quilombo de outras formações socioeconômicas
do território nacional. (PARANÁ, 2008, p.49).
Quando Manoel Ciríaco dos Santos chegou em Maracaju dos Gaúchos, não havia mais
a escravidão, pois se trata da década de 1960, século XX, vigorando o sistema capitalista.
Seria muita ingenuidade querer que essa região ainda tivesse escravos vivos.
Segundo relatos, todo o histórico dessa família, hoje comunidade, revela a opressão
que sofreram seus membros afrodescendentes. E é exatamente para essas pessoas que se fez a
política pública de reconhecimento dos territórios remanescentes de quilombos, pois eles são
os herdeiros da escravidão e não, necessariamente, ex-escravos.
3.3 A VERSÃO DO INCRA
Feito o laudo antropológico pela equipe da Unioeste, este foi encaminhado ao Incra. O
Incra posicionou-se diante da análise da equipe da Unioeste e contestou.
Segundo o Incra, a falha do Laudo Antropológico produzido pela equipe da Unioeste
foi utilizar baixa qualidade técnica e antropológica, conforme documento78
. Além disso, o
antropólogo do Incra, Roberto Alves de Almeida, manifesta-se com os juízos de valor
inseridos no texto, conforme parecer do Incra nessa fase do processo. Seguem citações que
78 Processo nº. 54200.0001075/2008-46, p. 643 - 646.
93
justificam o rompimento do convênio com a Unioeste. Referindo-se ao laudo antropológico
feito pela equipe da Unioeste, Almeida diz que o texto da universidade:
[...] manteve toda a argumentação contrária ao processo de construção
identitária do grupo, apresentando este processo muito mais como uma
tentativa de manipulação do que como um processo social em curso. Além
disso, concluem que não há qualquer diferenciação entre os dois grupos, a
comunidade quilombola e a comunidade italiana do entorno. O interessante é
que ao descrever os habitantes deste entorno enquanto ‘italianos’ isto é
tomado como um dado a priori. Não vemos por parte dos autores qualquer
discussão ou questionamento sobre esta identidade e nem do processo de sua
construção, muito diferente do que eles se propõem a fazer com os
quilombolas. (Processo nº. 54200.0001075/2008-46, p. 648).
Nesse texto, ao final do processo do Incra, podemos perceber a indignação dos
antropólogos do Incra, do governo federal, pois apontam que a equipe da Unioeste, através
dos antropólogos e das alunas, não acreditam na identidade quilombola remanescente da
comunidade negra em questão.
Além disso, o antropólogo do Incra afirmou que os membros da equipe da Unioeste
foram “manipuladores de informações”, ao invés de perceberem o processo social que está
ocorrendo na comunidade. Há uma surpresa em torno do fato de que não foi apontada
diferenciação entre os grupos de negros, pretendentes a quilombolas remanescentes, e os
italianos, conforme consta:
[...] o processo histórico da comunidade que constitui a sua territorialidade já
na área, desde sua chegada até a atualidade, passando pelos conflitos com a
comunidade envolvente e pela perda territorial, permanece total e
completamente ausente do relatório. Apesar de ter sido levantado Parecer 1
que a ausência de descrição e análise do conflito recente que evidencia as
feridas e o contraste entre ambos os grupos sociais foi uma falha gritante do
relatório original, este tópico não foi novamente incluído pelos professores
da UNIOESTE no presente relatório. (Processo nº. 54200.0001075/2008-46,
p. 645).
Nesse ponto, é percebido outro apontamento feito pelos antropólogos do Incra com
relação ao Laudo Antropológico feito pela equipe da Unioeste: a negação da existência do
conflito provocado pelo processo de demarcação das terras. Este fato teria sido simplesmente
ignorado pela equipe da Unioeste, quando os pesquisadores insistiram em colocar no Laudo
Antropológico que os dois grupos (italianos e negros) eram vizinhos comuns, não havendo
distinção entre eles, que “não houve segregação no momento da colonização”79
e existindo até
79 Processo nº 54200.0001075/2008-46, p. 546.
94
casamento entre filhos de integrantes da comunidade negra e filhos de descendentes de
italianos.
Sobre esse casamento comentado no Laudo Antropológico feito pela equipe da
Unioeste e visto como exemplo de “boas relações de vizinhança” sabe-se, através de
entrevista com Solange80
, que, depois que a enteada do líder negro Adir, filha da sua esposa
Solange, casou-se com o filho de um agricultor da região, descendente de italianos, a mesma
rompeu com os integrantes da comunidade negra, condenando a luta do grupo para conseguir
a demarcação de terras. Inclusive, teria ido até a comunidade, agredindo verbalmente sua mãe
por causa disso, tentando defender os interesses dos agricultores e de sua “nova” família, os
descendentes de italianos.
O antropólogo do Incra ainda aponta outras falhas no Laudo Antropológico feito pela
equipe da Unioeste:
[...] falhando o relatório em descrever a trajetória histórica da comunidade
que dá sentido à construção de sua territorialidade, a organização social da
comunidade, a forma como esta se relaciona com seu território e o meio
ambiente nele presente, nomeando-o e fazendo uso de seus vários
elementos81
.
Segundo o antropólogo do Incra, a equipe da Unioeste não foi sensível para perceber
os diferentes significados dados pelos integrantes da comunidade negra ao território, à
religião, à cultura, entre outros. Tampouco valorizou a história e a memória dos quilombolas
quando ouviram os vários relatos, desde a opressão histórica vivida pelos antepassados por
causa da escravidão, até os dias atuais, quando são vítimas de preconceito racial, dificuldades
econômicas enfrentadas pela falta de terras para plantar e, ainda, a demora pela demarcação
de suas terras, conforme garantem as atuais políticas públicas do Estado brasileiro, na teoria.
Conforme consta no processo a partir da página 644 do processo do Incra:
[...] os professores optaram por manter sua posição de que não existe
território quilombola a ser delimitado. Mesmo que estes não consigam
perceber a territorialidade do grupo, talvez, devido à péssima etnografia que
executaram na área, nada os impediria de simplesmente reproduzir a
proposta do grupo. Na medida em que existe uma proposta territorial muito
razoável da comunidade e que esta proposta é do conhecimento dos autores
do relatório antropológico, não se entende o porquê da recusa em explicitá-
la, uma vez que a simples reprodução da mesma em nada implicaria em sua
concordância por parte dos autores.
80 HOFFMANN, C. C. Entrevista realizada na comunidade negra. Guairá, 20 abr. 2010.
81 Processo nº 54200.0001075/2008-46, p. 645.
95
E ainda:
[...] e por não atenderem os objetivos que são caros a um estudo dessa
natureza, a saber, minimamente o registro dos vínculos históricos, culturais,
sociais e econômicos que a comunidade estabelece com o território, assim
como omitir a proposta da delimitação do território apresentada pela
comunidade [...]
Conforme documento do Incra82
, foi interrompido o convênio do Incra com a Unioeste
em 29 de dezembro de 2010. Ainda, no processo, o antropólogo do Incra posiciona-se na
conclusão dos seus levantamentos:
Conforme os dados sócio-econômicos do município, fica evidente o bom
grau de desenvolvimento da cidade de Guaíra-PR e a situação de exclusão
social da comunidade negra Manoel Ciriaco dos Santos. Ainda que sejam
proprietários de reduzida área de terra não dispõem de meios para a
exploração direta. Faz-se urgente a criação de meios que possibilitem a
inclusão econômica e social dessa minoria. (Processo nº.
54200.0001075/2008-46, p. 620).
Atualmente, integrantes da comunidade negra, pretendentes a remanescente
quilombola, aguardam resultado de relatórios do Incra e medidas da Seppir sobre a
demarcação de suas terras, segundo eles, convivendo cotidianamente com hostilidades feitas
por parte dos agricultores.
Vale destacar que as instituições são representadas por pessoas. As pessoas que
“falam” através ou a partir de um órgão, seja ele governamental ou não, carregam seus ideais,
seus valores e suas convicções.
No caso do processo de demarcação das terras quilombolas da Comunidade Negra
Manoel Ciríaco dos Santos, surgiram tensões e divergências a partir da elaboração do Laudo
Antropológico e do rompimento do Convênio entre Incra e Unioeste. Podem-se perceber as
diferenças de pensamento, ideologias e valores de antropólogos. Os antropólogos discordam
das noções de território, quilombo, fronteira.
Nesse sentido, sabe-se que existem muitos significados para as expressões território e
fronteira. Neste estudo, essas palavras foram categorias de análise ou conceitos, que, muitas
vezes, tornaram-se o fio condutor. Não somente as fronteiras visíveis, os territórios marcados
são importantes para se compreender um conflito que resulta da demarcação de terras
quilombolas, mas o que está por trás, o que está nas entrelinhas e, principalmente, o que está
além do que podemos ver.
82 Processo nº 54200.0001075/2008-46, p. 648.
96
4 PARA ALÉM DAS FRONTEIRAS E SEUS TERRITÓRIOS
Neste quarto e último capítulo da dissertação, pretende-se expor fatos históricos que
revelam disputas de poder no sentido ideológico, além de demonstrar que fronteiras,
territórios e culturas podem ser construídos, desconstruídos, transformados e compreendidos
sob aspectos diferentes.
O contexto histórico no qual a Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos está
inserida pode ser descrito, em linhas gerais, com o processo de demarcação de terras,
(re)construções de identidades, transformações de práticas vividas, mudanças culturais ou
mesmo de significados atribuídos ao que chamamos de cultura material e imaterial, e a
existência de conflitos. Isso nos faz perceber que a história é complexa e o resultado das
conquistas não acontece naturalmente, mas a partir das articulações, do empenho e do
desempenho das partes envolvidas no processo.
As etapas das fases desse processo histórico que a comunidade negra vivencia estão
repletas de significados e de contradições, que vão muito além daquilo que é palpável,
documental, visto. As linhas que existem e separam grupos ou indivíduos nem sempre são
visíveis. As fronteiras, territórios ou demarcações nem sempre estão demarcadas com cercas,
muros, tratados ou acordos. Muito do que acontece ao longo da história só pode ser percebido
nas entrelinhas, nos subentendimentos, a partir de tensões sentidas e experimentadas, como,
por exemplo, as fronteiras do imaginário, do racismo e do preconceito.
Essas contradições podem ser percebidas também a partir de uma análise de micro-
história, dentro da comunidade, pois, como já foi citado, ela não é homogênea e existem
integrantes da comunidade com diferentes opiniões, valores, memórias e intenções. Da
mesma forma, mas em nível de análise da macro-história, há conflitos e discursos ideológicos
que interferem no rumo da história, que podem tanto provocar alterações políticas, territoriais,
fronteiriças e até culturais na sociedade.
97
4.1 DISCURSOS IDEOLÓGICOS
Não só no Estado do Paraná ocorrem problemas e demoras em processos de
demarcação de terras remanescentes de quilombos83
. Percebe-se que, além dos conflitos
gerados pelo próprio processo de demarcação das terras, os integrantes das comunidades vêm
sofrendo com o próprio processo de globalização. Nesse contexto, o agronegócio é
privilegiado.
Algumas pessoas acreditam que o Decreto Federal nº 4887/2003 é justo em
regulamentar as terras dos remanescentes de quilombos e outras pessoas acreditam que isso é
injusto, uma irregularidade. Nesse sentido, constata-se um conflito ideológico, além dos
conflitos e das tensões geradas pela própria demarcação das terras quilombolas, ou seja, a
história vai além das fronteiras e dos territórios, independente dos significados atribuídos a
essas categorias.
Logo após ter sido elaborado o Decreto Federal nº 4887/2003 para regulamentar a
demarcação das terras quilombolas, o Partido Democratas - DEM (PFL, na época) entrou na
Justiça Comum com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, chamada de ADI nº
3239/2003. O objetivo dessa ação do DEM é impedir que o Decreto Federal nº 4887/2003
oriente e estabeleça quais são as comunidades e quais critérios serão utilizados para
demarcação das terras. Segue parte do texto da Petição encaminhada ao Supremo Tribunal de
Justiça Federal84
:
III – Do uso indevido da via regulamentar
Ao pretender regulamentar diretamente, sem supedâneo em lei formal, o art.
68 do ADCT (‘O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que
lhe confere o art. 84, incisos IV, alínea “a”, da Constituição e de acordo com
o disposto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias’),
o Decreto nº. 4.887/2003 incorreu em autonomia ilegítima. O texto
constitucional dá aos decretos e regulamentos, segundo o disposto no art. 84,
IV, da Constituição a função de fiel executar as leis, conferindo-lhe,
portanto, natureza de instrumento normativo secundário, que tem sua
validade dependente de lei formal. Ao dispensar a mediação de instrumento
legislativo e dispor ex novo, o ato normativo editado pelo Presidente da
República invade esfera reservada à lei, incorrendo em manifesta
inconstitucionalidade. (ADI, 2003, p. 5).
83 Conforme reportagem jornalística (FOLHA, 9/6/2011), quilombolas e líder do movimento no Maranhão fazem
greve de fome em protesto às ameaças que vêm sofrendo dos agricultores da região. Conforme publicado em
“listageografia”, de 6/6/2011, na Bahia, os quilombolas estão aguardando demarcação de terras e enfrentando
muitos conflitos. 84
Este processo pode ser consultado, pois está disponível on-line no site:
www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.Asp?numero=3239&classe=ADI&codigoClasse=0&O
RIGEM=JUR&recurso=0&tipoJulgamento. Último acesso em 7/6/2011.
98
Nesse trecho da petição do processo da ADI, o DEM acusa o decreto federal de ser
ilegítimo, e de invadir a esfera reservada à lei, sendo assim, inconstitucional. Na petição da
ADI está afirmado:
Sendo a propriedade, desde a promulgação da Constituição, dos
remanescentes, incorre em vício de inconstitucionalidade qualquer norma
que determine a expropriação das áreas, bem como o uso de recursos
públicos, para a transferência posterior aos titulares do direito originário de
propriedade definitiva. Ademais, a pretensa desapropriação a que se refere o
dispositivo regulamentar não se enquadra em nenhuma das modalidades a
que se refere o art. 5º, XXIV, do texto constitucional, bem como não se
enquadra em nenhuma das leis que as regem. (ADI, 2003, p. 8).
Aqui o DEM ressalta que, para a constituição federal, não há nenhuma forma de
expropriação de áreas territoriais, bem como não é possível utilizar recursos públicos para
transferir propriedades.
Mais adiante:
À toda evidência, submeter a qualificação constitucional a uma declaração
do próprio interessado nas terras importa radical subversão da lógica
constitucional. Segundo a letra da Constituição, seria necessário e
indispensável comprovar a remanescência – e não a descendência – das
comunidades dos quilombos para que fossem emitidos os títulos. Esse o
abalizado entendimento do eminente juspublicista JOSÉ CRETELLA
JÚNIOR […]. (ADI, 2003, p. 9).
Nessa parte do processo, o DEM preocupa-se com a característica de remanescência,
ou seja, critica o critério do decreto federal quando destaca que basta as comunidades se
autoafirmarem enquanto quilombolas para terem acesso à demarcação de terras. Conforme
consta:
Ainda que se admitisse a extensão do direito aos descendentes – e não
remanescentes –, não seria razoável determiná-los mediante critérios de
auto-sugestão, sob pena de reconhecer o direito a mais pessoas do que
aqueles efetivamente beneficiados pelo art. 68 do ADCT e realizar, por vias
oblíquas, uma reforma agrária sui generis. Ademais, somente fazem jus ao
direito, os remanescentes que estivessem na posse das terras em que se
localizavam os quilombos no período da promulgação da Constituição.
(ADI, 2003, p. 10)
Nesse ponto do texto da petição do DEM, percebe-se a preocupação com uma possível
reforma agrária no Brasil.
Caso a Justiça brasileira aceite e concorde com essa Ação de Inconstitucionalidade, é
possível que as áreas quilombolas demarcadas desde 2003 percam seus títulos, além de
99
perderem também os investimentos, resultado de projetos que são feitos nas comunidades que
possuem a titulação de Remanescentes de Quilombos.
Até o momento da conclusão desta dissertação, no entanto, o Supremo Tribunal de
Justiça ainda não tinha julgado o pedido de Ação de Inconstitucionalidade. No site em que
podemos consultar a Ação Direta de Inconstitucionalidade feita pelo DEM, há indicação de
um último movimento, sendo este de 19/12/2011, onde consta a informação de que o processo
atualmente conta com um número de 08 (oito) volumes e o andamento “Conclusos à
Presidência”85
.
Enquanto isso, o Decreto Federal nº 4887/2003 continua valendo, ou seja, continua
como regulador das demarcações.
Em 8/6/2010 ocorreu em Registro, São Paulo, o I Encontro de Turismo e
Comunidades Quilombolas, reunindo quarenta e três comunidades remanescentes
quilombolas do Brasil, para discutir a ameaça que o Decreto Federal nº 4.887/2003 sofre pela
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN 3. 239) proposta desde 2004 pelo antigo Partido
da Frente Liberal (PFL), atualmente denominado Partido Democratas (DEM) e que será
julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
No encontro, representantes das comunidades quilombolas fizeram uma Carta com o
seguinte conteúdo:
CARTA ABERTA DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS REUNIDAS
NO 1º ENCONTRO NACIONAL DE TURISMO EM COMUNIDADES
QUILOMBOLAS:
Diante da situação criada pela Ação Direta de Inconstitucionalidade- ADIN
3.239, proposta em 2004 pelo DEM (Democratas), questionando a
constitucionalidade do Decreto 4.887/2003, que regulamenta o procedimento
para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das
terras ocupadas por remanescentes de comunidades quilombolas de que trata
o art. 68 do ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e na iminência
de julgamento da questão pelo Supremo Tribunal Federal – STJ, nós,
Comunidades Quilombolas reunidas no 1º Encontro Nacional de Turismo
em Comunidades Quilombolas, em realização entre os dias 07 a 11 de junho
de 2010, na cidade de Registro (SP), solicitamos apoio aos diferentes grupos
formadores da nossa sociedade, em especial aos Poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário, para fortalecer nossa luta, a partir do seguinte
entendimento:
1. Que o art. 68 do ADCT/88 constitui norma de direito fundamental, que
visa assegurar a possibilidade de sobrevivência das Comunidades
Quilombolas – povos dotados de cultura e identidades étnicas próprias – e
garantir o exercício dos nossos direitos culturais, tais como as nossas formas
85 Site: www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.Asp?numero=3239&classe=ADI&codigoClasse=
0&ORIGEM=JUR&recurso=0&tipoJulgamento. Último acesso em 5/3/2012.
100
de expressão, criações artísticas, nossos modos de criar fazer e viver, à luz
do disposto no art. 216 da CF/88, que trata da proteção e promoção do
patrimônio cultural brasileiro;
2. Que o texto do art. 68 do ADCT/88, na medida em que indica a
titularidade do direito a ser conferido (comunidades quilombolas), a
propriedade definitiva das terras ocupadas (objeto do direito) e quem deve
conferir esse direito (o Estado), é norma para ampliação imediata, portanto
independe de edição de lei específica para sua concretização, cabendo ao
Estado fazer valer imediatamente esse direito fundamental;
3. Que o Decreto Federal 4.887/2003 é o instrumento adequado para a
Administração Pública assegurar os direitos que nos foram garantidos pelo
texto Constitucional de 1988, e que o critério de “auto-definição” previsto no
Decreto é constitucional, que visa promover a conscientização da identidade
do próprio grupo quilombola, assim como, é constitucional a definição de
terras ocupadas por remanescentes de quilombos constante no Decreto;
4. Que os direitos quilombolas estão ainda garantidos pela Convenção 169
da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que vigora no Brasil desde
2003 e assegura que o critério para determinar a identidade do povo
quilombola é a “consciência de sua identidade”, além de garantir o direito à
propriedade e posse de nossas terras tradicionalmente ocupadas e o direito de
consulta livre, prévia e informada conferido ao povo quilombola, cada vez
que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de
nos afetar diretamente;
Nesse sentido, reafirmamos a importância e necessidade de que o Estado
Brasileiro garanta o direito fundamental de acesso ao território quilombola,
como instrumento para promoção da igualdade e justiça social, e a promoção
e proteção do pluralismo étnico-cultural, aspecto relevante para toda a
Nação.
Reafirmamos, também, a urgente necessidade de realização de audiências
públicas antes que o Supremo Tribunal Federal – STJ- julgue a ADIN 3.239,
amplamente com diversos setores da sociedade afetados pela ação, como
medida de Justiça e dos ideais de cidadania, assegurando-se, assim, o nosso
Estado Democrático de Direito.
No encontro e na elaboração desse documento houve a reafirmação dos quilombolas
do Brasil com a preocupação deles na garantia de terem acesso às políticas públicas.
Segundo manifestação de Boaventura de Sousa Santos, no texto “Petição pela causa
dos quilombolas”86
, o momento é de apreensão, vigilância e também de confiança na
Constituição de 1988, uma vez que esta garante que sejam reafirmados os direitos das
comunidades quilombolas que vêm sofrendo, historicamente, um grande processo de
exclusão.
Aqui o autor Boaventura faz menção ao Artigo 68 da Constituição Federal de 1988,
que diz: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas
86 Texto publicado em forma de carta aberta que circulou pela internet em 2010, após a ação do processo ADI
3239/2008.
101
terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos”87
(grifo nosso).
Segundo Boaventura, dados os desafios que o tema põe aos avanços no domínio do
aprofundamento da democracia e da justiça histórica que a sociedade brasileira experimentou
na última década, é necessário submeter à consideração pública um abaixo assinado para
enviar para o Presidente do Supremo Tribunal Federal, em maio de 2010, com o seguinte
texto, na íntegra:
Diante das polêmicas relativas às demarcações de territórios quilombolas,
imputando às comunidades negras inúmeras ‘falsidades’ e aos antropólogos
‘oportunismo’, e pondo em questionamento as políticas públicas de
reconhecimento de direitos constitucionais, às vésperas de julgamento da
questão pelo Supremo Tribunal Federal (STF), os abaixo assinados vêm
declarar o seguinte:
1. A Constituição de 1988 afirmou o compromisso com a diversidade étnico-
cultural do país, com a preservação da memória e do patrimônio dos
‘diferentes grupos formadores da sociedade’ e reconheceu a propriedade
definitiva dos ‘remanescentes de comunidades quilombos’ às terras que
ocupam.
2. Ao Estado competiria emitir os respectivos títulos relativamente a tais
terras. Não se criavam condições constitucionais para efetivação de tal
direito, exceto a opressão histórica advinda do processo de escravidão e a
posse de tais terras.
3. A primeira regulamentação somente veio a ocorrer em 2001, quase treze
anos pós-Constituição, exigindo, no entanto, a comprovação da ocupação
desde 1888 para a garantia do direito. Seria, em realidade, estabelecer
condições mais rigorosas para a aquisição de propriedade definitiva que
aquelas estabelecidas para usucapião. Quis, também, congelar o conceito de
quilombo no regulamento de 1740, norma evidentemente repressiva do
período colonial. Um evidente contrassenso e uma afronta ao
reconhecimento de um direito constitucional. Não à toa o decreto não se
manteve, por inconstitucionalidade de flagrante.
4. A nova regulamentação, agora atacada por ação de inconstitucionalidade,
veio em 2003, tendo como parâmetros instrumentos internacionais de
direitos humanos, que prevêem, dentre outras coisas, a auto-definição das
comunidades e a necessidade de respeito de suas condições de reprodução
histórica, social e cultural e de seus modos de vida característicos num
determinado lugar. Os antropólogos, portanto, não inventaram realidades:
captaram uma realidade já existente, normatizada internacionalmente e com
vistas a assegurar direitos fundamentais. Uma audiência pública para
maiores esclarecimentos, tal como ocorreu nas ações afirmativas, células-
tronco e anencefalia, seria importantíssima.
5. Ficou estabelecido, como forma de defesa da comunidade contra a
especulação imobiliária e os interesses econômicos, que tais terras fossem de
propriedade coletiva (como sempre o tinham sido, historicamente) e
inalienáveis. Esta condição de ‘terras fora de comércio’, aliada ao grau de
87 Constituição da República Federativa do Brasil, publicada no Diário Oficial da União, n. 191- A, de 5 de
outubro de 1988.
102
preservação ambiental, é que explica, em parte, a cobiça de mineradoras,
empresas de celulose e grandes empreendimentos.
6. Este longo processo de construção jurídica e sócio-antropológica é
emblemático dos desafios postos pela Constituição de 1988: o combate ao
racismo, a prevalência dos direitos humanos, o reconhecimento da
diversidade sócio-cultural como valor fundante do ‘processo civilizatório
nacional’ e da própria unidade nacional, a função socioambiental da
propriedade, com distintas formas de manejo sustentável dos territórios pelas
variadas comunidades culturais existentes no país.
7. Uma inflexão na jurisprudência do STF de respeito ao pluralismo e aos
direitos humanos pode implicar a revisão de políticas de reconhecimento
com vistas a uma ‘sociedade livre, justa e solidária’, o acirramento da
discriminação anti-negros e a conflagração de novos conflitos fundiários,
num país com histórica concentração de terras em poucas mãos. Tudo a
gerar descrédito das minorias no reconhecimento estatal e insegurança no
próprio exercício de seus direitos fundamentais.
8. A Corte Interamericana vem reconhecendo a propriedade para as
comunidades negras, tendo em vista a Convenção Americana, e a OIT
entendeu-lhes aplicável a Convenção nº 169 e a importância da relação com
as terras que ocupam ou utilizam para sua cultura e valores espirituais. O
Brasil firmou os dois tratados, e a comunidade internacional espera que
sejam cumpridos. O momento é, pois, de apreensão, vigilância e também de
confiança de que o compromisso, constante de Constituição de 1988, de
prevalência dos direitos humanos, seja reafirmado de forma veemente para
estas comunidades, que vêm sofrendo, historicamente, uma grande processo
de exclusão.88
Boaventura faz uma análise da história das conquistas no âmbito da Igualdade Racial
no Brasil, a partir da histórica exclusão sofrida pelos negros, além de destacar as conquistas
especialmente direcionadas aos quilombolas, mas se preocupa com a democracia brasileira,
pois sugere que a mesma seja vigiada, acreditando que os direitos humanos sejam
reafirmados. Enquanto se aguarda a sentença final do Supremo Tribunal de Justiça, é possível
fazer uma análise dos interesses que existem por parte daqueles que defendem o Decreto
Federal nº 4887/2003 e das pessoas que defendem a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
3239/2003.
Enquanto uma parcela do governo federal trabalha, ao longo dos últimos anos,
construindo uma política de valorização dos segmentos marginalizados e prejudicados no
Brasil, sejam negros, mulheres e portadores de necessidades especiais, outros se esforçam
para impedir que as ações afirmativas sejam colocadas em prática, como é o caso do DEM e a
ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade, que pretende invalidar o Decreto Federal nº
4887/2003. Constata-se que não há consensos em níveis.
88 Foi mandado e-mail para o professor na intenção de saber quantas assinaturas sua carta aberta obteve e quais
foram as repercussões. Até o presente momento, não se tem resposta.
103
Em reportagem jornalística de 21.11.200989
consta: “Para Deputado Élio Rusch
(Partido DEM), caso Maracaju dos Gaúchos é agressão ao estado de direito”. Nessa
reportagem, percebe-se que esse político posicionou-se publicamente a favor dos agricultores,
defendendo as aproximadamente 200 (duzentas) famílias, visitando algumas e dando
entrevistas.
Enquanto intelectuais renomados, como Boaventura de Souza Santos, posicionam-se a
favor da demarcação de terras para os remanescentes de quilombos, e são a favor do Decreto
Federal nº. 4887/2003, outros fazem críticas e exigem que essas ações sejam vistas como
irregulares.
Nesse sentido, compreende-se que integrantes da equipe da Unioeste, que são contra a
demarcação das terras quilombolas em Maracaju dos Gaúchos, concordam, ideologicamente,
com o discurso do DEM, pois não acreditam que seja possível demarcar o território da
ACONEMA, alegando que eles não são ex-escravos, compraram suas terras e onde vivem não
havia escravidão. Para tanto, questionam seus costumes, cultura, história e identidades.
Nessas relações entre os negros e os representantes de instituições que estão
envolvidos no processo de demarcação das terras, evidenciam-se poderes, que, segundo Pierre
Bourdieu (2007) são responsáveis também pelas estruturas sociais. Para esse autor, a
realidade social é vista como um campo de batalha operando com base nas relações de força
manifestadas dentro da área de significação.
Nesse sentido, seguindo o raciocínio de Bourdieu, há um campo de batalha, que é o
território quilombola, e a partir dele percebem-se as várias significações que justificam os
interesses defendidos pelos envolvidos no conflito gerado pelo processo de demarcação das
terras como remanescente de quilombo.
A ideologia dominante, que sempre manteve a elite como a grande proprietária de
terras e, ao mesmo tempo, manipuladora de poder, de mentalidades, permanece a mesma,
branca. Articulada, se utiliza dos discursos, da mídia e da carência de pensamento crítico da
sociedade brasileira para manter-se no poder.
A disputa pelo território na Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos revela
muito mais que uma simples demarcação de terras. Revela sentidos e significados que
perpassam as fronteiras do conhecimento, mexe com estruturas preestabelecidas de uma
ordem que já perdura desde os primórdios da colonização européia no Brasil.
89 PARA Rusch, caso de Maracaju dos Gaúchos é agressão ao estado de direito. AquiAgora, Marechal Cândido
rondon, 21 nov. 2009. Disponível em: <http://htwww.aquiagora.net/verNoticia.php?nid=4221>. Acesso em:
10 mar. 2010.
104
Essa nova fase de valorização do negro, de repensar o território nacional e de permitir
a existência de comunidades remanescentes quilombolas, além de balançar com as ideologias
enraizadas do sistema capitalista, não admite, na sua forma original, famílias viverem em um
território coletivo, onde o plantar, o colher, o fazer, o viver e o pensar não são práticas
individuais, viciadas no lucro e no consumismo, mas são caracterizadas pela simplicidade da
valorização da terra, da natureza e das relações humanas.
4.2 FRONTEIRAS, TERRITÓRIOS E SIGNIFICADOS MÚLTIPLOS
Múltiplos são os limites e múltiplas são as fronteiras que permeiam os espaços e as
relações. No caso do estudo dessa comunidade negra que pretende ser quilombo, as noções de
fronteiras são múltiplas. Há a fronteira próxima deles que é a divisa do Brasil com o Paraguai.
Mesmo próxima, no entanto não lhes causa tantos problemas se comparada à fronteira que os
separa do desejo em conseguir o título quilombola através da demarcação de suas terras. Há
ainda a fronteira da cor negra, que Weber (1994, p. 273) chamaria de “fronteiras étnicas”, pois
são discriminados, há também a fronteira do limite de suas terras, pois está em discussão e
processo judicial90
e também ainda as fronteiras dentro do próprio grupo, quando nem todos
compactuam dos mesmos interesses. São fronteiras múltiplas e complexas.
Até a cultura possui fronteiras. Segundo Kuper (2002, p. 302):
Toda cultura é fragmentada, contestada internamente e possui fronteiras
porosas. A busca de identidade representa uma luta existencial desesperada
para criar um estilo de vida que pode ser sustentado pelo menos por um
breve momento.
Essas fronteiras apresentam-se acompanhadas de tensões. De acordo com
Vanderlinde, a fronteira é aquilo que cada um representa, e ainda:
Refletir na, e sobre fronteira, é levar em conta um espaço privilegiado da
produção de antagonismos, mas também laços de solidariedade, da
afirmação e de negação de identidades, da (re)elaboração de representações,
90 Além do processo de demarcação das terras como quilombolas, há uma ação judicial na Comarca de
Umuarama. Segundo relatos dos integrantes da comunidade negra, esse processo judicial é sobre uma parte
das terras da comunidade que foi vendida para um advogado, e se sentiram enganados. Essa informação
também consta no Processo nº 54200.0001075/2008-46.
105
da (re)invenção de lendas e de tradições, do (des)encontro dos homens, dos
conflitos e das conquistas materiais […]. (VANDERLINDE, 2009, p. 26).
Na situação de desentendimento sobre a demarcação das terras, a abordagem da
fronteira se dá também sob o aspecto de negação da identidade negra, pelo preconceito que há
com os negros, do desencontro entre quilombolas e agricultores diante de disputas pela terra,
bem como apontou o autor acima. Ou também, as fronteiras que indicam quem pertence e
quem não pertence a um determinado grupo. Conforme Barth (apud OLIVEIRA, 1994, p.
viii):
Um grupo étnico não se define por seu estofo cultural (que se modifica no
tempo e varia de acordo com ajustamentos ecológicos), mas através de
critérios pelos quais ele mesmo estabelece as suas fronteiras (grifo meu)
(critério de pertencimento e exclusão) e pela tentativa de normatização da
interação entre os membros do grupo e as pessoas de fora. Nesta concepção
a homogeneidade cultural é uma resultante de um processo de criação
coletiva e a constituição de um sujeito coletivo, fator determinante no
estabelecimento de um grupo étnico.
Nesse sentido, conforme o autor acima citado, essa fronteira indica uma linha
imaginária que existe entre a comunidade negra e os demais moradores de Maracaju dos
Gaúchos, que não são negros, que não sofrem do mesmo racismo, que não possuem memórias
e ascendências escravistas, nem tampouco pretendem a demarcação de terras remanescentes
de quilombolas.
O conceito de fronteira definido por José de Sousa Martins auxilia na compreensão do
processo de luta pela demarcação das terras e ainda na identificação das características de
todos os que fazem parte desse processo, sejam eles os integrantes da comunidade negra,
agricultores, jornalistas, instituições públicas como Incra, Unioeste, dentre outros. Conforme
a citação que segue:
Tomo a fronteira como lugar privilegiado da observação sociológica e do
conhecimento sobre conflitos e dificuldades próprios da constituição do
humano no encontro de sociedades que vivem no seu limite e no limiar da
história. É na fronteira que se pode observar melhor como as sociedades se
formam, se desorganizam ou se reproduzem. É lá que melhor se veem quais
são as concepções que asseguram esses processos e lhes dão sentido.
(MARTINS, 2009, p. 10).
Ou seja, nesse processo de demarcação dessas terras como quilombolas existem vários
fatores, situações e discursos que nos auxiliam a compreender melhor a sociedade em que
106
estamos inseridos, pois os desejos se revelam, as histórias vêm à tona e as identidades ficam
ainda mais destacadas, considerando que há interesses por parte de cada um.
Com relação ao território ocupado e que está em disputa, este está repleto de
significados. Além do cultivo da terra, os integrantes da comunidade negra de Maracaju dos
Gaúchos frequentemente praticam a capoeira, celebram rituais religiosos, trabalham, estudam,
se divertem, jogam e disputam. Essas atividades estão diretamente associadas à terra, ao
território ou a uma “territorialidade negra”, que está repleta de sentidos. São essas práticas
espaciais, permanentemente atualizadas, que caracterizam um território quilombola e
justificam o processo de demarcação das terras como remanescentes. Atualmente, integrantes
da comunidade vivenciam suas práticas espaciais como condição de vida.
Esses sentidos e significados atribuídos às suas práticas, à terra, aos rituais, aos
costumes, dentre outros, que são tão valiosos para os negros, podem passar despercebidos por
uma comunidade que não é quilombola, ou por pesquisadores que não são sensíveis à
minorias e ao diverso, preferindo que a história siga no seu rumo, negando a identidade como
quilombola, contribuindo para que permaneçam na mesma condição de miserabilidade e
deixando que outra parcela da sociedade seja beneficiada. É a não percepção de identidades
múltiplas.
A equipe da Unioeste responsável pela elaboração do Laudo Antropológico da
comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos afirmou, no Laudo91
, que não percebeu nenhum
aspecto do grupo que o levasse à caracterização de um quilombo. Não aceitou a identidade
que eles, negros afirmam ter, não reconheceu características do espaço e do território ocupado
por eles como sendo de um quilombo remanescente.
Ora, por que os negros iriam rejeitar a oportunidade de se autodenominarem
quilombolas, se é esse o caminho para a demarcação de suas terras e melhores condições de
vida. E, ainda, por que eles não se beneficiariam das políticas públicas que são destinadas aos
remanescentes de quilombos, se a própria Fundação Cultural Palmares os certificou como tal.
Nesse sentido, em se tratando de quilombos, podemos considerar o território como um
dos temas condutores para o entendimento da luta deles pela terra. Pode-se considerar que:
O território é um repertório de lugares de importância simbólica, envolvendo
agrupamentos não mais existentes onde residiram antepassados, porções de
terras perdidas, localidades para onde migraram vários parentes e que se
deseja conhecer: lugares acessados através de viagens, notícias, lembranças,
saudades [...]. (RATTS, 2004, p. 7).
91 Processo do INCRA nº 54200.0001075/2008-46.
107
A partir dessas contribuições, consideramos que o contato com a terra, com o
ambiente e com a natureza nas comunidades quilombolas dispõe seu espaço próprio, seu
território, sugerindo a ideia de que homens, mulheres e ambiente se constituem tanto como
diferenciações, como extensões e complementaridades. Então, entende-se que o significado
do território ou do espaço ocupado pela comunidade em análise é diferente do significado
dado ao território pelos agricultores, pois se trata de outros costumes, outras trajetórias, outras
lutas e conquistas, bem como outro tempo e outras culturas. Como bem definiu Raquel Rolnik
quando faz um contraponto entre espaço e território:
Contrapondo-se a noção de espaço à noção de território, há uma relação de
exterioridade do sujeito em relação ao espaço e uma ligação intrínseca de
subjetividade quando se fala em território. O território é uma noção que
incorpora a ideia de subjetividade. Não existe um território sem um sujeito, e
pode existir um espaço independente do sujeito. O espaço do mapa dos
urbanistas é um espaço; o espaço real vivido é um território. (ROLNIK,
1995, p. 28).
Nesse sentido, existem diferentes territórios, o território da comunidade negra e o
território ocupado pelos agricultores, dentro de Maracaju dos Gaúchos.
Segundo Nunes (2008), os quilombolas construíram uma história que não é apenas de
fuga da escravidão, mas do desejo de liberdade. É uma história que ocorreu em diferentes
lugares, tempos e de diferentes modos. Para Reis e Gomes, a história dos quilombos é: “Uma
história cheia de ciladas e surpresas, de avanços e recuos, de conflito e compromisso, sem um
sentido linear, uma história que amplia e torna mais complexa a perspectiva que temos de
nosso passado”. (REIS, 2000, p. 23).
Esses homens, mulheres e crianças, negros e negras, também são trabalhadores rurais
e, nesse sentido, além do preconceito e do racismo, defrontam-se com problemas de
reconhecimento de posse e de propriedade de suas terras e de seus direitos.
Já os agricultores, esses se encontram divididos em várias categorias, como pequenos
proprietários, pequenos arrendatários, parceiros autônomos e parceiros sem autonomia. Eles
também têm suas dificuldades, pois enfrentam a baixa dos preços de seus produtos, a
mudança no sentido de valorização da terra e do trabalho na agricultura. Ocorre que os
agricultores brancos não sofrem do mesmo racismo, pois seus antepassados não foram
escravizados no Brasil, não ficaram excluídos das escolas pela cor, nem mesmo precisam de
políticas públicas específicas para ter voz na sociedade em que vivem. Seus direitos ou
terrenos não estão em risco e, caso haja a demarcação, serão devidamente indenizados pelo
Estado brasileiro.
108
A propriedade territorial constitui mediação essencial da organização política
brasileira. Segundo Martins (1986), essa compreensão auxilia no entendimento do que vêm a
ser as lutas pela terra, levadas a efeito por diferentes categorias sociais. O autor em questão
afirmou que as lutas dos trabalhadores, dos índios, dos antigos escravos eram que os direitos
obtidos por esses diferentes grupos foram, na maior parte dos casos, concessões das classes
dominantes. Ou seja, para o autor, os grupos dominantes conseguiram subjugar os
movimentos e lutas populares.
Percebe-se que a tensão entre os grupos é caracterizada por um sentido de identidade,
pois cada grupo se autoafirma e se representa com a construção de suas características,
valores e interesses.
No caso dos integrantes da comunidade negra, estes são vistos pelos agricultores como
invasores e improdutivos, conforme depoimento em reportagem jornalística92
. Enquanto,
porém, não havia o conflito de terras, os negros eram contratados para trabalhar nas lavouras
dos agricultores e, até então, nada havia de errado com o serviço deles, conforme já
mencionado. Somente a partir do posicionamento e da disputa pela terra é que emerge o
conflito e vem à tona essa discriminação, revelando o preconceito.
Segundo levantamento de dados que consta no processo do Incra93
, há a pretensão de
expansão do território que atualmente pertence à comunidade quilombola para uma área
maior.
Sobre o mapa contendo informações das terras pretendidas, que supostamente teria
sido roubado no dia da reunião dos quilombolas com o Incra e autoridades locais, causando
muitos boatos e acirrando o conflito já existente, porque muitos moradores que teriam visto
esse mapa não souberam interpretá-lo e acreditaram que o território pretendido era muito
maior do que realmente é. Em função disso, o Incra publicou Nota Pública em 24 de
novembro de 2009, para tentar acalmar as tensões. Onde consta a seguinte informação com
relação ao território94
:
Nota Pública:
O INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA
AGRÁRIA – INCRA, Autarquia Federal vinculada ao Ministério do
Desenvolvimento Agrário, com sede em Brasília-DF, através da
Superintendência Regional do Estado do Paraná, situada à rua Dr. Faivre,
1220, Centro, Curitiba, Estado do Paraná, torna público que I) os estudos
92 (REUNIÃO, 2010) O representante do sindicato dos agricultores afirmou, em entrevista ao Jornal O Presente,
que os quilombolas não são capazes de produzir nada em suas terras. 93
Processo nº 54200.001075/2008-46 (p. 592). 94
Processo nº 54200.001075/2008-46 (p. 596).
109
referentes ao processo administrativo 54200.001075/2008-46, para fins de
regularização de possível territorialidade quilombola da Comunidade
Manoel Ciriaco dos Santos, restringem-se tão somente aos lotes rurais 186 e
188ª, 187 e 187ª, 157 e 63, Gleba 4-A, Colônia ‘C’, Vila Maracajú dos
Gaúchos, município de Guaíra; 2)os lotes acima elencados são, no momento
presente, objetos de estudo do relatório histórico-antropológico, e a possível
caracterização destes como território quilombola será definida quando da
conclusão do relatório antropológico; 3) nenhum outro lote na Vila Maracajú
dos Gaúchos será notificado para fins de estudo de possível territorialidade
quilombola; 4) a conclusão do relatório histórico-antropológico está prevista
para fevereiro de 2010; 5) após a publicação do Relatório Técnico de
Identificação e Delimitação contendo proposta de território quilombola, os
proprietários dos lotes acima elencados serão notificados, caso suas
propriedades incidam sobre o mesmo. 6) o INCRA trabalha para a promoção
da paz e contra ações de violência e ilegalidade no campo. A autarquia
mantém uma postura transparente, procurando conservar o diálogo franco e
aberto e trabalhando, como órgão executor, sempre dentro do que prevê a
legislação vigente.
Nesse documento, o Incra destaca que a comunidade negra é objeto de estudos
histórico-antropológicos, mas que a possível caracterização deste território como quilombola
será ainda definida. E que os proprietários que tenham terras sobre o território em análise,
conforme o caso, podem vir a ser notificados, mas que o órgão Incra trabalha para promover a
paz e é contra ações de violência e ilegalidade no campo. Ainda, menciona a preocupação da
instituição no cumprimento da legislação vigente.
Como foi possível observar no texto, a demarcação das terras como quilombolas da
comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos fez emergir e acirrar os conflitos, além de
transformar a vida dos integrantes dela, pois construíram novas relações e histórias a partir do
início do processo. Há motivos para o que o Incra afirme que “trabalha para a promoção da
paz”. A nota e seu teor compõe o tabulado, o campo de disputas.
Por isso, faz-se ainda uma análise do tempo com relação ao espaço. O tempo mudou e
o espaço deles mudou. Foi com o tempo que eles foram perdendo as suas terras e o espaço
tornou-se insuficiente para garantir, segundo eles, o sustento das suas famílias, apesar de o
território em questão ter um determinado significado a ponto de não permitir que os
integrantes da comunidade negra pensem em se deslocarem dali, para outro lugar.
Para as comunidades negras conseguirem comprovar suas características quilombolas
e regulamentarem suas terras, não é necessário manter-se no mesmo território e nem “parar”
no tempo. O fato de não seguirem o ritmo frenético da vida moderna, como nas cidades e na
dinâmica do agronegócio, não é uma regra, nem uma condição, mas é fator cultural. Isso não
foi ensinado a eles para conseguirem a demarcação de suas terras. Eles são assim no seu
cotidiano.
110
E é nesse modo de viver que está a característica da ancestralidade negra, dos traços de
comunidade tradicional e não de simples famílias que moram próximas, como foram
apontados. Nesse aspecto, encontram-se as fronteiras abstratas, que se revelam nas diferenças
entre os grupos distintos, nesse caso, negros e brancos.
As diferentes fronteiras e os diferentes territórios passaram a ter novas significações a
partir da reformulação de suas vidas e histórias diante do interesse em ser quilombola, mas,
apesar da mudança, o que lhes garantirá o acesso às políticas públicas são as características
mais simples que perduraram e ainda estão na comunidade tradicional, que ainda guardam e
reproduzem práticas diferentes da vida moderna, apesar das significativas mudanças.
Nesse contexto, os envolvidos são testemunhas constantes da relação dialética entre o
global e o regional, sendo possível constatar que há um processo de universalização da cultura
e uma constante construção e (des)construção das identidades.
Se ocorrer ou não a demarcação das terras quilombolas, nada garante a paz da região,
pois as tensões e os conflitos são frutos de uma realidade contínua, inerentes à condição
humana e contextualizados historicamente.
111
CONCLUSÃO
Diante da proposta desta pesquisa, de analisar vivências da comunidade negra Manoel
Ciríaco dos Santos, histórias e o processo de demarcação das terras como de um quilombo
remanescente, discutindo conceitos de fronteiras, territórios e identidades, foi possível
perceber que são muitas as informações e documentos relevantes que poderiam ter
encaminhado a pesquisa para vários caminhos diferentes.
Além das questões tradicionais que um projeto de pesquisa impõe, havia também o
questionamento da própria autora, o que uma historiadora, descendente de alemães, estaria
buscando ao estudar negros, em outro município.
Pois bem, ao final desta etapa, acredita-se que se tenha chegado a, pelo menos, uma
conclusão, reconhecendo uma vontade reprimida de salvar os negros discriminados pela
família e o círculo de amizades, durante a infância. Por ter acompanhado a discriminação de
negros, os quais eram afastados do grupo germânico, considerado estabelecido na cidade
típica germânica, da qual a autora é natural.
Esse processo de repulsa, discriminação e rejeição manifestavam-se através da
linguagem. Em Marechal Candido Rondon/PR., até os dias atuais é muito comum falar em
língua alemã. Com o tempo percebeu-se que os diálogos em língua alemã, além de afirmar
uma identidade, em alguns momentos eram utilizados, por algumas pessoas, como uma
estratégia e uma forma de manter os negros distantes do território branco.
Os negros, sem saber o que era dito, ficavam à margem, como se a língua alemã fosse
um código entre os brancos, que não queriam a aproximação com pessoas que não fossem
descendentes de alemães ou italianos. Uma das lembranças mais presentes desse passado é
com relação às perguntas que se faziam as pessoas novas na cidade, ou que aparentassem ter
características físicas diferentes daquela aceita com tranquilidade (brancos e olhos claros):
“De qual família você é?” ou “Qual o seu sobrenome?”.
O curso de graduação em História, proporcionou a compreensão das várias formas de
racismo e promoveu questionamentos desta mentalidade, cultura e educação preconceituosas,
da qual a autora considera-se vítima e culpada ao mesmo tempo.
No entanto, desde o início deste trabalho, optou-se por desenvolver um texto focado
nas percepções da autora, mesmo porque, esta, estava envolvida com a comunidade e já havia
dados, registros e documentos que possibilitavam uma versão dessa história, uma possível
verdade, um olhar sobre os fatos, uma possibilidade de análise, não a história toda, até porque,
112
além de pretensão, seria impossível, mas sim, um modo de pensar a situação, que
contemplasse a simplicidade, direcionado à vida dos integrantes da comunidade negra Manoel
Ciríaco dos Santos.
Um fator importante para ser destacado nesta etapa conclusiva do trabalho é sobre o
intenso processo de reflexão que ocorreu para definir a denominação da comunidade negra,
pois a priori, o texto foi escrito e as referências à comunidade negra eram feitas como
quilombolas. Durante a escrita da dissertação, preferiu-se ficar alguns meses sem visitá-los,
como que num processo de luto, “matá-los” um pouco dentro do imaginário da autora, para
enfim, ser possível enxergá-los a partir de documentos, apesar dos sentimentos de amizade e
admiração sempre presentes. Percebeu-se que o envolvimento afetivo e o sentimento de
militância estavam dominando, a ponto da autora se sentir desafiada com comentários de que
não eram quilombolas.
Para a produção do trabalho acadêmico era necessário haver maior prudência com as
nomenclaturas. E chegou-se à conclusão de que eles são sim uma comunidade diferenciada,
podem lutar pelos seus direitos, inclusive transformar suas terras em comunidade
remanescente de quilombo. O fato de serem ainda, apenas uma comunidade negra em busca
da demarcação de terras, não os diminui enquanto categoria, nem os desqualifica quanto a sua
ancestralidade, africanidades e sujeitos propensos aos benefícios das políticas públicas. Foi
assim que se definiu por denominá-los de comunidade negra, mesmo porque até o final deste
texto, o Incra ainda não completou o processo, nem os atribuiu a titulação que eles almejam.
A análise de alguns elementos da comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos, bem
como o contexto histórico nacional e estadual na qual se inserem, no que diz respeito às
politicas públicas para negros e quilombolas proporcionaram a compreensão de que as
comunidades negras tradicionais existem, se transformam como qualquer grupo. Os
integrantes da comunidade negra Manoel Ciríaco dos Santos vão continuar suas práticas, e a
demarcação, por ser um ato jurídico, por si só, não confere ou altera suas identidades.
O olhar sobre suas histórias, memórias, relatos, imagens de fotografias, juntamente
com a análise de parte do cotidiano dos integrantes da comunidade negra Manoel Ciríaco dos
Santos, permitiu a compreensão de que há um quilombo em “construção”. As pessoas que
pretendem o título de quilombo remanescente lutam pela demarcação das terras e trabalham
no sentido de comprovar que há no seu espaço, em seu território, uma ancestralidade negra,
com características de uma coletividade campesina.
Trazendo à tona parte das histórias dos integrantes da comunidade negra, perceberam-
se fronteiras e limites que permeiam os espaços e as relações, pois não se trata de uma
113
comunidade homogênea. Eles são pretendentes à titulação de quilombolas que pensam, agem
e se articulam de formas variadas. As identidades foram se reformulando ao longo dos
tempos, bem como mudaram suas vidas e seus interesses desde que o processo de demarcação
das terras foi desencadeado. Aos poucos a historia foi se revelando mais dinâmica, percebeu-
se certa fluidez, inconstância e fronteiras inimagináveis, com relação aos lugares, conflitos,
aos comportamentos e discursos.
Destacaram-se as fotografias que revelam formas de organização dentro da
comunidade, ou seja, suas moradias, seus rituais, suas plantações, animais, estradas, riu, etc.
Ainda, discutiram-se questões acerca das identidades que foram se reformulando a partir do
interesse em ser quilombo remanescente, as quais atribuíram novos sentidos à memoria, à
cultura e ao território da comunidade negra em análise.
São sujeitos que buscam, principalmente, o direito às políticas públicas, as quais
garantem o acesso aos benefícios que a demarcação das terras como remanescente de
quilombo proporcionaria.
Nesse conjunto de possibilidades foi possível perceber as fronteiras que dificultam o
acesso ao objetivo dos integrantes da comunidade negra, que é conseguir a titulação e a
demarcação das terras, porque, apesar de haver leis e documentos que, na teoria, garantem a
eles o ganho de causa, surgem as burocracias, pessoas que representam instituições e trâmites
que não permitem que eles, pelo menos por enquanto, consigam o reconhecimento de suas
terras como de quilombolas remanescentes.
Mas é preciso destacar também, que todo esse processo burocrático precisa ser feito
com cuidado e de tal forma que a documentação esteja correta para não haver problemas no
futuro, como uma anulação da demarcação ou invalidade.
No caso da demora no processo de demarcação das terras da comunidade negra
Manoel Ciríaco dos Santos, as dificuldades estão, principalmente, no laudo antropológico
negativo e contrário, nas opiniões de políticos com seus discursos demagógicos e,
principalmente, nos vizinhos, agricultores, que na maioria, temem ceder terras, são
preconceituosos e racistas, dificultando todo o processo, apesar de terem garantias de que
seriam indenizados caso a demarcação das terras como quilombo remanescente mudasse seus
limites territoriais.
Ficou evidente que a identidade dos integrantes da comunidade negra sofreu alterações
diante da busca pela titulação e demarcação de terras. Desde que a Fundação Cultural
Palmares concedeu a eles a certidão de Auto Reconhecimento de um Quilombo
Remanescente, os pretensos quilombolas acentuaram mudanças, construindo uma nova
114
imagem, face, identidade. Os novos interesses que levaram à construção da nova identidade
revelaram que esta passou a ser mais focada nas características do ser negro, do manejo
diferenciado da terra, das suas práticas religiosas, práticas festivas, plantações, confecção de
artesanatos à base de capim, dos seus espaços comuns de encontros, rituais, prática da
capoeira, dentre outros.
Para essa nova fase dos integrantes da comunidade, de serem quilombolas
remanescentes, foi necessária a comprovação do diferente sentido do seu território, um
território onde o espaço é palco das experiências vividas, onde as relações entre os atores se
revela com a natureza, permeadas pelos sentimentos e pelos simbolismos atribuídos ao lugar.
São nesses espaços que se revelam práticas que lhes garantem identidades sociais e culturais.
Nesse sentido, percebemos que o território e a questão da identidade estão indissociavelmente
ligados.
Desde o primeiro contato com a situação dos integrantes da comunidade negra,
percebeu-se dificuldades deles em sobreviver com pouca terra. Este problema se agravou com
o conflito deles com os agricultores da região, pois não trabalhar mais para os vizinhos.
Trabalho este que, até então, auxiliava e complementava a renda familiar. Com esses
elementos, foi possível compreender também a necessidade de terem mais qualidade de vida,
igualdade nos direitos e acesso às políticas públicas destinadas a essa população.
Por esses motivos, conflituosos, não foi possível ficar neutra diante da história. A
pretensa neutralidade de pesquisador não possibilitaria o acesso a informações importantes,
ciosamente guardadas por aqueles que constituem os protagonistas das ocorrências e dos
acontecimentos. A opção por descrever e assumir o lado da vítima pareceu mais rico e
moralmente mais justo para compreender de modo abrangente os complicados processos
sociais e fronteiriços.
E foi assim que se seguiu com a pesquisa, pensando nas injustiças do passado dos
negros no Brasil, nas fronteiras que existem até hoje, por conta desse passado dos negros no
Brasil, que muitos herdeiros da escravidão ainda vivenciam.
Pensar e escrever sobre a história de vida dos integrantes da comunidade negra
Manoel Ciriaco dos Santos, foi também pensar e escrever numa forma de defendê-los dessa
herança, tentar promovê-los a uma situação um pouco melhor, desejando, ainda que de forma
inibida, pelo dever do ofício de pesquisador, que eles consigam sim a demarcação de suas
terras como quilombolas.
A análise dos conflitos que afloraram em Maracaju dos Gaúchos, a partir do processo
de demarcação das terras dos integrantes da comunidade negra Manoel Ciriaco dos Santos
115
como remanescente de quilombo, revelaram-se um amplo campo de pesquisa, onde foi
possível constatar que os grupos não são homogêneos, que há contradições, inclusive no
desejo de ser ou não quilombolas.
E essa discussão contempla não só o conflito em si, gerado pelo processo de
demarcação das terras, mas principalmente, todo o desenrolar da história, com as vozes e os
posicionamentos de pessoas que representam instituições, categorias, grupos, mídia,
sociedade civil, entre outros. Esse aspecto proporciona o entendimento das micro histórias,
num nível local, contrapondo com um nível mais abrangente, num contexto de macro
histórias.
Quando se destacou, com ênfase, o papel da equipe da Unioeste, que elaborou o laudo
antropológico da Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos Santos, negativo quanto à
identidade quilombola, não foi possível esconder a indignação. E a pergunta que não foi
possível responder ao longo da pesquisa, foi, como pode ser possível, para esses profissionais
de uma universidade pública, posicionarem-se contra a solicitação dos integrantes da
comunidade em obterem um auxílio do governo federal, direito concedido pela Constituição
Federal de 1988, baseado no Decreto Federal nº. 4887/2003 e atestado pela Fundação Cultural
Palmares, com a Certidão de Auto Reconhecimento, concedida a esses negros. Mas sabe-se
que posicionamentos ideológicos não dependem de “níveis” de estudo, nem do pertencimento
ou não às instituições públicas, e até os intelectuais podem decepcionar.
As questões referentes às fronteiras percebidas nesta problemática, revelaram certa
fluidez, em se tratando do aspecto ideológico. Exemplo desta fronteira fluída, podemos
destacar, dentro da dinâmica na comunidade, as manifestações religiosas, pois no mesmo
território há adeptos de práticas variadas, como Umbanda, Candomblé, Católica e Evangélica.
Conclui-se também, que os territórios tem significados diferentes, que as culturas são
distintas, que os conflitos emergem e muitas vezes não há limites para contê-los.
A disputa e o conflito que se instauraram na Comunidade Negra Manoel Ciríaco dos
Santos revelam sentidos e significados que vão muito além das fronteiras e dos territórios,
transcendem os limites do conhecimento, balança com saberes estruturados. O repensar do
território nacional e o fato dos líderes governamentais permitirem a existência de
comunidades remanescentes quilombolas, e reconhecer suas tradições, culturas, territórios e
fronteiras, além de balançar com as ideologias enraizadas do sistema capitalista, valoriza as
experiências e vivencias dos que, historicamente, estiveram a margem.
Discutiu-se sobre os discursos ideológicos que surgiram sobre a causa quilombola,
pareceres de intelectuais e de políticos. Abordou-se a manifestação dos próprios quilombolas
116
brasileiros, organizados em evento, para protestar contra o processo judicial ADIN que
pretende inconstitucionalizar o Decreto Federal.
Nesse sentido, as discussões vão para além das fronteiras e seus territórios, pois há
tanto para se compreender das relações humanas, principalmente porque há contradições e a
vida real é muito mais dinâmica e complexa do que podemos prever.
Questionamentos todos à parte, não foi pretensão, durante essa trajetória de pesquisa,
concluir o texto sabendo do resultado final, da demarcação ou não das terras como de um
quilombo remanescente, mas sim, conhecer e refletir como se dá o processo em si, os
conflitos que emergem, as mudanças de rumos da história, das características identitárias, dos
rompimentos, dos discursos e interesses dos envolvidos.
Sabe-se que foram muitas lacunas não preenchidas, perguntas que ficaram sem
respostas, histórias não contadas. Mas isso traz uma certeza, diante da imensidão de
questionamentos, que existem possibilidades da pesquisa seguir em frente, abordando outros
aspectos, contemplando novas abordagens.
Nesse sentido, a história não tem fim. Nem teve fim essa história. E isso também nos
traz uma certeza, que a vida na comunidade negra anda, muda e se faz. Se constrói e
reconstrói a ponto de promover novas pesquisas. E também que esta é uma comunidade
dentre outras, em outros lugares.
Por fim, acredita-se que, mais importante do que o resultado, é o caminho percorrido,
são as lutas, as vivências, as construções e as reconstruções das identidades, sabendo que
existem fronteiras, mas que elas podem ser, além de reconhecidas, transpostas, transformadas.
E há ainda tanto por se fazer nesse aspecto.
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