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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS
DEPARTAMENTO DE LNGUAS E LETRAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
MESTRADO EM ESTUDOS LITERRIOS
SANDILEUZA PEREIRA DA SILVA MENDES
A MULHER NA POESIA DE CORDEL DE LEANDRO GOMES DE BARROS
VITRIA 2009
SANDILEUZA PEREIRA DA SILVA MENDES
A MULHER NA POESIA DE CORDEL DE LEANDRO GOMES DE BARROS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras do Departamento de Lnguas e Letras do Centro de Cincias Humanas e Naturais da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Estudos Literrios. Orientador: Prof. Dr. Luis Eustquio Soares.
VITRIA
2009
SANDILEUZA PEREIRA DA SILVA MENDES
A MULHER NA POESIA DE CORDEL DE LEANDRO GOMES DE BARROS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras do Departamento de Lnguas e Letras do Centro de Cincias Humanas e Naturais da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Estudos Literrios.
A ser apresentada em 17 de abril de 2009.
BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Luis Eustquio Soares Universidade Federal do Esprito Santo Orientador Presidente da Banca Prof. Dr. Anelito Oliveira Universidade Estadual de Montes Claros/MG Membro da Banca Prof. Dr. Deneval Siqueira Azevedo Filho Universidade Federal do Esprito Santo Membro da Banca Prof. Dr. Jorge Luiz do Nascimento Universidade Federal do Esprito Santo Membro Suplente
Dados Internacionais de Catalogao na publicao (CIP)
(Centro de Documentao do Programa de Ps-Graduao em Letras, da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)
Mendes, Sandileuza Pereira da Silva, 1972-
M538m A mulher na poesia de cordel de Leandro Gomes de Barros / Sandileuza Pereira da Silva Mendes. 2009.
123 f. : il. Orientador: Luis Eustquio Soares Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Esprito Santo, Centro de
Cincias Humanas e Naturais. 1. Barros, Leandro Gomes de Crtica e interpretao. 2. Literatura de cordel
Histria e crtica. 3. Literatura de cordel Aspectos sociais. 4. Mulheres na literatura. I. Soares, Luis Eustquio. II. Universidade Federal do Esprito Santo, Centro de Cincias Humanas e Naturais. III. Ttulo.
CDU: 82
minha amada Amanda.
AGRADECIMENTOS
Devido a sua finalidade acadmica, uma dissertao um trabalho individual.
No entanto, sabemos que h contribuies outras que no podem nem devem
deixar de ser destacados. relevante atribuir que o agradecimento coletivo se torna
arriscado no ao decidir quanto quele que deve ser includo e sim aquele que no
foi mencionado.
por essa razo que publico aqui os meus sinceros agradecimentos:
Ao meu professor orientador Lus Eustquio Soares.
Aos demais professores, aos funcionrios e aos colegas do Mestrado em
Estudos Literrios.
A professora Vera Mrcia Toledo, que esteve ao meu lado apoiando e
estimulando ainda na fase embrionria desse trabalho.
A todos os amigos que por meio de incentivo, contriburam e ajudaram com
sugestes efetivas nessa importante fase da minha vida. Em especial a Fernanda
Scopel, por ter auxiliado na realizao desse sonho, pelo apoio e ajuda dada ao
trilhar os caminhos das pedras. Luciana, Nanine, Roberta, Iza, Flvia e Rachel
por terem me amparado, a partir de cuidado, carinho e oraes.
minha me Laudiceia pelo exemplo de perseverana, f e conquista.
Glucia, Gledston, Moacir e Humberto pelo incentivo e certeza do meu
sucesso.
Amanda e Welington, companheiros de todas as horas, pela pacincia.
A toda minha famlia, em especial a minha av Felcia que me ensinou a
construir, valorizar e respeitar as diversas manifestaes culturais do povo
brasileiro.
E sempre ao Deus digno de toda honra e toda glria.
Com um sorriso, a mulher atrai o homem para o abismo. Um pesadelo eterno. Miragem, feitio, iluso. Pela manh, a alma feminina vero. tarde, tempo de inverno.
Leandro Gomes de Barros
RESUMO
Estuda a presena do comportamento feminino na poesia de cordel de Leandro
Gomes de Barros, a partir da revalorizao cultural brasileira em seus mltiplos
olhares, os quais se refletiram, nos diversos campos cientficos, educacionais e
sociais. Para tanto, estabelece a abordagem de anlise literria e social a partir da
percepo do universo feminino no cordel. Situa o surgimento da literatura de cordel,
com o foco voltado s suas caractersticas e estrutura formal. Verifica a anlise
epistemolgica feminista que confere o comportamento feminino como contribuinte
na prtica cultural popular cordelista, na vertente de a mulher autora participante e
no personagem do cordel. A partir desse contexto, sero expostas questes
concernentes resistncia da literatura de cordel at a contemporaneidade, e a
relao dos cordelistas com a presena da mulher enquanto ser constituinte e/ou
constituda. No deixaro de ser abordados: a anlise de Barros e anlise do
comportamento feminino na infncia, adolescncia, maturidade e velhice. Tambm
sero feitas atribuies relativas relao homem/mulher da imagem feminina
impressa nos cordis, a partir da tcnica e esttica xilogrfica; a apresentao de
peculiaridades biogrficas de Leandro Gomes mulher, caracterizada pela seduo e
pelo devir feminino da literatura de cordel valendo-se de conceitos de poder
constituinte, singularidade e comum.
Palavras-Chave: Poesia de Cordel. Comportamento feminino. Leandro Gomes
de Barros.
ABSTRACT
Studies the presence of the feminine behavior in the twine poetry of Leandro Gomes
de Barros, from the brazilian cultural revalorizes in its multiple looks, which if they
had reflected, in the diverse scientific, educational and social fields. For in such a
way, it establishes the boarding of literary and social analysis from the perception of
the feminine universe in the twine. It points out the sprouting of the twine literature,
with the focus directed to its characteristics and formal structure. Feminist verifies the
epistemological analysis that she confers practical the feminine behavior as
contributing in cultural the popular author twine, the source of the woman participant
author and not personage of the twine. From this context, concernments questions
to the resistance of the twine literature will be displayed until the contemporary, and
the relation of the author twine with the presence of the constituent woman while
and/or to be constituted. They will not leave of being boarded: the analysis of the
feminine image printed in twines, from the technique and aesthetic xylographical; the
presentation of biographical peculiarities of Leandro Gomes de Barros and analysis
of the feminine behavior in infancy, adolescence, maturity and oldness. Also relative
attributions to the relation will be made man/woman, characterized for the seduction
and feminine devoir of the twine literature using itself of concepts of being able
constituent, common singularity and.
Key- Word: Twine poetry. Feminine behavior. Leandro Gomes de Barros.
SUMRIO
INTRODUO: LITERATURA DE CORDEL: REFLEXES SOBRE A MEMRIA CULTURAL DE UM POVO ..................................................... 3 1 O CONTEXTO HISTRICO-LITERRIO DO CORDEL: AUSNCIA DA EPISTEMOLOGIA FEMININA ............................................................ 9
1.1 CONTEXTOS E PRETEXTOS: OS CORDIS HISTRICOS DA LITERATURA DE CORDEL .................................................................. 9 1.2 ASPETOS SOCIAIS DA LITERATURA DE CORDEL .................. 10
2 ARTE E PAIXO DO CORDEL: A MULHER COMO SER CONSTITUDO/ CONSTITUINTE ........................................................... 22
2.1 A RESISTENTE ARTE DO CORDEL ........................................... 22 2.2 A ARTE DE ESCREVER A LITERATURA DE CORDEL ............. 28 2.3 A PAIXO E A ARTE DOS ESCRITORES DE CORDEL: TRAJETRIA DOS AUTORES DO CORDEL COMO MEIO DE SOBREVIVNCIA. .............................................................................. 34
3 A MULHER NA XILOGRAVURA DE CORDEL: RELAO IMAGEM FEMININA NO CORDEL ......................................................................... 46
3.1 UM POUCO SOBRE A HISTRIA DA XILOGRAVURA .............. 46 3.2 IMAGEM E XILOGRAVURA: ARTE GRFICA COMO MEIO DE ILUSTRAR O CONTEXTO DO CORDEL ........................................... 50 3.3 IMAGEM FEMININA NA XILOGRAVURA DE CORDEL .............. 55
4 O UNIVERSO FEMININO NO CORDEL: A MULHER NA POESIA DE LEANDRO GOMES DE BARROS .......................................................... 61
4.1 TRAJETRIA DA VIDA E OBRA DE LEANDRO GOMES DE BARROS NO CORDEL ....................................................................... 61 4.2 O IMPRIO FEMININO NA POESIA DE CORDEL DE LEANDRO GOMES DE BARROS ......................................................................... 68 4.3 AS PRINCIPAIS FASES DO COMPORTAMENTO FEMININO NA POESIA DE LEANDRO GOMES DE BARROS .................................. 77
5 CONCLUSO: A LUTA PELO BEM COMUM .................................... 88 6 REFERNCIAS .................................................................................... 94
6.1 FONTES PRIMRIAS ................................................................... 94 6.2 - FONTES SECUNDRIAS (FOLHETOS) .................................... 96
ANEXO: POESIAS E IMAGENS DO CORDEL ................................... 100
3
INTRODUO: LITERATURA DE CORDEL: REFLEXES
SOBRE A MEMRIA CULTURAL DE UM POVO
A reflexo sobre a vasta riqueza cultural brasileira, e em especial a
nordestina, por estar ligada indissoluvelmente ao desafio cotidiano pela e para
a sobrevivncia, mais que apaixonante, sem deixar de s-lo sempre, porque
nos chama e nos convoca a voltar a nossa ateno para questes coletivas e
bsicas, como a da gua para beber e irrigar o plantio, a alimentao dos
filhos, o direito terra, a alegria comunitria das festas, as quais, bem mais que
religiosas, constituem pretextos para o convvio, face a face, entre geraes,
classes e gneros.
A literatura de cordel, metaforicamente, inscreve o contexto a um tempo
lrico e pico da costura ou coeso de uma comunidade destino, a
nordestina. A corda, a que o cordel faz referncia, parece sugerir a
necessidade de costura diria dos desafios materiais e simblicos de toda uma
comunidade humana, de homens e mulheres intensamente marcados pela
adversidade do meio e pela necessidade, para sobreviver, de superar a
violncia de relaes de poder fundadas no privilgio patriarcal da posse da
terra.
por isso que esse gnero de poesia popular impressa, comumente
encontrada no Nordeste do Brasil, tem como principal caracterstica a
incorporao das pulsaes vitais do cotidiano comunitrio, com toda sua
diversidade miscigenada, de povos e de culturas.
Quanto a esse aspecto elucida Luyten:
Embora exista em todo territrio nacional, foi no Nordeste que a literatura de cordel se desenvolveu de uma forma excepcional, sobretudo nos ltimos cem anos justamente porque foi a partir dessa poca, mais ou menos, que o povo conseguiu fazer uso da imprensa no Brasil. A grande vantagem da literatura de cordel sobre as outras expresses da literatura popular que o homem do povo imprime do jeito que ele as entende (LUYTEN, 1993, p. 40).
O cotidiano do povo nordestino simples e sertanejo fonte de uma
diversidade de temas, sendo os mesmos cantados em versos espontneos,
revelados em sua forma e contedo, registrados em livretos simples de
4
impresso artesanal, expressos por cantadores que usam como instrumento e
objetivo o pensamento coletivo de sua regio.
Esse contexto coaduna-se com a perspectiva terica de Manuel Lopes,
ao tratar da literatura de cordel:
De estilo atraente, o cordel uma forma tpica de literatura popular do Nordeste brasileiro, constituindo-se num dos maiores veculos de comunicao de massa de toda regio. Atravs dele, a alma aberta, lrica ou sofrida do nordestino, apresenta-se, noticia-se com seus problemas, suas alegrias, seus costumes, sua cultura enfim, se abastecem de fatos reais, de estrias, de notcias que o fato noticiarista e a criatividade do poeta do povo captam, constroem e divulgam ( LOPES apud MEDEIROS, 2002, p.25).
Este cenrio mgico da poesia cordelista nos conduz a uma justificativa
pessoal que se evidencia no desenvolvimento desse trabalho, cujas imagens
esto gravadas no imaginrio das histrias de cordis contadas em encontros
familiares no decorrer da minha infncia. Com o comando do tempo, a literatura
de cordel retornou minha vida na graduao do Curso de Letras, mais
precisamente nas aulas de Literatura Portuguesa ministradas pela querida
Prof. Me. Vera Mrcia Toledo. Com autoridade, em momentos hipnticos, a
mestra nos conduzia s cantigas trovadorescas, logo fazia-nos perceber que a
literatura de cordel se instalou no Brasil traduzindo fortes razes trovadorescas
e, desse modo, podemos comparar as suas caractersticas com as dos textos
poticos do trovadorismo, textos estes denominados cantigas.
A partir desse momento, fui em busca de estudos de expresso de
alteridade que me deixassem mais prxima de uma literatura que passei a
conhecer como alteridade. Logo, percebi que a ideologia do cordel seria uma
das questes que me convidava para entrar no encantamento dessa literatura
e que deveria ser reconhecida a partir das:
[...] contradies, adeses dos poetas, ecletismo na exaltao tanto de heris (ou anti-heris) como de autoridades investidas ou institudas, a aceitao do que se instaura com respeito e admirao pela hierarquia no canto quelas autoridades, tudo isso compe o prprio quadro dessa ideologia a longo, e muito longo prazo (evidentemente) (PROENA, 1976, p.105).
Nessa busca pela literatura de cordel, chamou-me a ateno escassez
de material no Esprito Santo para a primeira pesquisa, o tmido trabalho de
5
concluso de curso. At que chegaram a minhas mos, livros e folhetos de
cordis trazidos pelo meu pai, de uma de suas vrias viagens ao Nordeste.
Nesse momento, senti que muitos passos seriam dados movidos curiosidade
de adentrar no mundo da literatura de cordel.
Sendo assim, numa das diversas conversas com meu irmo, Moacir
Sobrinho, veio a idia de unir duas alteridades: a literatura de cordel e a
temtica da mulher. Essa unio projetou o meu desafio, pois percebi que o
universo feminino, principalmente sob a perspectiva terica, relativamente
setorizado, voltado para a reflexo auto-afirmativa da mulher, no contexto de
uma cultura patriarcal, o que faz com que geralmente fique em segundo plano
reflexes outras, fundadas em outro paradigma, que o do dilogo
colaborativo entre homens e mulheres.
Comecei, no entanto, a ter conscincia mais crtica da necessidade
desse outro paradigma, o da colaborao entre homens e mulheres, tendo
literatura de cordel como referncia, aps a leitura do artigo A Mulher na
Literatura de cordel escrito pela Professora Doutora da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, Maria Francinete de Oliveira, o que expressava:
Dentre os vrios aspectos abordados na literatura de cordel, destaca-se com relevncia os assuntos referentes personagem feminina. Sabe-se que a presena da mulher nos folhetos constante e o seu campo de estudo muito vasto, porm pouco se tem feito a respeito deste tema (OLIVEIRA, 1993, p.480).
Inspirada nessa informao, de Maria Francinete de Oliveira, passei a ter
mais clareza do percurso que deveria tomar, a saber, o da representao
feminina na literatura de cordel, tendo como referncia a poesia do cordelista
paraibano Leandro Gomes de Barros, pois, na potica desse importante
cordelista nordestino, observa-se uma multifacetria presena feminina, ora sob
um vis nitidamente machista e patriarcal, ora sob um vis lrico, capaz de
incorporar o ponto de vista da mulher nordestina, indo ao extremo do elogio ao
preconceito, em relao ao seu comportamento de maneira pessoal e social,
pois:
s mulheres foi destinado o mundo das emoes e da sensibilidade, sem dvida mais prximo da atividade artstica do que da cincia. Natural, portanto, que a imagem masculina estivesse mais ligada ao
6
discurso racional e cientfico, enquanto a figura feminina transitasse com mais desenvoltura no universo da arte. Podemos dizer que a posio hegemnica do homem na sociedade impediu que sua imagem fosse to amplamente usada, como a da mulher, na construo de metforas e na elaborao de discursos poticos. A mulher, em sua situao muitas vezes subalterna e associada s aparentemente menos nobres questes do esprito e do sentimento, teve sua imagem tratada com mais liberdade pelos artistas, prestando-se a uma produo volumosa de personagens e tipos sociais (COSTA, 2002, p.21).
Aps esta Introduo, a dissertao seguir com objetivo de
estabelecer uma leitura crtica do material bibliogrfico e constituir o arcabouo
terico em que assentaro as anlises. O captulo O contexto histrico-
literrio do cordel: ausncia da epistemologia feminina ir abordar o
cenrio histrico, as caractersticas da literatura de cordel, suas contribuies
culturais na sociedade; ir propor como cerne da questo, a anlise
epistemolgica sobre a representao feminina, vis-a-vis a questes de
conhecimento ligadas cultura nodertina, numa perspectiva que envolve
homens e mulheres, sem apart-los, pois produzem, juntos, um destino
comum.
No obstante isso, neste Captulo investigarei ausncia feminina na
literatura de cordel, na qual a presena da mulher como cordelista mnima,
como elucida Doralice Alves de Queiroz
A ausncia feminina na autoria dos folhetos impressos deve-se em parte s funes que deveriam ser exercidas pela mulher numa sociedade patriarcal de passado colonial, em que se evidencia o silncio e a recluso tanto no cenrio pblico da vida cultural quanto no registro das histrias da nossa literatura (QUEIROZ, 2006, p.13).
No captulo seguinte, Arte e paixo do cordel: a mulher como ser
constitudo/ constituinte levar em considerao a anlise formal,
conteudstica e funcional dos elementos da literatura de cordel, como tambm
sero abordadas questes relativas a literatura de cordel enquanto espao, ou
seja, lugar de resistncia/insistncia at os dias atuais, e a apreciao de como
os cordelistas se relacionam com a presena da mulher nessa literatura
enquanto ser constituinte e/ou constituda, num panorama em que revela a
mulher enquanto atuante em seu meio, a partir da contribuio que esta faz
para o comum e o singular, pois vlido ressaltar que, enquanto a ordem do
7
poder constitudo aquela do dever-ser, a ordem do poder constituinte
aquela do ser (NEGRI, 2002, p.12). Para tanto, teremos como suporte dentre
outros autores, Antonio Negri que nos auxiliar no desenvolvimento dessa
leitura.
J o captulo A mulher na xilogravura de cordel: relao imagem
feminina no cordel contemplar a anlise da imagem feminina impressa nos
cordis, a partir de uma abordagem esttica, pois concordamos com Cristina
Costa (2002), ao relatar que:
Dissemos que o estudo da figura feminina na atualidade no poder ser feito levando-se em conta apenas a produo reconhecida como artstica, mas que ser necessrio tratar tambm das imagens criadas e veiculadas pelos meios de comunicao de massa (COSTA, 2002, p.158).
Nesse contexto, a partir da observao das imagens das capas dos
folhetos, questes mais gerais atinentes como conceito, histrico, autenticidade
e traos mnemnicos da imagem xilogrfica de cordel sero enfocado. Por fim,
o captulo O universo feminino no cordel: a mulher na poesia de Leandro
Gomes de Barros ir propor a reviso da literatura pertinente ao tema central
de nossa pesquisa. Neste captulo conheceremos um pouco sobre Leandro
Gomes de Barros, um pouco e muito inspirada pelo seguinte fragmento de
Joo Martins de Athayde:
Poeta como Leandro, inda o Brasil no criou, por ser um dos escritores que mais livros registrou, canes, no se sabe quantas, foram seiscentas e tantas as obras que publicou. No dia de sua morte o cu mostrou-se azulado, no visual horizonte um crculo subdourado amostrava no poente que o poeta eminente j havia se transportado (ATHAYDE apud MEDEIROS, 2002, p.19).
Alm de visitar a biografia de Leandro Gomes de Barros, que expe
peculiaridades interessantes sobre o autor, sero tratados assuntos referentes
ao comportamento feminino, em suas diversas faixas etrias: infncia,
adolescncia, maturidade e velhice; a relao homem/mulher, presentes em sua
poesia, ser abordada a partir do olhar voltado ao devir feminino da literatura
de cordel, utilizando os conceitos trabalhados por Negri: poder constituinte,
singularidade e comum. Observaremos tambm, na poesia de Gomes de
Barros, a questo da seduo feminina por meio da leitura de Baudrillard; e,
8
com Walter Mignolo, ser discutido o cenrio social que atribui vivermos numa
civilizao patriarcal e que, por conseguinte, proporciona uma epistemologia
patriarcal com traos patriarcais, falocntrico e androcntrico. Mais uma vez,
nesse momento, no podemos deixar de visitar Cristina Costa (2002), a qual
coaduna com esse argumento ao se referir ao jogo da relao homem e mulher.
Para a autora:
No jogo da dialtica das relaes sociais as pessoas formam-se no contraponto das imagens recprocas, como em um jogo de espelhos, compreendendo-se ou opondo-se, contemplando-se ou estranhando-se. A se revelam alteridades, diversidades, desigualdades, acomodaes e oposies. Nesse sentido que o espelho da mulher pode ser o homem, assim como o espelho do homem pode ser a mulher, ambos constituindo-se recproca necessria e contraditoriamente (COSTA, 2002, p.9).
na Concluso dessa dissertao que ser explicitada a importncia da
conduta feminina na obra de Leandro Gomes de Barros, a partir da avaliao
dos resultados obtidos e das consideraes finais, em que, apreciando o todo
investigado, volta o meu olhar para a reflexo da cooperao entre homens e
mulheres, em lugar de destacar o confronto.
Nessa trajetria, acredita-se atingir nossa finalidade, ao certificar-se da
importncia desse trabalho para os estudos literrios, a partir da utilizao de
bibliografia especfica relativa aos assuntos suscitados pelos poemas,
sobretudo aqueles que se referem representao feminina na poesia de
Leandro Gomes de Barros..
9
1 O CONTEXTO HISTRICO-LITERRIO DO CORDEL:
AUSNCIA DA EPISTEMOLOGIA FEMININA
1.1 CONTEXTOS E PRETEXTOS: OS CORDIS HISTRICOS DA
LITERATURA DE CORDEL
Ao tratar da literatura oral, Paul Zumthor (ZUMTHOR, 1993, p. 9),
ressalta que a oralidade uma abstrao; somente a voz concreta, apenas a
sua escuta nos faz tocar as coisas. Observa-se, nesse contexto, que contar
histria faz parte da cultura de um povo. As sociedades antigas tinham esse
costume por meio de seus membros experientes e respeitveis, ou tinham seus
feitos fantasiados e registrados pelos poetas. E com a inveno da impresso
grfica essas histrias e poemas puderam atingir um maior nmero de
pessoas. Da originou-se, no velho continente, a literatura de cordel.
O cordel1 j existia por volta do sculo XVI, tendo chegado Pennsula
Ibrica na poca dos povos conquistadores greco-romanos, fencios,
cartagineses, saxes etc. com o nome de pliegos sueltos de Jlio Caro Baroja
(CULTURE, 1975), na Espanha, e folhas soltas ou volantes, em Portugal.
Sobre esse aspecto elucida Cascudo:
Duas fontes contnuas mantm viva a corrente. Uma exclusivamente oral, resume-se na histria, no canto popular e tradicional, nas danas de roda, danas de divertimento coletivo, ronda e jogos infantis, cantigas de embalar (acalantos), nas estrofes das velhas chcaras e romances portugueses como solfas, nas msicas annimas, nos aboios, anedotas, adivinhaes, lendas, etc. A outra fonte a reimpresso dos antigos livrinhos, vindos de Espanha ou Portugal e que so convergncias de motivos literrios dos sculos XIII, XIV, XV, XVI, [...] (CASCUDO, 1984, p. 23).
Esse tipo de literatura tinha em seu contedo uma forte abrangncia que
caa no gosto das pessoas de diversas camadas sociais, ou seja, da plebe at
a corte, devido informao dos acontecimentos da poca e da diversidade de
1 A literatura de cordel um gnero da literatura popular, cujos textos so vendidos em forma
de livretos e pendurados num barbante, ou cordas, nas feiras, mercados ou praas.
10
temas, pois retratavam romances, aventuras, descobertas martimas, histrias
tradicionais.
Essa literatura popular impressa existiu em diversos pases, como na
Frana, em que, at o sculo XlX, era denominada littrature de colportage de
Robert Mandrou (ENSAYO, 1969), uma espcie de literatura volante, mais
dirigida ao meio rural, por meio do occasionnels; j nas cidades prevalecia o
canard. Na Inglaterra, eram folhetos semelhantes aos nossos, chamados
cocks ou catchpennis, quando se tratavam de romances e histrias
imaginrias; e broadsiddes, relativamente s folhas volantes sobre fatos
histricos. Na Holanda, no sculo XVII, e na Alemanha, por volta dos sculos
XV e XVI, os folhetos tinham formato tipogrfico em quarto oitavo de quatro a
dezesseis folhas editadas em tipografias avulsas e se destinavam ao grande
pblico, vendidos em mercados, tabernas e igrejas.
Percebemos que a literatura de cordel se instalou em nosso meio
cultural, traduzindo fortes razes trovadorescas, o que nos permite compar-la
com alguns textos poticos do trovadorismo, as cantingas. Os trovadores foram
os pioneiros no que diz respeito Literatura de Cordel, nos pases de lngua
portuguesa, sobretudo no Nordeste do Brasil, a partir de Salvador-Bahia, dos
portos martimos e do Rio So Francisco, at chegar em Campina Grande,
Caruaru e Juazeiro do Norte, onde criou razes e imortalizou-se na verve dos
poetas cordelistas e cantadores repentistas (DOURADO,2007.p.3).
1.2 ASPETOS SOCIAIS DA LITERATURA DE CORDEL
M. Luyten, jornalista, professor e pesquisador da cultura popular, a partir
de uma perspectiva sociolgica, afirma que a cultura popular, por estar ligada
ao cotidiano e, portanto, sobrevivncia, resiste s inovaes circunstanciais,
prtica recorrente das elites - independente do perodo histrico - o que a torna,
a cultura popular, exemplar, como suporte mnemnico, instalado no corao do
cotidiano, de preservao da diversidade cultural.
A propsito, destaque-se o seguinte fragmento:
11
Em todas as sociedades, porm, temos sempre elementos dominadores e dominados, elite e povo, nobres e plebeus. Como conseqncia, uma viso frequentemente diferente a respeito das mesmas coisas. As elites costumam estar mais abertas para as novidades de fora de seu contexto habitual, ao passo que o povo vai absorvendo aquilo que novo, moderno, aos poucos, na medida em que vai precisando disso (LUYTEN, 1993, p. 8).
Ivan Cavalcante Proena2, por sua vez, inscreve a composio do
cordel enquanto epifenmeno, num quadro social mais global, caracterizando-
a na sua relao com o meio ambiente, pensado no sentido amplo, como
espao comunitrio, imanente, a partir do qual interagimos com os iguais, da
comunidade, ao mesmo tempo que dialogamos com as notcias do mundo.
(1976, p. 56).
E, de certo modo, tocando nessa via, Proena valoriza a criao por
meio do relacionamento ntimo entre os criadores/meio ambiente (1976, p. 57)
e no uma conceituao em torno de subordinao das artes, dos criadores
de arte, a um rgido esquema sociolgico, a uma determinada poca (1976. p.
57). Proena percebe que tal enfoque setorizaria, fecharia as chances de
qualquer criatividade (1976, p. 57).
vlido ressaltar que a cultura oral se inscreve na memria comum.
Como num jogo de cordel, puxando os fios intertextuais, o qual faz necessrio
conduzir-nos Emmanuel Lvinas que trata o discurso de dominao a partir
do pensamento da relao assimtrica com o outro em sua irrestrita e infinita
alteridade. Em Lvinas, a subjetividade garantida pela imanncia tica do
outro, donde se deduz que a alteridade ascende sua importncia existencial, e
tica, quanto mais colada nos desafios concretos da vida ela estiver. Lvinas
enfoca que o saber a cultura da imanncia. esta adequao do saber ao
ser que faz dizer, desde o alvorecer da filosofia ocidental, que no se aprende
seno o que j conhece e que apenas se esqueceu na interioridade
(LVINAS, 1997, p. 230). Desse modo, ser transcendental segundo o olhar
ocidental fechar para si mesmo, antropomorficamente, uma vez que a
transcendentalidade constitui uma forma de abstrao em relao s questes
concretas da vida.
2 Professor, Mestre e Doutor em Literatura, autor de inmeros livros e ensaios, entre os quais A Ideologia do Cordel (5 edio), Futebol e Palavra (2 edio), O Poeta do Eu (8 edio, sobre Augusto dos Anjos).
12
nesse contexto que Lvinas se far um interlocutor importante para o
dilogo com a literatura de cordel. Embora o filsofo da alteridade no tenha
enfocado a literatura de cordel e nem mesmo tenha relao de pesquisa com a
questo literria, sua concepo de alteridade, como imanncia, ou de
imanncia para imanncia, ou de rosto para rosto, ser de grande valia para o
estudo da literatura de cordel, porque usarei seus argumentos para pensar a
literatura de cordel como imanncia, como rosto de alteridade, lanado no cho
dos acontecimentos de uma cultura e uma sociedade, a nordestina.
Um outro interlocutor com o qual dialoga-se ser Jean Baudrillard
(2001), pois incorporaremos sua concepo de seduo, entendida como jogo
gravitacional entre formas em constante metamorfose, tal que uma forma se
desdobra sedutoramente em outra, desistituindo identidades estanques, seja
identidades de gnero, seja de espcie. A primeira, identidade de gnero, no
contexto em que a identidade masculina se metamorfoseia em feminina e a
segunda, a de espcie, na hiptese da identidade humana se metamorfosear
em devir animal
O que o filsofo francs chamou de sistema de signos e a sintaxe que
eles elaboram ( 2001, p. 14), ou de trocas simblicas entre alteridades, tendo a
seduo como referncia, chamaremos de jogo de seduo entre os signos
masculinos e femininos, no contexto da literatura de cordel.
Se Baudrillard entendia que toda alteridade seduo, logo troca
incessante de formas, para ns a literatura de cordel, como alteridade, possui
sua prpria sintaxe sedutora, singular e fascinante por partir dos desafios do
cotidiano.
Por outro lado, entendendo que a alteridade, como outro, pressupe um
mesmo referencial e padronizado, isto , pressupe um jogo epistemolgico de
oposies, tal que o homem o mesmo em relao mulher, o proprietrio de
terra um mesmo em relao ao pobre, e assim por diante, alm da
concepo de alteridade de Lvinas, como imanncia de rostos; e assim como
concepo de alteridade de Baudrillard, entendida como o prprio
diversividado, porque metamrfico, corpo da seduo, incorporaremos nesta
pesquisa a leitura que Walter Mignolo (MIGNOLO apud BOAVENTURA , 2004,
13
p. 681) faz da questo epistemolgica, posto que defende a necessidade de
uma prtica de saber vinculada a uma pluri-versalidade espistmica,.
Pode-se observar que, de acordo com Mignolo, as epistemologias
feministas e a etno-raciais, correlacionadas suas existncias no contexto do
cordel, so dependentes no mbito de alteridades em que so olhadas, a partir
da imposio de poder sobre elas, que demandado por meio do mesmo foco:
a epistemologia masculina e branca. Mignolo sobre isso comenta:
claro que estas epistemologias no so independentes uma da outra. Enquanto a primeira (epistemologia feminina) tem sido enquadrada por um paradigma patriarcal dominante, a segunda (epistemologia a etno-racial) tem sido enquadrada pelo racismo e pela lgica que subjaz: a colonialidade do poder (MIGNOLO apud BOAVENTURA , 2004, p. 681).
Ao analisar em dois momentos, respectivarnente a epistemologia etno-
racial e a epistemologia feminista, observa-se no primeiro momento que, de
acordo com Gustavo Dourado, a etno-racial colabora com a literatura de cordel
desde sua chegada ao Brasil, com os navegadores portugueses (DOURADO,
2008), pois o cordel incorporou a potica nativa do ndio, a criatividade e o
ritmo da poesia do negro, dos vaqueiros e tropeiros (o aboio) (DOURADO,
2008). Desse modo, ao aliar-se ao baio, xote, xaxado e o forr, originou-se o
ritmo sertanejo-tropical (DOURADO, 2008).
Com o despertar de Dourado quanto incorporao da potica nativa e
tnica brasileira, nota-se que, em nosso pas, a literatura oral se compe dos
rudimentos das trs raas, suas manifestaes inserem-se atualmente na
memria e uso do povo.
Cito Cascudo, a propsito:
Indgenas, portugueses e africanos possuam cantos, danas, estrias, lembranas guerreiras, mitos, cantigas de embalar, anedotas, poetas e cantores profissionais, uma j longa e espalhada admirao ao redor dos homens que sabiam falar e entoar (CASCUDO, 1984. p.9).
imprescindvel ressaltar que em nosso pas a literatura oral agrupa as
manifestaes do entretenimento popular, mantidas pela tradio. Ainda com
Cascudo:
14
[...] recreaco popular no inclui apenas o divertimento, o folguedo, infantil e adulto, mas igualmente as expresses do culto exterior religioso, na parte em que o povo colabora na liturgia ampliando ou modificando o cerimonial, determinando sincretismos e aculturaes, transformada numa espcie de atividade ldica (CASCUDO, 1984. p.29).
Relativamente aos registros dessa tradio proferida pelo ndio,
Cascudo aborda que, dentro do quadro colonial, encontram-se dificuldades de
documentar a expresso oral indgena, pois sua vida intelectual, as
manifestaes de sua inteligncia, impressionada pela natureza ou a vida,
seria colaborar na perpetuidade de Satans (CASCUDO, 1984, p. 29). Dessa
forma, agora dialogando com Mignolo, este observa que, nos sculos XVI e
XVII, o totalitarismo epistmico no era cientfico, mas teolgico e a prpria
cincia era concebida como verso secular de um totalitarismo epistmico
teolgico (MIGNOLO apud BOAVENTURA, 2004, p. 671). Cascudo afirma que
s sabemos do indgena do sculo XVI, de sua existncia normal, modos de
agir, pensar, resolver, cantar, a exposio alarmada dos catequistas, arrolando
os pecados, o que devia ser urgentemente corrigido (CASCUDO, 1984, p. 29).
Para tanto, a colaborao do ndio na literatura oral dialoga com a questo
religiosa, talvez desenraizada e transformada por meio da catequese. Pode-se
notar que, nesse aspecto, os negros trazidos para o Brasil tambm tinham o
costume por meio de seus trovadores de cantar e narrar suas histrias, o que
Cmara Cascudo (1984) profere de akpal, que eram os cantadores das
glrias guerreiras e sociais proclamadores das linhagens altivas. Essas
histrias foram transmitidas no nordeste do nosso pas, por meio das escravas
que as utilizavam para ninar os seus filhos e os de seus senhores. Quanto aos
portugueses, Cascudo (1984) corrobora a amplitude de seus contingentes e os
posiciona na vrtice do ngulo cultural no que se refere ao ndice de
influncias tnicas e psicolgicas. Metaforicamente, Cascudo aponta a
proeminncia cultural dessas raas no Brasil e na literatura oral:
Espalhou, pelas guas indgenas e negras, no o leo de uma sabedoria, mas a canalizao de outras guas, impetuosas e revoltas, onde havia fidelidade aos elementos rabes, negros, castelhanos, galegos, provenais, na primeira linha da projeo mental. Passada essa, adensavam-se os mistrios de cem reminiscncias, de dez outras raas, caldeadas na conquista peninsular em oitocentos anos de luta, fixao e desdobramento demogrfico (CASCUDO, 1984, p. 29).
15
Para Mignolo, atualmente, a descolonizao j no um projeto de
libertao das colnias, com vista formao de Estados-nao
independentes, mas sim o processo de descolonizao espistmica e de
socializao de conhecimento (MIGNOLO apud BOAVENTURA, 2004, p. 681).
interessante destacar que o poder e o saber so aliados como uma troca
cultural por meio das diferenas sociais, geogrficas, religiosa, polticas e
lingsticas dessas raas, notadas aqui no Brasil como colaboradoras da
literatura oral. o que se pode observar na poesia de cordel A histria do boi
misterioso, de Leandro Gomes de Barros:
[...]
Ento o Srgio saiu,
No pde mais demorar.
O coronel Sezinando
No mais deixou de pensar
Por que forma aquele boi
Ningum podia pegar
Chamou um escravo e disse:
-Monte num cavalo e v
fazenda do desterro;
Que eu mando dizer a ele
Que sem falta venha c.
[...]
Voltou o escravo e disse
Tudo que tinha sabido
Que na sexta-feira noite
O ndio tinha sado
E carregou a mulher
Como quem sai escondido.
[...]
(MEDEIROS, 2002, p.56-7)
As contribuies das divergncias lingsticas do ndio, do negro e do
portugus, para o cordel brasileiro, est de acordo com a necessidade de uma
pluri-epistemologia, para compreender a dimica do mundo. Acreditamos que a
literatura de cordel depositria dessa pluri-epistemologia, principalmente no
que tange questo tnica e lingstica, posto que inscreve ambas, na
materialidade de suas manifestaes.
16
Tratando da importncia de uma abordagem terica pluri-epistmica,
Walter Mignolo diz que:
As lnguas no so meros fenmenos culturais em que os povos encontram a sua identidade; so tambm o lugar em que o conhecimento est inscrito. E, uma vez que as lnguas no so algo que os seres humanos tm, mas algo que os seres humanos so, a colonialidade do poder e do saber veio a gerar a colonialidade do ser (MlGNOLO apud BOAVENTURA, 2004, p. 681).
Nota-se, ento, que, coadunando com colonialidade geopoltica do
conhecimento, o autor atribui que a Frana, a Inglaterra e a Alemanha no
colonizaram a Pennsula Ibrica, mas demonizaram-na, por meio, por exemplo,
da Lenda Negra e pela converso dos Latinos do Sul como inferiores, at certo
ponto, aos Anglo-saxes do Norte (MIGNOLO apud BOAVENTURA, 2004, p.
673). Para esse primeiro momento relativo epistemologia etno-racial, ficam
para reflexo as palavras de Mignolo:
Infelizmente para o mundo da lngua inglesa, toda bibliografia a que tem acesso situa a origem da palavra raa e, consequentemente do racismo no incio do sculo XVIII e todas as referncias so em francs, ingls e alemo. certo, que raa enquanto palavra, existia no sculo XVI e XVII, mas tinha um significado diferente na lngua verncula hegemnica do sculo XVI (o espanhol). Raza, em espanhol, significava casta ou calidad deI origen o linaje. S poderiam aspirar ao ingresso numa ordem religiosa, por exemplo, os que provadamente fossem nascidos de famlias nobres, com linhagens de vrias geraes. Mais que a cor da pele, era a pureza do sangue o critrio de definio. J no sculo XVI e na Espanha imperial, conhecimento e casta, raa e epistemologia funcionavam em conjunto (MIGNOLO apud BOAVENTURA , 2004, p. 682).
Como j deixamos entrever acima, o segundo momento ser de anlise
da epistemologia feminista no mbito da literatura oral, ou seja do
comportamento feminino como contribuinte na prtica cultural popular
cordelista, na vertente de a mulher, no momento ser autora participante e no
personagem da literatura de cordel.
Em relao literatura oral, e antes de tudo em relao ao protagonismo
feminino, mais do que a sua simples representao, importante buscar a
histria e analisar que as cantigas trovadorescas de amor eram direcionadas
s mulheres casadas; j as moas no eram elementos de louvor, pois no
tinham como dispor de bens porque viviam sob o domnio paterno. Ao contrrio
do amor corts, o casamento culminava em uma relao de negcios.
17
Nesse desgnio, ao se dirigir para os estudos de Doralice Alves de
Queiroz (2006, p.24), percebe-se que a partir do sculo XIII, com a invaso
dos cruzados de Inocncio III nas cidades do sul da Frana, a produo
trovadoresca transforma-se numa literatura dirigida: a Igreja impe o culto de
Maria como tema oficial dos novos trovadores.
Observa-se que o direcionamento do tema modifica a figura da mulher
no lirismo medieval, pois o culto que antes era prestado pelo vassalo sua
dama transforma-se na contemplao Virgem Santssima. No entanto,
percebe-se que nesse mbito se faz necessrio observar os modos de
tratamento para com as mulheres na idade Mdia.
Queiroz (2206, p.24) comina que antes do sculo XII parece ser
consenso entre os historiadores que, nos crculos sociais mais elevados de que
se tem notcia na documentao, a mulher no era tratada com qualquer tipo
de ternura, muito pelo contrrio. Por volta do sculo VIII, tanto a igreja quanto
a sociedade, atribuam mulher uma concepo mgica como influncia sobre
os eclipses lunares e domnio sobre as foras naturais; assim como o domnio
do amor, fora perturbadora que para muitos deveria ser condenada. Ao
conviver em uma sociedade dominada pela fora masculina, a muIher tentava
sobreviver de maneira limitada. Para ela cabia basicamente como funo:
procriar, cuidar de sua prole e ser obediente ao marido. E, como devia
obedincia ao seu cnjuge, prosaicamente poderia apanhar.
Elias Norbert em sua obra O Processo Civilizador, afirma que no tempo de Filipe II Augusto (1180 1223), o gesto de violncia mais comum era o soco no nariz: O rei (Filipe II) ouviu isso e a raiva coloriu-lhe o rosto; erguendo o punho, atingiu-a no nariz com tal fora que tirou quatro gotas de sangue. E a senhora disse: Meus mais humildes agradecimentos. Quando lhe aprouver, pode fazer isso novamente (QUEIROZ, 2006. p. 25).
No BrasiI, at incio do sculo XX, era comum a segregao da mulher.
A sociedade lhes impunha a permanecerem no mbito familiar, restringindo-se
somente a festas familiares, igrejas, saraus e celebraes sociais que as
convinham participar. Queiroz sobre isso relata:
Quando casada era considerada, por lei, uma incapacitada. Sem a autorizao do marido, ela no podia exercer uma profisso, aceitar ou recusar uma herana, sem sair desacompanhada, a menos que
18
fosse para fazer compras necessrias ao consumo do lar. Nas classes sociais mais elevadas, a mulher podia participar de reunies ou saraus, em que acontecia a leitura em voz alta dos romances e a declamao de poesias, contribuindo para formao de leitoras e, em rarssimas vezes, para expresso da autoria feminina (QUEIROZ, 2006. p. 25).
A partir do quadro histrico e social da mulher, comearemos a delinear
o percurso da ausncia da epistemologia feminista na literatura de cordel.
Como decorrncia do tratamento atribudo mulher, muitas so as razes do
desaparecimento das tradies femininas e conseqente obscurecimento da
sua autoria literria que teria como base a estrutura econmica, a produo
material das comunidades tradicionais (QUEIROZ, 2006, p. 24).
Nesse aspecto, ao fixar-se como uma das peculiaridades da cultura
regional nordestina, o cordel se espalha para os grandes centros do Brasil,
abrigando-se tambm em nosso Estado (Esprito Santo), representado de
modo pouco comum, ou seja, por uma figura feminina, a artista plstica e
escritora Ktia Bobbio3. interessante enfatizar a presena da escritora
capixaba na literatura de cordel, pois, de acordo com Maria Ignez Novais Ayala,
a profisso de poeta repentista exercida basicamente por homens, no
Nordeste e em outras regies do pas (AYALA, 1995. p. 490). Ayala ressalta
que h centenas de cantadores, enquanto as mulheres repentistas, de que se
tem notcia por meio dos livros e de informaes colhidas em pesquisa de
campo, chegam a pouco mais de cinqenta, entre vivas e falecidas (AYALA,
1995, p. 490).
Atualmente, em decorrncia de a mulher ir busca gradativa de seus
direitos, observa-se uma mudana no quadro comportamental feminino, porm,
no que se diz respeito s mudanas na literatura oral, ainda percebemos
3 Ktia Bbbio, nascida no litoral do Esprito Santo, em Conceio da Barra, no ano de 1960,
filha de Paulo Jos de Lima (in memorian) e Dria Bbbio Lima. Funcionria pblica estadual trabalha no arquivo de leis do ministrio pblico, poetisa, declamadora, pintora, trovadora e primeira escritora de Literatura de Cordel do Estado, com mais de 60 livretos de Cordel publicados. E organizadora da obra Poetas Barrerrses!, lanada em janeiro de 1999. Pertence a vrias entidades culturais literrias em todo o Brasil. associada e Vice-Presidente do Clube dos Poetas Trovadores Capixabas (CTC) e scia Fundadora da FEBET Federao Brasileira de Entidades Trovistas, a qual representa a Sociedade de Cultura Latina do Brasil, seo do Esprito Santo e Movimento Potico Nacional (ES). http:/Iwww.geocities.com/katiabobbio/cbarra.html . Acesso em 18 maio de 2007.
19
muitas lacunas a serem preenchidas, pois, conforme Ayala a participao da
mulher, nas prticas culturais populares, intensa naquilo que se configura
como o laudo autoritrio e material dos eventos (AYALA, 1995, p. 490). Pode-
se notar que, no Brasil, e imprescindivelmente no nordeste do pas, onde o
enfoque do cordel mais atuante, o papel da mulher relativo a essas prticas
culturais so e esto associados, historicamente, a atividades domsticas
como raizeira, benzedeira ou raizeira, cuida da sade dos familiares ou da
comunidade a que pertence, aliando a sabedoria s habilidades domsticas
[...] (AYALA, 1995. p. 490). J no mbito Intelectual, literrio e potico, Ayala
afirma que a mulher raramente ocupa o papel de maior destaque, seja na
organizao, seja no desenvolvimento das manifestaes culturais
propriamente ditas (AYALA, 1995, p. 490). A autora d continuidade a essa
afirmao, ao ressaltar que:
Dificilmente a mulher conquista um espao nas atividades intelectuais da cultura popular: como poeta, por exemplo. So poucas as repentistas ao som da viola. So raras as escritoras de folheto. Mais raras ainda so as emboladoras ou coquistas
4. No
conheo mulher que faa xilogravura para as capas da folheto. (AYALA, 1995, p. 490).
Doralice Queiroz coaduna-se com Ayala quanto ao baixo ndice de
mulheres enquanto produtoras de cordel, ao apresentar seu quadro5
demonstrativo das pesquisas nos acervos de Literatura de cordel. A autora
localiza os seguintes dados quantitativos referentes aos ttulos feitos por
mulheres, no perodo do ms de junho a novembro de 2004: em So Paulo
(SP), entre a USP/IEB e a Fundao Cultural de So Paulo, Queiroz encontra
4 Autor de uma forma potica musical, improvisada ou no, em compasso binrio, cuja melodia
declamada em intervalos curtos, e que usada pelos cantadores como refro coral ou dialogada. O rei dos emboladores foi, sem nenhuma dvida, Manuel Pereira de Arajo, conhecido artisticamente como Manezinho Arajo, o pernambucano que, na poca, divulgou em todo o Brasil, por meio das estaes de rdio e de televiso, bem como em discos, seus grandes sucessos como Pra onde vai, valente?, Cuma o nome dele?, O caminho do Coron (LSSIL, 2008).
5 Quadro demonstrativo das pesquisas nos acervos de Literatura de cordel de Doralice Alves
de Queiroz encontra-se no anexo 1 desta pesquisa.
20
19 ttulos num universo de 5. 055; no Rio de Janeiro (R.J) entre a ABLC e a
FUNARTE, 16 ttulos num montante de 10. 000; em Salvador (BA), entre a
Fundao Cultural da Bahia e a UFBA/PEPLP, 47 ttulos numa quantia de
5. 050; em Joo Pessoa (PB), entre a Fundao Casa J. Amrico e a UFPB, 13
ttulos num universo de 5. 000; em Campina Grande (PB), na UFCg, 25 ttulos
num universo 6. 000.
nesse aspecto que ao retomar as relaes entre a disparidade sexual
e sexualidade, cincia e epistemologia, Mignolo ressalta, por meio da
argumentao de Ruth Ginzberg em relao cincia ginocntrica, a
perspectiva da diferena sexual e da sexualidade, o mbito universal de
conceitos regionais, como cincia, filosofia, democracia histria e direitos
humanos (MIGNOLO apud BOAVENTURA, 20O4, p. 682) em que a mulher
deveria estar inserida.
No meu estudo de atividades de mulheres no includas naquelas a que foi formalmente conferido o rtulo de cincia, comecei a suspeitar que a cincia ginocntrica tem sido muitas vezes chamada arte dos afazeres domsticos. Se estas artes fossem atividades androcntricas, no tenho dvidas de que teriam sido designadas, respectivamente, como cincia obsttrica, cincia alimentar e cincia sociais da famlia (GINZBERG, 1989. p. 71 apud MIGNOLO apud BOAVENTURA, 2004, p. 683).
Maria Ignez Ayala coaduna com Ruth Ginzberg e evidencia a cincia
ginocntrica, ao ressaltar que se os homens autores de cordel se esforam
para ampliar sua atuao dentro ou fora do espao regional, as mulheres, ao
tentarem o mesmo percurso artstico, no participam da mesma maneira dessa
esfera conquistada pelos poetas (AYALA 1995, p. 490); mesmo porque alm
de muitas dessas mulheres serem analfabetas, a elas cabia o papel que se
destaca dentro do lar: os afazeres domsticos, a responsabilidade da criao
dos filhos, impostos historicamente e de maneira arbitrria pela sociedade
nordestina e masculina.
Como contadora de estrias au cantadora de romances e cantigas, desenvolve fomas literrias populares que funcionam como cantos de trabalho domsticos. O hbito de contar estrias est associado, no caso da mulher, no s s horas de folga, mas tambm ao trabalho domstico, fazendo parte da criao de filhos. Atravs da histria, criam-se hbitos (AYALA, 1995, p. 490).
21
Entretanto, no que diz respeito epistemologia femina ao que alude
cincia ocidental, sobretudo ao seu alicerce masculino, que a epistemologia
feminista , assim, uma crtica ocidental e eurocntrica da cincia ocidental e
do eurocentrismo masculino que deixa intacta a cor da epistemologia
(MIGNOLO apud BOAVENTURA, 2004, p. 686).
De acordo com Maria Ignez Ayala:
O repentista, o embolador e o escritor de folheto exercem uma funo social importante no Nordeste. Para seu pblico, so considerados inteligentes, instrudos e bem informados: como esto sempre indo de um lugar para outro, so os que tm notcias em dia e pem os fatos em evidncia, associando ao fato sua interpretao (AYALA, 1995, p. 491).
No entanto, de acordo com os dados pesquisados dos escritos de
cordis por mulheres, de um modo geral, e a maneira que o pblico considera
a arte cordelista masculina, no Nordeste do Brasil, o cordel nos exposto como
literatura produzida por homem. A mulher, nesse caso, no vista enquanto
compositora de cordel e tambm geralmente representada sob o signo de
uma colonialidade cultural masculina, que a coloca, nos textos de cordel, em
contextos inferiores e subjugados, em relao ao homem, como se sua
epistemologia, sua forma de conhecer e agir, fosse inferior.
22
2 ARTE E PAIXO DO CORDEL: A MULHER COMO SER
CONSTITUDO/ CONSTITUINTE
2.1 A RESISTENTE ARTE DO CORDEL
A partir das leituras sobre a literatura oral e ao pesquisar a literatura de
cordel, observa-se um mistrio relativo sua resistncia at nossos dias. De
acordo com Renato Carneiro Campos, em seu livro Ideologia dos poetas
populares (1977), difcil dizer o quanto a literatura popular vem sofrendo as
influncias do cinema, do jornal, do rdio e da revista de quadrinhos e
impossvel se torna delimit-las ou mostr-las bem destrinchadas, tanto elas se
penetram e se confundem com outras influncias (CAMPOS, 1977, p. 14).
Talvez devido s peculiaridades da literatura de cordel, como a sua
divulgao e seduo ao gosto dos mais diversos pblicos, Cmara Cascudo
sintetiza esse aspecto ao relatar que:
Nenhum desses livrinhos deixou de influir, na acepo da simpatia. So lidos, decorados, postos em versos, em msica, cantados nos dois continentes. Alguns pormenores reaparecem numa outra estria, mesmo anterior numa convergncia. Essas modificaes so ndices da popularidade do livro e sua repercusso, entre analfabetos que guardam os tesouros dos contos, faccias, cantigas e fbulas (CASCUDO, 1984, p.167-8).
Nesse contexto, pode-se argumentar que desvencilhar o mistrio da
resistncia da literatura de cordel leva a outros enigmas que somente a
literatura popular poderia conduzir. Dentre eles, este captulo tem como
objetivo observar a arte e paixo dos autores de cordel, como esses autores se
relacionam com a presena da mulher nessa literatura enquanto ser
constituinte e/ou constituda. Nesse mbito vlido ressaltar que, a partir dos
contos populares, notam-se pistas que formam circuitos sobre as origens de
quem produzia; como viviam e entretinham os povos.
Para trilhar os caminhos misteriosos, antes ditos, deve-se retornar ao
surgimento da literatura de cordel ou popular em verso, do mesmo modo, sua
designao de Literatura Oral. Da pode-se notar que atualmente ainda no foi
encontrada uma definio precisa. Ivan Cavalcanti Proena, professor, Mestre
23
e Doutor em Literatura, com vasta experincia no estudo e pesquisa da cultura
literria brasileira, autor de inmeros livros e ensaios os quais objetivam o
levantamento da cultura popular, comina que sabe-se apenas que foi
assimilada em Portugal antes do sculo XVIl, como originria dos romances
tradicionais que aqui chegaram tambm nos sculos XVI e XVII atravs dos
nossos colonizadores (PROENA, 1976, p. 23).
interessante enfatizar que a literatura de cordel tinha objetivos tanto
informativos quanto literrios, e em relao designao da Literatura Oral,
Cmara Cascudo aponta que a denominao de 1881. Criou-se a Paul
Sbillot com sua Littrature Oral de Haute-Bretagne. Definiu-a, porm, muito
tempo depois (CASCUDO, 1984, p. 23).
Esse contexto acorda com o texto Cultura de massa e cultura popular,
inserido na obra Manual de teoria literria, organizado por Rogel Samuel, que
traz uma inovao denominao da literatura oral, chamando-a de
Paraliteratura, termo que foi criado para substituir as designaes correntes
de m-literatura e de subliteratura (SAMUEL, 1984, p. 169). Em relao
teoria literria, o termo paraliteratura implica o reconhecimento de um discurso
paraliterrio com caractersticas prprias e definidas, resultando de suas
mltiplas manifestaes o produto de massa, ou paraliterrio (SAMUEL, 1984,
p. 169).
Observa-se, no entanto, que paraliteratura um termo utilizado para
designar as formas no cannicas de literatura como: auto-ajuda, folhetins
romanescos, literatura de cordel, literatura oral e tradicional, literatura marginal,
pornogrfica, policial e popular, etc. que em princpio no so atribudas por
alguns eruditos, determinadas instituies acadmicas ou meios de
comunicao. O benefcio da designao paraliteratura no consiste em
depreci-la devido prefixao para-, ao expedir-se aquilo que fica margem,
ou no se categoriza a um clssico; muito menos faz pensar em ser um gnero
maior de literatura; porm permite-se pelo menos uma maneira charmosa de
denominar um gnero marginal, de uma literatura do povo.
24
A prposito cito Lus Miguel Oliveira Cardoso6:
Os nveis da periferia so relativos literatura secundria ou menor (uma literatura menor ainda integrada no termo) e a paraliteratura (literatura perifrica, marginal, em posio inferior numa comunidade), a infraliteratura e a subliteratura (textos desprestigiados sem valor reconhecido), a literatura de consumo (textos de entretenimento trivial, ligeiros, desprovidos de grandes juzos estticos), a literatura de massa (dirigida a um grande pblico unido por caractersticas scio-culturais semelhantes e sem grande formao especfica), a literatura popular (que pode ser entendida no sentido romntico da mitificao do povo ou num sentido mais restrito de um pblico sem formao significativa, que procurava um texto ldico, ou de informao sem preocupaes de rigor ou avaliao esttico-literria), a literatura marginal (que se afasta nitidamente do ncleo central e sagrado das grandes obras) e a literatura "kitsch" (hbeis textos de temtica variada mas leve, frvola e vazia) (CARDOSO, 2008, p.6).
Desse modo, Cascudo completa, afirmando que ningum deduzir
como o povo conhece a sua literatura e defende as caractersticas imutveis do
seu gnero (1984, p. 27). Nesse contexto, tambm nos diz Samuel:
A literatura oral no se restringe mera tarefa de substituir a produo literria impressa nos ouvidos e nas bocas dos que no lem. Mesmo porque estes so muito mais antigos do que os que lem: a literatura oral mais velha que a escrita. Entretanto, uma cultura cristalizada pelos letrados tende a classificar o cordel, as expresses estticas e da sabedoria do povo, como algo que faria parte de um mundo ingnuo, pitoresco, tpico, annimo, folclrico. A mesma tradio, arraigada nos meios escolarizados da prpria Europa, comunga da crena de que existe o padro de arte ocidental, inatingvel e inabalvel cume da arte internacional em todos os tempos (SAMUEL, 1984, p. 172).
A interdependncia da literatura oral com a literatura oficial nos d um
tom potico, melodioso e ao mesmo tempo insere o popular na esfera do
literrio, aproximando a linguagem escrita da oralidade, elucidada pelo prprio
Cmara Cascudo:
A literatura que chamamos de oficial, pela sua obedincia aos ritos modernos ou antigos de escola ou predilees individuais, expressa uma ao refletida e puramente intelectual. A sua irm mais velha, a outra, bem velha e popular, age falando, cantando, representando,
6 Licenciado em Humanidades - Mestre em Literatura Clssica/Portugus. Instituto Politcnico
de Viseu Portugal.
25
danando no meio do povo, nos terreiros das fazendas, nos ptios das igrejas nas noites de novena [...] (CASCUDO, 1984, p. 27).
Em relao classificao da literatura oral, para muitos estudiosos j
foi motivo de muitas preocupaes. Ariano Suassuna adota dois nveis ou
gneros de discurso, um erudito e outro popular, propondo assim duas
classificaes bem diversas (AGULHA, 1994). Joseph M. Luyten, um dos
maiores escritores e estudiosos da literatura popular brasileira, por sua vez,
percebe o absurdo do assunto e alega que seria a mesma coisa se
dividssemos a literatura brasileira em herica, obscena, de banditismo,
religiosidade e temas medievais (LUYTEN, 1993) e expe tambm sua
preocupao quanto classificao dos autores.
Nesse contexto, Cmara Cascudo (1984) explicita uma pequena
antologia do Conto Popular Brasileiro, simplificando seu agrupamento em
contos de encantamento, de exemplo, de animais, faccias, religiosos,
etiolgicos, demnio logrado, de adivinhao, natureza denunciante,
acumulativos e ciclo da morte, distribuindo-se segundo o critrio convencional,
que ainda continua sendo discutido; assim como, a estrutura dos versos do
cordel, que nos outros pases grande a presena do texto em prosa. Na
Espanha, Cascudo aponta a frmula usada entre outros por Cervantes
ABABACCDDC e em Portugal ABBAECCDDE (CASCUDO, 1984, p. 343). No
Brasil sertanejo prevalece a preferncia por ABBACCDDC, com influncia
visvel das oitavas clssicas, divulgadas por Dom Pedro de Arago,
ABBACDDC, no tipo formador das dcimas que sempre tiveram domnio no
Brasil letrado (CASCUDO, 1984, p. 343).
Luyten apresenta duas estruturas de folhetos: [...] uma delas se chama
abec [...] a outra muito comum e facilmente identificvel na literatura de
cordel o desafio ou peleja, e consiste no combate potico de dois
cantadores [...] (1993, p. 23). Quanto versificao o autor apresenta vrias
formas, [...] o martelo agalopado, com estrofes de dez versos com dez
slabas cada, o quadro, e o mouro; e ressalta a mais comum que a
sextilha com rimas iguais nos segundo, quarto e sexto versos (1993, p. 48).
Dentro da elucidao do contexto do surgimento, designao e mtrica
da literatura de cordel fazem-se partir para o mbito da arte e paixo dos seus
autores, que podem ser notadas entre as dcadas de 30 e 50, durante o
26
apogeu do cordel no Brasil. Nessa poca, foram feitas redes de produo e
distribuio de folhetos, algumas centenas de ttulos foram publicadas,
constituindo-se assim um pblico, deixando-se o editor de ser unicamente um
poeta. De acordo com Marlyse Meyer7 (1980), os autores precursores do cordel
em nosso pas so: Silviano Pirau de Lima (1848-1913), Leandro Gomes de
Barros (1 865-1918) e Joo Martins de Athayde (1880-1959). Barros e Athayde
foram considerados os fixadores das normas de criao de folhetos que seriam
seguidos posteriormente.
Segundo pesquisadores como Ruth Terra (1983, p. 36), em 1909, Joo
Martins de Athayde se estabeleceu em Recife com uma tipografia; no
havendo, porm, observaes de registros de folhetos publicados por esse
autor antes de 1918. A professora e pesquisadora Ana Maria de Oliveira
Galvo (2001, p. 27) ressalta em suas pesquisas que, em 1921, o poeta e
editor Athayde comprou as obras no somente de Leandro Gomes de Barros
como a de outros poetas da regio, o que fez crescer de maneira significativa a
sua produo e por conseqncia a divulgao do gnero.
Mediante esse contexto que se valida de um apanhado histrico da
literatura de cordel, faz-se necessrio questionar quanto sua resistncia, por
persistir, at os dias atuais. Resistncia essa que deve ser atribuda tanto no
mbito temporal quanto ao espao literrio popular adquirido. Esse tipo de
literatura atravessa cultura e sculos devido a vrios aspectos como o de
assumir o risco de se mostrar presente na sociedade de maneira simples,
como tambm o de abolir as vrias configuraes de etnocentrismo cultural, o
qual idealiza a cultura popular como um preceito simblico e conseqente, que
7 Doutora em Letras pela Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras USP, fez o Ps-
Doutorado em 1988, em Paris. A convite do professor Roger Chartier, participou de seminrios sobre Histria Cultural e Histria do Livro e da Leitura, na cole de Hautes tudes en Sciences Sociales. A convite do professor Joutard, participou de semin rios e pesquisas sobre etno-texto. Universit de Provence. Em Toulouse e Carcassone, manteve contato e troca de trabalhos com os seguintes grupos: Le Groupe Audois de Recherche et d'Animation Ethnographique; Hsiode, Institut d'Etudes et de Rencontres sur l'ethnologie de l'Europe du Sud; Le Centre d'Anthropologie des Socits Rurales (CNRS - Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales). Professora de literatura francesa no Departamento de Lngua e Literatura Francesa da FFLCH/USP e professora titular no Instituto de Artes/UNICAMP, onde criou o Ncleo de Estudos Comparados em Cultura Popular e fundou o Departamento de Artes Cnicas. Ofereceu cursos de ps-graduao na rea de Cultura Popular, Literatura Brasileira, Literatura Comparada na FFLCH/USP.
27
funciona de acordo a uma lgica ausente e irreduzvel. Pode-se observar que o
contedo do cordel se adapta modernidade enquanto sua esttica rstica
resiste ao tempo. Ao observar as bancas do Mercado Thales Ferraz, em
Sergipe, comum encontrar folhetos clssicos os quais remetem histria de
Lampio e o cangao, junto a temas contemporneos com assuntos como a
epidemia de dengue no Estado de Sergipe e o caso da menina Isabela
Nardoni, escrito por Joo Firmino Cabral, ocupante da cadeira de nmero 36
na Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Nesse contexto, a literatura de
cordel abarca os sculos sem ser aniquilada pela avalanche de modernidade
que alastra o serto lrico e telrico. Na direo contrria do desenvolvimento,
que informatiza a indstria grfica.
Nota-se tambm a preocupao de lembrana da existncia das
relaes de domnio que estabelecem a esfera social, desse modo so
perceptveis cultura popular suas conexes e omisses em relao cultura
dos dominantes. De acordo com Luyten:
Em todas as sociedades, porm, temos sempre elementos
dominadores e dominados, elite e povo, nobres e plebeus. Como conseqncia, uma viso frequentemente diferente a respeito das mesmas coisas. As elites costumam estar mais abertas para as novidades de fora de seu contexto habitual, ao passo que o povo vai absorvendo aquilo que novo, moderno, aos poucos, na medida em que vai precisando disso. (1983, p.8).
Assim, a literatura de cordel ressalta a memria comum e traz a
possibilidade de estar presente, a partir de uma perspectiva pluri-epistmica, o
que torna a literatura de cordel um importante suporte mnemnico, e esttico-
cultural, de resistncia, por durar no tempo, absorvendo paulatinamente o
novo, sem perder de vista o passado, hibridizando, dessa forma, o antes e o
depois. E, ao focalizar a resistncia do cordel no espao literrio, partimos
para Boaventura quando este ressalta em Conhecimento prudente para uma
vida decente: um discurso sobre as cincias revisitado (2004) que tudo o que
o cnone no legitima ou reconhece declarado inexistente. A no-existncia
assume aqui a forma de ignorncia ou de incultura (2004, p. 787).
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Dialogando com Boaventura, temos que a literatura de cordel esse
campo de no-existncia, do devir popular nordestino, que insiste em
permanecer, no tempo e no espao.
Visitaremos Cascudo ao nos referir quanto resistncia temporal da
literatura oral o qual este aborda que:
Duas fontes contnuas mantm viva a corrente Uma exclusivamente oral, resume-se na estria, no canto popular e tradicional, nas danas de roda, danas cantadas, danas de divertimento coletivo, ronda e jogos infantis, cantigas de embalar (...). A outra fonte a reimpresso dos antigos livrinhos, vindos de Espanha ou de Portugal e que so convergncias de motivos literrios dos sculos XIII, XIV, XV, XVI, Donzela Teodora, Imperatriz clri Porcina, Princesa Magalona, Joo de Calais, - Carlos Magno e os Doze Pares de Frana, alm da produo contempornea pelos antigos de processos de versificao popularizada, fixando assuntos da poca, tira, guerras, poltica, stira, estrias de animais, fbulas, ciclo do gado, caa, amores, incluindo a poetizao de trechos de romances famosos tornados conhecidos, Escrava Isaura, Romeu e Julieta, ou mesmo criaes no gnero sentimental, com o aproveitamento de cenas ou perodos de outros folhetos esquecidos em seu conjunto. (CASCUDO, 1984, p. 24).
Observa-se que o autor citado expe que tanto a cultura oral, por meio
das estrias, cantos, etc. quanto a literatura popular escrita esto e so
inerentes aos povos. Esses, orgulhosos de sua cultura, crescem e passam
para os mais novos que a tomam por tradio e juntos tornam-se resistentes
tanto no tempo quanto no espao.
2.2 A ARTE DE ESCREVER A LITERATURA DE CORDEL
Contar ou ouvir estrias sempre fez parte da cultura do homem, em todo
mundo, desde os tempos imemorveis. No entanto, Marlyse Meyer aborda que
a trajetria do escritor da literatura oral comea a partir do momento em que o
contador pegava o lpis e o papel e se punha a escrever ou a ditar - o que
j estava havia tempo em sua memria, ou o que de novo inventava,
ampliando um pouco o seu pblico (MEYER, 1980, p. 3). Ao surgimento da
mquina de escrever, essas obras foram divulgadas com mais rapidez, muitas
delas eram escritas em prosa, porm a maioria era escrita em versos devido
29
facilidade de o pblico analfabeto em ouvi-las, quando lidas por algum,
decor-las e repass-las.
proeminente citar que, entre as dcadas de 30 e 50, o pblico
apreciador dessa literatura era de classe humilde e da populao rural,
analfabetos ou semi-analfabetos. Observa-se que o cordel, nessa poca, era
utilizado tambm para fins didticos, segundo Marlyse Meyer j foram
comprovados casos de pessoas que aprenderam a ler e a escrever com os
folhetos de cordel (MEYER, 1980, p. 3), como cartilhas para aprender a ler, a
partir de livretos que contavam a histria do Brasil e de Portugal. No entanto,
percebe-se que a partir da popularidade do cordel, no nordeste, este tambm
valorizado de modo paradidtico, pois funciona como meio alfabetizador, o qual
pode ser observado nos trechos das poesias de cordel Poema ao p da letra
retirado da obra Agruras da lata dgua e O n da sabedoria inserido na obra
Prosa Morena, ambas escritas pelo poeta popular paraibano Jessier Quirino:
POEMA AO P DA LETRA
Garrote, gordo, Garrancho, gancho e gango Gamela, goma e garrafa Grunhido de gavio Guin, e gro a granel Galinha, galo e galo Gaguejo, gaiato e gago Gaiola, ganso e gibo Galego, garbo a galope Um guzer grandalho Um grangaz granfinoso Gal, gorducho e guloso E gado gado, gado. (QUIRINO, 1998, P.121) O N da Sabedoria Pra mode falar bonito Meu juzo se encriquia No uria orelha No rudia rodilha At Latra de Arelha Queu caprichei outro dia No arelha areia J abelha eu digo abeia Vasilha eu digo vazia Jurando t tudo certo... Tudo errado e eu no sabia O certo dizer vermelha
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No viria virilha No paria parelha No nuvia novilha De tanto escutar Mai Love Maicon Jequison, cala Li Eu jurava que baiguia Era o ingls de ri-ri !!! Eu vou parar por aqui Adeus, at outro dia Queu tou ficando enrolado No n da sabedoria Eu tou agora assuntando Se sabo eu tou me casando Se com Marilha ou Maria. (QUIRINO, 2001, P. 71)
Os poemas citados so materiais ldicos, que servem para inserir a
pessoa ao mundo cognitivo no processo de ensino/aprendizagem. O primeiro
poema trata do aprendizado de palavras com som de /g/, enquanto o segundo
poema ensina a pronncia adequada da palavra, ou seja, a palavra de acordo
com as normas fontica e ortogrfica estabelecidas pela gramtica normativa.
vlido ressaltar a grande preocupao de expresso e fala do nordestino,
tema instigado em grandes obras cannicas da literatura brasileira, como visto
representada pela personagem Fabiano em Vidas Secas, de Graciliano
Ramos.
A trajetria da literatura de cordel, concomitante a de seus autores,
continua. Percebe-se na dcada de 60, um declnio em seu consumo, devido
crise econmica no Brasil, com a chegada da televiso, conforme Meyer
aborda:
Entre 1960 e 1970, registrou-se sria crise rio cordel. Vrios fatores foram apontados para explic-la. Um deles, incontestvel e sempre atuante, de ordem econmica: a inflao nacional. Esta no s encarece o material de tipografia e, por conseguinte, o custo do folheto , como tambm resulta na perda quase total do poder aquisitivo do comprador popular (MEYER, 1980, p. 90).
Outros elementos relevantes dessa poca de crise, implicada entre o
alto custo do folheto e a perda do poder de consumo, so: a falta de
participao popular na vida pblica; a autocensura que se impe; a
concorrncia de novas modas que distraem os jovens, embora seja sempre
grande o nmero deles nas rodas de leitura de feira (MEYER, 1980, p. 90);
alm do alto preo dos impostos e da adeso ao protestantismo feita por vrios
poetas. De acordo com Meyer (1980) na nova seita, no dizer de Leandro
31
Gomes de Barros , para obedecer nova religio os poetas no podem
mentir. o caso de Jos Martins, hoje humilde funcionrio do Arquivo de
Macei. Esse mentir proferido por Leandro Gomes de Barros est na
irreverncia da escrita do cordel, como tambm em histrias sem qualquer tipo
de limitao ou preocupao com a realidade. Para o autor de cordel, o
importante seria a sua obra entrelaada entre sentidos e versos. Por outro
lado, o declnio de produo e consumo de cordel concernente dcada de 60
era movimentado por meio de algum acontecimento importante, como, por
exemplo, a renncia de Jnio Quadros, que suscitou uma tiragem de 70 000
exemplares, (MEYER, 1980).
A partir dos anos 70, a literatura de cordel ressurge sendo apreciada no
somente pelo seu pblico tradicional, como tambm por um novo pblico, o
acadmico, que despertou o interesse, como objeto de estudo a esse gnero
literrio. Contexto pelo qual Octavio Ianni abaliza:
Toda criao intelectual, artstica e cientfica envolve seleo de alguns ou muitos elementos entre os que constituem a realidade social, em sentido amplo, inclusive imaginria, fabulada; muitas vezes mesclando consciente ou inconscientemente presente e passado, prximo e remoto (IANNI apud COSTA, 2002, p. 14).
Nesse cenrio, os xilgrafos, editores, distribuidores equipam-se para
atender a nova demanda. Poetas, novamente motivados, reencontram a
inspirao e liberam seus poemas, publicados pelas universidades (MEYER,
1980, p. 92). Esse contexto pode ser observado no anncio8 feito por Jos da
Silva ao divulgar sua obra de modo apelativo, ou seja, por meio radiofnico ao
seu mais novo pblico, o cientfico, composto por professores e pesquisadores,
a princpio, e logo depois, pelos artistas e cantores. Nesse anncio, Jos da
Silva tenta seduzir seu pblico ao demonstrar sua paixo pela escrita do cordel,
ressaltar o carinho atribudo aos seus versos. Propagam desse modo, as
inovaes trazidas ao cordel no mbito fontico, na variedade de histrias e
temas, alm de dar um tom cientfico, o qual afirma a importncia dessa
literatura no meio acadmico. De acordo com a elucidao de Meyer:
8 O anncio feito por Jos da Silva, editor de Mostardinha (Pernambuco) encontra-se no
Anexo 2 desta pesquisa.
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A partir de hoje estarei com vocs, vivendo os dramas apaixonantes, dos mais variados personagens, sejam estes lendrios ou naturais. Cujos livros so escritos dentro do conceito da Literatura de Cordel, antes Poesia Popular. (...) O cordel hoje, mais enriquecido no seu vocabulrio, o melhor passatempo, pois alm de melhorado, apoiado pelas autoridades, a ponto de haver chegado ao critrio das universidades (MEYER, 1980, p.5).
Ao atribuir esse contexto, diferentemente de um cordel matuto que tem
como ncora a linguagem estigmatizada, os autores foram em busca da escrita
de um cordel mais cientfico, o qual busca a literatura cannica para ilustrar seu
contedo. o que se pode notar no trocadilho feito na palavra E(e)ra;
observado no cordel A qual, Era do Brasil, de Jessier Quirino:
A Qual, Era do Brasil Cortam coqueiros que do coco Atacam fontes murmurantes Poluem rios e o mar Fecham as cortinas do passado Jogam a me preta do serrado Nunca se cansam de roubar Ah! Era um Brasil lindo e trigueiro Riqueza, tanta riqueza... Ser que d pra acabar? No caminho que caminha, Escreveria Caminha:
Em se roubando tudo, d. (QUIRINO, 2001, P. 71)
De modo geral, tradicionalmente os poetas cordelistas compem a partir
da presena dominante de cantorias, desafios e improvisos, logo, expem
assim suas estrias de mgoas, angstias, alegrias e esperanas. Como
exemplo dessas abstraes, est a seca, representada na poesia A seca do
Cear, de Leandro Gomes de Barros, inserida no livro Leandro Gomes de
Barros: No reino da poesia sertaneja, organizado por Irani Medeiros.
A seca no Cear
Seca as terras as folhas caem Morre o gado sai o povo, O vento varre a campina, Rebenta a seca de novo; Cinco, seis mil emigrantes Flagelados retirantes Vagam mendigando o po, Acabam-se os animais
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Ficando limpo os currais Onde houve a criao.
No se v uma folha verde Em todo aquele serto No h um ente daqueles Que mostre satisfao Os touros que nas fazendas Entravam em lutas tremendas, Hoje nem vo mais o campo E um stio de amarguras Nem mais nas noites escuras Lampeja um s pirilampo.
(BARROS, 19-, p. 2)
Assim como tambm notado a valorizao do povo nordestino
enquanto heris da resistncia, liderados pelo mito Lampio, no folheto do
cordel, Lampio e sua histria contada em cordel, de Antonio Amrico de
Medeiros:
Quem desejar conhecer de Lampio a Histria. Foi cangaceiro famoso, no Cangao teve glria, o ttulo de Capito ainda est em memria [...] O padre Ccero Romo foi seu padrinho de vela porque seu Jos Ferreira levou a criana bela, batizou-se em Juazeiro, data feliz foi aquela. Falarei nas quatro manas do famoso Virgulino Maria, Anlia e Anglica informo com todo tino, a outra era Virtuosa, a quem no sabe, eu ensino. [...] (ANTONIO AMRICO DE MEDEIROS, S/D)
vlido ressaltar que os poetas, devido paixo que eles atribuem ao
cordel, tambm visam mostrar a auto-estima do seu povo, assim como a do
artista popular, por meio dessas histrias, e logo percebem o seu trabalho
sendo feito e muitas vezes no valorizado, nem divulgado.
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2.3 A PAIXO E A ARTE DOS ESCRITORES DE CORDEL:
TRAJETRIA DOS AUTORES DO CORDEL COMO MEIO DE
SOBREVIVNCIA.
Como j deixamos entrever acima, Silviano Pirau de Lima e Leandro
Gomes de Barros so os pioneiros do cordel no Brasil. Pirau respeitado em
seu universo cultural, considerado como um gnio. A partir de inovaes feitas
na cantoria, modificou ento a sua mtrica. Atribui-se a Pirau o conceito de
rimar as histrias tradicionais como Histrias de Zezinho e Mariquinha e
Histria do Capito do Navio, reeditadas e consumidas pelos nordestinos por
volta de setenta anos.
A propsito, destaque-se o seguinte fragmento:
Introduziu vrias inovaes na cantoria; no tempo em que esta ainda seguia a linha tradicional da quadra (quatro versos ou quatro linhas), sentiu necessidade de expandir as idias e introduziu a sextilha (seis versos) e a obrigao de o adversrio compor o primeiro verso da resposta rimando com o ltimo deixado pelo contendor. Contribuiu assim para a exploso de cantoria que ocorreu na regio do Teixeira, tornada o centro sertanejo da poesia popular (MEYER, 1980, p. 92).
De acordo com Meyer (1980, p. 8), do rimar a histria a imprimi-la,
havia um outro passo, e este foi dado por Leandro Gomes de Barros. A autora
ressalta que Leandro aliou sua experincia potica, advinda desde sua
mocidade, tcnica de multiplicao de tipografias no Nordeste no final do
sculo XIX, que tinha como funo, alm da impresso de jornais, imprimir
outros textos como os folhetos de cordis. Leandro Gomes de Barros iniciou
sua produo em 1889 e em 1909, residindo em Recife, no tinha outro ofcio
seno fazer e vender os versos de cordel. oportuno citar que autores como
Joo Martins de Athayde, Francisco de Chagas Batista, Joo Melchades e
outros autores influenciados por Leandro, trazem essa marca inconfundvel da
literatura nordestina.
Meyer (1980) atribui a importncia de assinalar as diferenas entre os
poetas populares nordestinos. Nesse intermdio pode-se perceber que ser
cantador dspar de ser escritor, ou seja, poeta cordelista; enquanto aqueles
no temem ao desafio, estes que escrevem a poesia em verso no
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costumam ser repentistas, chamados de poeta de bancada9, os quais so
advindos da zona rural e, embora pertencentes s camadas populares,
podem apresentar certas diferenas sociais, econmicas e culturais. So
estas que determinam suas condies de produo (MEYER, 1980, p. 6).
Pode-se notar tambm, de acordo com Meyer (1980), a presena de outros
trs tipos de poetas: os que vivem da agricultura, cujos temas equivalem aos
recursos naturais, religiosos e moralizantes; os poetas-editores-artesos que
possuem prelos manuais nas pequenas cidades, alm de editarem seus
poemas e os de seus colegas, eles confeccionam benditos, oraes e
horscopos e tambm so astrlogos o qual reportam a astrologia para a
poesia cordelista, como se pode notar na tradicional poesia de cordel
Histria da Donzela Teodora, de Leandro Gomes de Barros.
HISTRIA DA DONZELA TEODORA
[...] O sbio disse: - Donzela necessrio dizer Que condies tem o homem Que em cada signo nascer Por influncia do signo De que forma pode ser? Disse ela: - o signo de Aqurio Reina no ms de janeiro O homem que nascer nele Tem o crescimento vasqueiro Ser amante s mulheres Venturoso e lisonjeiro. Peixes reina em fevereiro Quem nesse signo nascer muito gentil de corpo Muito guloso em comer, Risonho gosta de viagem No faz o que prometer. Em maro governa ries Nesse signo nascero Homens nem ricos nem pobres Por nada se zangaro Neles notam um defeito Falando ss andaro.
[...]
(MEDEIROS, 2002, p. 281)
9 Poetas populares que perambulam pelos sertes ou engenhos, cantando versos prprios ou
alheios. (MEYER, 1980, p. 6).
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A composio potica da Histria da Donzela Teodora, feita em
sextilha, sua origem remotamente rabe, no entanto perdura nos tempos e
encanta o povo, peculiarmente, o nordestino. Esse poema relata a histria de
Teodora, escrava muito sbia e bonita que, com o objetivo de livrar o seu amo
da falncia, vence os sbios do rei. interessante ressaltar que o fragmento
acima apresentado demonstra o poder mtico da mulher, ao associar o ms de
nascimento, logo, signo zodiacal ao comportamento do homem, por meio de
uma relao narrador-leitor. Com relevncia na sntese e lisura atribudas a
Leandro Gomes de Barros, advindas de inspiraes das recriaes poticas
europias, o autor faz, dessa forma, a narrativa da histria da sedutora
donzela, marcada por caractersticas que aguam a imaginao e o desejo
masculino.
Nesse contexto, tambm interessante ressaltar os tipos de
linguagem empregada nos cordis, o que, assim como nas cantigas de
escrnio, do perodo medieval, era percebido de maneira natural em seus
temas: a presena das stiras indiretas, palavras ambguas, expresses
irnicas, contudo sem revelar o nome da pessoa satirizada. A linguagem em
que eram vazadas admitia, por isso mesmo, expresses de baixo calo,
descambando, s vezes, para o obsceno. Na literatura de cordel a stira e a
ambigidade tambm esto bem presentes, o uso de palavras obscenas
comum e constante nas narrativas, ocorrendo ainda a presena de
jocosidade, em textos abertamente humorsticos, irnicos ou ainda na
utilizao de boatos que o autor capta e utiliza para a sua criatividade. o
que se pode perceber no Poema abilolado, do Mestre Orlando Tejo,
inserido na obra Agruras da lata dgua, de Jessier Quirino.
Poema Abilolado (A maluquice potica do Mestre Orlando Tejo)
Abilolaste as ancas Das fmeas do rebolado Abiolaste as bilolas Este membro afimosado O psiqu dos poetas Abilolaste ao quadrado A quadradura do crculo Tem me deixado cismado:
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Cavalo tem cu redondo E seu bosteio quadrado. Abiolaste o azucrino Deste povo azucrinado Com dez Pels de Garrincha Abilolaste o drjblado Perus fazendo rodeios Aquele rodopiado Quatro glu-glus por um grito Eu pito, pito e repito Negcio de abilolado.
Despilotaste o juzo Dos pulos bestas dos sapos Do cheira cu dos cachorros Dos papos bestas dos papos.
(TEJO apud QUIRINO, 1998, p. 76)
Percebe-se tambm, que os autores de cordis por necessidade de ir
at a cidade para comprar materiais para suas produes, se deparam com um
mundo cultural diferente do seu e acabam por inserir em suas obras temas com
informao e viso mais ampla do mundo. Suas obras so procuradas por
colegas ou pessoas de classe social mais elevada; e dentro desse contexto os
poetas se fixam nos centros urbanos, tanto no Nordeste como no Rio de
Janeiro e So Paulo. Esses autores demarcam seus temas a partir de seus
relatos pessoais ou vivenciados pelos lugares por onde passam, os temas
rurais so atribudos com certo saudosismo. Meyer ressalta a preferncia
desses autores pelo folheto de poca, de acordo com a abordagem a seguir:
Cultivam, de preferncia, o folheto de poca, isto , o que relata um evento recentemente acontecido; e aceitam ainda encomendas para temas publicitrios ou de propaganda poltica. Aqueles que chegam a possuir grficas podem at melhorar suas condies de vida. Mas, quando no chegam a tanto, costumam ser muito explorados em seus direitos autorais, sem contar a explorao que sofrem igualmente por parte dos revendedores (MEYER, 1980, p. 6 - 7).
A dificuldade de sobrevivncia do poeta de cordel ecoa e inscreve na do
povo nordestino, razo suficiente para que o poeta no se distancie do
cotidiano das pessoas mais simples de seu entorno. Esse destino comum do
poeta impulsiona uma potica voltada para os problemas comuns de sua
comunidade.
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A fora da poesia de Cordel, nesse sentido, tributria de sua relao
com o cotidiano. Sabemos que a poesia modernista, a que se tornou cannica
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