View
216
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA
DOUTORADO EM SADE COLETIVA
HELETCIA SCABELO GALAVOTE
A GESTO DO TRABALHO NA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA:
O GOVERNO DE SI E DO OUTRO SOB A TICA DO GESTOR
Vitria
2016
HELETCIA SCABELO GALAVOTE
A GESTO DO TRABALHO NA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA:
O GOVERNO DE SI E DO OUTRO SOB A TICA DO GESTOR
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito final para a obteno do ttulo de doutor em Sade Coletiva. Orientadora: Rita de Cssia Duarte Lima.
Vitria
2016
Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Setorial do Centro de Cincias da Sade da Universidade
Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)
Galavote, Heletcia Scabelo, 1985 - G146g A gesto do trabalho na Estratgia Sade da Famlia: o
governo de si e do outro sob a tica do gestor / Heletcia Scabelo Galavote 2016.
152 f. Orientador: Rita de Cssia Duarte Lima.
Tese (Doutorado em Sade Coletiva) Universidade Federal
do Esprito Santo, Centro de Cincias da Sade. 1. Sade da Famlia. 2. Trabalhadores. 3. Gestor de Sade.
I. Lima, Rita de Cssia Duarte. II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Cincias da Sade. III. Ttulo.
CDU: 614
A Deus, pela vida. A Maria Ines e Arlindo pelo amor sem limites e por serem parte de mim.
AGRADECIMENTOS
Este estudo foi feito por muitas mos. Mos que acariciam, que sonham, que
apoiam e que se unem em orao e se estendem em gestos de solidariedade e
amor. A produo do texto solitria, mas a produo de vida se d na relao com
o outro, enquanto potncia de ao. Foram muitos encontros alegres e muitos
encontros tristes. Eis que agradeo queles que foram geradores de paixes alegres
e potncia de vida nesta produo.
A Deus, em sua infinita bondade, por ter me propiciado a oportunidade de viver e por
ter me agraciado em meio a tantas conquistas.
Maria Ines, minha querida me, por ser fonte de vida, amor, cuidado e proteo.
Sempre foi colo afvel nos momentos de dor e reduto de felicidade em momentos de
conquistas. Devo-lhe a vida e tudo que eu sou. Alegra-se com minhas vitrias, e
revive em mim a alegria de oportunidades que a vida no lhe deu. Mulher inteligente,
sbia, forte e talentosa. Mame que uma artista, musicista. Sempre me diz: Ah, se
eu tivesse a oportunidade de ter estudado!. Ento, me, esta vitria nossa, eu
consegui. Te amo.
A Arlindo, pai querido, dedicado, zeloso, amvel e dengoso. Homem de f, que se
orgulha da sua dignidade e honestidade. Luta com o poder da orao e se orgulha
de ter ofertado a oportunidade de estudo s suas filhas, mesmo em meio a
dificuldades e renncias. Papai que se orgulha da famlia, que ama
incondicionalmente e que no se cansa de dizer que era um dos melhores alunos da
turma da escola da zona rural onde cresceu, mas sempre lembra que mame era a
mais inteligente. Lamenta no ter estudado, mas sente orgulho do sucesso das
filhas. Pai, sempre digo que a sua sabedoria transcende a de muitos doutores. Te
amo.
Silvia Amlia, minha irm, pelo apoio e por ter me incentivado a estudar. Voc
renunciou a conquistas em prol das minhas. Trabalhou muito para que eu tivesse o
melhor e comemorou como se fosse sua a minha aprovao no penltimo lugar no
vestibular da UFES para o curso de Enfermagem. Quando papai teve medo se
teramos condies financeiras de me manter fora de casa, foi a primeira a dizer:
Ela vai. Obrigada, pois se no fosse por voc eu no estaria aqui. Obrigada por ter
me dado a oportunidade de conhecer um amor que eu nunca imaginava ao me
conceder meus dois sobrinhos queridos. Tudo que sou devo a voc. Te amo.
Luisa, minha sobrinha linda, carinhosa e amvel. Minha amiga de todas as horas,
que me ensina a cada dia o sentido de amar sem pedir nada em troca. Nininha te
ama e ser sua fada madrinha por toda a vida.
A Luis Otvio, meu sobrinho e beb muito amado, o mais novo homem da casa.
Veio para apoiar o vov que era sempre minoria. A madrinha te ama muito e sente
muita saudade. Que voc tenha sempre amor e alegria.
Ao meu cunhado Jos Ronim pelo carinho e amizade.
A toda minha famlia, por ser meu porto seguro e por compreender os momentos de
ausncia.
querida professora Rita de Cssia, minha orientadora de doutorado. Como o
tempo passa rpido, professora, parece que foi ontem que te procurei para seleo
da bolsa de iniciao cientfica e hoje estamos aqui, juntas, comemorando a minha
defesa de doutorado. Foram mais de dez anos, de grandes conquistas e muitas
vitrias. Obrigada por acreditar em mim e por compreender as minhas fraquezas e
ausncias. Concedeu-me tantas oportunidades e soube despertar, em mim, saberes
que conformam a pesquisadora e professora que me tornei. Voc sempre foi a
minha referncia, e construmos uma relao de respeito e confiana que se findou
em uma amizade. Voc ser sempre a minha professora Rita.
Ao professor Tlio Franco, por sua solidariedade, dedicao e exmio saber. Sempre
presente e disposto a ajudar e contribuir na construo do conhecimento. Obrigada
por acreditar em mim e pelo apoio de sempre.
professora Eliane de Ftima, pelo apoio e amizade. Obrigada pela confiana,
carinho e dedicao. Sempre digo que voc foi um presente de Deus e que nossa
amizade comeou no dia que nos conhecemos; foi amor primeira vista. Admiro sua
bondade e saiba que seus ensinamentos sero sempre lembrados por onde eu for.
professora Maria Anglica, pela partilha de conhecimento e pelo apoio e carinho.
Ao meu namorado, Cleocir, que viveu cada momento destes ltimos dois anos de
doutorado, ao meu lado, compartilhando alegrias e tristezas. Obrigada por ter me
amparado no momento em que eu mais precisava e por ter sido perseverante e
compreensivo. Perdoe-me pelos erros que cometi no turbilho de emoes que se
firmaram nessa reta final e saiba que essa vitria eu dedico tambm a voc. Voc
me ensinou que o amor supera tudo. Te amo.
s amigas e colegas de trabalho, Leticia Molino e Leticya Negri, pelo apoio e
compreenso. Em dias felizes e dias de luta construmos nossa histria na sala das
Letcias.
amiga Flvia Portugal, pelo prazer da convivncia e da amizade. Admiro sua fora
e determinao.
amiga Paula, por estar sempre presente e ao meu lado. Obrigada pelas palavras
de carinho e motivao. Obrigada pelo prazer da amizade.
amiga Luandra, por me reerguer no momento em que eu mais precisava e por
ofertar tanta alegria aos meus dias. Perdoe-me pela ausncia e saiba que muito
especial.
querida Cinara, que sempre me recebeu na secretaria do PPGSC com um sorriso
repleto de alegria. Dividiu momentos difceis e comemorou comigo as pequenas
vitrias. Voc umas das amizades que levo com carinho deste doutorado.
Obrigada por tudo.
s minhas colegas de doutorado, Carolina, Cludia, Geisa e Kallen, pela
convivncia durante esses quatro anos e pelo apoio.
Aos professores do doutorado em Sade Coletiva do PPGSC, pelos ensinamentos.
Aos alunos do curso de Enfermagem do CEUNES/UFES, pela oportunidade de
compartilhamento de saberes e pelo carinho. Em especial, aos meus orientandos de
extenso e iniciao cientfica, Thais Sossai, Rafaela Lirio e Nilo, que compartilham
comigo o amor e a dedicao ao trabalho na Ateno Bsica. Obrigada por
acreditarem no meu trabalho e pela relao de amizade que construmos.
A Maiza Bonfim, amiga sempre presente, que admiro pela competncia e dedicao
ao trabalho. Obrigada pela dedicao a nossa amizade e pelas oportunidades que
me propiciou desde que nos conhecemos.
Aos queridos amigos do Nupgasc, Priscilla, Ana Cludia, Bruna, Rafael, rika,
Pablo, Flvio, Renata, Paula, Adriana, Thiago Sarti e tantos outros que foram
sempre presena amiga e que dividiram o trabalho e as alegrias.
s amigas Mariana Botelho e Dayana Justiniano pela ajuda na realizao e
transcrio das entrevistas e pela dedicao e empenho ao meu trabalho.
Aos amigos Thiago Prado e Joo Paulo, sempre presentes em todos os momentos e
grandes parceiros na vida e no trabalho.
Ao amigo Wellington Prado pelo carinho e ateno.
Ao amigo Humberto Rocha pela amizade, apoio e presena.
Aos colegas de trabalho da Estratgia Sade da Famlia Honorio Piassi, que me
acolheram com tanto carinho e me ajudaram no desenvolvimento do meu doutorado.
Foi um prazer trabalhar com vocs. Em especial, a amiga Zlia, que assumiu minhas
tarefas para que eu pudesse estar presente nas aulas do doutorado.
Aos gestores entrevistados pela oportunidade de desenvolvimento da pesquisa e
pela disponibilidade em acolher-me e partilhar o cotidiano de trabalho.
Minha eterna gratido a todos que fazem parte da minha vida!
H um tempo em que preciso abandonar as roupas usadas, que j tm a forma de nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. o tempo da travessia: e, se no ousarmos faz-la, teremos ficado, para sempre, margem de ns mesmos.
Fernando Pessoa
RESUMO
O processo de gesto do trabalho em sade no cenrio da Estratgia Sade da
Famlia (ESF) surge como uma inteno analtica fundamentada nos conceitos
propostos por Foucault acerca dos dispositivos de poder e das tcnicas do cuidado
de si e dos outros como fundamento de um exerccio de um poder poltico. A
unidade de anlise transita entre o espao da macropoltica e da micropoltica da
gesto do trabalho em sade que permeia o territrio de imanncia entre o que
tido como norma e a renormalizao. O objetivo analisar a gesto do trabalho na
ESF no estado do Esprito Santo, a partir do discurso dos gestores, assim como
identificar as prticas desenvolvidas pelos gestores na constituio do governo de si
e dos outros. Trata-se de um estudo do tipo descritivo, exploratrio, com abordagem
qualitativa. Para o alcance dos objetivos, foram convidados a participarem os
gestores de 36 municpios do ES: secretrio municipal de Sade; coordenador
municipal da Estratgia Sade da Famlia e coordenador municipal da Ateno
Primria Sade. Para a coleta dos dados foi utilizada a entrevista semiestruturada
e a observao participante. A anlise de discurso foi a base da anlise dos dados e
a cartografia foi utilizada como mtodo complementar de pesquisa. Destacam-se,
nos discursos, elementos que sinalizam uma prtica de gesto por disciplinamento e
controle dos trabalhadores, atravs da obteno de resultados, fundamentada em
atos mandatrios e normalizadores do trabalho dito prescrito, trabalho morto, que
amputa o trabalhador da sua autonomia e inventividade. Inovar para os gestores, em
estudo, representa mobilizar os trabalhadores com base em um centralismo poltico
que garante ao gestor formal a deciso final e definio dos rumos, j que as
equipes detm pouca governabilidade em relao definio de metas e
indicadores. Os gestores produzem prticas de si, no entanto, esto aprisionados
pelas normatizaes da prpria organizao de sade, atravs de marcas inscritas
em seu corpo e que determinam um ser gestor de sade com discursos e aes
serializados. So gestores stultus, j que no exercem o cuidado de si enquanto
liberdade e albergam uma vontade subordinada, que no livre.
Palavras-chave: Gesto do Trabalho. Sade da Famlia. Trabalhadores. Gestor de
Sade.
ABSTRACT
The process of healthcare work management in the scenario of the Family Health
Strategy is highlighted as an analytical intention founded on the concepts proposed
by Foucault about the apparatuses of power and the techniques for the care of self
and others as the foundtion of a political power exercise. The analysis unity transits
between the space of macro-politics and that of the micro-politics of the management
of work in healthcare, which permeated the teritory of imanence between what is
taken as the norm and re-normalization. The objective it to analize the management
of work in the Family Health Strategy in the state of Espirito Santo, starting from the
discourse of the managers, as well as identifying the pratices involved by the
managers in the constitution of the government of self and others. This is a
descriptive and exploratory study, with a qualitative approach. To achieve this
objectives, managers from 36 municipalities of the state of Espirito Santo were
invited to participate: the Municipal Health Secretary; the Municipal Coordinator for
the Family Health Strategy; and the Municipal Coordinator for Primary Health Care. A
semi-structured interview and participant observation were used for the collection of
data. The discourse analysis was the basis for data analysis, and the cartography
was used as a complementary method of research. There are elements in the
discourse that are highlighted for signaling to a practice of management through
discipline and control over the workers, through the attainement of results, founded in
mandatory acts and in the normalization of the work, which is called prescribed,
dead, amputating the autonomy and creativity of the worker. For the managers, to
innovate means to mobilize the workers based on a political centralization that
warrants for the manager the final decision and the definition of the directions, once
the teams have little governability relating to the definition of goals and indicators.
The managers produce self practices, but are inprisoned by the normalizations of the
healthcare organiztion itself through the marks that are inscribed on their bodies and
that determine a healthcare manager with serialized discourses and actions. They
are stultus managers, since they don't exercize the self care as freedom, and bare a
subordinate will, which is not free.
Keywords: Work management. Family Health. Workers. Healthcare Manager.
LISTA DE SIGLAS
AB Ateno Bsica
ACS Agente Comunitrio de Sade
APS Ateno Primria Sade
CCS Centro de Cincias da Sade
CEP Comit de tica em Pesquisa
ES Esprito Santo
ESF Estratgia Sade da Famlia
MS Ministrio da Sade
PPGSC Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva
TCC Trabalho de Concluso de Curso
UFF Universidade Federal Fluminense
RJ Rio de Janeiro
PSF Programa Sade da Famlia
SUS Sistema nico de Sade
UFES Universidade Federal do Esprito Santo
USF Unidades de Sade da Famlia
SUMRIO
1 APRESENTAO .................................................................................... 13
2 INTRODUO .......................................................................................... 17
3 OBJETIVOS .............................................................................................. 26
3.1 OBJETIVO GERAL ................................................................................... 26
3.2 OBJETIVOS ESPECFICOS ..................................................................... 26
4 ENSAIOS SOBRE A GESTO DO TRABALHO EM SADE NO GOVERNO DE SI E DO OUTRO ..............................................................
27
5 ASPECTOS METODOLGICOS ............................................................. 49
5.1 DELINEAMENTO ...................................................................................... 50
5.2 CENRIO .................................................................................................. 51
5.3 PARTICIPANTES DA PESQUISA ............................................................ 53
5.4 COLETA DOS DADOS ............................................................................. 53
5.5 ANLISE DOS DADOS ............................................................................. 55
5.6 ASPECTOS TICOS ................................................................................ 56
6 RESULTADOS E DISCUSSO ........................................................... 58
6.1 PERFIL SOCIODEMOGRFICO E PROFISSIONAL DOS GESTORES . 58
6.2 ARTIGO 1 - A GESTO DO TRABALHO NA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA: (DES)POTENCIALIDADES NO COTIDIANO DO TRABALHO EM SADE ................................................................................................
62
6.3 ARTIGO 2 - O GOVERNO DE SI E DOS OUTROS TECENDO MODELAGENS DE GESTO DO TRABALHO NA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA .................................................................................
87
7 CONSIDERAES FINAIS ...................................................................... 115
REFERNCIAS ......................................................................................... 121
APNDICES ............................................................................................. 134
ANEXOS ................................................................................................... 145
14
1 APRESENTAO
Vim, tanta areia andei Da lua cheia eu sei
Uma saudade imensa Vagando em verso eu vim
Vestido de cetim Na mo direita, rosas
Vou levar
Paulo Tapajs Gomes Filho
Por onde andei traduz a travessia que fiz at a concepo deste estudo.
Desde a graduao em Enfermagem, a Sade Coletiva enquanto campo de saberes
e prticas foi uma escolha para a aquisio de conhecimentos. Iniciei a pesquisa na
rea com enfoque na anlise dos processos de trabalho em sade, na tica da
micropoltica, com a releitura do trabalho do agente comunitrio de sade (ACS) na
Estratgia Sade da Famlia (ESF). O trabalho de concluso de curso (TCC) tinha
como objetivo desvendar o processo de trabalho do ACS no municpio de Vitria/ES
e identificou que existe uma idealizao das competncias referentes ao trabalho, o
que gera um sentimento de impotncia e limitao em face dos desafios impostos.
Conclumos que o ACS necessita de ferramentas e habilidades que superem o
conhecimento tcnico, permitindo-lhe atuar no mbito social de cada famlia,
considerando o campo das necessidades de sade de cada usurio. O estudo foi
aprovado para a publicao e constitui uma das produes mais citadas, dentre as
de minha autoria.
Fui inundada pelo desejo de pesquisar e aprofundar meus conhecimentos sobre o
trabalho do ACS, o que me deu potncia para a busca do ingresso no mestrado. A
professora Rita Lima, minha orientadora da iniciao cientfica, em minha defesa do
TCC, sugeriu que eu ousasse outros voos, novos horizontes, e eu resolvi me lanar
ao desafio de deixar o conforto da minha Universidade de formao para ingressar
no mestrado em Sade Coletiva na Universidade Federal Fluminense (UFF). L tive
a oportunidade de conhecer o professor Tlio Franco, que me proporcionou infinitas
possibilidades no campo da filosofia aplicada compreenso da micropoltica dos
processos de trabalho em sade. Debrucei-me no estudo aprofundado de autores de
15
escrita complexa, mas que me permitiram ressignificar o objeto em estudo, e ento
decidi abordar as alegrias e tristezas no cotidiano de trabalho do ACS com base no
dilogo entre a teoria das afeces de Espinosa e a Psicodinmica do Trabalho de
Dejours. No primeiro ano do mestrado houve um grande investimento na construo
do marco terico que se constituiria como a base da anlise dos dados obtidos por
meio de entrevistas com os ACS no municpio de So Gonalo/RJ. Aps a
qualificao tive um grande desejo em atuar na prtica cotidiana como enfermeira, o
que teve como resultado a aprovao no concurso pblico para a ESF do municpio
de Angra dos Reis. Professor Tulio me incentivou a assumir o cargo e me alertou
sobre como a prtica de trabalho reordenaria minha concepo, ainda ingnua,
sobre a prtica do ACS. Eis que, aps seis meses de trabalho, a minha anlise dos
dados sofreu uma profunda reestruturao e a pesquisadora, em mim, abandonou a
viso ingnua do ACS como o elo entre a equipe e a comunidade e se abriu
evidncia dos limites e das potencialidades do trabalho deste ator em seu cenrio
real de prticas. O desvendamento do trabalho do ACS revelou um trabalhador que
opera na molaridade e pluralidade, um hbrido que permeia territrios distintos da
trade poder, saber e subjetividade. Estar em situao real de trabalho me permitiu
olhar para este trabalhador como produo e reproduo, como potncia de vida e
de morte, como promoo de aes de cuidado ou descuidado. Eu tinha a plena
certeza de que tinha sido inundada pelo meu objeto e pelas concepes tericas de
que me apropriei, de tal forma que a separao entre a teoria e a prtica era
impossvel ou invivel.
Permaneci por trs anos na ESF em Angra dos Reis e senti saudades de casa. Da
casa em seu sentido de convvio familiar e enquanto unidade de formao
acadmica. Era a hora de voltar! Mas, para uma enfermeira que no opera em
territrios de incerteza, ingressei na ESF no municpio de Castelo/ES, ao mesmo
tempo em que fui aprovada na seleo para o doutorado em Sade Coletiva da
Universidade Federal do Esprito Santo (UFES). Era a hora de viver um conflito entre
o abandono do cargo ou a vivncia conjunta das duas novas possibilidades. E viver
tudo junto foi a minha opo, nada fcil, mas fundamental para alimentar a
pesquisadora, em mim, e a enfermeira afoita por cuidar e estar em encontro com o
outro. Eu no sobreviveria sem estar em encontro de cuidado com o outro, era o que
me dava foras para superar o cansao da produo intelectual do doutorado.
16
No doutorado, o objeto de estudo escolhido foi a anlise da gesto do trabalho na
ESF, a partir do discurso do gestor, o que me gerou desconforto, visto que imperava
em mim, como trabalhadora da ESF, os conflitos e resistncias estabelecidas com a
gesto formal no decorrer da minha trajetria de trabalho. Para mim, o gestor era
tido como o ditador, normatizador, alienado e que prescrevia prticas e condutas
inaplicveis realidade das equipes. Era a figura, em meu imaginrio, do alheio ao
cotidiano de trabalho e mantedor de hierarquias fundadas no medo e represses.
Foi necessria a ruptura com meus conceitos pr-fabricados, para que eu
conseguisse analisar o trabalho do gestor, enquanto um trabalhador que est em
cargo formal de gesto e que, tambm, est exposto a processos de captura e
servido. Eu precisava olhar para ele com o olhar de pesquisadora em investigao
de seus campos de prticas, e como a pesquisadora e a enfermeira so
inseparveis, o processo foi rduo e doloroso.
Eis que entre as andanas ocorreram rupturas, contratos e descontratos, o que me
incentivou a trilhar novos caminhos e que me desterritorializaram. Assumi um novo
cargo pblico como docente do curso de Enfermagem da UFES, campus de So
Mateus/ES. Um novo trabalho, uma nova cidade, um objeto de estudo em
construo e outras possibilidades: novos territrios foram sendo produzidos em
mim e nos outros. Como afirma Viviane Mos (informao verbal) ao citar Espinosa,
se eu sou uma poro finita do que o infinito da vida eu sou movida por foras que
eu no posso controlar.
Superei os conflitos, em mim, e descobri nas entrevistas e observaes em campo
que mais uma vez a minha postura foi ingnua; havia muito mais a ser desvendando
alm do que eu imaginava. Ativei o meu olhar vibrtil para ver alm do que eu
concebia como sendo o gestor formal de uma organizao de sade e eis que o que
descobri est descrito nas pginas que seguem.
A construo do marco terico deste estudo foi desenvolvida no escopo descritivo
dos artigos produzidos com base nos resultados analisados, com nfase na anlise
da imanncia entre a macro e a micropoltica da gesto em sade, atentando para a
aplicabilidade da teoria do cuidado de si e do outro, desenvolvida por Foucault
(2010; 2011), como uma possibilidade terica de disparar olhares mais
aprofundados sobre o tema no mbito das prticas de sade. Assim, o presente
17
estudo se constitui na anlise dos discursos dos gestores do trabalho da ESF na
constituio de prticas que desvendam a arte de governar a si e aos outros no
cotidiano do trabalho em sade.
O Artigo 1 compreende os objetivos especficos de analisar os limites e as
potencialidades da gesto do trabalho na ESF no estado do ES e identificar as
prticas desenvolvidas pelos gestores na constituio do governo de si e dos outros.
Com base nas categorias analticas empricas propostas, so apresentados os
limites e as potencialidades da gesto do trabalho na ESF, com sinalizao de
prticas de gesto por disciplinamento e controle dos trabalhadores, atravs de
normatizaes dos diferentes processos de trabalho.
O Artigo 2 tem como objetivo identificar as tcnicas de governo e procedimentos
utilizados na produo de prticas de controle das condutas, no mbito da gesto do
trabalho, e descrever as modalidades de gesto do trabalho na ESF no ES. So
propostas categorias analticas que conceituam as modelagens de gesto a partir do
discurso dos gestores, como: improviso, compartilhada e do poder disciplinar. Esse
artigo aprofunda o referencial terico do governo de si e dos outros, proposto por
Foucault (2010; 2011), aplicado gesto do trabalho em sade, com destaque para
a compreenso das relaes de poder circunscritas nas relaes estabelecidas
pelos diferentes atores no bojo das prticas de gesto.
Convido voc leitura do que produzi em minhas andanas.
18
2 INTRODUO
O encontro do pesquisador com o seu objeto de anlise se produziu na leitura
extenuante de diferentes concepes tericas acerca da gesto dos processos de
trabalho em sade no corpo de um projeto sentinela, intitulado anlise das principais
modalidades de gesto da ESF no estado do ES. O projeto foi desenvolvido por
docentes, pesquisadores e discentes inseridos na linha de pesquisa: Poltica,
Gesto e Avaliao em Sade, do Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva
da Universidade Federal do Esprito Santo (PPGSC/UFES). Nessa linha, temas
como polticas de sade e os diferentes formatos de gesto e avaliao tm sido
privilegiados com diferentes recortes de cenrios e abordagens conceituais.
O processo de gesto do trabalho na ESF surge como uma inteno analtica; e a
busca de conceitos que instrumentalizem o pesquisador na compreenso da
produo das tcnicas de governo nos apresentam as proposies de Foucault a
respeito dos dispositivos de poder e das tcnicas do cuidado de si e dos outros,
como fundamento de um exerccio de um poder poltico. Existe o desejo de
compreender a construo do agir do gestor para alm das regulamentaes
formais das diferentes esferas de governo, ou seja, o trabalho dito prescrito, o que
possvel atravs de conceitos que permitam um novo olhar capaz de desnudar este
ator que constitui um trabalhador da sade ao mesmo tempo em que ocupa um
espao de constituio de um poder que tangencia o saber-fazer de outros atores
em ao.
A gesto em sade no fim em si mesma, se materializada na rede de sade e
os gestores so os operadores dessa rede, estabelecendo contato direto com a
organizao dos processos de trabalho em sade. Para Barros e Barros (2007) ela
no representa apenas a organizao do trabalho, mas sim o que se passa entre os
vetores-dobras que o constituem, que se configuram como dobras de um plano de
produo, de forma que o trabalho em sade visto como um espao de produo
de saberes, no qual planejar, decidir, executar e avaliar no se separam, estando a
gesto da atividade vinculada prtica nos servios (BARROS; BARROS, 2007, p.
62).
19
O gestor formal da organizao de sade aquele que ocupa um cargo de
autodireo do governo, tambm conceituado por Matus (1993) como um agente da
organizao representado pela letra g em grafia maiscula (G). De acordo com o
autor, os trabalhadores tambm so agentes da organizao e so simbolizados
pela letra g em grafia minscula (g). Todos governam, mesmo que caiba ao G a
incumbncia formalizada de governar.
Merhy (2015) indaga sobre qual o conceito de organizao de sade que opera no
entendimento dos seus agentes, salientando que a mesma, em sua essncia,
aquela construda pela ao dos diferentes atores que nela governam, em
movimento de encontros e atos de fala. H uma dobra entre o formal e o informal,
uma disputa entre a norma e a liberdade, uma tenso entre o trabalho morto,
representado pelas normas, equipamentos e saberes institudos; e o trabalho vivo
enquanto aquele realizado em ato no encontro trabalhador-usurio. A organizao
existe e no existe, de forma que permanentemente atualizada pelas aes de
seus prprios coletivos, que tambm esto em intenso processo de
institucionalizao, em um campo de disputa de mundos com implicaes ticas e
polticas chaves para o processamento dos atos produtivos (MERHY, 2015, p. 5).
A unidade de anlise transita entre o espao da macropoltica e da micropoltica, que
em seu conjunto constituem o campo da biopoltica como o lugar real de produo
do trabalho, repleto de micropoderes e biopotncias. A potncia da vida, enquanto
sinergia ou desconstruo coletiva no trabalho, se conforma nos afetos e desejos
dos sujeitos operantes que vivem a sua singularidade na relao imanente com os
outros. Assim, a biopotncia representa a potncia do trabalhador que luta para
fazer valer a sua liberdade na relao de si e na constituio da relao com os
outros, j que o trabalho em sade em sua essncia um trabalho relacional.
O trabalhador gestor em sade, ento, um personagem social do campo da
micropoltica, que segundo Rolnik (2006) envolve processos de subjetivao
relacionados s esferas poltica, social e cultural, atravs dos quais se configuram os
contornos da realidade em seu movimento contnuo de criao coletiva. O espao
micro constitui o componente poltico no qual no existem unidades e sim
intensidades, imersas em um plano de afetos no subjetivados, determinados pelos
agenciamentos que o corpo faz em sua relao imanente com o mundo. No espao
20
da micropoltica, espao de multiplicidade, se inscrevem relaes permeadas pelo
poder, mais precisamente pelos micropoderes produzidos na confluncia entre os
corpos, o que desmistifica a ideia de um corpo social construdo por unidades
(ROLNIK, 2006, p.11).
O estudo do espao da macropoltica se fundamenta nas normalizaes constitudas
como um direcionador para a prtica da gesto do trabalho em sade que, nesse
contexto, podem significar a mediao poltica e tcnica entre os objetivos ticos e
polticos na misso do Sistema nico de Sade (SUS) e os objetivos de
gerenciamento da fora de trabalho disponvel, tornando-se dessa forma uma funo
poltica, que deve ser desempenhada com competncia e efetividade (NOGUEIRA;
SANTANA, 2001). Tambm, como reconhece Santana (2001), essa uma rea
crtica para a renovao das concepes e das prticas gerenciais. Alm disso,
existe amplo consenso de que no existe organizao eficaz sem uma gesto
eficaz, sem um trabalho hbil de prever, organizar e avaliar os trabalhadores e os
recursos materiais e financeiros para atingir os objetivos organizacionais com a
populao a ser atendida (JUNQUEIRA, 1990).
Amaral (2011), ao deter-se na compreenso das aes dos gestores, identifica uma
vertente que denomina como psicossocial, relacionada aos fenmenos
organizacionais que comtemplam a singularidade dos trabalhadores com suas
motivaes, desejos e prticas de poder. Ressalta tambm que a gerncia envolve o
alcance de metas e objetivos estabelecidos e que o gestor desenvolve habilidades
que garantem o exerccio da liderana com base em relaes de: coero, que
envolve a ameaa ou aplicao de punies sobre os liderados; recompensa, com a
garantia de vantagens ou benefcios; referncia, relacionada ao respeito, empatia e
justia; e competncia, com o desenvolvimento da criatividade, autonomia, eficcia e
eficincia.
Campos (1992), ao analisar o tema, adverte sobre a impossibilidade da
consolidao do SUS sem que os trabalhadores de sade sejam um dos principais
protagonistas no processo de construo dessa poltica pblica. De acordo com o
autor, no ser possvel fazer avanar o sistema sem a integrao e esforo da
maioria dos trabalhadores de sade. Assim, tem insistido na necessidade de se
incluir, em qualquer projeto de mudana, as demandas e necessidades dos
21
profissionais de sade, de forma que h que se criar uma dinmica e
funcionamento do sistema de tal maneira que os denominados recursos humanos
sejam um dos principais sujeitos do processo de mudana (CAMPOS, 1992, p.
138).
A gesto do trabalho em sade permeia o territrio de imanncia entre o que tido
como norma e a renormalizao, que consiste na recriao do que proposto por
leis e formulaes da gesto engessada, o que evidencia a impossibilidade de
controle das aes e agires dos diferentes atores, por parte do gestor formal. Esse
deve reconhecer o espao do trabalho em sade como um ambiente de
questionamento do que prescrito atravs da produo e reproduo de relaes
de poder, que circulam entre o prescrito e o real (HENNINGTON, 2008). Merhy
(1999) apresenta a tenso inscrita no exerccio da gesto em sade devido ao
conflito entre a autonomia e o controle dos trabalhadores, o que dificulta a conduo
de um dado modelo tecnoassistencial pautado em metas rgidas pactuadas pela
gesto formal.
Neste estudo, o campo da micropoltica da gesto do trabalho na ESF analisado
sob o olhar das formulaes tericas de Foucault na determinao do cuidado de si
e dos outros, na vertente da produo do governo de si e dos outros, com referncia
aos conceitos de poder e governo.
O poder para Foucault (2010) se produz e se processa em rede, sendo mais bem
designado como relao de poder, j que circular e inscrito como presente em
todas as relaes humanas. Todos os indivduos exercem o poder, j que no uma
exclusividade de alguns. No entanto, a posio que ocupam na sociedade pode
determinar maior ou menor controle de uns sobre os outros, no sentido de alguns
instrumentos tcnicos serem mais acessveis aos ocupantes de cargos de
autodireo, como o exerccio da disciplina sobre os corpos, para o controle dos
gestos e condutas, ou mesmo como forma de produo, induo do saber e
construo do discurso.
O autor introduz a ideia de anatomia poltica ao pensar nas formas invisveis de um
poder disciplinar que cria corpos teis, tambm denominados como corpos dceis:
dcil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
22
transformado e aperfeioado (FOUCAULT, 2010, p. 132). Trata-se de um controle
dos corpos sem a imposio de fora ou coero, mas sim do controle de gestos,
atitudes e operaes de forma que o mesmo seja til, ou seja, o poder disciplinar
tido como uma aptido, algo que possa ser praticado e exercido por todos os
indivduos sob a forma de um olhar calculado (FOUCAULT, 2013). Fazendo uma
analogia ao conceito de poder disciplinar, encontramos o exerccio do mesmo em
diferentes formas no bojo da gesto dos processos de trabalho em sade. Est
inscrito em um espao no qual todos os atores produzem e exercem micropoderes.
A gesto formal conflui entre esses e o poder disciplinar institudo pelas normas de
conduta das aes, com a finalidade de produzir atos em sade mais prximos do
que estabelecido pelo trabalho prescrito e pelas metas pactuadas com instncias,
muitas vezes, distantes do trabalho real.
O conceito de governo proposto por Foucault (2011) como um conjunto de
tcnicas e procedimentos que direcionam a conduta dos homens. O cuidado de si
apresenta uma conotao tica e corresponde ao modo como o sujeito conduz a si e
aos outros, assim como um desejo de governar os outros atravs de saberes e
prticas que so exercidas pelo eu. O cuidado de si surge como um primeiro
despertar, uma agitao, movimento e inquietude, e est atrelado prtica do
exerccio do poder, de forma que:
Como vemos, ocupar-se consigo est, porm implicado na vontade do indivduo de exercer o poder poltico sobre os outros e dela decorre. No se pode governar os outros, no se pode bem governar os outros, no se pode transformar os prprios privilgios em ao poltica sobre os outros, em ao racional, se no est ocupado consigo mesmo (FOUCAULT, 2011, p. 35).
Grabois (2011) aponta que atravs do controle das prprias paixes e das
atribuies individuais os outros tero plena certeza de que o governante saber
limitar o poder que exercer sobre os outros e ter ferramentas teis para a gerncia
das condutas. O cuidado de si envolve o desenvolvimento de prticas que
instrumentalizam o indivduo na conduo de outros e representa tambm uma
estratgia de autoconhecimento que busca a produo de verdades e resistncia ao
poder que lhe exterior.
A governamentalidade apresentada por Foucault (2011) como um campo
estratgico de relaes de poder e compreende uma trama em torno do governo de
23
si e dos outros, o que confere ao conceito uma conotao tambm poltica. Assim,
para fins de anlise da gesto do trabalho em sade, o conceito de cuidado de si
est vinculado ao movimento de recriao, inventividade e desenvolvimento de
prticas e instrumentos que conduzam o gestor na produo do seu trabalho e que o
permitam gerir o trabalho e as condutas dos outros, buscando apreender as linhas
de resistncia que surgem no espao da governamentalidade, j que todo
trabalhador da sade tambm gestor do seu prprio trabalho e capaz de exercer o
cuidado de si e de produzir prticas de poder.
Campos (2007a) alerta que o comando e situaes de organizao do processo de
trabalho autoritrias impedem o exerccio da liberdade dos trabalhadores, criando
profissionais alienados e descomprometidos. Para o autor, os trabalhadores passam
a ser movidos apenas por recompensas financeiras e/ou vigilncia constante, o que
precariza as prticas de trabalho, sinalizando o insucesso desses instrumentos de
gesto. Assim, a gesto em sade no Brasil se apresentaria com fortes tendncias
tayloristas, normatizao burocrtica, superviso e controle de horrio e
produtividade, mostrando-se ineficaz em sua totalidade quando consideramos o
protagonismo dos trabalhadores na conduo das suas prticas cotidianas de
trabalho. O que existe um distanciamento entre os executores (G) das funes
formais de gesto e os agentes (g) operadores das atividades finalsticas.
Franco (2013) reconhece que o trabalhador da sade livre na organizao do seu
processo produtivo, porm, ressalta que a gesto tem potncia para disciplin-los
atravs de normas, regras e protocolos de condutas que visam padronizar os atos,
muitas vezes, por meio do consentimento dos prprios trabalhadores, que se deixam
aprisionar e capturar em seus modos de agir. Para Foucault (2008) a disciplina um
dos instrumentos que o poder exerce sobre os corpos e gera como controle das
condutas as normatizaes, de forma que o soberano compreendido enquanto o
sujeito ocupante de cargo de direo do governo capaz de dizer no ao desejo do
indivduo de uma forma legtima e fundada na prpria vontade do governado.
O artifcio seria reconduzir a vontade do outro, no contexto das relaes de poder,
de acordo com os instrumentos de persuaso empregados no bojo da organizao.
Tcnicas e habilidades de governo seriam esses instrumentos de disciplinamento
dos trabalhadores, sendo hipottico afirmar que estariam, frequentemente,
24
relacionadas s prticas de coero, ameaa, medo e punies. O gestor formal do
trabalho, pela posio que ocupa na organizao, teria estratgias de poder que
poderiam subjugar os trabalhadores a prticas diretivas, considerando a
possibilidade de sanes como a demisso ou retirada de incentivos financeiros.
Os modelos de gesto e modos de subjetivao apresentam-se como processos
contguos, que se entrelaam em um movimento circular de mudana e produo de
novos territrios no campo da gesto em sade (COLHO, 2015). Neste estudo, o
gestor tem a possibilidade de expressar por meio do discurso, como constituio
scio-histrica, a sua vivncia na gesto do trabalho por meio da anlise e reflexo
das prticas de si que influenciam diretamente a forma como ele agencia as prticas
do outro. um olhar para si mesmo e suas condutas na gesto dos diferentes
trabalhos. O que se busca so as tcnicas e habilidades utilizadas nesse contexto
de ao, com o objetivo de identificar a multiplicidade das formas de fazer a gesto
em sade.
Um modelo de ateno sade deve ter seu foco no contedo do sistema de sade,
representado pelas prticas, e no apenas no continente, enquanto infraestrutura,
gesto e financiamento. Essa designao refere-se essencialmente s formas de
organizao dos servios, com base em tecnologias estruturadas para a resoluo
de problemas e atendimento das necessidades de sade. Paim (2012), ao
apresentar os diferentes modelos tecnoassistenciais vivenciados no pas, destaca: o
modelo mdico, hegemnico, com medicalizao dos problemas e privilgio da
dualidade sade/doena; o Programa Sade da Famlia (PSF), com interveno
focada em pobres e excludos, tecnologia da programao em sade, aes
territorializadas, preveno de riscos e agravos; e a ESF, com interface entre as
combinaes tecnolgicas da oferta organizada, distritalizao, vigilncia sade e
reorganizao dos processos de trabalho.
O PSF surge, em 1994, como um modelo de ateno sade de carter
verticalizado e prescritivo, no contexto da Ateno Primria Seletiva, constituda por
programas focalizados e diretivos, com uma cesta restrita de servios direcionados
s populaes pobres e vulnerveis. Essa concepo de Ateno Primria Sade
(APS) difere daquela proposta na Conferncia de Alma Ata, em 1978, que tinha o
propsito de instituir uma ateno abrangente ou integral, a partir da necessidade de
25
enfrentar os determinantes sociais de sade, com carter universal. Giovanella e
Mendona (2012) associam o surgimento da APS seletiva ao contexto mundial
adverso de baixo crescimento econmico, considerando a perspectiva de reduo
de custos das agncias internacionais de financiamento, como, por exemplo, o
Banco Mundial. A proposio da lgica de conteno dos gastos foi designar um
pacote de intervenes de baixo custo para combater as doenas em pases em
desenvolvimento.
No Brasil, os esforos para a superao dessa herana da APS seletiva tiveram
como proposta a mudana do termo APS por Ateno Bsica, enquanto um nvel de
ateno do SUS, essencial, fundamental e primordial, diferencia-se do conceito
seletivo restrito de primitivo e simples. Assim, o PSF enquanto programa vertical e
restrito da APS seletiva experiencia uma reformulao para um modelo de ateno
da APS integral, admitindo o carter de uma estratgia de substituio do modelo de
ateno sade, com a organizao do SUS em processo de municipalizao,
integralidade do cuidado, participao da comunidade e reorganizao das prticas
de trabalho (Giovanella; Mendona, 2012). Em 1997, o Ministrio da Sade (MS)
atribui Sade da Famlia o escopo de estratgia para a reorientao do modelo
assistencial, com um enfoque na proposta de ao no contexto da ateno bsica e
como porta de entrada do sistema (Brasil, 1997).
Franco e Merhy (2003) referem que a matriz terica do PSF est circunscrita ao
campo da vigilncia em sade de territrios, centrando o processo de trabalho s
normas e prescries de carter higienista, constituindo uma linha paralela ao
modelo mdico hegemnico. Para os autores, para alm da proposio de uma
conceituao de estratgia, o PSF cometeu um erro de sada, aliado herana de
uma proposta da APS seletiva e desvinculada da potncia de transformao que se
refere reestruturao dos processos de trabalho em sade. A despotencializao
da proposta como um novo modelo assistencial est contida na nfase da mudana
de estrutura, sem que haja ressignificaes concisas nos microprocessos do
trabalho em sade.
Gil (2006) reconhece o crescimento da ESF no Brasil, mas ressalta que ela
apresenta desafios para sua viabilizao, enquanto estratgia estruturante de
sistemas municipais, no que se refere s prticas profissionais que deveriam estar
26
centradas no vnculo, responsabilizao, integralidade e trabalho em equipe e a
gesto burocratizada do sistema, com normatizaes, lgica quantitativa de
produo de procedimentos, baixa capacidade de inovao gerencial e
desarticulao com os demais pontos de ateno da rede de servios.
Nesse cenrio, os trabalhadores da sade constituem um dos desafios
implementao dos modelos de ateno sade no mbito do SUS, especialmente
na ateno bsica, especificamente na ESF, visto que a reorientao dos modelos
vigentes ser possvel a partir da organizao das prticas em sade no espao da
micropoltica. Fortuna (2002, p. 273) aponta que os trabalhadores da sade so o
alvo das discusses de inovaes no SUS no que se refere organizao do
trabalho. Prope um distanciamento do termo recursos humanos em sade,
proposto por alguns autores e polticas ministeriais, reconhecendo que o trabalhador
um sujeito social em processo de relao e no pode ser equiparado a um mero
recurso da instituio, em semelhana a recursos materiais e fsicos.
Dessa maneira, esta proposta parte do princpio de que os responsveis pela gesto
do trabalho da ESF so protagonistas essenciais para a implementao das polticas
pblicas de sade e por isso o seu agir cotidiano deve ser conhecido, no intuito de
gerar conhecimento para a tomada de deciso. Justifica-se pela constatao de que
a anlise dos componentes da macropoltica e da micropoltica da gesto do
trabalho na ESF permite a compreenso do trabalho real desenvolvido pelo gestor
na conduo do governo de si e dos outros, o que pode evidenciar as linhas de
ruptura e de resistncia que desenham a trama das relaes de produo de poder,
assim como as falhas entre o que est prescrito por normas e o que constitui o
trabalho real desses atores. Busca-se o desvendamento do campo real e processual
das prticas de gesto em sade, com especial interesse nas ferramentas de gesto
utilizadas no cotidiano e o seu efeito na conformao das diferentes modelagens de
gesto em sade, no contexto do trabalho. A inteno analtica consiste no olhar de
um sujeito implicado com a realidade em estudo, para o cenrio da gesto do
trabalho, com o intuito de apreender linhas de fugas, fluxos, afetos, relaes de
poder e discursos ancorados em diferentes pontos de vistas (MERHY, 2014).
27
3 OBJETIVOS
3.1 OBJETIVO GERAL
Analisar a gesto do trabalho na ESF no ES, a partir do discurso dos gestores.
3.2 OBJETIVOS ESPECFICOS
Analisar os limites e as potencialidades da gesto do trabalho na ESF no
estado do ES;
Investigar as prticas desenvolvidas pelos gestores na constituio do
governo de si e dos outros;
Identificar as tcnicas de governo e procedimentos utilizados na produo de
prticas de controle das condutas no mbito da gesto do trabalho; e
Descrever as modalidades de gesto do trabalho na ESF no ES.
28
4 ENSAIOS SOBRE A GESTO DO TRABALHO EM SADE NO GOVERNO DE
SI E DO OUTRO
A calibrao dos gestos uma amputao dos movimentos (CLOT, 2006, p. 14).
O trabalho em sade se processa como produo de vida e subjetividade (LIMA,
2001). Santos e Barros (2012), ao apresentar os desafios e contextos do trabalho
em sade, desde a dcada de 90, referem que as prticas precrias de gesto esto
sendo acentuadas e marcadas pelo autoritarismo e excluso dos trabalhadores dos
espaos de deciso e concepo, o que gera marcas nas relaes sociais de
trabalho, por meio da insatisfao do trabalhador com a cobrana de produtividade,
sobrecarga de trabalho, falta de apoio da gesto formal e trabalho parcelar,
fragmentado e solitrio. O ato de planejar e o de executar so separados, o que
diminui a autonomia e protagonismo das equipes. Para os autores, a prpria
institucionalizao do SUS e de seus modelos de ateno favorece prticas de
padronizao das condutas e fragmentao do trabalho. Consideram que o trabalho
nunca neutro ou assptico e que sempre h usos de si e no somente execuo
mecnica de procedimentos, de forma que o controle absoluto e a obedincia cega
s prescries no trabalho em sade so algo invivvel e impossvel (SANTOS;
BARROS, p. 107).
A gesto do trabalho pode ser compreendida apenas sob o formato administrativo,
pautado em situaes de mando e no controle prescritivo da organizao dos
processos de trabalho, no campo da macropoltica, mas tambm ser uma ao
cotidiana do trabalhador, no espao da micropoltica, a partir do reconhecimento de
que todos os trabalhadores so gestores do seu prprio trabalho, exercendo graus
de liberdade na organizao e execuo de suas prticas. O territrio da gesto do
trabalho constitudo pela imanncia entre a macro e a micropoltica, de forma que
alguns trabalhadores ocupam cargos de autodireo do governo municipal e esto
situados em um espao de produo de um poder que tangencia o saber-fazer de
outros atores em ao (FRANCO, 2013).
29
Enquanto prtica de governo produo e reproduo, uma dobra que permeada
pelo institudo e pelo instituinte, pelo formal e informal, em espao de disputa de
micropoderes e tenses constitutivas entre o que impera enquanto trabalho morto e
a potncia do trabalho vivo (CRUZ, 2016). Barros e Barros (2007, p. 62) destacam
que a gesto no apenas organizao do processo de trabalho, mas o que se
passa entre os vetores-dobras que o constituem e que os trabalhadores so
desejos, necessidades, interesses em conjugao e conflito (BARROS; BARROS,
2016, p. 64).
Os gestores do trabalho albergam em sua prtica de governo a definio de limites
precisos para o exerccio do poder e ditam normas e prescrevem prticas com o
intuito de garantir que os projetos da organizao se viabilizem, o que gera
trabalhadores repetidores de velhas prticas. Em resposta ao centralismo do poder
do gestor formal, o trabalhador opera novos dispositivos e aciona novos modos de
produzir o cuidado se isto fizer parte dele, tanto do seu aprendizado tcnico, quanto
do seu desejo de fazer (FRANCO, 2013, p. 247). Assim, mesmo comparado pela
gesto como um mero recurso humano, o trabalhador o maior protagonista da
produo do cuidado, sujeito ativo que opera com seus saberes, desejante, tem
projetos, expectativas e atua no mundo do trabalho com suas caixas de ferramentas
(FRANCO, 2013, p. 250). Existe uma tenso cotidiana entre liberdade e captura, que
iro imprimir efeitos na formao da subjetividade do trabalhador, que pode ser
nmade, enquanto movimento e agir libertrio, ou aprisionada, que tende a
reproduzir prticas serializadas e burocratizadas, gerando um cuidado protocolar.
O gestor formal da organizao de sade aquele que ocupa um cargo de
autodireo do governo, tambm conceituado por Matus (1993) como um agente da
organizao (G) em cargo formal de gesto, sendo que todos os agentes, sejam
eles gestores (G) ou trabalhadores (g), governam, mesmo que caiba ao G a
incumbncia formal de exercer tal atividade, sendo que na organizao operam
todos os atores com diferentes graus de autonomia e governabilidade, representada
pela capacidade de tomada de deciso com base nos recursos disponveis.
A compreenso da gesto com base nas implicaes normativas da atividade parte
do pressuposto de que a gesto produzida por todos os atores, sendo uma
responsabilidade tica, j que mesmo sob os maiores cerceamentos, a realidade
30
institucional coproduo e agir compartilhado. O funcionamento institucional opera
em suas inrcias e enclausuramentos, com o objetivo de conter os fluxos sociais, o
que vai de encontro impossibilidade real de concretizar em absoluto a separao
entre concepo e execuo no agir humano (GUIZARDI; CAVALCANTI, 2010, p.
640).
Franco (2013, p. 249) afirma que necessrio que os trabalhadores produzam
encontros alegres e potentes, entre si e com a gesto, que representam um corpo
concreto e simblico, que pode operar em um polo paranoide, criando um ambiente
persecutrio nas relaes de trabalho, ou em um polo esquizo, o da criao,
inveno, lugar dos processos instituintes e ricos em subjetivaes. Esses
movimentos instituintes na composio dos encontros que se produzem no agir
cotidiano dos sujeitos so vistos enquanto processo, com um dinamismo que os
permite transformar as instituies, constituindo cdigos e signos que ressignificam
a relao entre o sujeito e o espao de prticas no qual ele se situa (BAREMBLITT,
1996).
Os encontros que se produzem no espao molecular so mediados por afetos e
intensidades, no sentido de que cada corpo, seja o trabalhador ou o gestor,
representa uma essncia, um grau de potncia que permite a este corpo afetar ou
ser afetado. Para a Teoria das Afeces, quando encontramos um corpo exterior ao
nosso e que nos convm, ou seja, que capaz de aumentar a nossa potncia para
agir medida que as relaes se compem, as paixes que nos afetam so de
alegria, satisfao. Ao contrrio, quando nosso corpo se encontra com um corpo que
no nos convm, sua potncia se ope nossa, operando uma subtrao ou
anulao, sendo diminuda ou eliminada a nossa potncia para agir, surgindo as
paixes tristes; sentimo-nos impotentes j que as paixes tristes so sempre
impotncia (DELEUZE, 2002). O Estado regulador no seu ato de governar os
servios e os trabalhadores produz um modo de fazer a gesto em sade que no
garante condies adequadas de trabalho, segurana, liberdade e valorizao dos
diferentes saberes, o que no encontro com as equipes gera paixes tristes, de
impotncia e de diminuio da potncia de ao dos trabalhadores.
necessrio manter os trabalhadores com alta potncia para agir no mundo do
cuidado em sade, atravs da produo de bons encontros e produo ilimitada de
31
subjetividades nmades e libertrias. A subjetividade para Guatarri (2005) inerente
ideia de outro, de um individuo enquanto um processo e um produto, um campo
processual de formas moventes. No campo da micropoltica os indivduos so
fabricadores e fabricados nos modos de agir e nos processos relacionais (FRANCO,
2013, p. 340).
Merhy (2014) conceitua a organizao de sade como uma arena onde operam
distintos agentes institucionais com interesses convergentes e divergentes. Assim, a
gesto seria o espao de disputa dos diferentes atores, assim como a revelao dos
processos de tenso e das contratualidades que estabelecem entre si. Para o autor,
pensar a organizao de sade como espao de existncia da gesto remete
constatao de que a primeira no existe enquanto um espao formal, fisicamente
representado por um prdio ou repartio, mas sim como uma instncia construda
pela ao dos diferentes atores que nela governam, por meio de uma dobra do
formal e informal, uma disputa entre a norma e liberdade, um campo de produo de
mundos e pontos de vista.
O cenrio dos servios de sade no somente material, normativo e poltico, mas
intersubjetivo e interpsquico, o que gera um universo simblico e imaginrio
compartilhado pelos atores e inscrito em conflitos (S; AZEVEDO, 2010). Os
conflitos so tidos como analisadores das prticas de trabalho na promoo de
corresponsabilidade no planejar, fazer e avaliar, rumo consolidao de mudanas
nas formas de gesto dos servios. Ceclio (2005), ao considerar o conflito como a
matria-prima da gesto em sade, alerta que alguns deles so produzidos como
rudos no interior da organizao de sade e que os gestores no escutam ou no
querem escutar em virtude do seu potencial de reproduo ou produo de
territrios de poder. So comparados ao conceito de superfcie, que revela uma
tenso sob a qual est a espessura, enquanto saberes, poderes, o institudo e
malhas de captura que se interpenetram produzindo deslocamentos e rupturas. O
autor afirma que o conflito pode ser desvelado como um potente dispositivo no bojo
da gesto, por meio da viabilizao de novos arranjos e contratos pactuados pelo
coletivo do trabalho, com a emerso de rudos invisveis aos olhos dos gestores.
Um dos grandes desafios gesto do trabalho em sade conduzir a potncia
andante enquanto estmulo liberdade de ao e criao de cada trabalhador, no
32
sentido de que o projeto tcnico-tico e poltico a servio do cuidado deva ser
tambm um projeto do trabalhador operante, constituindo sua subjetividade na
proposio de novos dispositivos nos servios de sade, em contraposio
serializao de prticas rudimentares. Assim, possvel na gesto do trabalho em
sade manter o trabalhador com alta potncia para agir no mundo do cuidado, que
tambm um mundo social e afetivo, e possibilitar que o trabalhador produza no outro
[...] alta potncia vital (FRANCO, 2013, p. 250).
Existe uma constante tenso entre a autonomia e o controle no mundo das
organizaes de sade, que considerado um territrio tensional em si, j que
opera com alto grau de incerteza, marcado pelas subjetividades dos atores em cena,
sendo um espao de interveno de sujeitos coletivos inscritos a partir de suas
capacidades de se autogovernarem, disputando o caminhar do dia a dia, com as
normas e regras institudas para o controle organizacional (MERHY, 1999, p. 309).
A gesto do trabalho opera com o imaginrio de um trabalhador ideal, fabricado, que
seja assujeitado ao plano de governo definido por meio de uma normatividade
pretendida, sem reconhecer a presena do trabalhador real, imerso em um plano de
subjetividades que o compem e que opera com gradientes de autonomia, e define
a partir da sua intencionalidade a forma e direo do fazer em sade (CECILIO,
2014).
Campos (2009) discute o conceito de autonomia como a capacidade de lidar com a
dependncia, de identificar as normas, compreender as relaes, tomar decises e
agir sobre elas. No um conceito absoluto e deve ser apresentado em coeficientes
ou graus e requer o exerccio do conhecimento de si e do contexto relacional ao qual
o indivduo est inserido.
Ceclio (BARROS, 2007) alerta sobre a constituio de uma gesto pautada em
princpios funcionalistas, que, aliados a uma ideia de gestor moralmente
comprometido com a construo do SUS, produzem o gestor funcional/moral, que
em sua essncia reconhece o trabalhador apenas pelas funes que executa no
servio, agindo de forma a expropri-lo do seu trabalho vivo atravs de uma
racionalidade nica nos modos de organizar o cuidado e a gesto em sade. Assim,
a gesto tem sido a disciplina do controle por excelncia, com enfoque na
produtividade e reproduo do institudo, por meio de relaes interpessoais
33
marcadas pela ameaa que o outro e o seu saber-fazer representam. s vezes, na
gesto, fora-se o rumo, coloca-se todo mundo no mesmo caminho, antes de saber
para onde (e por que) querem uns e outros ir (CAMPOS, 2007b, p. 139).
Feuerwerker aponta que,
Do mesmo modo como ocorre com trabalhadores e usurios, os gestores em suas diferentes esferas de atuao so atravessados tambm por uma multiplicidade de planos, linhas, vetores, potencializados por alguns encontros, despotencializados por outros. A poltica, nos espaos de governo, tambm fabricada micropoliticamente. E tambm atravessada molarmente e molecularmente por diferentes linhas (FEUERWERKER, 2014, p. 68).
A quimera da ateno bsica, enquanto imagem objetivo no campo do sonho ou
fantasia, prev uma rede de servios universal, resolutiva, cuidadora e integral, sem
frequentemente levar em considerao os atravessamentos reais no cotidiano, como
a produo de redes alternativas e operantes, pelos trabalhadores, usurios,
gestores e tantos outros autores, que nem sempre convergem para os mesmos
interesses (CECLIO, 2012, p. 284). Nesse processo, os gestores experienciam um
tempo das possibilidades, atravs da busca permanente da adequada relao
entre a oferta e a demanda, buscando a racionalizao do uso dos tempos de
acesso e consumo dos servios. Os profissionais de sade esto situados no tempo
de cuidado e os usurios no tempo das necessidades, marcado, principalmente,
pela experincia individual da doena. Assim, esses diferentes tempos, em geral,
so dspares e geram rudos na operacionalizao do sistema de sade, de forma
que os gestores esto atentos a uma demanda que parece estar equivocada, visto a
inoperncia da rede de servios; os trabalhadores culpabilizam os gestores pela
demora na disponibilizao dos servios; e os usurios pelas fragilidades e
imprevisibilidades com que norteiam o processo sade-doena-cuidado advindos de
suas demandas ao determinarem suas necessidades como imperativas.
O gestor est imerso em um regime de regulao governamental que vivencia a
demanda crescente pelo consumo dos servios de sade e uma rede de ateno
sade que no cresce na mesma velocidade, especialmente, por aspectos
financeiros e poltico-administrativos. Ao mesmo tempo, se distancia do espao da
micropoltica do processo de trabalho em sade, o que torna invisveis as redes e
fluxos produzidos por trabalhadores e usurios e que, em essncia, tem grande
34
potncia na organizao das redes vivas em sade. Magalhes (2014) afirma que as
redes de ateno sade sofrem grande impacto pelo acesso ampliado na ateno
bsica sade sem clareza dos fluxos entre os servios, principalmente, com a
expanso da ESF a partir da dcada de 90.
Merhy e colaboradores (2014, p. 154) ampliam a anlise das redes de ateno
sade para alm da previsibilidade racional proposta pela Constituio Federal de
88 e pelas leis orgnicas do SUS, propondo a ideia das redes vivas, que
contemplam as diferentes subjetividades dos atores envolvidos na produo do
cuidado, reconhecendo que a rede de servios de sade no nica em seu regime
regulatrio governamental. Ao contrrio, opera em diferentes fluxos, como redes
vivas em produo, j que produzida por todos os atores em cena, o que dificulta
o controle regulatrio proposto pela gesto em seu carter meramente
macropoltico. Assim, a discusso de redes de cuidado em sade, olhada a partir da
macropoltica, tem baixa potncia, por no abarcar a dimenso micropoltica das
experincias cotidianas (MERHY et al., 2014, p. 156).
Pierantoni e colaboradores (2004), em um estudo sobre a capacidade gestora em
instncias locais de sade, afirmam que a avaliao da autonomia de gesto dos
gestores do trabalho nos municpios revela ser muito baixa ou inexistente, visto que
a tomada de deciso sobre elementos do trabalho das equipes, como, por exemplo,
contratao e utilizao de recursos financeiros, est condicionada s burocracias
internas, alheias governabilidade do gestor. Os gestores em cargos de autodireo
nas instncias locais de sade no dispem de instrumentos e tcnicas de
negociao no interior da instituio que sejam capazes de sobrepor s estruturas
de mando dos demais dirigentes municipais da sade.
Um dos desafios da gesto do trabalho, segundo Franco (2013), envolver o
trabalhador em um projeto comum tcnico-poltico-tico, j que existem sujeitos
plenos e singulares, e considerando que, geralmente, os gestores do trabalho
exercem uma gesto normativa de mando que garante apenas a formao de
trabalhadores serializados que repetem prticas legitimadas e ultrapassadas. Assim,
Os trabalhadores so equiparados a um insumo para o funcionamento dos servios de sade, quando na verdade ele o maior protagonista da produo do cuidado, sujeito ativo que opera com seus saberes, desejante, tem projetos, expectativas e atua no mundo do trabalho e
35
cuidado com suas caixas de ferramentas adquiridas na formao, e sobretudo na experimentao do mundo do trabalho e da vida, e isso que vai marcando sua atividade (FRANCO, 2013, p. 250).
Os gestores caricaturam a ao dos trabalhadores no cenrio real de prticas, caso
a mesma esteja contrria s normatizaes e disciplinamento que regem o trabalho
em sade, nos municpios, como sendo um perfil inadequado de trabalho para a
ESF. Feuerwerker (2014, p. 103) ressalta que preciso problematizar a questo de
que o complexo mundo do trabalho no um lugar do igual, mas da multiplicidade,
do diverso e da diferena, da tenso e da disputa. A autora afirma que
necessrio, no bojo das organizaes e dos processos decisrios, reconhecer a
diversidade, os processos de formao de subjetividades, a forma singular de
produo do cuidado e a potncia inscrita na dinmica da prxis.
Para Ceclio (2014), a gesto e o funcionamento do SUS se configuram menos
como um desdobramento de uma ao tcnica-administrativa-gerencial e mais como
o resultado da ao dos diferentes atores, que regulam o acesso e o consumo dos
servios e reconfiguram as prticas de cuidado com base em subjetividades
libertrias e nmades. Participar da gesto faz parte do campo de responsabilidade
de todos os envolvidos em um processo de trabalho, por meio da criao de
espaos coletivos que propiciem a interao intersujeitos (CAMPOS, 2007b).
Lins e Ceclio (2007) propem campos de intervenes organizacionais como um
esquema analtico capaz de revelar as intencionalidades inscritas nos projetos de
interveno organizacional, operado por gestores e avaliadores, considerando que a
operacionalizao dos mesmos no definida com base em um corpo terico
conhecido e as mudanas almejadas ao nvel do discurso no se consolidam no
cotidiano como ressignificao das prticas de gesto. Os autores alertam para o
reducionismo proposto por anlises das organizaes de sade pautadas no
referencial estrutural funcionalista, no qual no h reconhecimento dos conflitos de
interesse e dos desejos e subjetividades dos trabalhadores. Apresentam a anlise
institucional como uma ferramenta de compreenso da organizao como uma
relao de produo, na qual os indivduos so desejantes, possuem autonomia e
realizam aes concretas nos territrios definidos pelas normas. Assim, o sistema
analtico proposto baseado nos campos de intervenes: universalistas,
representado pelo eixo normativo de definio de regras, de forma que os projetos
36
individuais seriam condizentes com os objetivos organizacionais, em momentos de
manuteno do controle e captura da criatividade e do desejo do trabalhador, que
visto como um recurso humano; particularistas, no qual a ao e a liberdade do
trabalhador podem definir ou redefinir a organizao de sade, de forma que a
capacidade de governo est ancorada nas capacidades humanas coletivas, com
espao de compartilhamento de projetos; e singulares, com a tenso constante entre
norma e liberdade, objetivismo e subjetivismo, estando o projeto oficial do modelo de
gesto vinculado aos objetivos da organizao com atravessamento por outros
projetos que tencionam o institudo atravs de movimentos instituintes.
Os gestores formais cumprem o papel de articulao entre as questes de governo,
conduo da organizao e dos interesses dos trabalhadores, tendo o potencial de
fortalecer a grupalidade, aumentando a governabilidade e autonomia das equipes e
permitindo a construo de novos sentidos para o trabalho e de novos imaginrios
na organizao (S; AZEVEDO, 2013, p. 42). No entanto, as autoras, apesar de
compreenderem a potncia da prtica gerencial no embate entre as foras
dominantes de manuteno do institudo, afirmam que os prprios gestores esto
imersos e transitando entre territrios de um imaginrio de impotncia e descrena e
outro de mudana e produo, que capaz de propor novas formas de organizao
dos servios. H evidncia de uma baixa capacidade de governo dos gestores, com
limites na gesto dos trabalhadores que demonstram resistncia s atividades a eles
atribudas, sentimentos de impotncia que resultam em grande desgaste psquico e
interferncia das secretarias de sade que impem limites para a interveno a nvel
local e baixa governabilidade.
S e Azevedo (2013, p. 355), ao proporem o laboratrio de prticas gerenciais como
espao de formao na gesto hospitalar, identificam que o sentido de gesto para
os gestores, em anlise, perpassa pela possibilidade de mobilizao do coletivo dos
trabalhadores e pelo desgoverno, enquanto uma dificuldade em exercer a funo
castradora estabelecimento de regras, regulao do trabalho e implementao de
processos que aumentem a responsabilidade dos profissionais com seu trabalho.
Para o gestor, a impotncia no cotidiano de trabalho est atrelada dificuldade de
controlar o processo de trabalho das equipes, ao atravessamento das lideranas
polticas que ditam normas e condutas e baixa capacidade de tomada de deciso.
37
A gesto do trabalho, nesse contexto, analisada com base na teoria do cuidado de
si e dos outros, proposta por Foucault, em relao ao conceito de governo e poder.
Para Foucault (2008) a disciplina um dos instrumentos que o poder exerce sobre
os corpos e gera como controle das condutas as normatizaes, de forma que o
soberano, compreendido enquanto o sujeito ocupante de cargo de direo do
governo, capaz de dizer no ao desejo do indivduo de uma forma legtima e
fundada na prpria vontade do governado.
O poder para Foucault (2010) se produz e se processa em rede, sendo mais bem
designado como relao de poder, j que circular e inscrito como presente em
todas as relaes humanas. Todos os indivduos exercem o poder, j que no uma
exclusividade de alguns. O conceito de governo proposto como um conjunto de
tcnicas e procedimentos que direcionam a conduta dos homens (FOUCAULT,
2011).
O cuidado de si relacionado ao ocupar-se consigo mesmo, ao conhecimento de si
mesmo, no sentido da gerao de uma atitude de refletir sobre as coisas e
estabelecer relaes, uma forma de olhar na conduo de si e dos outros e uma
ao de transformao e mudana com uma conotao tico-poltica. Desta forma,
exercendo um poder sobre si ser possvel regular o poder que se exerce sobre o
outro, de forma a no reproduzir prticas de tirania e comando, ou mesmo um
governo que destitua o outro da sua liberdade de ser e fazer (FOUCAULT, 2011).
Cuidar de si um pressuposto para o cuidado com os outros, e para Merhy (2014)
esse exerccio d potncia ao trabalhador na sua ao cotidiana, reconhecendo
esse cuidado como uma prtica de autoanlise de concepes e condutas, na busca
da percepo de novos sentidos por meio do dilogo no espao do trabalho de
forma a tornar o espao da gesto do trabalho, do sentido do seu fazer, um ato
coletivo e implicado, a servio da produo de mais vida individual e coletiva
(MERHY, 2014, p. 8).
Todos ns fazemos prticas de si expressas no prprio cuidado de si e nas formas
de produo da existncia. Tais prticas determinam a essncia dos encontros entre
os corpos, a produo de potncia ou impotncia em si e no outro, que o
trabalhador da sade, que atua na vida cotidiana dos servios e vive em outros
38
territrios construdos com seus pares, no habitados pelo gestor, e invisveis ao
olho mquina produtiva, mquina econmica do gestor (CRUZ, 2016, p. 312).
Assim, para fins de anlise da gesto do trabalho em sade, o conceito de cuidado
de si est vinculado ao desenvolvimento de prticas e instrumentos que conduzam o
gestor no governo de si e dos outros, em territrios de governo inscritos em linhas
de resistncia e potncias, j que todo trabalhador da sade tambm gestor do
seu prprio trabalho e capaz de exercer o cuidado de si e de produzir prticas de
poder, no sentido de que
Cuidar de si, no sentido de adquirir potncia de autoanlise, d ao sujeito do trabalho na sade a condio de operar seus processos de trabalho, por dentro das organizaes, na plataforma do instituinte, subvertendo as linhas delimitadoras e abrindo novas linhas de vida (FRANCO; MERHY, 2013, p. 356).
O cuidado de si representa um primeiro despertar, um princpio de movimento e
inquietude. Refere-se atividade de ocupar-se consigo mesmo na direo do
autoconhecimento, o que envolve uma atitude de praticar aes e estabelecer
relaes com o outro. Envolve uma forma de ateno e um desvio do olhar da
experincia do outro para a sua prpria experincia. Assim, enquanto atividade e
ateno, resulta em ao de mudana, transformao e transfigurao (FOUCAULT,
2010). A necessidade de cuidar de si est vinculada ao exerccio do poder e
representa um requisito para o governo dos outros, a fim de que o governante no
exera uma ao leviana sobre o governado, de forma que ocupar-se consigo
conhecer-se (FOUCAULT, 2010, p. 64).
Foucault (2010, p. 118) apresenta o conceito de stultitia como um estado contrrio
ao cuidado de si, sendo o stultus aquele que no tem cuidado consigo mesmo, que
alberga uma vontade subordinada, que no livre e sim sujeitada. O stultus est
aberto ao mundo exterior na medida em que deixa essas representaes de certo
modo misturar-se no interior de seu prprio esprito, com suas paixes, seus
desejos, sua ambio, seus hbitos de pensamento, estando a merc de todas as
representaes exteriores e que no almeja metas precisas e bem determinadas. O
stultus reside em sua menoridade, que significa a incapacidade de se servir do seu
entendimento sem a direo de outrem, mas que no deve ser confundido com um
estado de impotncia natural, e sim como um comportamento que permite ser
direcionado por outro que detm ferramentas austeras (FOCUCAULT, 2011, p. 25).
39
O cuidar de si permite um agir livre e independente dos acontecimentos externos.
Pode ser metaforicamente comparado navegao, de modo que implica um saber
e uma tcnica que permite conduzir o barco em uma trajetria previamente definida
e segura, resistindo aos perigos e riscos que podem comprometer o itinerrio. No
barco o conhecimento da pilotagem parte de um saber conduzir a si do piloto que
garante a segurana dos demais tripulantes. Em resumo, a metfora da navegao
representa para Foucault (2010) a prpria arte de governar a si e aos outros, como
um princpio regulador da atividade, de nossa relao com o mundo e com os
outros (FOUCAULT, 2010, p. 486).
A tica poltica do eu, apresentada pelo autor, se aplica ao governo poltico como um
papel provisrio cumprido por um ocupante de um cargo formal de gesto, e no
como uma identidade social, a partir do reconhecimento de que a nica possibilidade
de comando se resume ao controle de si mesmo, reconhecendo os diferentes papis
e protagonismos e lutando contra as sujeies e dominaes. As prticas de si so
relacionais, transversais e exercem um efeito benfico ao outro: libertar-se dos
medos, da arrogncia, do abuso do poder e, por isso, , ao mesmo tempo, salvar os
outros, no produzindo sobre o outro um governo, uma ao que cerceie ou limite a
sua liberdade de ser (CSAR, 2008, p. 63).
Para Foucault (2011, p. 35), em uma atividade poltica os indivduos se posicionam
como sujeitos que fazem uso de seus saberes e entendimentos, como peas de
uma mquina, que assumem uma funo em um dado lugar, no qual outras peas
esto operando ao mesmo tempo, o que configura um uso privado. O sujeito
universal, ao contrrio, faz uso de seu entendimento em um territrio universal, com
possibilidade de se posicionar sem nenhuma relao de obedincia e autoridade.
Modos de fazer a gesto como a possibilidade de tomada de deciso coletiva, com
base na constatao de que qualquer processo de mudana de prticas no se
processa pelos projetos individuais e sim em espaos de valorizao do coletivo em
momentos de negociao dialgica, representam a cogesto enquanto o pensar e o
fazer coletivo visando democratizao das relaes no campo da sade
(COLHO, 2015).
40
Campos (2007b), ao propor a gesto colegiada de equipes de sade, salienta que a
grande utopia ou quimera seria a produo de equipes com capacidade de
reorientar os saberes estruturados sem estarem aprisionadas em instncias
funcionalistas, em processos permanentes de negociao e liberdade de governo de
seus atos, de forma a constituir um trabalho interdisciplinar entre sujeitos livres e
compromissados, com as reais necessidades de sade apresentadas pelos usurios
dos servios. Assim, novos sentidos para as prticas devem ser conduzidos em
momentos dialgicos de pactuao entre os trabalhadores, usurios e gestores
formais da organizao. Nesse processo, a composio da equipe deve considerar
a necessidade de compartilhar objetivos e objetos de trabalho, e ser orientada para
a ampliao da capacidade de direo, por meio de relaes horizontais com
democratizao e solidariedade nas relaes de trabalho (GUIZARDI;
CALVALCANTI, 2010, p. 1249).
Para Colho (2015, p. 53) a cogesto experimentada na ateno bsica, alm da
necessidade de encontros coletivos, fundou-se na construo dos dispositivos e
concretizao da clnica compartilhada, que pode ser compreendida como uma
maneira de organizar os processos de trabalho com atuao abrangente e ampliada
nos determinantes do processo sade-doena, com a elaborao de projetos
teraputicos singulares. A cogesto apresenta-se como um modo de governar que
envolve o pensar e o fazer coletivo visando democratizao das relaes no
campo da sade (COELHO, 2015, p. 82).
Cruz (2016, p. 141), ao cartografar a sua experincia como gestora formal de uma
organizao de sade, alerta para a simulao de atos democrticos por parte da
gesto formal, visto que, mesmo havendo uma boa interao entre gestores e
trabalhadores, predomina o projeto e a intencionalidade do governante que busca a
aproximao para capturar o trabalhador em seu cotidiano. Para a autora, o gestor,
alm de buscar o amortecimento do gesto criador da equipe, no dispe de tempo
para parar e ouvir, j que a unidade tempo representa um recurso escasso. Assim,
apesar da busca da construo de espaos decisrios democrticos, existe um
centralismo poltico que reconhece o trabalhador como um outro que deseja e tem
autogoverno sobre os seus atos e [...] isso era o insuportvel para o delrio da a
gesto, ou seja, de controlar a dimenso incontrolvel do agir do outro (CRUZ,
2016, p. 141).
41
A proposio de novos modelos de gesto e ateno pautados na participao ativa
dos trabalhadores no garante por si s o compartilhamento de decises e rumos,
visto que as equipes detm pouca governabilidade em relao definio de metas
e indicadores, o que reafirma a prevalncia de mtodos tradicionais de
planejamento, conduo do trabalho e tomada de deciso (SANTOS, 2007). S e
Azevedo (2013, p. 42), ao pensar a gesto pela tica de um trabalho vivo em ato
que se efetua nas entrelinhas das relaes entre os agentes, afirmam que a gesto
e os prprios gestores, na difcil posio de governar, cumpririam ento, em tese,
essa funo de passagem e articulao entre as questes de governo, de conduo
da organizao e interesses e desejos dos vrios grupos de trabalhadores. O gestor
assumiria a posio de um mediador promovendo a grupalidade com estmulo
autonomia das equipes, por meio da construo de novos sentidos para o trabalho.
proposto um padro transversal de comunicao que se processa por meio de
uma dinmica multivetorializada, na qual se expressam os processos de produo
de sade e subjetividade. Rede que se tece com participao ativa e inventiva de
atores, saberes e instituies, voltados para os desafios que emergem nos
ambientes laborais. Esses mltiplos vetores envolvem saberes, relaes de poder e
polticas pblicas (SANTOS; BARROS, 2012, p. 110). O trabalho como espao de
reflexo das prticas se apresenta como um analisador da gesto em sade e
considerar os analisadores implica em suportar o estranhamento causado pela
perda dos contornos e territrios definidos e abrir-se para novas combinaes de
foras que podem se articular de forma a nos tirar do plano do conhecido, plano das
formas institudas (SANTOS; BARROS, 2012, p. 115).
O gestor busca induzir comportamentos, capturar o trabalhador para o seu projeto
de gesto definido como o melhor, mais apropriado para o servio. H a simulao
de pactos e adeses, de forma que o gestor acredita estar exercendo processos
decisrios coletivos ou mesmo mais apropriados e o trabalhador simula um fazer
regido pelo regime de verdade do gestor. No entanto, Cruz (2016, p. 311) aponta
que as foras de atrao no ditas, mas sabida por todos, e que so constitutivas e
constituidoras deste territrio, so o fato do gestor ser o detentor da hora trabalhada,
e o fato do trabalhador da sade ser o dono do resultado da hora trabalhada. O agir
governo formal simula a dominao sobre o agir autogoverno. Todos so simtricos
na maquinaria governo e gesto, pois todos governam.
42
Campos (2007b) reconhece a gesto compartilhada como um dispositivo
desalienante a partir da constatao de que o trabalhador precisa estar envolvido
na formulao de prticas que faam sentido para ele. Representa uma vertente do
Mtodo Paideia que busca orientar a poltica e a gesto com o reconhecimento da
existncia de conflitos de interesse e vises de mundo, com a construo de
espaos coletivos para ampliao da capacidade de anlise, deciso e ao dos
atores (COLHO, 2015).
Franco (2013) afirma que a organizao da rede de ateno sade no SUS
normatizada, complementando com a evidncia de que a prpria ESF se ancora em
processos de ordenamento normativos, atravs da lgica de programas e aes
padronizadas com horrios fixos, o que gera a captura da autonomia operante dos
profissionais, que experienciam constrangimentos na produo do cuidado em
sade. Para o autor estas regras, normas e protocolos so instrumentos usados
para padronizar, mas que ao mesmo tempo capturam o trabalho vivo, ou seja,
retiram a liberdade do trabalhador e aprisionam seus atos assistenciais e de cuidado
em um padro previamente concebido (FRANCO, 2013, p. 245).
Sulti et al. (2015), ao analisar a gesto formal do trabalho, revela que o modo de
gesto operante o do disciplinamento, atravs da busca pelo cumprimento de
metas e indicadores impelidos ao trabalho das equipes e da chamadinha, enquanto
exerccio prtico do poder do gestor, caso o trabalhador no consiga atingir
determinado resultado ou expectativa externa.
A gesto disciplinar emerge nos modos de organizao do trabalho das equipes por
meio do controle e disciplinamento dos trabalhadores. O gestor assume o papel de
um eixo fixo regulador de uma espiral ascendente, ao redor da qual vagam os
trabalhadores submetidos a linhas de mando verticais, que afirmam sua
vulnerabilidade perante o gestor que busca a normatizao de prticas para a
garantia de um dado projeto poltico construdo pela gesto em seu territrio
macropoltico (ROLNIK, 2006). O poder centralizado no territrio da gesto formal
configura o que Foucault (2011) denomina como panptico, que se refere a uma
organizao no mbito da vigilncia na qual algum ocupa o lugar central na
mquina de poder a fim de garantir que ningum escape aos olhos do governante.
43
Colho (2015, p. 23) afirma que a gesto ainda est ancorada na racionalidade
gerencial hegemnica, com base na manuteno da disciplina e do controle dos
trabalhadores, por meio da obteno e cobrana de metas e resultados, muitas
vezes alheios ao processo de produo de sade.
A disciplina se exerce sobre os indivduos, atravs da busca de uma distribuio
hierrquica e funcional dos elementos, assumindo uma funcionalidade centrpeta
que isola um espao para funcionamento pleno dos mecanismos de poder. Age em
tempos, gestos, atos, classifica os elementos em funo de objetivos determinados
por outros e requer o adestramento progressivo (FOUCAULT, 2008). Busca a
normalizao atravs da construo de um modelo tido como ideal a ser seguido,
com a finalidade de impedir o detalhe ou diferena.
O disciplinamento dos profissionais referenciado como vivel por meio da
execuo de penalidades, como uma possvel destituio do cargo e coero por
parte do gerente e obedincia por parte do trabalhador. O que o gestor busca a
amortizao do gesto criador e inventivo do trabalho vivo em ato, ou seja, o controle
cria a emergncia de corpos docilizados e obedientes s normas impostas pelo
trabalho prescrito da gesto. Trata-se de uma gesto do trabalho de carter
eminentemente administrativa, pautada em relaes de mando e prescrio de
Recommended