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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
CRISTIANO FERREIRA
JESUS CRISTO, O MITO DO HERÓI SALVADOR NA OBRA BÍBLIA EM AÇÃO,
DE SERGIO CARIELLO
São Paulo 2017
CRISTIANO FERREIRA
JESUS CRISTO, O MITO DO HERÓI SALVADOR NA OBRA BÍBLIA EM AÇÃO,
DE SERGIO CARIELLO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito para obtenção de título de Mestre em Educação, Arte e História da Cultura.
ORIENTADORA: Profa. Dra. Regina Célia Faria Amaro Giora
São Paulo 2017
F383j Ferreira, Cristiano.
Jesus Cristo, o mito do herói salvador na obra Bíblia em
Ação, de Sergio Cariello / Cristiano Ferreira.
62 f. : il. ; 30 cm
Dissertação (mestrado em Educação, Arte e História da
Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2017.
Orientadora: Regina Célia Faria Amaro Giora.
Bibliografia: f. 51-52.
1. Mito do herói salvador. 2. Quadrinhos. 3. Psicologia
analítica. I. Giora, Regina Célia Faria Amaro. I. Título.
CDD 232.901
CamScanner
Dedico este trabalho à minha esposa Ângela.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente a DEUS, que soberanamente nos dirige para sua própria glória, a Ele todo louvor.
À Igreja Presbiteriana do Brasil, que me ofereceu a oportunidade de crescimento através do conhecimento.
Ao Instituto Presbiteriano Mackenzie, por ter me acolhido e ofertado a bolsa de estudos, estendendo o prazo, entendendo minha prioridade junto à igreja local.
À minha igreja, Igreja Presbiteriana de Pindamonhangaba, em especial ao seu conselho e à liderança da igreja local, que me liberaram e sempre me apoiaram.
À Universidade Presbiteriana Mackenzie, a cada funcionário, desde o profissional de limpeza, portaria, secretarias, pois todos sempre me receberam de forma muito prestativa e atenciosa. Em especial, à Coordenadoria do Programa, Educação, Arte e História da Cultura, e seus professores, que além de serem grandes eruditos, possuem sensibilidade singular, sempre me ajudando pacientemente na construção do saber.
À minha família em geral, em particular, à minha esposa Ângela de Melo Alvarenga Ferreira, a minha filha Amanda de Melo Alvarenga Ferreira, a minha filha do coração Ariana, por sempre me apoiarem.
À amiga jornalista Lia Silva que formatou, corrigiu o manuscrito original e traduziu para o inglês.
E finalmente, mas não menos especial, quero agradecer à minha orientadora, Doutora Regina Giora, por me oferecer sua cosmovisão, aspergindo-me sua criatividade.
RESUMO
Esta é uma pesquisa sobre as convergências de quadrinhos, imagens e mitos que aparecem na narrativa bíblica em quadrinhos na obra do artista Sérgio Cariello. A pergunta que se pretende responder é: como Jesus Cristo, na obra deste autor, cumpre as fases do mito do herói salvador no transcorrer dos quadrinhos? Segundo Carl Gustav Jung e Joseph Campbell, o mito é apresentado como presença contínua na história da cultura da humanidade. Ao estudar o mito, não se pretende desmerecer e nem defender o credo religioso, pois a explicação mitológica, a partir da psicologia analítica mostra o significado na continuidade do comportamento coletivo tendo como força matriz o inconsciente coletivo. Jesus Cristo, como homem e como mito herdado na mentalidade social, deve ser encarado também em sua humanidade, e aqui na sua influência e importância na cultura da humanidade. Por fim, tenta-se estabelecer uma aplicação e aferir o espaço que o uso dos quadrinhos vem ocupando na educação e na influência da cultura religiosa. Verifica-se que os personagens heroicos dos quadrinhos estão presentes nas igrejas cristãs nas apresentações de seus pastores. Em contrapartida, a obra de Sérgio Cariello demonstra o quão suficiente é a imagem singular de Cristo Jesus como Salvador e isto, na teologia, cabe dentro da revelação geral. Palavras-chaves: mito do herói salvador; quadrinhos; psicologia analítica.
ABSTRACT
This is a research on the convergences of comics, images and myths that appear in
the biblical comic narrative in the work of the artist Sérgio Cariello. The question to
be answered is: how does Jesus Christ, in the work of this author, fulfill the phases of
the myth of the Hero-Savior in the comics? According to Carl Gustav Jung and
Joseph Campbell, the myth is presented as a continuous presence in the history of
the culture of humanity. When studying the myth, it is not intended to demean and
defend the religious creed, since the mythological explanation, from analytical
psychology, shows the meaning in the continuity of collective behavior having as its
driving force the collective unconscious. Jesus Christ, as a man and as a myth
inherited in the social mentality, must be seen also in his humanity, and here in his
influence and importance in the culture of humanity. Finally, an attempt is made to
establish an application and gauge the space that the use of comics has been
occupying in the education and in the influence of the religious culture. It turns out
that the heroic characters of comics are present in the Christian churches in their
pastors' performance. On the other hand, the work of Sérgio Cariello demonstrates
how sufficient is the unique image of Jesus Christ as Savior, and this, in theology,
falls within the general revelation.
Keywords: Savior hero myth; Comic books; Analytical psychology.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1 – O Menino Amarelo. FIGURA 2 – Pintura rupestre, na caverna de Altamira, Espanha. FIGURA 3 – Muro no templo de Karnak no Egito. FIGURA 4 – Capa da obra de Art Spiegelman. FIGURA 5 – Capa da Bíblia em quadrinhos, de 1953. FIGURA 6 – Capa e contra capa da Bíblia em Ação. FIGURA 7 – Anunciação dos anjos aos pastores nos campos. FIGURA 8 – O nascimento de Jesus, a visita dos pastores. FIGURA 9 – Jesus repreendendo o comércio no templo. FIGURA 10 – O batismo de Jesus. FIGURA 11 – Jesus na ceia. FIGURA 12 – Jesus acorrentado. FIGURA 13 – Jesus humilhado pelos soldados romanos. FIGURA 14 – Jesus carregando a cruz. FIGURA 15 – Jesus crucificado. FIGURA 16 – Jesus ressurreto. FIGURA 17 – Assunção de Jesus e o povo. Posteriormente ampliada.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13
1. UNIVERSO DOS QUADRINHOS ....................................................................... 17
1.1 ASPECTOS HISTÓRICOS .............................................................................. 17
1.2 O MITO DO HERÓI SALVADOR ..................................................................... 27
2 ANÁLISE DAS IMAGENS SELECIONADAS .......................................................... 35
2.1 O HERÓI E SUAS FASES ............................................................................... 35
2.1 O MITO DO HERÓI SALVADOR– SEU PROPÓSITO ..................................... 38
3 REFLEXÃO INTERDISCIPLINAR....................................................................... 42
3.1 APLICAÇÕES PEDAGÓGICAS ....................................................................... 42
3.2 APLICAÇÕES CULTURAIS ............................................................................. 44
CONCLUSÃO ............................................................................................................ 49
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 51
ANEXO 1 ................................................................................................................... 53
13
INTRODUÇÃO
A dissertação pretende pesquisar o mito do herói salvador apresentado
através de algumas imagens da narrativa bíblica, na linguagem dos quadrinhos na
obra Bíblia em Ação, de Sérgio Cariello.
Inicialmente, as contribuições de Helmut Renders chamaram a atenção, pois
ele trabalha pesquisando o uso da imagem no meio religioso, e que, apesar de atuar
na área das ciências da religião, busca uma abordagem interdisciplinar:
A teoria da imagem pode partir de abordagens mais restritas ou amplas ... Em geral, a teoria da imagem distingue e relaciona seus elementos ao mesmo tempo. Unindo diversas abordagens, inclusive as leituras de sistemas sociopolíticos e econômicos. (RENDERS, p.97, 2016).
As narrativas bíblicas em quadrinhos se encaixam sob o campo de
investigação de Renders, contudo, os quadrinhos não fazem parte de seu campo de
pesquisa. Ele se concentra em explicar como a imagem é compreendida pelos
religiosos e cristãos de todas as confissões.
Os quadrinhos, e em especial as narrativas bíblicas em quadrinhos, com suas
imagens, foram a escolha em compreender como tais imagens são criativamente
geradas e produzidas artisticamente, e como elas são recebidas. Logo, não se pode
ficar detidos em Renders, há a necessidade de buscar outros olhares, como citado
acima e reconhecido por ele mesmo.
A investigação das imagens, quer religiosas ou não, pode ser abordada por
outras propostas acadêmicas, e não apenas pelo campo das ciências da religião, ou
da história das religiões, os próprios pesquisadores dos quadrinhos possuem um
modo adequado para explicar de forma clara as funções de cada sinal presente na
linguagem dos quadrinhos.
Entretanto, outro autor e pesquisador chama a atenção: Joseph Campbell. Ele
contribui com grandes pesquisadores que deram continuidade à psicologia analítica,
alicerçada por Carl Gustav Jung. A possível contribuição deste segmento nas
pesquisas acadêmicas exige o cuidado disciplinar no diálogo, ainda que limitado,
com as demais matérias, no aprofundamento do conhecimento sobre estes temas,
que envolvem a construção das imagens pelo ser humano.
14
A construção de imagens pode adquirir valor cultural e estético. Tais imagens
podem surgir, por exemplo, através dos sonhos, da criatividade, da imaginação.
Contudo, na exteriorização da imagem pelo homem, ocorre uma exposição do
inconsciente coletivo, o que tentaremos explicar durante este trabalho a partir das
contribuições de Carl Gustav Jung e Joseph Campbell.
Dentro desta perspectiva, entendendo o desafio de uma compreensão
interdisciplinar para poder desenvolver uma leitura cuidadosa e respeitosa às
diversas contribuições, tendo como ponto de partida a psicologia analítica, e a busca
da correlação entre o inconsciente coletivo e as produções culturais imagéticas na
arte dos quadrinhos, opta-se pela observância da análise do discurso, trazendo a
lume a ligação entre o mito do herói salvador e a expressão artística de Jesus Cristo
nos quadrinhos de Sérgio Cariello.
Observam-se editoras explorando e competindo com suas histórias bíblicas
em quadrinhos, por exemplo, O Grande Livro dos Heróis da Bíblia1, Bíblia em HQ2,
Yeshua – Onde Tudo Está3, e outra obras, com narrativas bíblicas em quadrinhos. E
então surge a pergunta: „Por que e como ocorre a expressão artística e cultural dos
quadrinhos no meio religioso?‟ As respostas foram encontradas e apreciadas a partir
do pensamento dos pesquisadores: Joseph Campebell, Carl Gustav Jung e na
pensadora brasileira Nise da Silveira.
Nossa intenção é compreender as imagens das narrativas bíblicas em
quadrinhos através de uma abordagem interdisciplinar, e compreendê-las
culturalmente, debruçando-nos nas descobertas dos autores já citados - Joseph
Campbell, Nise da Silveira e Carl Gustav Jung - procurando entender os
desdobramentos do inconsciente coletivo, dos arquétipos na sociedade, e como isto
se comporta, se relaciona e interage. Todavia, apesar do desafio interdisciplinar,
estes autores aos quais nos debruçaremos, eles próprios eram interdisciplinares e,
apesar de campos e disciplinas diferentes, convergem para a construção de
conclusões proximais e de grande verossimilhança.
1 Da Sociedade Bíblica do Brasil: < http://www.sbb.com.br/o-grande-livro-dos-herois-da-biblia.html>.
2 De Michael Peral:
https://www.amazon.com.br/dp/8567002206/ref=asc_df_85670022064926303?smid=A1ZZFT5FULY4LN&tag=goog0ef-20&linkCode=asn&creative=380341&creativeASIN=8567002206. 3 De Laudo Ferreira: http://www.saraiva.com.br/yeshuah-onde-tudo-esta-
7459610.html?mi=VITRINECHAORDIC_ultimatebuy_product_7459610.
15
A amplitude da produção deste campo é vasta, por isso selecionamos a obra
de Sergio Cariello: „Bíblia em Ação‟. A partir dela, estreita-se a investigação para a
análise do mito do herói salvador. Dentre os vários personagens na narrativa que
apresentam as características do mito do herói salvador, seleciona-se Jesus,
apresentado por Cariello. Intenciona-se demonstrar a apresentação do mito do herói
salvador nas histórias dos quadrinhos e sua relação e presença na obra de Sérgio
Cariello, e sua recorrente presença na história cultural.
O interesse com a linguagem dos quadrinhos, que sintetiza no papel através
de imagens e com uso de textos, um reflexo que ficou conhecido por apresentar à
cultura contemporânea os diversos heróis tão comuns a esta geração, e sempre
reapresentados no cinema, inspirados nos quadrinhos, por exemplo: Homem de
Ferro, Batman e Super-Homem. O mito do herói salvador também se apresenta no
Jesus de Sérgio Cariello. 4
Desta imersão que nossa sociedade vive na cultura da imagem, e com a
linguagem dos quadrinhos, descobrimos com Campbell e os demais pesquisadores,
que este desejo pelas imagens não são simples predileções, e que há uma
explicação para o funcionamento de nossa mente e comportamento diante das
escolhas por imagens, expressões a partir da imagem e reações diante da imagem.
Mas é algo surpreendente, pois este sinergismo em torno das imagens revela que
nós humanos, possuímos uma matriz mental comum, variada, mas comum, que se
explica pelos arquétipos. Isto Nise da Silveira também demonstra através de suas
pesquisas com pacientes psiquiátricos que, ao pintarem seus quadros, revelam o
seu próprio modo de ver o mundo, o seu próprio mundo, e as características claras
de sua condição patológica.
Pesquisar um tema tão rico, tendo o desafio de dialogar com as culturas e
artes da contemporaneidade, e ainda contribuir de algum modo para a formação
interdisciplinar a partir desta dissertação é, sem dúvida, um desafio atroz.
Ser interdisciplinar requer o esforço contínuo de entender o olhar do outro, a
linguagem do outro, pela formação do outro e pela vivencia do outro.
Esperamos deixar nossa contribuição através desta dissertação a partir dos
diversos diálogos com a cultura contemporânea, cultura esta plural e heterogênea. O
4 Quando se coloca o Jesus de Cariello, faz-se uma distinção com o Jesus da fé. Não há interesse
em abordar “teologicamente” neste trabalho o Jesus da fé. Há uma relação e apontamentos no anexo desta pesquisa.
16
professor ao ter contato com nossa dissertação, poderá encontrar uma proposta de
compreender e trabalhar com os quadrinhos junto com seus alunos, abordando e
utilizando os quadrinhos não apenas de forma lúdica, ou para a construção de
quadrinhos informativos de campanhas, mas utilizá-los para identificar as
características arquetípicas com os alunos. Acredita-se que as caraterísticas
arquetípicas possam ser encontradas nos livros, contudo, nos quadrinhos elas são
sublinhadas e amplificadas, ganhando as ricas expressões desta arte. Os
quadrinhos são didáticos e pedagógicos, facilitam a comunicação e o aprendizado,
por sublinhar e amplificar dados da narrativa de forma singular e especial.
Há uma rendição à linguagem dos quadrinhos, estritamente falando das
narrativas bíblicas em quadrinhos, por transformações culturais, mas especialmente
pela facilidade em ensinar a mensagem que se propõe, aqui religiosa, mas que pode
ser aplicada a qualquer conteúdo. Os quadrinhos estabelecem um marco definitivo
na sociedade ocupando o seu lugar no ensino, na religião e no entretenimento, por
ser único, e por expressar em linguagem única, aquilo que parece ser a linguagem
que mais agrada e que comunica com maior facilidade. E também por tocar,
sublinhar e amplificar não apenas verdades conscientes, mas também as verdades
do inconsciente.
Nesta pesquisa utiliza-se o método de revisão bibliográfica. Há uma
apresentação do contexto no primeiro capítulo, seguida da análise dos textos e das
imagens selecionadas da narrativa em quadrinhos da obra „Bíblia em Ação‟, de
Sergio Cariello. No terceiro e último capítulo ocorre um diálogo interdisciplinar5. Este
diálogo interdisciplinar permite a correlação entre a obra em quadrinhos, mitologia6,
e arquétipos, considerando que a história cultural traz traços do inconsciente
coletivo.
5 Além disto, segue em anexo uma reflexão para estudiosos da teologia, que talvez também sirva aos
estudiosos das ciências da religião. 6 Na teologia, deve-se fazer a correlação com revelação geral.
17
1. UNIVERSO DOS QUADRINHOS
1.1 ASPECTOS HISTÓRICOS
Neste primeiro instante é oportuno apresentar de forma panorâmica e geral o
universo dos quadrinhos. Os autores aqui citados fazem uma exposição histórica
das histórias em quadrinhos de forma detalhada. Faz-se necessário uma exposição
a fim de apresentar este universo dos quadrinhos de forma introdutória. Também se
apresenta a relação do uso das imagens nos primórdios da humanidade em
contraste com o atual uso dos quadrinhos.
A história em quadrinhos como a conhecemos possui como marco simbólico
recente com as histórias do personagem Yellow Kid, o Menino Amarelo. “Foi em 5
de maio de 1895 nesse dia, o World publicou dois painéis (um em cores e outro em
preto e branco) de Down Hogan's Alley - que surgiu o Menino Amarelo”. Contudo, foi
apenas em 16 de fevereiro de 1896 que o personagem Yellow Kid foi impresso
amarelo no New York World (LUCCHETTI, 2001, p.1, 2). A origem das histórias em
quadrinhos deu-se com a disputa da indústria jornalística durante o Século XIX nos
Estados Unidos, em particular entre o jornal New York World, pertencente Joseph
Pulitzer, e o jornal New York Journal, pertencente a William Randolph Hearst. O
ilustrador Richard Felton Outcaul, foi o criador do personagem Yellow Kid, quando
atuava New York World, jornal de Pulitzer. A indústria precisava entreter as massas,
e evidente, manter suas vendas altas, então foi neste contexto que surge como o
personagem Yellow Kid. (ACEZEDO, 1990, p. 137).
Figura 1: O Menino Amarelo. Fonte: https://www.etsy.com/listing/224536104/yellow-kid-r-f-outcault-kid-who-started.
18
George Benjamin Luks substituiu Richard Felton Outcault no jornal New York
World, pois Oultcault foi trabalhar no concorrente, New York Journal. Assim, o
personagem aparecia em dois jornais, “após Outcault começar a trabalhar para o
suplemento cômico em cores do New York Journal, Down Hogan's Alley continuou
aparecendo no World, com desenhos de Luks” (LUCCHETTI, 2001, p.3).
Lucchetti adapta as palavras dos personagens da primeira história em
quadrinhos de Outcault, lançada em 25 de Outubro de 1896, e diz:
História em Quadrinhos da forma que a conhecemos nos dias de hoje, ou
seja, uma arte que narra histórias (histórias essas fictícias ou não, com
palavras ou não) por meio de uma sucessão de imagens fixas (imagens
essas organizadas em sequência e colocadas dentro de pequenos
retângulos nos quais estão também as palavras das histórias).
(LUCCHETTI, 2001, p. 4).
A origem também pode ser apontada para os precursores das histórias em
quadrinhos da Europa, também no Século XIX, começando na França, tendo as
contribuições de artistas alemães, suíços, e italianos. No Brasil teve como
representante Ângelo Agostini. Contudo, observa-se que os rumos foram diferentes
entre europeus e estadunidenses. Nos Estados Unidos a massificação era o meio do
lucro, enquanto que na Europa chegou a ter um status de arte, entretanto não
atingia as massas. (SANTOS, 2002, p.52-53).
Cagnin (2014) aponta para antecedentes mais distantes das histórias em
quadrinhos, referindo-se ao uso da imagem na história humana:
Hoje, as imagens ... celebram o feliz casamento, como dizem, da imagem e
do texto em mais de 90% das histórias em quadrinhos, sacramentado por
Topffer ao apresentar o seu Monsieur Vieux Bois, em 1837, quando definiu
o que seria, no seu livro, uma história em quadrinhos: “Ela se compõem de
série de desenhos autografados em traço. Cada um destes desenhos é
acompanhado de uma ou duas linhas de texto.”. (CAGNIN, 2014, p. 28).
Para McCloud as histórias em quadrinhos podem ser definidas com arte
sequencial, ou “imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada [e]
destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador
[leitor]” (McCLOUD, 2005, p. 9). Também para ele, deve-se ir além da metade do
século XIX na procura de histórias em quadrinhos. Ele exemplifica isso citando uma
19
peça da “história épica contida num manuscrito com imagem pré-colombiano,
“descoberto” por Cortés em Torno em 1519”, tendo palavras e imagens coloridas,
contando uma história que, para McCloud, é história em quadrinhos. (McCLOUD,
2005, p.10).
Acevedo define as histórias em quadrinhos como:
A história em quadrinhos é um meio de comunicação que atinge a um número enorme de pessoas. A história em quadrinhos é muito atraente, pois é feito com desenhos e isto torna sua leitura muito amena. Às vezes, as aventuras são contadas com simples desenhos e às vezes, também, com palavras escritas junto aos desenhos. Isso é história em quadrinhos. (1990, p. 19, grifo nosso).
Santos destaca que história em quadrinhos é:
uma forma de comunicação visual impressa [...] trata-se de um produto
cultural e comercial [...]. Esta distinção industrial já diferencia a História em
Quadrinhos de outras narrativas iconográficas não impressas. (2002, p.
20,21, grifo do autor).
Ambos, Acevedo e Santos, chamam a atenção para o aspecto cultural,
industrial e de massa que são as histórias em quadrinhos. Ou seja, as histórias em
quadrinhos são, além de arte, um produto. Percebe-se que ainda que aja a presença
de histórias com o uso de imagens e palavras estruturadas para apresentar uma
narrativa, fictícia ou não, o ganho também está envolvido no diálogo.
Cagnin (2014) destaca de forma semiótica que de fato é uma arte sequencial
onde, em algum momento, as palavras são valorizadas, e em outros momentos, as
imagens são valorizadas, e não há nele intenção de definir história em quadrinhos
apenas impressa, ele as entende de forma aberta, histórias em vitrais, e em tudo na
vida, esta ânsia pela imagem, estes arranjos palavra e imagem, até culminar nesta
que ele aceita como nona arte, na qual as palavras não são essenciais, são apenas
apoio. A impressão das histórias em quadrinhos permitiu um consumo em massa.
As definições variam, porém todos têm a consciência de que a arte e as
histórias sequenciais variaram, transformando-se no decorrer dos tempos. Todos
parecem concordar com a sede do ser humano pela imagem, em projetar a si
mesmo, a raça, as imagens da mente nas paredes, tapeçarias, vitrais, impressos,
esta sede por imagens é capaz de mover, inclusive, uma poderosa indústria que se
20
esforça em manter-se no negócio lucrativo o de produzir a cada dia mais imagens
para satisfazer a mente faminta.
Ao elaborar uma sintaxe dos quadrinhos, encontra-se alguns elementos que
têm uma função expressiva na narrativa quadrinho gráfica e que, por sua
utilização constante, converteram-se, aos olhos dos quadrinhistas e leitores,
em códigos facilmente reconhecíveis e necessários para a integração dos
signos gráficos (a imagem e a linguagem escrita) característicos dos
quadrinhos e para o desenvolvimento da narrativa. Essa gama de
elementos, entendidos universalmente, é formada por requadros, balão,
recordatório, onomatopeia, metáforas visuais e linhas cinéticas.
(SANTOS, 2002, p.22, grifo do autor).
Sendo a definição mais abrangente ou restrita, não importa, a história em
quadrinhos é uma linguagem, uma arte, que pode revelar a cada momento, uma
possibilidade de ampliação de relacionamento com outras linguagens, influenciando
e sendo influenciada pelas diversas culturas.
Estudar os textos não significa apenas ocupar-se das formas que estes
adotam para aparecer nos quadrinhos, mas também do conjunto de
ideias que transmitem. Estas não se comunicam unicamente através dos
textos. São passadas também por meio de cada desenho ou de cada
ação mostrada. As ideias, porém, talvez sejam oferecidas de maneira mais
explicitas nos textos. (ACEVEDO, 1990, p.135. grifo do autor).
Pilar importante na compreensão da história em quadrinhos e de como ela se
compõe, é entender sob o que ela se constrói: o chão da realidade ou o céu da
imaginação.
Em todo caso, para os textos e argumentos de nossas histórias em
quadrinhos será preciso ter os olhos postos na realidade. Olhos postos na
realidade em que vivemos ... Com a história em quadrinhos tradicional
ocorre o inverso. Ela não parte de uma visão da realidade, mas alude a ela,
deformando-a ... e recusa-se a abordar alguns temas como o trabalho, a
política, as contradições sociais etc. (ACEVEDO, 1990, p.136).
A relação dos quadrinhos com a cultura contemporânea é espontânea, pode-
se dizer que é natural, tendo em vista o uso antigo de imagens pelo homem, o que
exige um parêntese explicativo. A humanidade teve a necessidade de registrar
acontecimentos de sua realidade e de sua imaginação, por exemplo, o caso de
Altamira: “Bisões, cavalos, veados, mãos e sinais misteriosos foram pintados
21
ou gravados ao longo dos milênios em que a caverna de Altamira foi habitada,
entre 35.000 e 13.000 anos atrás”.
Figura 2: Pintura rupestre, na caverna de Altamira, Espanha. Fonte: http://museodealtamira.mcu.es/Prehistoria_y_Arte/arte_Altamira.html.
Com base nesta coleção do acervo de Altamira, na Espanha, pode-se afirmar
que existe uma antiga afeição da humanidade pela construção de imagens.
O homem sempre se maravilhou de sua própria mão. Imprimiu-a nas
paredes das cavernas pré-históricas em vários lugares do mundo e decerto
o homem arcaico atribuía poderes mágicos a este prodígio instrumento de
ação que ele possuía e lhe permitia realizar coisas inacessíveis aos mais
fortes e temidos animais. (SILVEIRA, 2015, p.29).
Mas em Altamira as imagens não contam histórias, não se pode afirmar que
sim: elas contam histórias, sem deixar brecha para contestação. Contudo, no Egito
antigo temos exemplos de histórias contadas com imagens, e onde as imagens
serviram para comunicação clara aos seus leitores:
22
Figura 3: Muro no templo de Karnak no Egito. Fonte: https://global.britannica.com/topic/hieroglyphic-writing.
Este é o muro do templo Karnak, um centro religioso do Egito que demorou
cerca de dois mil anos para ser construído, e teve a contribuição de quarenta
faraós7. Isso corrobora com a ideia de que as imagens sempre estiveram presentes
na história da humanidade, e a imagem foi utilizada desde os tempos remotos para
contar histórias. Algumas vezes usando o texto e outras não, porém, inicialmente,
sempre com imagens, e com diversos usos, não apenas religioso ou político, mas
também didático.
O uso didático, ou seja, o ensinar como transmissão de conhecimento,
inicialmente esteve ligado à religião primitiva, pois os primeiros grupos entendiam,
se descobriam e possuíam uma relação diferente com o ambiente em que viviam.
Reforçam este entendimento as pesquisas de John BRIGTH (2003, p. 47, 48),
Ele identificou e relata o desenvolvimento cultural na Mesopotâmia desde a Idade da
Pedra. Ele apresenta a cultura Hassuna que tinha desenvolvido cerâmicas e pinturas
em cerâmicas e, posteriormente em porcelana. Brigth também fala de esculturas
ligadas à posição de parto nas mulheres, assim, podemos aferir que era deste modo
que o povo transmitia o conhecimento de como realizar o parto natural. É neste
sentido, que se afirma que as imagens eram usadas de forma pedagógica,
ensinando e transmitindo um conhecimento às próximas gerações.
Assim, os quadrinhos são uma reinvenção sofisticada e criativa do que a
humanidade já fizera no passado: contar histórias a partir de imagens. Agora com
7 http://anba.com.br/noticia_impressao.kmf?cod=7431291&pdf=1
23
um novo contexto, com uma nova linguagem, próprias dos quadrinhos, e, a partir do
Yellow Kid, com a proposta de entretenimento e lucro das grandes companhias.
Diante disto, pode-se afirmar que a relação industrial também afeta os
quadrinhos. A Cultura Pop designa os produtos culturais industrializados e
veiculados pelos meios de comunicação, não esconde sua natureza comercial e sua
orientação voltada para o entretenimento, mas também é flexível o suficiente para
possibilitar a compreensão desse fenômeno cultural que catalisa manifestações
culturais diferentes e os torna bens culturais contemporâneos, ícones reconhecidos
universalmente. (SANTOS, 2002, p. 45).
A dificuldade é apresentar o trabalho artístico das histórias em quadrinhos
sem ser refém da indústria cultural, esta tensão do como fazer a história chegar ao
leitor certo, talvez fora o grande dilema e seja o de muitos quadrinistas (McCLOUD,
2006, p. 26-71). Mas percebe-se que em suas origens, os primeiros cartunistas
possuíam apenas o desejo de produzir e compartilhar, o que se tornou um problema
diante de gigantes da indústria cultural, e nem sempre a verdadeira obra conseguiu
chegar ao leitor que está a procura de uma temática especifica na linguagem da
história em quadrinhos. Talvez, pois, durante anos a indústria cultural conseguiu
produzir um ambiente de ficção e entretenimento, descartando histórias de crítica
social ou de reflexão crítica sobre temas que alcançam justamente estas massas
consumidoras e reféns da indústria cultural.
Como empreendimento comercial, os distribuidores de quadrinhos
encontraram nas revistas (comic-books) o formato ideal para satisfazer o
interesse das editoras e do leitor. Embora já existissem publicações deste
tipo desde o século XIX na Europa, as revistas de quadrinhos só fizeram
sucesso nos Estados Unidos a partir de 1930, com os títulos “Funnies on
Parade” e “Famous Funnies”, criados por Max Gaines. Inicialmente, estas
revistas imprimiam tiras já publicadas em jornais, mas, depois, passaram a
publicar material inédito, sendo “New Fun”, editada em 1935 pela National
Periodical (atual DC Comics), a primeira delas. (SANTOS, 2002, p.73).
O mercado estabelecido pela massificação das histórias em quadrinhos nos
Estados Unidos é um forte argumento em favor disto. Ali floresceu uma grande
produção de quadrinhos para satisfazer as massas com a construção de heróis
mascarados a fim de entreter e lucrar com o entretenimento fantasioso. Contudo,
vale ressaltar que:
24
Os funny-animals também se prestam à critica social e à sátira politica,
como no caso do Pogo (imaginado por Walt Kelly em 1948), que retrata a
sociedade americana em um pântano povoado por animais falantes; de Fritz
the Cat (idealizado por Robert Crumb para a revista “Help” em 1965, no
auge do comix underground), um gato que se diz estudante, mas que só
quer saber de orgias; “Maus”, de Art Spiegelman, que mostra os horrores do
holocausto e sua relação com o pai, sobrevivente do campo de
concentração, onde os ratos são judeus e os gatos, nazistas; e, mais
recentemente, “Omaha the Cat Dancer”, elaborada por Reed Waller, que
denuncia o moralismo e a intolerância americanas. (SANTOS, 2002, p. 79).
Os quadrinhos se acomodam à cultura capitalista dos Estados Unidos na
década de sessenta, e através da apropriação desta linguagem, comunicam suas
ideias, inclusive em países socialistas. Isto corrobora para a afirmação de que as
histórias em quadrinhos são uma linguagem e, como linguagem, poderiam transmitir
ideias das mais diversas possíveis (ACEVEDO, 1990, p.140, 141). Pode-se dizer, a
partir disto, que nem sempre estas ideias propagandistas eram explícitas, pois
objetivavam levar o modo norte-americano de ser aos outros países. Neste
momento da história, os quadrinhos passam a ser usados com uma nova finalidade:
a política.
Mas, este forte desejo de projetar vilões e heróis na cultura estadunidense
possui um antecedente histórico, que antecede os desejos de lucro, e que exige
uma reflexão interdisciplinar. Neste quesito, deve-se observar o funcionamento da
mente humana diante das imagens oníricas e como expomos estas imagens, e se
estas imagens são sempre conscientes. A mente humana é complexa, e é através
dela que captamos e geramos imagens, e assim constrói-se um arsenal mental
imagético, com diversas combinações, que se manifestam espontaneamente ou
não, e se projetam em nossa arte, em nossas linguagens, em nossas realizações.
Contudo, tem-se que mencionar que as histórias em quadrinhos ganharam
também uma nova dimensão, ou pelo menos, recriou uma nova possibilidade em
sua linguagem, de contar uma história baseada no real, com acréscimos
fantasiosos. Quando se afirma „fantasiosos‟, deseja-se expressar o caráter inovador
e artístico da arte dos quadrinhos. Isso pode ser explicado com a obra de Art
Spiegelman, com o título Maus.
25
Figura 4: Capa da obra de Art Spiegelman. Fonte: https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/51jq-ZU9yHL._SX345_BO1,204,203,200_.
Historicamente os quadrinhos foram ganhando novas frentes, em especial o
da educação, sempre procurando refletir o real, com aspectos imagéticos,
convidando o leitor a invocar as imagens oníricas e da fantasia para atentar e
apreender a mensagem ali apresentada.
A data de 1996 é um marco importante para a trajetória de aceitação das
histórias em quadrinhos como ferramenta pedagógica no Brasil. Nesse ano
ocorreu a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB) que, de certa forma, propunha um pacto entre este produto cultural
midiático e a educação formal. (SANTOS, 2015, p.82).
Logo se observa que os quadrinhos tiveram um reconhecimento como
linguagem tardia no Brasil. Contudo, é necessário encarar as possibilidades que se
abriram a partir deste fato. Como linguagem, pode-se definir que a mudança ocorreu
na década de 1960, “ápice da Pop Art (movimento artístico que se apropriou dos
signos da publicidade, do cinema e dos quadrinhos para criação de pinturas e
colagens)”. A Pop Art influenciou a linguagem dos quadrinhos. Contudo, “pode-se
dizer que o ambiente da linguagem dos quadrinhos gera uma forma de comunicação
especifica com o leitor, mas, ao mesmo tempo, essa linguagem não deixa de pontos
em comum com outras linguagens”. (SANTOS, 2015, p. 24-27).
26
No Brasil, a história de bíblias em quadrinhos foi assunto abordado na
dissertação de Roselara Zimmer Soares, com o título: „A História da Bíblia para
Crianças – Nas bordas do teológico e do lúdico‟, no programa de pós-graduação em
literatura, na Universidade Federal de Santa Catarina. Ela nos diz que a primeira
bíblia em quadrinhos foi publicada no Brasil em 1953, com o título: „A Bíblia em
Quadrinhos‟, com capa colorida, e com quadros internos em preto e branco,
reeditada em 1978. Esta obra possuía apenas as histórias do Antigo Testamento.
Ela também chama a atenção para o fato de que na primeira edição os quadrinhos
são mencionados como sendo vulgar. Apesar de empreender o trabalho de trazer
uma bíblia em quadrinhos para o Brasil, o texto introdutório o apresenta como
vulgar, e isto chama a atenção dela sobre como os quadrinhos eram encarados,
mesmo aos editores que o julgavam interessante. Fica claro que a primeira bíblia em
quadrinhos tinha uma função catequética e era direcionada às crianças (SOARES,
2006, p.57). Esta era capa da primeira obra trazendo narrativas bíblicas:
Figura 5: Capa da Bíblia em quadrinhos, de 1953. Fonte: https://skoob.s3.amazonaws.com/livros/160642/A_BIBLIA_EM_QUADRINHOS_1402334678B.
27
Em meio às considerações feitas sobre a história dos quadrinhos, suas
origens, e seu uso atuais como arte e linguagem, destacam-se, em síntese, quatro
pilares básicos e centrais:
Primeiro, a história em quadrinhos como arte sequencial em imagem, pode
utilizar textos, e usar o formato impresso, ou seja, história contada com o uso de
imagens, quadro a quadro, contendo palavras se necessário, também aplicando esta
proposta aos meios digitais.
Segundo, que a massificação teve início nos Estados Unidos pelos jornais, no
uso de quadrinhos, para atrair e entreter leitores, visando o lucro de suas empresas.
Terceiro, a remota utilização de imagens por parte da humanidade para
contar suas histórias, e que as histórias em quadrinhos contam narrativas reais e
fictícias, como as histórias do passado, isto estabelece um ponto de relação
convergente, histórica, cultural e comportamental da humanidade.
Acrescenta-se ainda que as histórias em quadrinhos, como as produções
imagéticas através de outras linguagens e artes, expõem algo além no campo do
consciente da mente humana, e que isto merece atenção e investigação.
1.2 O MITO DO HERÓI SALVADOR
Carl Gustav Jung afirma que o inconsciente é “um fenômeno natural que
produz símbolos provadamente relevantes” (JUNG, 2008, p.129, grifo nosso).
Carl Gustav Jung foi médico psiquiatra e dedicou sua vida a conhecer os
caminhos da mente humana. Jung manteve o diálogo científico com pensadores de
sua época e com os anteriores, isto é exemplificado em seu livro „Tipos
Psicológicos‟, onde ele cita desde os primeiros teólogos da Igreja Cristã primitiva,
até pensadores como Schiller, Goethe e Kant.
Faz-se necessário esclarecer que Deus é assumido como existente para
Jung, como fenômeno psicológico (JUNG, 1978, p.10), individual, social presente na
cultura, verdade para pessoas, sendo assim, deve haver esta sensibilidade do
terapeuta, do ouvinte, do interlocutor, pois, se uma pessoa de fato acredita que Deus
existe, então, Ele de fato existe mentalmente para aquela pessoa. Ele explica:
Incorreria em erro lamentável quem considerasse minhas observações
como uma espécie de demonstração da existência de Deus. Elas
28
demonstram apenas a existência de [Deus como] uma imagem
arquetípica ... isso é tudo o que se pode dizer, psicologicamente, acerca de
Deus. Mas como se trata de um arquétipo de grande significado, e de
poderosa influência, seu aparecimento, relativamente frequente, parece-me
um dado digno de nota para a Theologia naturalis. Como a vivência deste
arquétipo tem muitas vezes, e inclusive, em alto grau, a qualidade do
numinoso, cabe-lhe a categoria de experiência religiosa. (JUNG, 1978, p.
64, grifo nosso).
Sanada esta questão, com propriedade, pode-se estudar e afirmar a
importância do divino entre a humanidade como fenômeno cultural-psicológico, o
inconsciente se manifestando na cultura. Mas precisa ser definido primeiramente o
inconsciente pessoal, que “são aquisições da existência pessoal: o esquisito, o
reprimido, o subliminarmente percebido, pensado e sentido” (JUNG, 2013, p.466). O
inconsciente coletivo advém:
... não das aquisições pessoais, mas da possibilidade hereditária do
funcionamento psíquico em geral, ou seja, da estrutura cerebral herdada.
São as conexões mitológicas, os motivos e imagens que podem nascer de
novo, a qualquer tempo e lugar, sem tradição ou migrações históricas
(JUNG, 2013, p. 467).
Carl Gustav Jung buscava compreender as mazelas do ser humano, ele e
aqueles que o acompanharam nesta linha de pesquisa, entenderam que os sonhos
de seus pacientes possuíam imagens do inconsciente, semelhantes às antigas
histórias da humanidade. Ele entendia que quando ignoramos conscientemente
algumas informações, ou estas passam desapercebidas, ignorando “sua importância
emocional e vital, estas mais tarde brotam do inconsciente como uma espécie de
segundo pensamento. Este segundo pensamento pode aparecer, por exemplo, na
forma de um sonho” (JUNG, 2008, p. 22).
O uso de imagens em diversas religiões, explica Jung, são utilizadas como
símbolos, como “representação de conceitos que não podemos definir ou
compreender integralmente... todas as religiões empregam uma linguagem simbólica
e [que] se exprimem através de imagens” (JUNG, 2008, p. 19). Ele também
reconhece que sua exposição acerca do inconsciente “não passa de um esboço
superficial da natureza e do seu funcionamento dessa complexa parte da psique
humana”. (JUNG, 2008, p.41).
29
A psicoterapeuta Marie Louise von Franz entendia a recente convergência e
mútua contribuição entre as pesquisas dos pensadores analíticos, herdeiros de
Jung, e a microfísica conforme as pesquisas do físico Wolfgang Pauli. Pode-se
sintetizar comparativamente que:
... aquilo que Jung chama de arquétipos (ou esquemas do comportamento
emocional e mental do homem) também poderia chamar-se, empregando-
se os termos de Pauli, „probabilidades dominantes‟ das reações psíquicas
... não existem leis que governem a forma específica em que o arquétipo vai
emergir do inconsciente. [Contudo] existem tendências ... permitem-nos
apenas dizer que é provável acontecer certo fenômeno em determinadas
situações psicológicas. (JUNG, 2008, p. 425). [grifo do autor]
Isto foi colocado para demonstrar que Jung tinha clareza de que sua pesquisa
poderia caminhar não para autenticar-se em outras áreas, mas para comprovações
em outros campos da ciência, e isto fora abordado primeiramente e
antecipadamente pelas suas pesquisas no campo da psicologia.
Mesmo diante desta abertura ao diálogo interdisciplinar, Marie Louise von
Franz reconhece que: “A fecundidade das ideias de Jung é mais fácil de entender na
área das atividades culturais do homem” (JUNG, 2008, p. 421). Por isto, o estudo da
história da cultura, foi alvo de constante investigação, incluindo as histórias dos
mitos e sua associação com os arquétipos. Este diálogo e as possibilidades que traz
com a microfísica e a psicologia, poderá incentivar outras pesquisas em buscar
caminhos de encontro entre elas, para apresentar novas respostas.
Afinal, o que são arquétipos? Dentre as definições colocadas por Jung,
selecionamos esta que ele compara os arquétipos a impulsos. Os arquétipos são
semelhantes a impulsos. Jung explica:
É preciso que eu esclareça aqui a relação entre instinto e arquétipo.
Chamamos de instinto os impulsos fisiológicos percebidos pelos sentidos.
Mas, ao mesmo tempo, esses instintos podem também se manifestar como
fantasias e revelar, muitas vezes, a sua presença apenas por meio de
imagens simbólicas. São essas manifestações que chamo de arquétipos.
(JUNG, 2008, p. 83).
Franz explica ainda que: “As poderosas forças do inconsciente manifestam-se
não apenas no material clínico, [ou seja, nos sonhos], mas também no mitológico, no
religioso, no artístico e em outras atividades culturais por meio do qual o homem se
30
expressa” (JUNG, 2008, p. 420). Um expositor e pesquisador da relação entre mito e
homem é o médico Joseph Lewis Henderson, ele escreve que o “mito do herói
salvador é o mais comum e o mais conhecido em todo o mundo” (JUNG, 2008, p.
142). É diante disto que se pode afirmar a ligação entre arquétipos e mitos, e que o
mito do herói salvador se manifesta recorrentemente nas diversas culturas das
sociedades.
Mas afinal, o que são mitos? Para o pensador Joseph Campbell, mitos são:
“pistas para as potencialidades espirituais da vida humana”. Campbell explica que
não há sentido para experiências, mas a própria “experiência e vida”. Campbell
acrescenta: “Qual é o sentido do universo? Qual é o sentido de uma pulga? Está
exatamente ali. É isso. E o seu próprio sentido é que você está aí.” (FLOWERS,
1990, p.6). Campbell sublinha que os seres humanos esquecem-se do mais
importante, que é estarem vivos, e vivem buscando objetivos de outro valor. Diante
disto, Campbell destaca os valores espirituais da vida, que são encontrados nos
mitos, contudo, os valores espirituais aqui não significam a religiosidade, mas o
compromisso de viver intensamente cada escolha e momento, é neste sentido que o
mito serve à raça humana, dando pistas.
Há uma sociedade que estuda os mitos há muito tempo de forma
interdisciplinar, a Eranos8. Pesquisadores de diversas áreas estavam em seu início:
na teologia e filosofia da religião: Paul Tillich; em literatura e mitologia comparada:
Joseph Campbell; na psicologia analítica: Carl Gustav Jung; na física: Wolfgang
Pauli. Havia outros pensadores, contudo cito estes aqui para demonstrar como a
psicologia analítica, desde cedo - em 1933 - construiu uma visão interdisciplinar, se
não, multidisciplinar, buscando compreender os mitos e arquétipos no decorrer da
experiência humana. Nesta confraria acadêmica, as imagens mentais, dos sonhos,
das fantasias, imagens da arte, da religião, eram temas para investigações, e sua
correlação com as práticas humanas.
Diante do exposto, chegamos ao mito do herói salvador. Por que é tão
presente em tantas culturas e em todo decorrer da história humana? Campbell
questionado sobre: “Por que há tantas histórias de herói na mitologia?” Respondeu:
“Porque é sobre isso que vale a pena escrever”. (FLOWERS, 1990, p. 131). Pode-se
afirmar que a indústria dos quadrinhos entendeu isto, e não perdeu tempo, recontou
8 Para maiores detalhes sobre este assunto consultar: http://www.eranosfoundation.org.
31
o mito do herói salvador em sua linguagem, invocando novos personagens, com
protótipos presentes no inconsciente coletivo.
O mito do herói salvador aparece com certa frequência nas histórias em
quadrinhos: Super-Homem, Batman, Homem Aranha, é um tema recorrente. O mito
do herói salvador aparece também nas manifestações culturais, nas lendas, nas
histórias ditas reais, na imaginação popular, e também nas manifestações religiosas.
Os arquétipos e os mitos possuem uma relação intrínseca. Diante de
arquétipos, mitos e inconsciente coletivo, como apresentados até aqui, pode-se
afirmar que a partir da matriz mental herdada, repetimos práticas coletivas e do
passado, em especial imagens, e tais imagens estratificam-se em mitos, e tais mitos
contam por si só a saga humana, variando nas apresentações, a partir da mente
criativa, contudo permanecendo a essência da mensagem e do significado original, o
exemplo pertinente aqui, é o próprio mito do herói salvador, que se pretende expor.
O mito do herói salvador sempre possui um valor singular e especial, ele
possui fases identificáveis, um ciclo que, em todas as histórias de heróis, faz-se
presente. “Todos os povos chamados primitivos têm em seus mitos e em seus ritos e
cultos a presença de vários indivíduos destacados, superdotados, valentes,
diferentes da média dos homens, que nós chamamos de heróis” (FEIJÓ, 1984,
p.12). Demonstram-se abaixo as fases do mito do herói salvador.
A médica psiquiatra brasileira, Nise da Silveira, desenvolveu técnica para
anamnese de seus pacientes e também terapêutica, a partir das imagens das
pinturas produzidas por eles, a imagem ali revela além do posto. Ela demonstra a
importância de olhar a imagem além da linguagem artística. A partir dos diagnósticos
e considerações em pesquisas de Nise da Silveira, pode-se concluir que imagens
produzidas pelos seres humanos, inclusive pinturas e as ilustrações para
quadrinhos, podem ser abarcados, analisados e pesquisados, além da linguagem
artística, as imagens que produzimos possuem múltiplas linguagens, a linguagem da
técnica artística, e a linguagem do inconsciente, e sem um cuidado interdisciplinar,
informações podem ser colocadas de lado, e não serem apreciadas ou abordadas.
Jung descreve o recurso que utilizou para apreender essas imagens-
instinto. Tomando como ponto de partida uma imagem de sonho ou
fantasia, solicitava seu analisando a desenvolver livremente o tema trazido
pela imagem. Isso poderia ser feito de maneiras diversas, pela
32
dramatização, diálogo, escrita, visualização, dança, pintura, desenho,
modelagem. (SILVEIRA, 2015, p.110).
A pesquisa de Nise da Silveira possui um enfoque nas patologias
psiquiátricas. Mas fica evidente sua contribuição em demonstrar que a pintura está
além da linguagem artística. É justo afirmar que a pesquisa terapêutica de Nise da
Silveira era também acompanhada dos diálogos com os pacientes, isto é presente
em toda sua obra, Imagens do Inconsciente. “Mas eu não examinava as pinturas dos
doentes que frequentavam nosso atelier sentada no meu gabinete. Eu os via pintar.
Via suas faces crispadas, via o ímpeto que movia suas mãos” (SILVEIRA, 2015,
p.19).
A imagem revelava algo, mas os diálogos e presença no atelier eram
necessários na compreensão daquela linguagem que imergia do inconsciente.
Incialmente ela fora ajudada, tendo como seu colaborador, o pintor brasileiro Almir
Mavignier, isto em 1946. (SILVEIRA, 2015, p.16). Isso demonstra que os terapeutas
que aderiram às contribuições de Carl Gustav Jung respeitaram desde o início as
linguagens próprias da arte. A ideia não era desmentir o valor da linguagem artística,
mas encontrar nela outra linguagem, que brotava do inconsciente. Nise da Silveira
não encontrou o desafio entre os artistas, mas entre seus colegas psiquiatras, pois
era difícil livrar-se do tradicional modelo de entrevistas, médico paciente. (SILVEIRA,
2015, p.34).
Diante disto, não seria estranho o terapeuta optar em analisar os quadrinhos
de seus pacientes, observado o processo de criação de seus pacientes, sua atitude,
as cores escolhidas, e a história ali presente. Logo, deduz-se que é possível sim
analisar uma história em quadrinhos buscando compreender o inconsciente. É a
partir da compreensão do inconsciente e das imagens produzidas neste campo, que
se podem buscar as imagens mitológicas e dos arquétipos que apontam para o mito
do herói salvador.
Necessário também destacar a opção de Jung em olhar para a história da
cultura, para o coletivo, para os mitos humanos em busca dos arquétipos comuns à
raça humana, ao invés de deter-se no indivíduo.
A psique humana não pode funcionar sem a cultura e o indivíduo não é
possível sem a sociedade. Partindo dessa afirmação básica, Jung, livra-se
das principais ciladas tão frequentes quando a sociedade é encarada de um
33
ponto de vista psicológico. Ele não traz para o estudo da sociedade
interpretações baseadas na análise do homem como um ser individual. Ao
contrário, toma como princípio fundamental que toda análise deve partir do
fato primário da natureza social do homem. (SILVEIRA, 2015, p. 115).
A explicação das fases do mito do herói salvador ficou a encargo de Joseph
L. Henderson. Henderson foi um dos colaboradores de Jung. Ele explica, baseado
nas pesquisas de Paul Radin, acerca do mito do herói salvador e seus ciclos
mitológicos encontrados na tribo indígena norte-americana do winnebagos, que as
fases, ou os ciclos são: “ciclo Trickster, ciclo Hare, ciclo Red Horn e ciclo Twin”
(JUNG, 2008, p.145).
No primeiro ciclo, ou história, temos o personagem Trickster, “um personagem
dominado por seus desejos; tem a mentalidade de uma criança. Sem outro propósito
senão o de satisfazer suas necessidades mais elementares, é cruel, cínico e
insensível” (JUNG, 2008, p.145).
No segundo ciclo, vemos o personagem Hare (Lebre). Aparece inicialmente
como um animal, geralmente é representado como um coiote pelos índios norte-
americanos, em suma, é um animal que não “tendo ainda alcançado a plenitude da
estatura humana, surge, no entanto, como fundador da cultura – o transformador”
(JUNG, 2008, p.146). Este personagem é a continuidade do primeiro, mas mais
amadurecido, e ele estava ligado ao rito medicinal, por isto mesmo sua imagem
arquetípica estava ligada a do salvador. Quando a tribo dos winnebagos teve
contato com o cristianismo, logo dispensaram conhecer Jesus, afinal eles já tinham
Jesus, para eles era Hare, com a vívida imagem arquetípica de herói, salvador, que
trazia consigo. (JUNG, 2008, p.146).
O outro personagem identificado na tribo dos winnebagos é Red Horn, que
explícita o terceiro ciclo do mito do herói salvador. Este personagem cumpre provas
e desafios sendo vencedor, as vezes com poderes sobre-humano, e também possui
um animal mascote que o acompanha e o ajuda em suas batalhas, o “Storms as he
walks (há tempestade quando ele passa)”. No final da história deste herói, ele vence
e vai embora da terra, deixando seus filhos. (JUNG, 2008, p.146).
Por último, o ciclo dos Twins (gêmeos). Os gêmeos são humanos, mas são
filhos do sol, juntos no ventre materno, separam-se ao nascer, sendo que os dois
representam dois lados da natureza humana. Flesh é o brando e conciliador, e
34
Stump, dinâmico e rebelde. Após derrotarem tudo, inclusive um dos quatro animais
que sustentavam nosso planeta, eles recebem a morte (JUNG, 2008, p.146).
Tanto na terceira como na quarta história, o tema de morte aparecem, e
aparecem, segundo seus pesquisadores, ligados a ideia de expiação, o que
simbolicamente possui um grande valor. Ressalta-se aqui a imagem da terceira
história ou ciclo, a do Red Horn, quando ele vai embora, também gera a imagem de
ressurgimento a vida. Esta figura, para fechar o ciclo de sacrifício expiatório e de
vencer a morte, é de grande importância tal detalhe, pois demonstra o paralelismo
com a história de Jesus, enquanto salvador.
Também é possível observar nas fases do mito, as fases presentes no ciclo
de vida dos seres humanos. Contudo, alguns indivíduos invocaram o arquétipo do
herói com maior precisão e frequência do que outros, e outros o anularam quase
que completamente, dando espaço para outras manifestações arquetípicas, também
expostas na história da cultura, através de outros mitos.
Jesus Cristo de Nazaré, o filho de um carpinteiro e de uma mulher pobre, isto
deduzimos a partir da própria narrativa dos evangelhos canônicos: Mateus, Marcos,
Lucas e João, os quatro primeiro livros do segundo testamento, ou o novo
testamento. Jesus Cristo, sem entrarmos nos méritos teológicos, cumpre
perfeitamente o ciclo do herói. No próximo capítulo, a partir dos quadrinhos de
Sérgio Cariello, que buscaremos expor isto.
35
2 ANÁLISE DAS IMAGENS SELECIONADAS
2.1 O HERÓI E SUAS FASES
Diante do grande universo de possibilidades nas narrativas bíblicas em
busca dos mitos, e também expresso na obra aqui analisada, optamos pela figura e
personagem central da bíblia e do mito que traz consigo: Jesus. Entretanto,
necessário antes apresentar nossa fonte de análise, a Bíblia em Ação. A Bíblia em
Ação, é composta da seleção de algumas histórias da Bíblia, como conhecemos, um
livro de fé e também uma coleção de livros, contendo histórias, narrativas, e estilos
diversos, cobrindo um longo período de séculos e também geográfico.
A Bíblia em Ação – A História de Salvação do Mundo é obra do quadrinista
Sergio Cariello. A Bíblia em Ação possui 752 páginas, e é muito colorida, com
desenhos e gráficos fortíssimos, de surpreender até mesmo os apaixonados por
bíblias ou quadrinhos. Sergio Cariello atuou na Marvel e na DC Comics, empresas
de referência dos quadrinhos.
Figura 6: Capa e Contracapa da Bíblia em Ação
36
Logo na capa vemos o apelo visual e os gráficos de Sergio Cariello. A cor
preta, ou fundo escuro, é marca deste trabalho. Mesmo quando o quadro é claro e
colorido, possui margens pretas, para destacar o foco e o enquadro.
Feitas estas considerações, analisemos as imagens selecionadas dos
quadrinhos de Cariello. Os quadros foram selecionados e colocados em ordem
cronológica, tentando fazer as considerações interdisciplinares, e também tentando
traçar a verossimilhança entre os quadros selecionados e o mito do herói salvador.
Evidente que os ciclos encontrados na tribo dos winnebagos, já mencionados
anteriormente, servem como guia nesta procura. Os mitos possuem fases distintas e
ciclos com características próprias. Cariello apresenta a narrativa da história de
Jesus, o mito do herói salvador, com uma narrativa que evolui concordantemente
com os mitos dos winnebagos.
Na cena a seguir vemos o nascimento do mito, cercado de fatores que
apontam para sua divindade:
Figura 7: Anunciação dos anjos aos pastores
Olhando a página de cima para baixo nota-se: Uma pequena caixa na parte
superior, do lado esquerdo, com os dizeres: “De repente, o céu é tomado por anjos
que cantam louvores a Deus em coro”. Segue-se abaixo, um balão para fala do
37
personagem, mas aqui os personagens angelicais: “Glória a Deus nas alturas, e paz
na terra aos povos!” Novamente uma caixa no meio da página, do lado direito, mas
no fim do quadro superior com os dizeres: “Os anjos desaparecem e a escuridão
volta a envolver tudo”. Surge então, tomando a parte central da página um quadro
mostrando o diálogo entre dois pastores, desconhecidos, sem nome, em dois
balões: “Devemos ver o filho de Deus com os nossos próprios olhos!”, ao que o
outro responde: “Vamos até Belém!” Um pequeno quadro, fino abaixo, suspenso na
paisagem noturna, deslocado para a esquerda, com a informação: “Os pastores
correm até Belém”.
Em seu livro „Do Espiritual na Arte – e na pintura em particular‟, Wassily
Kandinsky faz a investigação do significado entre a arte e o espiritual, ou melhor, a
alma humana. Baseando-se em Kandinsky e em Jung, aqui o espiritual deve ser
entendido como manifestação dos arquétipos, pois faz maior sentido, já que
espiritual pode entrar num campo enorme de discussões em torno do sagrado e do
transcendental. Acredita-se nesta convergência de contribuições dadas por
Kandinsky e Jung.
A cor pode ser estudada por associações, contudo isto não é suficiente. A cor
há muito tempo vem sendo usada para o tratamento de doenças, o que é
reconhecido a tempo. “Todo o mundo conhece a ação colorida sobre o corpo, ação
que é utilizada na cromoterapia. Por diversas vezes tentou-se colocar as
propriedades da cor a serviço de fins curativos, em certas doenças nervosas”
(KANDINSKY, 1996, p. 68). Estas reações também foram observadas sobre plantas
e animais, isto retira o argumento da associação, já que as cores exercem também
influências sobre plantas e animais. Contudo, Kandinsky reconhece que:
Com maior razão, não é possível contentar-se com a associação para
explicar a ação da cor sobre a alma. A cor, não obstante, é o meio de
exercer sobre ela uma influência direta. A cor é a tecla. O olho, o martelo. A
alma é o piano de inúmeras cordas. Quanto ao artista, é a mão que, com a
ajuda desta ou daquela tecla, obtém da alma a vibração certa.
(KANDINSKY, 1996, p. 68).
A partir das considerações de Kandinsky, as reações que temos diante das
cores podem ser imediatas, contudo, há mais do que isto, algo que atinge
profundamente o ser humano, ainda que animais e plantas também possam interagir
38
diante de cada determinada cor, nós humanos trazemos mentalmente as
predisposições reativas diante de determinadas situações, e também cores, o que
ainda carece de investigação.
Há pistas de que cada cor foi escolhida de forma cuidadosa por Cariello na
presente obra, variando de forma proposital entre tons do preto, marrons, com
coloridos, até cores claras, como o amarelo dourado até o extremo branco. Este
movimento de cores reforça o movimento entronizador do herói no seu
ressurgimento após a morte, diante de seus seguidores. “É evidente, portanto, que a
harmonia das cores deve unicamente basear-se no princípio do contato eficaz. A
alma humana, tocada em seu ponto mais sensível, responde. Chamaremos essa
base de Princípio da Necessidade Interior.” (KANDINSKY, 1996, p.69, grifo do
autor).
Deduz-se que os leitores rapidamente se adaptam e reagem às cores, e
também atingem as profundezas mentais, ou da alma. Lembra-se que há uma
necessidade dupla nos leitores de Cariello. Por um lado, a necessidade de
apresentar o herói é essencial na sua história em quadrinhos. Ele desafiou-se em
escrever a história de um salvador do mundo, como corrobora o subtítulo de sua
obra; ele precisa apresentar este herói cumprindo as necessidades do ciclo do herói,
e seguir também cuidadosamente o valor pictórico das cores e sua influência sobre
o leitor, a fim de confirmar a grandeza do herói. A outra necessidade dos leitores é
na questão de fé. Cariello entra no campo da fé, ele deve trabalhar para usar todas
as ferramentas possíveis, para levar a alma humana a encontrar um ponto de
contato com seus quadrinhos. Neste sentido, ele usa todas as ferramentas
disponíveis, e isto se evidencia pelos gráficos, pelos ciclos mitológicos apresentados
de forma clara e satisfatória, pelas ondas emocionais que saem de sua narrativa,
pelas cores empregadas, novamente reforça-se, o movimento do escuro para o
claro, da morte para a vida.
Apenas o mito do herói salvador foi selecionado para esta análise, logo, isto
restringe-se aos quadrinhos que contam a história de Jesus nos evangelhos. A
história acerca do Novo Testamento inicia-se na página 523. Os quatros evangelhos
concentram-se em narrar a história de Jesus – o Cristo, o Messias, ou seja, o
Salvador, títulos que depois foram somados ao seu nome. A ideia de cumprimento
39
de profecias dadas aos israelitas é marcante. Jesus é um personagem há muito
esperado pelos israelitas e também por outros povos.
A história organizada por Cariello inicia-se mostrando Jesus já adulto e com
as crianças, em uma página colorida, ou seja, tons claros para o amarelo,
personagens sorridentes, cercado por crianças. Segue-se uma breve explicação
contextual sobre a necessidade do messias, do salvador. O povo sofrendo e a
opressão política romana de opressão. Estes são os contrastes oferecidos ao leitor.
Segue-se nas próximas páginas a aparição de um anjo, avisando da chegada do
salvador, a punição do sacerdote incrédulo que viu o anjo, e o nascimento do profeta
João Batista, precursor do salvador e primo dele. Até aqui, imagens claras, a luz
angelical forte, e o messias nasce, num estábulo já com fundo escuro, justificado
pela noite.
Salienta-se o esforço do quadrinista em colocar as quatro narrativas
reconhecidas como canônicas pelos cristãos, os evangelhos conforme Mateus,
Marcos, Lucas e João, em ordem cronológica, pois trazem detalhes diferentes sobre
a história do salvador. Nesta primeira página selecionada acima, vê-se realmente o
início da história. Isto comprova-se pelo movimento na narrativa que se dá em torno
do salvador. O fundo escuro, justificado pela noite, traz um contraste proposital entre
o ente mítico representante da luz, em enfrentamento já desde sua chegada com as
trevas, uma batalha épica, entre luz e trevas, que se estende por toda a obra, onde
os personagens agraciados aparecem em tons mais claros, e os desafortunados
aparecem em tons mais escuros. Mas o salvador veio para trazer luz e esperança.
Abaixo, a origem humana humilde do mito:
Figura 8: O nascimento de Jesus, a visita dos pastores.
40
A imagem acima é da página seguinte, 535. Aqui vê-se o retrato da família
tipicamente humana com um recém-nascido em um lugar incomum, recebendo a
visita de homens comuns, seus patrícios. Os heróis são assim, de origem humilde,
dentre os pobres, também sofrendo com a opressão de um governo ou poder cruel e
injusto. No quadro abaixo da família do salvador com a visita dos pastores, estão os
magos do Oriente, também sendo guiados por uma estrela. Agora magos de outras
confissões religiosas, estrangeiros, e aparentemente de alta posição, chegam para
visitar o salvador.
Importante destacar que os dois grupos que se achegam para visitar o
salvador fazem um movimento das trevas para a luz. Isto fica evidente na visita dos
pastores, na imagem acima. Isto corrobora imageticamente para o caráter especial
que possui a criança. A criança no estábulo é ente especial que merece reverência
digna de um deus, lembrando que esta confissão de Jesus Deus é construída
gradativamente nas narrativas dos evangelhos, pois era um escândalo para os
judeus daquela época afirmar que um homem era Deus. Aqui vale um parêntese,
pouco se sabe, ou quase nada, da infância de Jesus, apenas os apócrifos
mencionam coisas interessantes. Mas nosso compromisso não é outro senão o de
expor os quadrinhos como estão, e os quadrinhos seguem sistematicamente a
narrativa bíblica, aceita pelos cristãos. Se, por uma lado fica-se sem o vislumbre da
infância do herói, ganha-se algumas pistas. Jesus enquanto criança fica perdido no
templo, e depois de alguns dias é reencontrado pelos seus pais. Neste período, o
herói possui uma verossimilhança singular com o mito Flash, da tribo dos
winnebagos, pois se demonstra sábio, educado, conciliador e brando, salvo a
aparente resposta áspera aos pais terrenos, que é amenizada pelas mãos do
quadrinista, no último quadro da página 543, Jesus responde para sua mãe: “Por
que estavam procurando por mim? Não sabem que eu preciso estar na casa de meu
pai”. A fisionomia do adolescente herói é suave, não é de um garoto rebelde,
enraivecido ou respondão. A semelhança com Flash nesta etapa da história entra
em contraste com a próxima fase, onde Jesus, após o batismo, e talvez quase no
fim de sua vida, entra naquele mesmo templo, como um jovem adulto, enraivecido,
agitado e rebelde - rebelde pelo menos para as autoridades religiosas daquela
época e contexto - pois ele entra no templo quebrando e derrubando tudo. Surge ali
a semelhança com o irmão gêmeo de Flash, o Stump, do ciclo Twins.
41
Esta é a imagem que exprime o mito rebelde:
Figura 9: Jesus repreende o comércio no templo.
O amarelo é de um tom dourado, e o herói surge como tendo grande força,
pronto a destruir tudo, soltar os animais que iriam para sacrifício no interior do
templo, e também cessar o comércio dentro do templo. O pavor e o susto nos
personagens, sendo o da esquerda com um rosto cadavérico, prenunciam a morte
do herói e sua vitória sobre a morte.
A próxima figura selecionada demonstra o mito em seu ritual de passagem:
Figura 10: O batismo de Jesus.
42
Nenhum herói pode se tornar um herói sem cumprir suas tarefas. Jesus
cumpre tudo o que as convenções sociais lhe exigem e, claro, estas convenções
sociais perpassam a vida religiosa com suas normas e práticas. Jesus, o que invoca
sobre si o arquétipo do salvador, do herói, vai até aquele, que mesmo sendo seu
primo, segundo a narrativa, invoca sobre ele o arquétipo mitológico do velho sábio,
ele autentica a missão especial que ele possui, aparece um sinal que se assemelha
a um pássaro, logo identificado como pomba, e uma voz é escutada. São sinais que
expõem na narrativa o quanto Jesus cumpria as exigências sócias e também do
inconsciente coletivo. A sociedade precisava de uma esperança, Jesus incorpora
tais reinvindicações sobre si, com a disposição de cumprir até mesmo com o preço
de perder a vida. Tal renúncia, dedicação e amor, faz lembrar o ciclo do Red Horn,
aquele que vende os desafios da vida, da existência, do que lhe é pedido, e também
possuía um pássaro a seu lado, o Storms as he walks (há tempestade quando ele
passa). O pássaro, e nenhum outro animal aparece ao lado de Jesus, e isto
novamente coloca Jesus cumprindo as necessidades do ciclo do mito do herói
salvador.
A próxima imagem mostra o mito como líder de sucesso entre seus amigos:
Figura 11: Jesus na ceia.
43
Novamente o Jesus enquanto mito, aquele que incorpora o arquétipo do
herói, possui um ponto de contato e semelhança com o Red Horn, pois Red Horn
era o caçula de uma grande família, e ele sempre estava cercado de seus irmãos,
segundo o relato mitológico. Red Horn também possui filhos e, quando se vai, deixa
seus filhos na terra. Jesus se posiciona de forma paternal na sua relação com seus
discípulos. Ele tinha o lugar principal quando comiam, é ele quem conduzia os
diálogos. Na imagem acima observa-se que o fogo toma a cena, estando no ponto
central no quadro. Novamente, a luta da luz contra as trevas é o tema invocado pelo
quadrinista, a ideia do herói e salvador, está ligada imageticamente na obra de
Cariello do Jesus que traz a luz ao mundo em trevas, isto encaixa-se nas narrativas
mitológicas, satisfazendo assim, a necessidade implícita em todas as culturas pela
presença do herói, do salvador. Evidencia-se isto não apenas na narrativa bíblica,
mas em todas as culturas. As diversas culturas exigem a presença do herói para
alimentar a esperança e renovação de forças. Ao redor da figura heroica os
discípulos se sentem animados com o futuro. Jesus os adverte sobre o que teriam
que enfrentar. Cético, eles não dão ouvidos, e a narrativa segue com o isolamento e
humilhação do mito.
E então tem início a fase sacrificial do mito.
Figura 12: Jesus acorrentado.
44
Ele é preso com correntes longas, e está totalmente sujo. A imagem já não
faz uso do claro ou da luz, como nos quadros anteriores, mas transmite o quão
sombria é esta etapa. Parece que este é Jesus sujo e encardido.
A próxima figura mostra o mito dignificado no momento de humilhação:
Figura 13: Jesus humilhado pelos soldados romanos.
Aqui, ironicamente, o herói recebe as honras de realeza. Com coroas de
espinhos, e com capa com cor que distinguia os nobres, Jesus é escarnecido, ao
invés de engrandecido. Já não é um Jesus luz. É um Jesus emagrecido, percebe-se
isto pelo rosto, tórax e abdome, onde não se dá destaque a musculatura, mas à
aparência emagrecida e fraca.
Abaixo, o mito no processo transformador no caminho para a morte:
Figura 14 Jesus carregando a cruz.
45
Aqui o herói aparece em ultraje singular. Em trajes rasgados, sujos, está
enfraquecido após uma série de humilhações e torturas; ele é despido de sua glória
celestial. A predominância do cinza no quadro parece reforçar a possibilidade da
vitória das trevas sobre a luz.
Abaixo, o mito publicamente morto, aqui transcende a morte e perpetua seu
legado:
Figura 15: Jesus crucificado.
Jesus aprece neste quadro na situação e posição sacrificial. Esta é a posição
consolidada pela narrativa e pela tradição. Mas, aqui Cariello dá destaque para a
musculatura de Jesus e de um rosto, que apesar de expressar cansaço, nem
expressa a derrota e dor insuportável, como é o caso do personagem a direita, que
parece não suportar a dor, e o da esquerda, que aparentemente, já fora vencido pela
morte.
Na sequência, o mito do herói salvador ressurreto. Aqui há a perpetuação do
mito na história do inconsciente grupal:
46
Figura 16: Jesus ressurreto.
O choque imagético entre o Jesus da via do sofrimento, e o Jesus vivo que
venceu a morte é impressionante. Em branco e em quadro claro, Cariello deixa claro
que a vitória do herói da luz sobre as trevas foi definitiva.
E então vem a imagem da perpetuação na narrativa e testemunho da
contínua presença vitoriosa do mito do herói salvador:
Figura 17: Assunção de Jesus. Posteriormente ampliada.
A grandiosidade desta imagem é refletir o mito como real, sendo que a
linguagem dos quadrinhos nunca pretende exatamente replicar a realidade, apenas
refletir. E aqui reflete a imagem que é histórica para os cristãos, ou seja, real e
satisfaz as necessidades míticas, mitológicas e arquetípicas, trazendo à tona o
38
cumprimento do ciclo do herói. Primeiramente ele aparece como o Flash, brando e
reconciliador; depois o Stump, impetuoso e rebelde; então vem como Red Horn, que
cumpre sinais extraordinários de vitórias; e por último se sacrifica, vence a morte, o
ultimo inimigo, e depois vai para sua morada celestial. Ao refletir Jesus, o herói
como elevado aos céus, Cariello definitivamente faz o desfecho de Jesus, pelo
menos até o fim da narrativa dos evangelhos, daquele que venceu as trevas e em
definitivo perpetua o puro e a luz.
O que se observa até aqui é que Cariello consegue realizar uma obra singular
e especial, expressando na linguagem dos quadrinhos não mais apenas o Jesus
Cristo da fé e do dogma, da crença e confissão dos cristãos. Cariello apresenta um
novo Jesus Cristo, o Jesus Cristo herói, que satisfaz as exigências mais profundas
do inconsciente, exigências dos arquétipos, que já foram cumpridas e encontradas
com satisfação em outras narrativas de tribos antigas, de culturas milenares e
mitológicas, e que aqui ele se apropria. Cariello faz de forma singular a combinação
entre o texto literário recebido pela tradição cristã, e as expressa satisfazendo as
exigências imagéticas dos quadrinhos, e também as exigências do mito do herói
salvador.
2.1 O MITO DO HERÓI SALVADOR – SEU PROPÓSITO
O herói parece cumprir o ciclo semelhante do winnebagos, contudo, há outras
características que aparecem no herói que nem sempre são lineares ou seguem
uma cronologia. Por exemplo, o que foi mostrado na imagem do Jesus enraivecido
no templo. Tal procedimento seria mais aceito no início de sua carreira, pois seria
justificado pela imaturidade do herói, que ainda era um adolescente. Entretanto, é
neste relato aparentemente anacrônico que se realça o arquétipo. O arquétipo, esta
manifestação instintiva que o indivíduo assume e cumpre socialmente a função que
o coletivo carece, nem sempre ocorre de forma linear na sociedade e na vida dos
indivíduos. Jesus ali no templo, já no ocaso de sua história, prova que o herói deve
operar, agir, de modo a não se conformar com as injustiças. Nem sempre isto é visto
com bons olhos para os prejudicados, contudo, a multidão agradece, e ele assim
cumpre de forma legítima a vitória do herói.
39
Joseph Campbell, ao falar sobre a saga do herói, diz: “Existem heróis das
duas espécies, alguns escolhem realizar certa empreitada, outros não. Num tipo de
aventura, o herói se prepara responsavelmente e intencionalmente para realizar a
proeza” (FLOWERS, 2014, p. 137). Jesus, o herói ilustrado por Cariello, é o herói
sem opção, ele já em seu nascimento é invocado a cumprir a tarefa de salvar seu
povo. Esta ideia também aparece na obra de Cariello, já comentada anteriormente.
O contexto social de sofrimento, diante da opressão econômica imposta por Roma,
fazia crescer a ideia de que o herói poderia trazer também uma libertação social,
política, militar e econômica ao povo israelita daquele contexto, já identificados
simplesmente como judeus. Contudo, o herói Jesus aponta para uma salvação
mística, espiritual, rendendo-se ao seu martírio, vergonha pública, cumprindo assim
seu destino, a morte na cruz.
Os quadrinhos, componente próprio da cultura contemporânea, podem agir
como substituto para aqueles que possuem vocações e a necessidade de agir como
herói. A ideia de herói não no sentido de possuir superpoderes, mas de cumprir a
tarefa que lhe é cabida. A ideia de uma sociedade voltada para o campo imagético,
sem concretizar e externar sua vocação pode ocasionar uma ilusão e trazer o
engano recreativo. Joseph Campbell comenta:
Quem assiste a competições esportivas, em vez de praticar atletismo, se
deixa envolver em façanhas substitutivas. Mas quando se pensa nas
dificuldades que as pessoas realmente enfrentam em nossa civilização,
percebe-se que ser um homem moderno é algo extremamente árduo. O
esforço tremendo daqueles que assumem o sustento das famílias – bem,
essa é uma tarefa que exaure e consome toda uma vida. (Apud FLOWERS,
2014, p.139).
Logo, os quadrinhos podem refletir o real, e suas histórias podem ser
tomadas como substituto da realidade. Talvez as novas mídias possam funcionar de
forma substituta, de forma mais evidente, mas, sem dúvida, diante do exposto de
Campbell, os quadrinhos também podem fazê-lo, o mito do herói salvador pode
servir a isto, e em especial, a obra de Cariello, com seu Jesus arquetipicamente
cumprindo todos os requisitos de forma marcante; mas pode funcionar como
alienador, em que o leitor se satisfaz com a vitória de seu herói e passa a aguardar
os acontecimentos na realidade.
40
Diante disto, a linguagem dos quadrinhos, enquanto nova tecnologia
vanguardista, o quadrinista e o leitor, devem tomar cuidado com o excessivo
entusiasmo, para não cair.
Quando você enfrenta algo que é uma aventura inteiramente nova, abrindo
novos espaços, quer seja uma inovação tecnológica, quer seja
simplesmente um modo de viver em relação ao qual os outros não podem
ajudá-lo, sempre existe o perigo do entusiasmo excessivo, o negligenciar de
certos detalhes técnicos”. (Apud FLOWERS, 2014, p. 140).
A saga do herói não pode levar o leitor a uma conformidade com o mundo
ao seu redor, quando este mundo o faz menos humano. O herói opera sua tarefa
mítica completa, quando expira sobre seus leitores a capacidade de ir contra um
sistema, quando este sistema deseja impor o desumano sobre si. Cariello, em seus
quadrinhos parece invocar esta esperança, o herói apresentado consegue de fato
refletir a narrativa textual através de suas imagens vibrantes e do humano vencendo
sobre as trevas. A cor preta, a escuridão, parece apontar para a não-vida, ou seja, a
morte. Na morte não há nada. Enquanto há a luta, o conflito, a inconformidade, há
esperança.
O mito do herói salvador, nos quadrinhos de Cariello, apresenta a
esperança, o humano triunfando sobre o desumano império que tenta subjugar. Ali,
estão representados pelos romanos e pelos sacerdotes da época, mas nunca com
uma carga pessoal, eles representam organizações. Na página 627, Cariello
demonstra isto quando Jesus, o herói, é levado como prisioneiro, ali começa a
transfiguração, gradativa e longa, do belo herói em luz, em um maltrapilho no
caminho para cruz. O detalhe é que, ao ser levado perante a elite palaciana, ele é
acusado pela afirmação de ser o filho de Deus, o dogma, o sistema impessoal, não
suporta esta confrontação humana, de um Deus proximal, que se relaciona com a
humanidade.
Campbell corrobora com esta explicação ao dizer que a luta da humanidade
é contra as forças impostas por um sistema impessoal (Apud FLOWERS, p. 153). O
mito do herói salvador na obra analisada luta contra estas forças de um sistema que
impõe a negação de quem aqueles homens e mulheres eram.
41
O mito do herói salvador deve apelar para a inconformidade social, conforme
os apontamentos de Campbell, e é isto que Cariello faz, apresenta um herói
inconformado com a realidade que o cerca.
42
3 REFLEXÃO INTERDISCIPLINAR
3.1 APLICAÇÕES PEDAGÓGICAS
O uso dos quadrinhos está presente não apenas na atividade lúdica, mas
também na leitura, no aprendizado de idiomas, na introdução e no desenvolvimento
de reflexões de instigação (SANTOS, 2012, p.93). A acessibilidade é inerente as
histórias em quadrinhos, em parte pela capa de linguagem lúdica que traz consigo,
também pela irreverencia e descontração, estas características podem ser
atenuadas ou sublinhadas pelo traço do desenho do artista, bem como pelas cores
escolhidas. Mas em geral, os quadrinhos podem ser convidativos aos leitores em
geral, mesmo aqueles que possuem dificuldades na leitura e compreensão dos
textos. Por isto tudo, os quadrinhos podem ser utilizados na escola, e em ambiente
de ensino e aprendizagem, a mensagem e o conteúdo podem ser transmitidos
através dos quadrinhos de forma intermitente com outros recursos, para iniciar,
reforçar ou concluir uma temática iniciada em sala pelo professor. Por outro lado, os
custos dos quadrinhos parecem ser menores, principalmente se for desenhos preto
e branco. Os quadrinhos possuem a facilidade de sintetizar ideias e grandes
espaços textuais em poucas imagens. Isto facilita a comunicação com o publico em
geral, podendo ilustrar o que fora transmitido em aula discursiva pelo professor, ou
até mesmo esclarecer a imagem mental que fora construída pelo aluno, mediada
pela imaginação partir da fala do professor, sendo assim, os quadrinhos podem
estabelecer uma referencia acerca de uma fala, objeto ou personagem. No caso
especifico da obra de Cariello, a imagem que alguns podem ter a parti da leitura da
bíblia é que Jesus foi batizado numa lugar árido, sem nenhuma arvore, isto fica
desconstruído quando se vê o quadrinho de Cariello, o ambiente muda, parece ter
arvores e ser um ambiente distante da imagem de deserto que alguns possam ter
construído a partir de ouvir exposições do texto ou até mesmo a partir da leitura do
texto. Sendo assim os quadrinhos, de forma barata, pode se tornar poderosa
ferramenta para imprimir nos alunos imagens que poderão se perpetuar e repercutir
não apenas no presente, mas que os leitores poderão assumir como bagagem
imagética fidedigna por longo tempo, que poderá ser alterado somente quando
43
novamente reverem aquele assunto e serem convencido do contrario a partir de um
novo ensino.
A linguagem dos quadrinhos é importante na construção de conhecimento e
na aprendizagem, mas é um campo que carece de investigações. A pedagogia vive
a perguntar-se sobre como o aluno aprende. O processo exige a relação no tripé:
Aluno-Professor-Conteúdo. Aqui se acrescenta o quarto elemento importante para
que esta equação se feche: a linguagem adequada para comunicar o conteúdo. Esta
linguagem varia não de país para país, ou de idade para idade, mas de pessoa para
pessoa. Um indivíduo pode ter maior facilidade em assimilar determinado conteúdo
ouvindo, outro escrevendo, outro olhando; é evidente que tal indivíduo está apto a
aprender de modos diversos, contudo, há em si uma prevalência de expertise em
apreender com maior proveito se o professor usar determinada linguagem.
Numa mesma sala de aula, todos estes indivíduos podem estar juntos,
pessoas com facilidades, dificuldades e linguagens dominantes diferentes ou em
diferentes graus de desenvolvimento. A linguagem dos quadrinhos abre uma
dimensão para pessoas voltadas às imagens, às que são ao texto, e também aos
ouvintes e outros para tarefas. A partir das pesquisas de Howard Gardner (1995) e
de suas contribuições ficou esclarecido que os indivíduos possuem peculiaridades e
canais próprios para aprender. Contudo, a intenção aqui é tão somente destacar que
as pessoas aprendem de formas diferentes, e que os quadrinhos alcançam todas as
diferentes de pessoas e suas características de aptidões.
A ideia é que o ser humano possua características e necessidades comuns,
pode-se ainda dividir a raça em grupos a partir de seu modo psicológico. Este modo
psicológico interfere no comportamento, mas não apenas nisto, mas também na
forma de pensar. Sendo assim os processos criativos, e os processos de
aprendizagem, bem como os processos invocativos dos arquétipos para assumir
performance no palco da existência modifica-se. Com isto caminha-se para
conclusão de que quando alguém assumo o mito do herói salvador isto esta também
relacionado no seu biótipo psicológico, ainda que todos os tipos psicológicos
possam assumir este arquétipo, pelas evidencias nestes pensadores, pode-se
deduzir que alguns tipos terão maior facilidade em assumir o biótipo, ou arquétipo,
trazido pelo mito do herói salvador, enquanto outros terão maior facilidade em
assumir, por exemplo, o mito do herói salvador rebelde. Esta variação, está ligada
44
ao tipo psicológico do individuo, se introvertido, ou extrovertido, e estes
detalhamentos cabem em pesquisas já produzidas pelos autores citados acima.
Aqui é necessário refletir a questão das aplicações das histórias em
quadrinhos. Penso que primeiramente, de forma explicita, os quadrinhos expõem os
personagens, talvez mais do que na forma das histórias em livros. Tal exposição
oferece um recurso ao professor em apresentar e refletir as características dos
personagens das histórias em quadrinhas, e ao fazer isto, o professor pode fazer
intervenções e aplicações proximais aos alunos, assim construindo o conhecimento
sobre a narrativa e também oferecer reflexão para autoconhecimento. Perguntas
implícitas sobre os pensamentos e ações dos personagens podem ajudar a entender
a realidade da saga humana, a partir da ficção.
Talvez o recurso mais precioso para o professor ao usar os quadrinhos seja a
oportunidade de trabalhar a inteligência afetiva, que se aplica na construção de
relacionamentos saudáveis. Deduz-se que crianças, adolescentes e adultos com
mentes saudáveis poderão produzir melhores resultados tanto acadêmicos como em
seu relacionamento junto da sociedade.
As possibilidades de aprendizagem são amplificadas se houver o uso dos
quadrinhos em determinados momentos e com a devida intervenção. O uso da
linguagem dos quadrinhos não dispensa o uso das demais linguagens. Há também a
necessidade do aluno desenvolver as demais linguagens, mas os quadrinhos são a
linguagem adequada para intervenção na dificuldade para assimilar determinado
conteúdo.
3.2 APLICAÇÕES CULTURAIS
Os quadrinhos sempre fascinaram as gerações. Reconhece-se que os
quadrinhos foram influenciados pela Pop-Art, como já mencionado anteriormente.
Reconhece-se que os quadrinhos, como sendo arte independente e possuindo sua
própria linguagem, possui valor estético singular.
Reconhece-se também que, as histórias em quadrinhos podem fazer uso
dos recursos mitológicos, e assim invocar arquétipos do inconsciente coletivo,
provocando sensações e sentimentos, que proporcionam uma experiência não
apenas interativa, mas impessoal com suas histórias; proporciona uma experiência
45
relacional, ou seja, um contato direto com o humano, tendo em vista que compartilha
de herança comum da sociedade. Tais experiências vívidas e presentes não apenas
nas histórias mitológicas, são revividas através de suas manifestações arquetípicas,
e pelas repetições que se faz cotidianamente, com novas roupagens. Por exemplo,
com o mito do herói salvador contado através de tantos personagens em
quadrinhos, sempre apresentam um ciclo semelhante, contudo, cada personagem
possui sua peculiaridade, o que acaba o diferenciando e individualizando. De certa
forma, é assim que acontece com cada um dos seres humanos. Lembrando a
colocação já posta de Campbell, de que há dois tipos de heróis, os que optam a isto
e os que trabalham para isto, diga-se aqui que, as histórias em quadrinhos fazem
valer dos mitos, para recontar suas histórias, com dimensionamentos variados, e de
certa forma, o mito do herói salvador, talvez o mais contado nas histórias em
quadrinhos, e transportado para o cinema, e que também salta dos quadrinhos para
os altares de muitas igrejas.
Nildo Viana explica que: “Os super-heróis são produtos históricos e sociais
como qualquer outra produção cultural” (apud REBLIN, 2011, p. 15). Ele salienta que
a superaventura é um gênero que está ligado às mudanças culturais ocasionadas na
Idade Moderna, e baseada nas produções ocorridas nos Estados Unidos. Ele divide
este período da seguinte forma:
a) a época do nascimento, que vai da criação do Superman até o final da
Segunda Guerra Mundial; b) a época da crise, que vai de 1945 até o final da
década de 1950; c) A época da retomada e renovação, que ocorre a partir
do final da década de 1950 até o final dos anos de 1960; d) a época do
„envelhecimento‟ dos super-heróis, que vai do final da década de 1960 até
1980; e) a época da reorganização e inovação, que vai de 1980 até os dias
de hoje. (Apud REBLIN, 2011, p. 17).
Esta divisão breve visa compreender o contexto e o processo de
transformações dos quadrinhos e da cultura que o cerca, e oferece uma dimensão
da relação dos quadrinhos e a cultura. Viana explica ainda que ocorrem
acumulações e fatores múltiplos de combinações sociais devido às mudanças
internas de cada país, pois os ritmos são diferentes das transformações sociais.
(Apud REBLIN, 2011, p. 18). A partir disto é possível conformar o uso diverso dos
quadrinhos nestas diferentes culturas, tendo uma aplicação mais ampla ou não,
devido aos múltiplos fatores sociais envolvidos, desencadeados por múltiplos fatos.
46
Apesar de reconhecer a inspiração dos criadores dos super-heróis na
mitologia, Viana não vê nenhuma ligação além desta condição. Ele afirma: “Porém
isso não serve para explicar a origem dos super-heróis, mesmo porque os primeiros
super-heróis não foram inspirados na mitologia” (Apud REBLIN, 2011, p. 18).
A divergência exposta entre aquilo que levantamos e o que Viana expõe é
pertinente, tendo em vista o método e a abordagem diferentes que ele - enquanto
sociólogo - e Campbell fazem. Ficou anteriormente comprovado que os seres
humanos sempre invocam sobre si e para suas histórias, heróis e super-heróis, e
que esta necessidade e fome da alma existe mediante as necessidades e
expressões dos arquétipos que a humanidade traz consigo.
Viana faz distinção entre os deuses superpoderosos e sua relação tida como
real, e os seus receptores, os super-heróis, tidos como fictícios entre seus
receptores. Também distingue heróis de super-heróis, os primeiros sem
superpoderes, enquanto que os super-heróis possuem superpoderes (Apud
REBLIN, 2011, p. 19).
A abordagem de Viana, ainda que pertinente para vislumbrar-se o diálogo
interdisciplinar, e de dar contribuição importante para a construção de heróis na
cultura contemporânea e de sua necessidade, ignora o fator psicológico e de sua
interação sobre o social. A contribuição importante que se deve sublinhar da fala de
Viana é:
“A formação dos super-heróis só foi possível através da conjugação de
diversas determinações, entre as quais estão os avanços tecnológicos, o
individualismo, a necessidade de homens fortes em períodos de crises etc.
Os precursores mais próximos dos super-heróis são os próprios quadrinhos”
(Apud REBLIN, 2011, p.19).
Há duas considerações importantes a se fazer aqui: Primeira, o
individualismo da atual geração e esta posição como importante no surgimento de
heróis e super-heróis. Segunda, que os precursores dos super-heróis são os
quadrinhos. O individualismo do homem tem a ver com um comportamento de
sobrevivência, e traz o desafio do homem continuar humano, como salienta
Campbell ao exemplificar esta situação com o personagem Darth Vader (Apud
FLOWERS, 2014, p. 153). Os super-heróis e heróis possuidores de superpoderes,
ainda que na Idade Moderna, e num tempo proximal ao nosso, os quadrinhos
trouxeram uma exposição destes super-heróis em uma nova linguagem, inovadora,
47
e de forma criativa, com novos personagens. Contudo, há na longa história humana
uma série de super-heróis encontrados na mitologia, por exemplo, os semideuses
gregos. O caso do jovem Hércules é um exemplo, e também na narrativa bíblica
temos o exemplo de Sansão, um humano com força descomunal, um verdadeiro
super-herói, que ajuda Israel a vencer suas batalhas. A narrativa de Sansão é
perpetuada, e com isto o super-herói fica evidente, embora em uma linguagem
totalmente diferente da dos quadrinhos, mas fato é que o super-herói estava lá.
A separação proposta por Viana contribui para observação do
desenvolvimento das histórias em quadrinhos recente. Contudo, carece observar-se
a longa história cultural, a mitologia, a fim de compreender a repetição dos
processos psicológicos: imagem, mito, herói, e a verdades ocultas.
Para Iuri Andréas Reblin, pesquisador ao lado de Nildo Viana, os super-
heróis possuem sim sua origem nos arquétipos, e que a Indústria Cultural sabedora
disto, explora tais conhecimentos visando aumentar seu lucro. Ele diz: “A
Irmandade: É um arquétipo das super equipes, criadas originalmente como
estratégia comercial da indústria dos quadrinhos” (REBLIN, 2011, p. 69). Ele
também está convencido que o protestantismo, como religião predominante nos
Estados Unidos, influenciou na construção dos super-heróis devido à tradição
judaico-cristã, evidente, incluindo gradativamente a influência híbrida das demais
crenças e sociedades (REBLIN, 2011, p. 69).
A influência multilateral convergente destas áreas - religião, mitologia,
arquétipos, heróis, super-heróis e quadrinhos – é tão rica e interessante que hoje os
heróis dos quadrinhos tomam os altares das igrejas tidas como evangélicas, no
Brasil. Desta forma, o mito do herói salvador encontrado em Jesus, outrora
satisfatório em cumprir as exigências arquetípicas, parece não ser mais suficiente
em cumprir o papel de comunicar esperança aos fiéis. Os fiéis atuais exigem
visualmente um herói mais real, ou melhor, mais proximal, e isto foi oferecido pelos
quadrinhos como cultura contemporânea, e depois se massificou através da TV e
cinema.
Diante disto, pode-se afirmar que os quadrinhos apropriaram-se não apenas
das narrativas da bíblia, mas invadiram as igrejas cristãs, modificando o seu próprio
modo de ser e de culto. Como isto se deu? Acredita-se que foi pela necessidade
arquetípica que já não era suprida nestas igrejas pelo personagem Jesus. Foi
48
necessário reinventar um salvador como novos heróis e, ao mesmo tempo,
autenticar seus mensageiros como especiais diante do público em geral, autentica-
los com heróis e super-heróis, mensageiros de Deus.
Esta reflexão da aplicação dos quadrinhos e fé perpassa a história cultural, e
porventura isto ainda ocorra de forma acentuada em nosso contexto, dado é a obra
de Cariello.
Este campo de fusão com histórias bíblicas em quadrinhos, e personagens
de quadrinhos e as manifestações de fé nas igrejas, é tão complexo que, uma
abordagem além da interdisciplinar seria necessária para produzir respostas
complementares a fim de esclarecer este fenômeno cultural e social. Aqui se
observa o fenômeno e infere-se que os arquétipos manifestam-se pelo inconsciente
coletivo a fim de satisfazer necessidades profundas da alma humana. O mérito
religioso e confessional não é abordado aqui, não há juízo de valor entre o certo ou
errado, mas encara-se o fenômeno cultural, o fenômeno é presente e real em nossa
sociedade.
Quando se vê o Jesus Cristo de Sérgio Cariello, nossa mente é remetida à
imagem do personagem dos quadrinhos, transportado para o cinema, Wolverine. Há
pastores vestindo-se de heróis da ficção e dos quadrinhos, pois Jesus está distante
da atual geração. A esperança em buscar personagens mais proximais é que estes
heróis e super-heróis dos quadrinhos satisfaçam a necessidade psicológica
Ao ler a obra de Sergio Cariello fica evidente seu êxito. A verossimilhança
com os heróis dos quadrinhos e o ciclo completo que ele faz do mito herói salvador
ao expor a história de Jesus em quadrinhos, faz de sua obra, se não vanguardista,
especial e singular dentre as muitas publicações de narrativas bíblicas que foram
transportadas para os quadrinhos.
A tensão e interação de dados na compreensão do fenômeno do mito do
herói salvador tanto para compreensão do fenômeno em si, como também numa
ampliação da compreensão da qual partimos, ganha uma nova dimensão cultural no
trabalho quando utiliza-se bases móveis, flexíveis e transitivas, mitologia e psicologia
analítica, e quando isto é somado ao discurso de fé, compreende-se o
enriquecimento das possibilidades.
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CONCLUSÃO
O trabalho pretendia realizar uma reflexão acadêmica sobre o uso da imagem
nas narrativas bíblicas na obra de Sergio Cariello, histórias bíblicas recontadas e
adaptadas aos quadrinhos.
Aferiu-se que artista usou das técnicas dos quadrinhos de forma exuberante,
com conhecimento e destreza especial e impressionante. Ao fazer uso de seu
conhecimento, e ao transportar a narrativa da literatura canônica para a linguagem
dos quadrinhos, o autor segue uma escolha de cores que cresce com a narrativa,
demonstrando que o mito do herói salvador traz luz e deixa para trás as trevas. Esta
crescente marcação de luz e o constante redimensionamento de direção das trevas
para a luz ficam demonstrados nos quadrinhos, onde a luz sempre se liga ao divino
e as trevas a morte, a destruição.
Além disto, a obra e a parte estudada demonstram que Cariello toca de forma
crescente o ciclo do mito do herói salvador. Ele demonstra que Jesus cumpre
cabalmente todas as etapas que se espera do mito do herói salvador, comparando-
se com outras narrativas mitológicas dos heróis.
As histórias mitológicas trazem não apenas relatos de crendices de uma
época menos evoluída, mas refletem um comportamento compartilhado da
sociedade naquele contexto anterior ao nosso, onde são projetados e expostos
conflitos e realizações humanas. Assim, as histórias dos mitos refletem a sociedade,
não apenas de forma externa, mas sua mente, seu consciente e inconsciente, Carl
Gustav Jung, bem como Joseph Campbell demonstram a importância da
compreensão do inconsciente coletivo, e a ligação que isto possui com os mitos,
pois os mitos apenas refletem arquétipos que a humanidade traz consigo.
Evidencia-se que os quadrinhos manifestam uma comunicação por imagens,
contudo faz isto resgatando um comportamento anterior. Os quadrinhos assumem
uma forma de entretenimento e neste viés alcança seu crescimento na história
contemporânea. Ao crescer como entretenimento, os quadrinhos logo fazem uso das
histórias dos heróis. Parece que Cariello especificamente, transforma Jesus Cristo
da bíblia no herói salvador.
A humanidade ao contar as histórias mitológicas invoca imagens que são
dadas e construídas criativamente, contudo tais imagens não surgem por acaso, são
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construídas a partir dos arquétipos comuns, trazidas a tona pelo inconsciente
coletivo, este inconsciente coletivo da humanidade, demonstra que estamos sujeitos
aos mesmos desafios, necessidades e possuímos uma ótica de verossimilhança,
apesar das distancias de tempo e espaço. Os quadrinhos trazem uma síntese,
trazem os mitos esquecidos, revelam arquétipos ignorados, mexe com o
inconsciente, confronta ou renova a fé, por tudo isto, os quadrinhos ocupam um
meio de comunicação muito mais poderoso e válido do que as pessoas imaginam,
definitivamente, os quadrinhos não são coisa de criança.
Cariello alcança seu êxito, ele alcança o público dos quadrinhos, cumprindo,
na linguagem apropriada, sua intenção de transmitir a história. Ele alcança também
o público da fé, das igrejas cristãs, demonstrando Jesus Cristo como herói salvador
e dispondo a narrativa dos evangelhos de forma numa cronologia que lembra os
ciclos de heróis mitológicos tribais.
Cariello cumpre com êxito o seu trabalho satisfazendo três grupos, os leitores
em quadrinhos e público em geral, os leitores religiosos da bíblia, que a encaram
como revelação especial, e os leitores da mitologia, que pela construção da obra
observam o paralelo do Jesus ali representado com o mito do herói salvador.
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REFERÊNCIAS
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ANEXO 1
Carta aos Presbíteros Docentes da Igreja Presbiteriana do Brasil Pode parecer estranho ao pastor presbiteriano deparar-se com esta pesquisa
que tanto fala e menciona o mito. O mito aqui é o que já foi posto, a expressão dos arquétipos que a raça humana possui e que se manifesta na cultura e nas construções imagéticas, ou, em palavras mais simples, o mito é uma invenção espontânea humana, necessária e inevitável, que expõe sua herança arquetípica, psicológica, não como indivíduo, mas como raça e sociedade.
Carl Gustav Jung entende Deus como:
Incorreria em erro lamentável quem considerasse minhas observações como uma espécie de demonstração da existência de Deus. Elas demonstram apenas a existência de uma imagem arquetípica de Deus e, na minha opinião, isso é tudo o que se pode dizer, psicologicamente, acerca de Deus. Mas como se trata de um arquétipo de grande significado, e de poderosa influência, seu aparecimento, relativamente frequente, parece-me um dado digno de nota para a Theologia naturalis. Como a vivência deste arquétipo tem muitas vezes, e inclusive, em alto grau, a qualidade do numinoso, cabe-lhe a categoria de experiência religiosa. (JUNG, 1978, p. 64).
Neste sentido, é possível apropriar-se das considerações de Jung e não parar nelas, mas ir adiante e, como pastores, apontar aí nestas considerações, o testemunho interno, na consciência do ser humano, o testemunho de Deus, de sua existência, da necessidade de arrependimento e salvação. O testemunho interno do Espírito Santo e da revelação geral está impresso na mente humana.
O mito na teologia sempre é visto como uma falácia ou heresia, ou ainda um erro produzido por pessoas ou povos idólatras. Então, nunca poderemos olhar para a bíblia como contendo mitos, afinal, para nós ela é a Palavra de Deus. Eu mesmo, em outra ocasião, apresentei uma pesquisa onde afirmava que a Bíblia é a Palavra de Deus em seus autógrafos, e: a certa e verdadeira mensagem de Deus mediante o texto herdado e traduzido que temos em mãos, para um erudito versado nas línguas originais, pode parecer pouco, mas é muito significativo para o cristão que domingo a domingo está na igreja.
Como pastor, fui abordado mais de uma vez e questionado por pessoas desesperadas, pois acreditavam que nunca poderiam conhecer a verdade, pois não sabiam grego e nem hebraico. Os pastores devem citar estas línguas com cuidado, a fim de esclarecer e enriquecer uma exposição, mas não amedrontando o leitor da bíblia, e desanimando-o ou minando a possibilidade da leitura e o estudo dela mediante a tradução disponível. Eu, como estudioso e expositor do texto sagrado, obrigatoriamente devo ir às línguas originais, mas o cristão de minha igreja também pode confiar na bíblia que ele tem em mãos, pois ela é a Palavra de Deus. A mensagem de Deus ultrapassa os autógrafos, chega até nós, muda vidas e muda a sociedade, salva o homem e edifica nações.
Como encaixar esta pesquisa sobre o mito com a nossa confissão enquanto presbiterianos? Primeiro encarei as imagens do quadrinista Sergio Cariello, e foi a partir delas que procurei identificar os arquétipos como definidos pelo médico psiquiatra Carl Gustav Jung. Jung encontrou verossimilhança entre as dificuldades patológicas mentais do homem moderno, com as histórias mitológicas e, a partir daí,
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tratou de traçar um discurso explicativo, pois ele estava convencido de não ser mera coincidência. Logo, o mito e sua história são importantes para conhecer o próprio homem e não a Deus, pois esta não era - e nunca foi a intenção de Jung - através de suas pesquisas mitológicas levar o homem a Deus, diferente disto, ele pretendia entender a mente humana.
Mas, ao conhecer as histórias dos mitos, observei uma relação com a obra de Don Richardson, em especial o livro „Fator Melquisedeque‟. Nesta obra Richardson propõe a ideia de que Deus deixou, através da revelação geral, um testemunho para todos os povos. Ele também propõe que, se os homens possuem uma origem comum, conforme observamos em Gênesis, de alguma forma as histórias, que são comuns à humanidade em seu início, foram passadas para as gerações futuras. Evidente que com alguns acréscimos e subtrações nos relatos orais, contudo, sem erro nas Santas Escrituras. Estas tradições orais que transmitem certa coincidência de relato com a Bíblia devem ser encaradas pelos teólogos reformados como parte da revelação geral, e que apesar de não comporem a revelação especial, a Palavra de Deus, ou seja, a Bíblia, aponta para ela como sendo o testemunho verdadeiro, como resposta buscada, ansiada que vai ao encontro dos povos carentes da luz do evangelho.
Outro ponto importante que gostaria de ressaltar é que a partir do que afirmei acima, a história, e o testemunho histórico não é a Verdade, ou seja, inerrante. Ela não se equipara com a revelação geral e com a Palavra de Deus. O lugar da Verdade, a Palavra de Deus, das Santas Escrituras é singular e único. A história, ou melhor, os testemunhos históricos, são sempre passíveis de erros, pois há ali apenas o trabalho humano, e nenhuma garantia da parte de Deus na qual a humanidade transmitiria seus acontecimentos às gerações futuras sem distorções dos fatos. O homem pecador deturpa os fatos, mas, mesmo assim, em certa medida, aponta para a Verdade, a Palavra de Deus. Sendo assim, os relatos históricos das diversas manifestações religiosas, inclusive documentos, são cheios de erros, ainda que apontem para a Verdade. Em síntese: a Bíblia possui uma mensagem inerrante, os autógrafos são inerrantes, os relatos históricos são cheios de erros, e apesar disto, os relatos históricos possuem certa verdade, pois possuem a revelação geral.
É a partir disto que também se encaixa a visão que Jung traz sobre o mito. Se o mito é projeção ou manifestações que externam os arquétipos da mente humana, e se nestas manifestações mentais que se concretizam nas narrativas mitológicas, e recorrentemente nas narrativas do mito do herói salvador, como salvador desejado e esperado, podemos deduzir a partir de Don Richardson e de seu trabalho, que também os mitos e os arquétipos da mente humana, compõem a revelação geral e apontam para a revelação especial, o relato bíblico. Contudo, a obra que pesquisei é, a meu ver, híbrida, pois é revelação geral em parte, mas em parte traz consigo a revelação especial. A revelação geral é insuficiente para a salvação do homem, serve de testemunho acerca da verdade.
Neste sentido, creio que os mitos devem ser encarados e estudados, não com igualdade à revelação especial, mas como parte da revelação geral, que se manifesta nas histórias das religiões, na cultura, nas imagens, e também se faz presente na mente de todos os homens.
Diante da revelação geral, testemunho externo de Deus na criação e história, e também através da revelação interna, através dos arquétipos e dos mitos que traz consigo, pela revelação geral, o homem torna-se indesculpável.
Se considerarmos verdadeiras e complementares as pesquisas de Carl Gustav Jung na psicologia, e na teologia de Don Richardson, poderemos afirmar que
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o testemunho de Deus também foi impresso na mente do homem através dos arquétipos que carrega consigo. Neste sentido, o mito não nos assusta mais, não compete mais com a verdade, mas ele aponta para a verdade. E também me parece ficar mais severa a repreensão de Deus em Romanos 1.18-27, a raça humana é indesculpável, pois o testemunho não é apenas externo, mas interno também.
O mito do herói salvador, psicologicamente, possui uma trajetória de existência que deve ser cumprida de forma exemplar e satisfatória. Os relatos do mito do herói salvador se fazem presentes em diversas culturas, evidentemente que com variações e, às vezes, numa mesma cultura, ele aparece de formas diferentes, e nem sempre em um ciclo linear. O que se concluiu é que Jesus Cristo, nosso salvador, cumpriu todas as exigências mitológicas, ou seja, das culturas, das religiões e da mente humana, que se apoiam em seus mitos. Mas ele também satisfaz ao homem moderno, pois Jesus Cristo, nosso salvador, cumpre cabalmente as exigências da lei, as mais profundas da alma humana, dos arquétipos que nós, como raça, trazemos conosco.
Podemos afirmar que Jesus Cristo, nosso salvador, cumpre as exigências da lei, do Antigo Testamento, cumpre as exigências de Israel e de Judá, cumpre as exigências de todos os povos, e também da mente do homem moderno e, por isto, o homem é indesculpável quando não o reconhece como o salvador do mundo.
Resumidamente, é esta a conclusão que cheguei quando estudei o mito do herói salvador, ele revelou-me o testemunho mental e cultural que a humanidade possui contra eles próprios, e aponta a necessidade do homem conhecer a verdade através da revelação especial, a Bíblia, Palavra de Deus.
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