Vidas alves1

Preview:

Citation preview

história viva da televisão brasilei-ra tem nome: Vida Alves. Atriz nas-cida em Itanhandu - MinasGerais, filha do engenheiro e poeta

modernista Heitor Alves, que com muitaousadia atribuiu nomes inusitados aosseus filhos: Helle, Homem, Poema, Ritmoe Vida, cuja veia artística herdou de seupai. Participou da inauguração da TVem 1950 e acompanhou de perto todasua evolução. Além de ser pioneira dobeijo televisivo, estudou Direito noLargo São Francisco, foi jornalista,cantora, apresentadora, escreveu eproduziu diversos programas, atuou noteatro e no cinema, e atualmente épresidente da Pró-TV (Associação dosPioneiros, Profissionais e Incenti-vadores da Televisão Brasileira). Aos 83anos, sonha com a realização de umprojeto para a criação do museu da TV.Em entrevista concedida à VEJA, nosconta a história do maior meio decomunicação de massa do país e falacom propriedade sobre as mudançasocorridas em 60 anos de televisão noBrasil.

Atualmente, a senhora está empenhadaem um projeto para conservação damemória da TV no Brasil. Quem são osidealizadores desse projeto? Acho queo idealizador sou eu, mas eu chameicolegas antigos da Tupi, alguns até jáfaleceram. Foi há quinze anos atrás.Chamei Luiz Gallon, Walter Forster,que foi aquele que fez a novelacomigo e era meu diretor, chamei a Liade Aguiar, Ana Maria Neumann eWalter Ribeiro dos Santos. Foi estegrupo que começou, mas a ideiarealmente foi minha.

Quais são as dificuldades na realizaçãode um projeto cultural no Brasil? Não émuito fácil você organizar um ideal, umsonho cultural no Brasil, porque aspessoas, mesmo os artistas, são maisimediatistas: “eu vou aparecer?”

EntrevistaEntrevistaEntrevistaEntrevistaEntrevista VIDA ALVESSUELLEN GRANGEIRSUELLEN GRANGEIRSUELLEN GRANGEIRSUELLEN GRANGEIRSUELLEN GRANGEIRO E TO E TO E TO E TO E TAMIRIS GOMESAMIRIS GOMESAMIRIS GOMESAMIRIS GOMESAMIRIS GOMES

“““““A TA TA TA TA TV não me manipula”V não me manipula”V não me manipula”V não me manipula”V não me manipula”A atriz protagonista do primeiro beijo em novela fala sobre a influência da mídia nasociedade e diz que a televisão evoluiu tecnicamente, mas perdeu em qualidade

veja/universidade cruzeiro do sul I 03 DE JUNHO, 2011 I 17

AT

AM

IRIS

GO

ME

S

“Não sou um público comum,sou diferenciada,

sou mais exigente,mais velha,

mais chata”

Qual é o objetivo da Pró-TV?Preparamos com certa ansiedade, mascom tranquilidade o acervo de cercade 180 gravações de biografias, entreelas a de Dias Gomes, Mário Lago,Dercy Gonçalves, Lima Duarte, LauraCardoso e muitos outros. Temos aprimeira câmera, o primeiro televisorcolorido que chegou ao Brasil e maisde nove mil fotos. No ano passado, atelevisão fez 60 anos e fizemos doiseventos até agora em homenagem. Em25 de janeiro - aniversário de SãoPaulo - fizemos uma exposição naPraça da Sé. Embora o espaço fosseum pouco pequeno, procuramoscondensar o nosso acervo.

Como foram os primeiros anos de TV?No início não tinha vídeo-tape, eratudo ao vivo até a década de 1960.Nas primeiras transmissões da TV asimagens alcançavam um raio de 37 km.Para chegarem a Santos, funcionáriosda televisão, operários e técnicosforam plantar nas árvoresreprodutores de imagens. Parecementira, mas hoje as imagens chegamem segundos, graças ao satélitehouve uma evolução técnica total.

Não imaginavam que chegariam atéaqui? Não imaginávamos nada, nem oChateubriand, que era o mais espertoe o que fazia todas as coisas. Noprimeiro dia da inauguração da TVTupi, no jornal saiu uma notinha de péde página, que sequer colocou: “hojeestá sendo inaugurada a televisão noBrasil”. Ele tinha medo de não darcerto, mas não podia pensar nissoporque havia feito empréstimos edado carta de crédito para seusamigos, que eram pessoas poderosas.

Como foi o 18 de setembro de 1950?Um dia muito agitado. No fim da tarde,Chateubriand fez uma cerimônia

oficial, convidou o governador LucasGarcez e o Bispo de São Paulo. Depoisele levou todos os amigos dele paraum coquetel festivo no Jockey Club.Eu não participei, pois estava grávida,então naquele tempo eu não aparecia.Logo depois foi feito um pequenoshow “Festa na Taba”. Chateubriandera muito ligado aos índios, tanto queas emissoras dele, todas têm nomesligados à cultura indígena: Tamoio noRio, Tupi em São Paulo, Piratini no RioGrande do Sul e assim vai.

Quem foi Assis Chateubriand? Ele foium homem maior do que só isso que agente fala. Foi ele quem fez 500 postosde puericultura no Brasil, conseguiuajeitar o Correio Nacional e a ligaçãocom os índios através de aviões. Alémdisso, foi jornalista e embaixadorbrasileiro junto à Inglaterra. Em SãoPaulo possuía seis veículos decomunicação e no Brasil inteiro eletinha mais do que Roberto Marinhoconseguiu depois de tantos anos.

A senhora conviveu com ele? Pouco,mas eu o conheci. É claro que ochefão dá pouca bola para asmenininhas, não é? (risos) Mas oconheci, conversei algumas vezescom ele.

EntrevistaEntrevistaEntrevistaEntrevistaEntrevista VIDA ALVES

18 I 03 DE JUNHO, 2011 I veja/universidade cruzeiro do sul

“onde é que eu vou?”, “quando eumorrer não importa, não interessa”(risos). Somos um país jovem, dejovens e isso é bom, mas tem essedefeito de “o passado passou”. Éclaro que o passado passou, mas araiz ficou. A raiz das coisas, osalicerces são necessários. Como é quevamos caminhar se não conhecermosos alicerces?

“O beijo não foifotografado,nem filmado.

O fotógrafo disse:‘não fotografei, pois

quem vaipublicar umacoisa dessas?’

Haviapreconceito” O que mais marcou nestes 60 anos de TV

no Brasil? Foi o dia da inauguração dacor. Eu fazia o programa “Vida emmovimento”, no horário noturno, deentrevista sem auditório, que foiescolhido para inaugurar a cor. É claroque não eram muitos que tinhamaparelho colorido, mas muitas pessoasviram. Foi em março de 1972 e comomeu programa foi o primeiro, todosdisseram: “você é outra vez pioneira,você é hoje a rainha”. Naquelemomento fiquei emocionada. Lembroque eu fiz uma frase que saiu nojornal: “Se o verde da mata é tãobonito, se a flor é cor-de-rosa, porquetemos que ver todos em branco epreto?”

A senhora sofreu algum tipo depreconceito perante a sociedade após terdado o primeiro beijo da televisãobrasileira? Preconceito existe sempre,nós temos que saber como noscolocar diante dele. Eu nunca meimportei muito. Venho de uma famíliaculta, meu pai era engenheiro, ou seja,cabeça mais aberta. O beijo não foifotografado, nem filmado. O fotógrafodisse: “não fotografei, porque quemque vai publicar uma coisa dessas?”.Então havia preconceito, mas eu nãosofri muito porque sempre fiz ascoisas que eu achei certo.

Como foi o processo para que a cena dobeijo se concretizasse? Primeiro WalterForster teve que falar com a direçãogeral. “Beijo? Mas nunca se viu, como

Na época da inauguração da TV, muitosacreditavam que o rádio seria extinto.Passou pela sua cabeça que issopoderia acontecer? Ninguém pensouisso. Pelo contrário, muitos preferiramficar trabalhando em rádio. Depois, éclaro, foram vendo a televisão crescermuito e ficaram temerosos, porque nocomeço trabalhávamos em televisão erádio, depois foram separando os maisbonitinhos dos mais feinhos. (risos)Eu fiquei um tempo nos dois e depoisfiquei só em televisão. Mas houvequem preferisse ficar só no rádio. Aospoucos o rádio tomou outrasdimensões, ganhou uma estradadiferente de jornal, tinha música e umaspecto imediato, que a televisão nãotinha.

“O importanteda televisão éacrescentar

alguma coisaútil para a cabeça.

Não pode serinútil e encher

o saco.E, às vezes,

enche”

veja/universidade cruzeiro do sul I 03 DE JUNHO, 2011 I 19

pode? As famílias não vão gostar”.Então ele conseguiu convencer adireção geral e o diretor artísticoCassiano Gabus Mendes, que tinha 22anos e gostava muito de cinema esabia que nos filmes estavamaparecendo os beijos na boca. WalterForster me chamou e disse: “Vida,você vai ser a minha parceira e tem umbeijo”, eu falei: “estou frita!” e ele:“fale lá com seu italiano”, pois meumarido era engenheiro italiano.

Houve ensaios? Não houve ensaios debeijo, houve apenas marcação. “Comoeu faço?” – “Você entorta um pouco acabeça, abre os lábios, fecha umpouquinho os lábios, faz cara de bestae deixa que eu faço o resto”. (risos) Eufalei: “comporte-se”, ele disse: “claro”e se aproximou alguns segundinhos.Não foi selinho, não foi beijo, foi umbeijo técnico, marcado, abraçado, mãoacariciando e só. Passaram 60 anos eainda se fala nesse beijo.

Realmente se fala muito nesse beijo...Uma vez eu fui à igreja e me chamarampra fazer uma homenagem. Era umpadre moderninho, que disse: “vemaqui”. Eu fui até o microfone ondeestava o padre e ele: “eu quero umasalva de palmas para a atriz que deu oprimeiro beijo”. Nesse dia eu quasemorri de vergonha. (risos)

Qual outro trabalho marcou tanto quantoa cena do beijo a sua carreira artística?Um programa que eu escrevia:“Tribunal do Coração”. Era umespetáculo teatral, no qual tinha umapessoa sendo julgada. Eu tinha feitoDireito e assistido a algunsjulgamentos. Fiz uma adaptação para atelevisão e para o rádio. Ficou cincoanos no ar ou mais e fez um sucessoque até hoje se copia.

Quais foram as mudanças positivas queocorreram na televisão desde o seuinício até hoje? A evolução na partetécnica é inegável.

E as negativas? A televisão foi feita deuma forma mais elitista. Quem tinhameram os mais ricos, os maisintelectuais e os que viajavam. Depoisfoi ficando mais barato e hoje todomundo tem. Como fazer uma coisa que

inteligível para o mais culto e para omais inculto? Então a televisão foi, pordemocratizar-se mais, perdendo umpouco a sua qualidade cultural, semdúvidas. Alguns bons programas sãocolocados à noite, entre as 19 e as 21horas eles põem coisas fáceis deassimilar. Mas eu acho que aqualidade piorou. Nós tínhamos umapreocupação intelectual grande,discutíamos sempre não na base daaudiência, mas da qualidade.

E quanto ao reality show, são reflexos davida real? Não. São pensados,“pinçados” os tipos que eles queremna época. Tem que ter bastantedesenho no corpo e falar as mesmascoisas, são todos muito parecidos.Acho que eles estão banalizando amais do que deviam. Não sou umpúblico comum, sou diferenciada, soumais exigente, mais velha, mais chata.Eu acho chato, embora todo mundoqueira saber qual vai sair, quem vaiganhar. O que eu percebo com osReality Shows é que chamam aatenção, chamam o que tem de piornaqueles que estão lá dentro, é umexercício de burrice deles e da genteque está vendo. E a gente cai, não é?

A TV se tornou um dos meios de

comunicação de massa mais acessíveise agrega vários tipos de público. Asenhora acredita no poder demanipulação da TV? Acredito sim. A TVnão me manipula, mas será que nãomanipula a minha empregada? Eu leiojornal, assino revista, leio livros. Elasó assiste televisão e quanto maispopular, mais ela gosta. Ela e todos.

Como uma pessoa que já escreveuvárias novelas, o que a senhora pensasobre a influência do público na definiçãodo caráter dos personagens a até nodesfecho da trama? É muitomercantilizada em prol do ibope.Estamos em um mundo que sepreocupa mais com a quantidade. Euestou há 60 anos vendo televisão epercebo que a qualidade vai sendodeixada um pouco de lado.

O que a senhora assiste hoje na TV?Assisto novelas e tento achar algumfilme bom mais tarde nos canaisfechados. Às vezes tem alguma coisaque acrescenta. O importante datelevisão é acrescentar alguma coisaútil para a cabeça, para o coração, parao sentimento. Não pode ser inútil eencher o saco. E, às vezes, enche.

A senhora trabalharia na televisãonovamente? Não. O diretor do filme “APequena Órfã” me procurou e disse:“Vida, eu vou escrever, e estoupreparando um filme e quero que vocêfaça”, eu respondi: “eu estou com acabeça em outra coisa” e além do fatode estar sem treino. Eu sempre fizpapéis bons e fiz bem e agora eu voufazer papel ruim ou fazer mal? Nãoquero. Além disso, não tenho tempo,tenho a minha vida preenchida.

A senhora atuou em diversas áreas:escreveu, produziu e apresentouprogramas e novelas, atuou e cantou norário, TV e cinema, foi professora eempresária. Vida, ainda falta algo porviver? Falta. O Museu! (risos) Ah,Jesus! E falta outra coisa, que issomeu pai e minha mãe não me deram:aprender a ganhar dinheiro. Eu seimuito mais dar, criar, muito maisconstruir do que vender. Vender opróprio trabalho, a própria imagem éimportante e eu sei muito pouco.