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Monografia apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Bacharel em Direito
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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
DEPARTAMENTO DE DIREITO DO ESTADO
WELLINGTON BARBOSA NOGUEIRA JUNIOR
DO PLURALISMO JURÍDICO AO DIÁLOGO
TRANSCONSTITUCIONAL:
UMA PROPOSTA PARA A RELAÇÃO ENTRE ORDENS JURÍDICAS INDÍGENAS E ESTATAIS
NOS ESTADOS DA AMÉRICA LATINA
SÃO PAULO
2009
WELLINGTON BARBOSA NOGUEIRA JUNIOR
DO PLURALISMO JURÍDICO AO DIÁLOGO TRANSCONSTITUCIONAL:
UMA PROPOSTA PARA A RELAÇÃO ENTRE ORDENS JURÍDICAS INDÍGENAS E ESTATAIS NOS ESTADOS
DA AMÉRICA LATINA
Monografia apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Bacharel em Direito Departamento de Direito do Estado Orientador: Professor Associado Marcelo da Costa Pinto Neves
SÃO PAULO
2009
FOLHA DE APROVAÇÃO
Nome: Wellington Barbosa Nogueira Junior Título: Do Pluralismo Jurídico ao Diálogo Transconstitucional: Uma proposta para relação entre ordens jurídicas indígenas e estatais nos Estados da América Latina.
Monografia apresentada perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Bacharel em Direito Departamento de Direito do Estado
APROVADO EM: ___/___/_____
BANCA EXAMINADORA:
PROF. DR.:____________________________________________________
INSTITUIÇÃO:____________________________ASSINATURA:_____________
PROF. DR.:____________________________________________________
INSTITUIÇÃO:____________________________ASSINATURA:_____________
Nenhum ser humano é uma ilha... por isso não perguntem
por quem os sinos dobram. Eles dobram por cada um, por
cada uma, por toda a humanidade. Se grandes são as
trevas que se abatem sobre nossos espíritos, maiores
ainda são as nossas ânsias por luz. (...) As tragédias dão-
nos a dimensão da inumanidade de que somos capazes.
Mas também deixam vir à tona o verdadeiramente
humano que habita em nós, para além das diferenças de
raça, de ideologia e de religião. E esse humano em nós faz
com que juntos choremos, juntos nos enxuguemos as
lágrimas, juntos oremos, juntos busquemos a justiça,
juntos construamos a paz e juntos renunciemos à
vingança.
(LEONARDO BOFF)
Dedico este trabalho ao meu pai Wellington Barbosa
Nogueira, à minha mãe Maria Josefina Balthazar Nogueira
e à minha irmã Mariana Balthazar Nogueira, pelo
empenho, dedicação e apoio na realização deste meu
sonho de graduar-me na Academia de Direito do Largo de
São Francisco.
AGRADECIMENTOS
À Deus por ter-me dado a oportunidade de compartilhar a vida e os sentimentos
essencialmente humanos com as pessoas que estão à minha volta. Pessoas estas por quem
nutro respeito, carinho e enorme apreço.
Aos meus pais por seu amor incondicional e por serem o meu testemunho de ser
humano. Por serem o meu exemplo. A voz que ecoa na minha consciência nos momentos em
que é preciso tomar decisões. À minha irmã pela cumplicidade e ternura nos momentos em
que não é necessário nada mais que um simples abraço para encontrar a felicidade.
Ao grande Osvaldo, eterno parceiro de longas conversas e com quem aprendi
muito nesta faculdade. Obrigado pelas dicas, orientações e por ter aberto inúmeras portas
nesse início de vida acadêmica.
Ao meu Orientador Marcelo da Costa Pinto Neves que se colocou à disposição
para me ajudar na construção deste trabalho, ouvindo minhas dúvidas, cedendo-me
gentilmente o material de seu acervo pessoal para consultas que se mostraram fundamentais.
Confesso que quando solicitei a orientação do Sr. não imaginava que eu desenvolveria uma
afinidade intelectual tão grande por sua produção acadêmica. Foi uma grata surpresa quando
me dei conta de que em seu brilhantismo o Sr. conseguiu traduzir em palavras a maneira
como eu mesmo enxergo o Direito, mas que nem de longe eu seria capaz de descrever ou
explicar para alguém com tanta lucidez. Obrigado professor por ter esclarecido muitas
angústias e por te me ajudado a construir uma nova forma de enxergar o Direito.
Ao Fábio por todo o apoio, pelas conversas, pelos conselhos e por representar
muito bem o exemplo de amigo verdadeiro que você é.
À Vanessa que foi peça fundamental no desenvolvimento não só deste trabalho,
mas no meu desenvolvimento como pessoa. Sou eternamente grato pelo apoio, carinho,
compreensão e por tudo o que você me ensinou nesse momento tão especial da minha vida.
Por fim, aos meus companheiros de Arcadas, Claudio, Danilo, Daniel, Luís,
Gabriel, Victor, e William, por serem o motivo de eu acordar cedo e feliz todos os dias par ir
até a faculdade.e por terem feito eu reconstruir o significado da palavra amizade na minha
vida.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 8
1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS ............................................................................................ 10
1.1. O surgimento de uma epistemologia fundada na pluralidade ......................... 10
1.2. A sociedade como sistema complexo de comunicações e identificação do Direito como sistema autopoiético. .......................................................................................... 21
1.3. O desenvolvimento de uma modernidade periférica na América Latina: falta de autonomia funcional do Direito enquanto sistema social parcial, relações de sub-integração e identificação do pluralismo jurídico. ..................................................................................... 28
1.4. Por uma definição de Pluralismo Jurídico ...................................................... 34
2. UMA ANÁLISE DO CASO BOLIVIANO: A JURISDIÇÃO ESPECIAL INDÍGENA NO
NOVO DOCUMENTO POLÍTICO CONSTITUCIONAL ..................................................... 46
2.1. Estado de Direito “Plurinacional”: multiculturalismo e plurinacionalidade como base fundamental do Estado Boliviano .......................................................................... 49
2.2. Pluralismo Jurídico e a Jurisdição especial indígena ...................................... 54
2.2.1 As características do Direito Consuetudinário das comunidades indígenas
bolivianas. ................................................................................................................................. 59
2.2.2 O Tribunal Constitucional Plurinacional ...................................................... 65
3. PROPOSTA PARA A RELAÇÃO CONSTITUCIONAL ENTRE AS ORDENS
JURÍDICAS INDÍGENAS E O DIREITO ESTATAL NA AMÉRICA LATINA .................. 70
3.1. Por uma superação da epistemologia monista-sectária: Os conceitos de transculturalidade, razão transversal e transconstitucionalismo. .............................................. 72
3.1.1 Identificação da epistemologia monista e sectária. ...................................... 72
3.1.2 Transculturalidade, razão transversal e transconstitucionalismo.................. 80
3.2. O transconstitucionalismo entre ordens jurídicas presentes em um mesmo Estado. ...................................................................................................................................... 86
3.3. Uma proposta de método para a relação transconstitucional entre ordens jurídicas: O Tribunal Constitucional Plurinacional boliviano como protagonista do diálogo constitucional entre a ordem jurídica indígena e a ordem jurídica ordinária do Estado. ......... 88
CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 100
8
INTRODUÇÃO
O pluralismo jurídico tem despertado certo fascínio nos juristas pós-modernos, os
quais chegam inclusive a identificar no direito que se manifesta independentemente do Estado
um novo paradigma para a compreensão do fenômeno jurídico. O embate
monismo/pluralismo ganha cada vez mais adeptos no meio acadêmico, e com o
desenvolvimento de uma sociedade moderna que é a cada vez mais mundial e multicêntrica,
acompanhada do surgimento de ordens jurídicas complexas que transcendem os limites
territoriais dos Estados Nacionais, percebe-se a relevância de entender como funciona a
dinâmica de interação desse novo sistema jurídico que se estrutura colocando em xeque a
pretensão exclusivista do Estado em determinar os limites de aplicação do direito na
sociedade.
No presente trabalho pretende-se compreender a ocorrência do pluralismo
jurídico, no âmbito específico da América Latina, analisando-se as possibilidades e limites
deste fenômeno ante as condições peculiares que se operam as relações políticas, econômicas
e jurídicas na realidade deste continente. Alguns Estados latino-americanos, como a Bolívia e
a Colômbia, reconheceram recentemente em seus textos constitucionais o pluralismo jurídico
como base fundamental do Estado, e forneceram instrumentos para favorecer a criação de
jurisdições especiais referentes às populações indígenas, quebrando o monopólio Estatal de
exercício da jurisdição e fragmentando o sistema jurídico do país em duas ordens jurídicas
distintas que passaram a conviver sob um mesmo aparato burocrático.
O objetivo deste trabalho, portanto, é estudar essa relação entre as ordens jurídicas
inseridas no contexto do mesmo Estado Nacional. Deve-se partir da elaboração de um
conceito de pluralismo jurídico, ao analisar-se a possibilidade de desenvolvimento deste
fenômeno na América Latina. Utilizarei o novo texto constitucional aprovado na Bolívia
como pano de fundo para orientar a compreensão de como esta Estado pretende
instrumentalizar internamente a relação constitucional entre a ordem jurídica indígena e a
ordem jurídica estatal para evitar os potenciais conflitos que venham a surgir na dinâmica
social.
No primeiro capítulo fixarei os pressupostos teóricos da tese. O objetivo é realizar
uma delimitação semântica do que se entende por pluralismo jurídico. Em primeiro lugar,
buscarei situar o fenômeno do pluralismo jurídico no contexto que permitiu o seu
9
desenvolvimento, apontando o momento histórico em que acredito ter surgido uma
epistemologia jurídica preocupada com a pluralidade. Após, recorrerei à teoria dos sistemas
para tentar compreender como ocorre a fragmentação do sistema jurídico do Estado em duas
ordens jurídicas e se isso acarreta algum prejuízo ou benefício no exercício da função própria
do direito enquanto sistema diferenciado de comunicação que apreende a complexidade do
ambiente social por meio da aplicação do código binário lícito/ilícito.
No segundo capítulo me dedicarei a estudar os instrumentos apresentados pela
nova proposta de Estado presente na constituição boliviana aprovada por referendo popular
em fevereiro de 2009. Buscarei compreender como a nova constituição estruturou o
reconhecimento da ordem jurídica indígena e de como pretende operacionalizá-la juntamente
com a jurisdição ordinária do Estado.
No terceiro capítulo defendo uma superação da noção de pluralismo jurídico
como forma de relação entre as ordens jurídicas presentes nos Estados da América Latina, à
luz do conceito de transconstitucionalismo apresentado por Marcelo NEVES, que a meu ver,
mostra-se mais adequado para a compreensão da complexidade jurídica existente na
sociedade moderna hipercomplexa, principalmente no caso dos Estados latino-americanos que
possuem parcelas da população que comungam de valores absolutamente distintos, como é o
caso das comunidades indígenas compesinas e das comunidades que habitam os centros
urbanos de metrópoles como La Paz. Os referenciais axiológicos dessas comunidades são
completamente distintos em razão de serem antropologicamente diferentes. Por esse motivo a
mera constatação do pluralismo jurídico pelo texto constitucional pode não ser suficiente para
solucionar a tensão entre os inevitáveis conflitos que eventualmente sejam levados à
apreciação do Poder Judiciário.
10
1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
O estudo da relação entre ordens jurídicas distintas inseridas em um mesmo
espaço-tempo correspondente a um Estado Nacional pressupõe a fixação de certos pontos de
partida que servirão de referencial teórico ao longo de todo o trabalho.
Inicialmente, deve-se identificar o surgimento das perspectivas pluralistas para
propor uma delimitação semântica a respeito do que se entende por pluralismo jurídico, tendo
em vista a extensa bibliografia dedicada ao tema nas últimas décadas, principalmente no que
diz respeito aos desdobramentos deste fenômeno no âmbito da América Latina, avaliando-se
suas condições peculiares de existência e as possibilidades de sua concretização.
Para tanto, é necessário entender como surge na filosofia do direito mais recente
esta epistemologia fundada na pluralidade, a qual teve por conseqüência despertar no
pensamento dos juristas pós-modernos certo fascínio com relação ao direito que se manifesta
de maneira independente do direito “oficial” do Estado.
1.1. O surgimento de uma epistemologia fundada na pluralidade
A tradição filosófica que contribuiu para a formação do Estado Moderno, e que
continuou permeando o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, preceituou a
idéia de que o Estado deve deter o monopólio do uso da força, pois apenas assim a força
poderia ser usada de maneira racional.
Era preciso condicionar esse uso racional da força a critérios objetivos
previamente estabelecidos, evitando assim a imposição discricionária de uma vontade sobre a
outra e apartando o embate político das meras elucubrações metafísicas e das subjetivas
manifestações de fé e moral religiosa.
Assim, foi estabelecida a divisão entre o poder de uso propriamente dito da força
Estatal e o poder de estabelecer os critérios objetivos que o condicionavam para que a
utilização da força por meio do Estado fosse possível. Esses critérios deveriam ser postos em
prescrições normativas escritas, nas quais iria se fundar o próprio poder Estatal, e nas quais
estariam descritos os padrões de conduta desejados pela coletividade a serem observados
indistintamente por todos os indivíduos a ela pertencentes.
11
Esses padrões de conduta deveriam ser um conjunto institucionalizado de
prescrições de comportamento, capaz de garantir por meio da generalização congruente das
opiniões dos indivíduos um consenso suposto na sociedade de que a conduta correta é aquela
que busca adequar-se ao padrão estabelecido, diminuindo assim a inevitável contingência
originada pelas inúmeras possibilidades de ação e reação das pessoas no cotidiano da vida em
sociedade.
A sociedade é estruturada pela inter-relação entre as pessoas e essa relação admite
inúmeras possibilidades de desenrolar-se. Cada um dos indivíduos quando age em sociedade
nutre uma expectativa de como será o comportamento do outro, e o outro por sua vez nutre
uma expectativa de como será reação do primeiro à sua resposta. Todos, a todo o momento,
nutrem expectativas recíprocas de comportamento acerca de como se desenrolará o
comportamento de seu próximo. Estas expectativas podem ser confirmadas, mas não é raro
acontecer de serem frustradas na rotina da vida social.
Com a frustração recíproca de expectativas de comportamento é que surgem os
conflitos sociais. Nesse impasse entre qual das expectativas frustradas prevalecerá, é
necessário haver uma decisão. Para diminuir as situações de conflito, estabilizar as
expectativas sociais e garantir assim maior segurança e previsibilidade no relacionamento das
pessoas, é que se institucionalizam os padrões de conduta que servirão como base para a
decisão de qual expectativa social deve prevalecer em uma situação de conflito.
Deste modo, tem de haver uma garantia de que a decisão será mantida e
respeitada na sociedade, sob esse prisma surge o uso racional da força. O Estado desenvolve
um aparato coercitivo próprio e utiliza a sanção prevista nos padrões de conduta para
selecionar e coibir as condutas desviantes mediante a aplicação da sanção correlata,
promovendo assim a estabilização das relações sociais e impondo os padrões eleitos pela
sociedade.
Destarte, por meio de uma lógica de imputação-causalidade, duas são as
possibilidades de impor um padrão de conduta por meio da previsão de uma sanção: (i)
preventiva - pois a mera previsão de uma sanção coercitiva para o eventual desvio do padrão
de comportamento desejado pela coletividade faz com que certos indivíduos, ao observarem a
norma, tendam a comportar-se da maneira que evita a sanção, e (ii) repressiva – pois caso
alguém transgrida o padrão de conduta fixado, há a expectativa de que este indivíduo esteja
sujeito à aplicação da sanção pré-estabelecida por meio do uso da força concentrada no
aparato coercitivo do Estado.
12
É imprescindível, portanto, a criação de uma burocracia altamente especializada e
diferente dos outros campos de atuação Estatal para que, diante dos fatos trazidos ao seu
conhecimento, fosse iniciada uma ponderação independente capaz de avaliar se a conduta
suspeita transgredira de fato ou não o padrão de conduta pré-estabelecido pela coletividade,
avaliando necessidade de se atribuir ou não a sanção correlata para aquele caso concreto, o
que, em última análise, constitui em si o aval para que o Estado possa se valer da força a ele
delegada. Esta burocracia especializada convencionou-se chamar de Poder Judiciário.
Ao Poder Judiciário então é atribuído o poder único e exclusivo de dizer se
determinado fato transgrediu ou não os padrões de comportamento previamente estabelecidos
pela comunidade, e em caso positivo, atribuir a sanção correlata àquele fato transgressor,
abrindo a possibilidade de uso racional da força pelo Estado, contra determinado indivíduo da
sociedade. Este é o poder exclusivo de dizer o qual o Direito para o caso concreto (Jurisdição,
ou para os mais românticos: iurisdictio).
Todavia, este poder de dizer o Direito apresenta limites claros e bem definidos:
por ser um poder em tese atribuído pelo povo ao Estado, é um poder circunscrito ao âmbito
espacial em que aquele povo está inserido1. Se determinada comunidade decide alienar o uso
da força para um ente estruturado burocraticamente, tal poder só pode ser revertido e utilizado
para esta mesma comunidade, e não para outras comunidades, as quais eventualmente
alienaram seu respectivo poder a outro ente equivalente. Este ente burocratizado que tem a
pretensão de, em tese, representar o povo a que é correlato convencionou-se chamar de
Estado Nacional, e o âmbito espacial que o Estado Nacional reveste de território.
Assim, de maneira ainda rudimentar, pode-se concluir que cada povo,
objetivamente determinado por uma coletividade abstrata de indivíduos reunidos, aliena o uso
da força para seus respectivos Estados Nacionais, que por sua vez condicionaram o uso
racional da força ao julgamento prévio de adequação a padrões de conduta previamente
institucionalizados, criando o poder de dizer se o padrão de conduta foi ou não respeitado no
caso concreto. Este poder, assim como os demais poderes advindos do uso da força alienada
ao Estado Nacional, compõe uma verdadeira gama de poderes concentrados nas mãos do
Estado Nacional, que só dizem respeito àquela comunidade que os alienou, apenas podendo
ser utilizados no âmbito espacial que a comunidade está inserida. Todo esse conjunto de
1 Claro que existem hipóteses em que a Jurisdição extrapola os limites das fronteiras dos Estados nacionais como nos casos de Extraterritorialidade. Mas o objetivo desta passagem é meramente introdutório e não cabe neste momento pormenorizar o tema da extensão espacial da jurisdição Estatal.
13
poderes concentrados no Estado Nacional, cujo âmbito espacial é delimitado pelo território,
convencionou-se chamar de soberania.
Esses conceitos clássicos que foram trazidos de maneira elementar e sucinta
apenas a título de referência, pois não cabe nesta oportunidade estudá-los
pormenorizadamente, tais como: Estado Nacional, povo, território, soberania, e etc. são
considerados os elementos característicos que compõem o Estado Moderno, e foram
exaustivamente estudados pela Teoria Geral do Estado2.
Em que pese a importância do estudo dos conceitos clássicos, não há como negar
que a epistemologia acerca do Estado, e dos "elementos que o compõem", ganhou contornos
muito mais complexos à medida que sociedade foi se tornando também mais complexa, o que
fez com que o próprio Estado Moderno em si bem como todos os seus elementos passassem a
ser paulatinamente questionados.
Uma grande contribuição trazida pelo pensamento crítico em relação à
modernidade foi a identificação de uma forte pretensão universalizante das teorias e conceitos
utilizados para explicar os fenômenos que giram em torno do Estado Nacional. A
identificação de que existe uma grande pluralidade diferenciada que não se harmoniza com o
universalismo dos conceitos de "povo", "nação", "soberania", "território", "jurisdição",
contribuiu para o surgimento de uma epistemologia fundada nos “pluralismos”.
De fato, diante da enorme complexidade em que está inserida a sociedade
mundial, ou para nos valermos de um exemplo mais próximo, diante da grande complexidade
existente dentro de uma mesma comunidade correspondente, por exemplo, a uma grande
cidade como São Paulo ou La Paz, compostas pelos mais diferentes tipos de pessoas, as quais
por meio de interações cotidianas comunicam-se, e manifestam entre si as mais diferentes
formas de expectativas sociais, que por sua vez se confirmam ou se desiludem em um
conjunto absolutamente instável de relacionamentos de relações de expectativa3, como fazer
para abarcá-las sob a mesma alcunha de "povo", "nação" ou "Estado Democrático"?
Como incluir em uma mesma categoria hipotética pretensamente universalizante,
e que serve como pressuposto para existência e funcionamento dos mais diversos sistemas
sociais, toda essa infinidade de indivíduos diferentes, com idéias e expectativas absolutamente
distintas em relação ao restante da sociedade, relacionando-se entre si de maneira complexa
2 DALLARI, 2005, p.74 e ss. 3 FERRAZ JUNIOR, 2003, p.103.
14
pois as possibilidades de confirmação ou frustração que envolvem as expectativas sociais são
sempre maiores do que as possibilidades atualizáveis4 na seleção elaborada por cada um em
meio das mais diferentes situações da vida cotidiana, sem desconsiderar ou reduzir essa
complexidade, sem excluir certos segmentos da sociedade que não se harmonizam com as
generalizações ou que se encontram sub-integrados5 em relação ao sistema social, sem tornar
as categorias hipotéticas “povo”, “nação”, “Estado” e etc. vazias de sentido6?
O grande desafio do pensamento dos juristas na atualidade é fornecer uma
resposta a essas perguntas. Tal desafio deve ser encarado à altura, por meio de uma reflexão
séria acerca das conseqüências geradas pela pós-modernidade ao fenômeno jurídico,
principalmente no que diz respeito aos efeitos da globalização, do fortalecimento do sistema
econômico e do aumento da complexidade nas relações de comunicação ao redor do mundo.
No entanto, há sempre o enorme risco de se adotar uma posição intolerante diante
do desafio que a complexidade pós-moderna nos propõe com relação ao aumento das
possibilidades de confirmação e frustração das expectativas sociais. Há quem pretenda
simplesmente rejeitar a idéia de pluralidade, escolhendo apenas um conjunto específico de
expectativas dentre a enorme gama existente na sociedade – na maioria das vezes o conjunto
que se refere ao padrão de conduta eleito pela classe dominante - para vigorar como ultima
ratio de decisão, impondo-se este padrão de conduta aos desvios que frustrarem suas
expectativas padronizadas por meio de instrumentos de dominação social sobre os demais,
desrespeitando o diferente e excluindo os demais tipos de expectativas da possibilidade de
integração.
Este tipo de posição intolerante é antes de tudo uma forma de violência, que
oprime aqueles que não comungam dos mesmos valores existentes nos padrões de conduta
eleitos pela classe dominante. A adoção de tal posição representa um enorme retrocesso na
solução dos conflitos existentes na sociedade, pois desconsidera a diversidade e o dissenso
essenciais ao ambiente democrático. Não há como simplesmente ignorar a pluralidade
existente na sociedade moderna.
Antigamente, quando a sociedade era hierarquicamente estratificada e os papéis
sociais desenvolvidos pelos indivíduos eram rigidamente definidos, havia uma maior
facilidade em travar generalizações de comportamento e expectativas. A tarefa de reunir os
4 FERRAZ JUNIOR., 2003, p.103. 5 NEVES, 2003, p. 277 e ss. 6 No mesmo sentido: NEVES, 2008, p. 16
15
diferentes indivíduos e suas expectativas sociais em categorias hipotéticas universalizantes era
mais simples. Isso porque as próprias relações sociais não poderiam diferenciar-se das
expectativas que os indivíduos nutriam entre si. Daí a existência de um grande número de
rituais rigidamente estabelecidos para a consecução de determinados fins. Como exemplo,
tem-se a transmissão da propriedade de um bem no direito romano arcaico, que constituía um
ato absolutamente formal, no qual os indivíduos envolvidos deveriam repetir palavras
determinadas na presença de um grande número testemunhas, sob pena de na ausência desses
requisitos o ato não se convalescer.
Nas sociedades menos complexas quase não há diferença entre a relação que se dá
entre os indivíduos e as expectativas de cada um. De acordo com o que afirma o professor
Marcelo NEVES ao tratar do modelo de evolução social traçado pela teoria dos sistemas, nas
sociedades arcaicas as comunicações não se diferenciam das expectativas7.
Assim, os padrões de conduta rigidamente estabelecidos são seguidos de maneira
plena e repetitiva pelos indivíduos que compõem a sociedade. Os desvios aos padrões de
conduta eleitos nas comunidades arcaicas são considerados com estranheza e constituem
verdadeira afronta à comunidade como um todo. Nesse caso, é muito difícil que o
comportamento "diferente" dê início a um processo de mudança ou de evolução, no qual o
sistema social irá absorvê-lo e tratá-lo de maneira seletiva, pois o diferente simplesmente não
é admitido, sendo completamente rechaçado e utilizado doutrinariamente como contra-
exemplo para os demais indivíduos. Há pouco espaço para que o “diferente” interfira no
caminho linear das relações sociais, contribuindo para alguma mudança em sua estrutura, ou
para dar início a uma nova forma de comunicação social, o que faz com que a sociedade
apresente um baixo grau de complexidade.
Mesmo com o início do desenvolvimento do Estado Moderno, foi mantida uma
rígida estrutura hierárquica, delineada por uma forte moral religiosa que impedia a aceitação
dos comportamentos desviantes. Havia uma forte tendência moralizante que guiava as
relações sociais a certos padrões, e, com o intuito de fornecer maior segurança e
previsibilidade às relações entre os indivíduos, esses padrões passaram a ser previamente
estabelecidos e fixados normativamente de acordo com a vontade predominante, formando
uma rede de estruturas pouco dinâmicas para estabilizar os comportamentos dos indivíduos.
7 NEVES, 2008, p.7
16
Os padrões sociais passaram a ser fixados em normas escritas visando a garantir
uma maior institucionalização do consenso suposto em relação ao comportamento desejado
pela maioria da sociedade. Nesse momento a estrutura normativa passa a atuar de maneira
diferente em relação às expectativas sociais. A positivação dos valores da sociedade foi um
mecanismo encontrado para reduzir as contingências do comportamento ao garantir um maior
grau de confiança em relação às expectativas em jogo, garantindo maior estabilidade8.
Porém, as normas escritas não podem cristalizar um grupo determinado de
possibilidades de confirmação ou frustração de expectativas infinitamente, pois há um aspecto
dinâmico nas possibilidades selecionáveis pelos indivíduos com o passar do tempo. Daí se
conclui que há uma duração nas expectativas sociais. A estrutura normativa do positivismo
garantiu uma maior durabilidade das expectativas, que puderam ser diferenciadas em (i)
expectativas cognitivas, as quais podem ser classificadas como um grupo determinado de
expectativas sociais advindas da generalização do comportamento, mas que se adaptam mais
facilmente à dinâmica dos fatos, ou seja, se tem início uma paulatina frustração das
expectativas cognitivas generalizadas, estas se transformam, dando lugar a uma nova
generalização que se forma da observação empírica dos fatos repetitivos; e (ii) expectativas
normativas, que podem ser classificadas como um grupo de expectativas generalizadas do
comportamento que não se adapta facilmente aos fatos porque a possibilidade de frustração é
admitida como algo natural. A frustração da generalização das expectativas aqui não ocasiona
sua transformação, porque ela não advém de uma descrição do comportamento, mas sim da
inobservância de uma prescrição de como deveria ser o comportamento para que as relações
entre os indivíduos se estabilizem.
Muito embora com o surgimento das normas escritas se possa observar uma
diferença clara entre as relações de comunicação travadas pelos indivíduos e as expectativas
sociais, tanto cognitivas quanto normativas advindas dos padrões de conduta fixados, cumpre
ressaltar que ambas estavam permeadas por uma mesma moral religiosa rígida, o que fazia
com que os comportamentos em desacordo com os padrões positivados pelas normas fossem
encarados não apenas como dignos de um julgamento por seu caráter contra fático em relação
à norma, sendo portanto ilícitos, mas também dignos de um julgamento "exemplar" e
doutrinador, pois eram considerados comportamentos contrários à moral.
8 FERRAZ JUNIOR., 2003, p.103
17
A baixa diferenciação entre a conduta ilícita e a conduta imoral gerava um caráter
absolutizador das normas postas, uma vez que estas representavam a consolidação da defesa
dos valores essenciais daquela comunidade. Dessa forma, também havia pouco espaço para
que a assimilação do "diferente" fosse capaz de causar uma significativa modificação nas
relações sociais, muito menos na estrutura normativa. Os desvios aos padrões de conduta não
apresentavam grande relevância para impulsionar uma evolução no sistema jurídico, uma vez
que esses desvios não eram percebidos de maneira seletiva, pois as possibilidades de
frustração eram encaradas como uma negação à própria sociedade. O comportamento ilícito
era considerado também antijurídico, contrário ao direito e à moral.
Muitas foram as tentativas de tentar desvincular o direito da moral. A velha
polêmica direito positivo vs. direito natural que existe desde a antiguidade ganhou força com
as revoluções ocorridas no sec. XIX e a tentativa de laicizar o Estado. O positivismo jurídico
buscou demonstrar que não há necessidade de uma fundamentação moral para a ordem
jurídica, uma vez que as normas jurídicas fundam-se em si mesmas.
Afirmava KELSEN, que "o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser
a validade de uma outra norma"9 não havendo portanto, algo superior e imanente que
legitimasse o sistema por uma justificativa metafísica. O que legitima a norma é a sua norma
superior respectiva e assim por diante através da estrutura escalonada, até se chegar à norma
das normas, que trata da "confecção" de todas as outras normas, a Constituição. Esta última
por sua vez, serve de fundamento de validade para o todo o restante, uma vez que também se
funda em uma norma fundamental pressuposta que dá início e unidade a todo o sistema10.
Ao mesmo tempo em que as teorias a respeito do direito encontravam na norma
seu centro de gravidade, desvinculando-se paulatinamente da moral religiosa, as teorias acerca
do Estado e seus elementos seguiam a mesma orientação.
Inúmeros paradigmas sistêmicos foram surgindo para tentar explicar as relações
hierárquicas entre as normas e as estruturas burocraticamente organizadas que compunham o
Estado no Ocidente. Pode-se afirmar com convicção que o paradigma mais proeminente de
que se tem notícia é a pirâmide kelseniana.
Inobstante a contribuição da teoria pura de KELSEN para o conhecimento
científico e metodológico do Direito, não há como negar que ela foi absolutamente
9 KELSEN, 2003, p. 215. 10 KELSEN, 2003, p. 215.
18
superestimada e utilizada para justificar as mais diferentes formas de dominação política, indo
muito além das pretensões do próprio KELSEN. Como ele mesmo afirmou no prefácio que
escreveu à primeira edição da Teoria Pura do Direito11.:
“(...) os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou sociais-democratas consideram-na um posto avançado do fascismo. Do lado comunista é desclassificada como ideologia de um estadismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. (...) Em suma, não há qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito não se tenha tornado suspeita”
E KELSEN tinha razão. Deturparam a sua teoria da pureza, inclinando-a para
justificar qualquer tipo de anseio político. Muitos a utilizaram, poucos de fato a
compreenderam. A “pirâmide” se transformou em objeto de fetiche para alguns juristas da
primeira metade do século XX, que enxergavam nela a alegoria perfeita para explicar
qualquer questão de ordem teórica ou prática no campo do Direito.
Dentre as conseqüências ruinosas da supervalorização e da deturpação sofrida
pela teoria pura de KELSEN, ocupa posição de destaque a construção de uma epistemologia
fundada na unidade absoluta e inquestionável da ordem jurídica, na hierarquia rígida de
normas, no centralismo do direito Estatal, que não reconhece outras formas de manifestação
do fenômeno jurídico, rechaçando de necessariamente inferior, não oficial, inválido ou não
vinculativo tudo o que não está fundado na disposição escalonada de normas pertencentes ao
sistema jurídico exclusivo do Estado.
A soberania tem um valor bastante significativo na obra de KELSEN, sendo a
principal expressão da onipotência do Estado em relação à unidade estrutural de controle e
produção do Direito. Qualquer tentativa de flexibilizar as rígidas fronteiras entre as diferentes
ordens jurídicas significa em última instância, a necessária quebra da unidade e hegemonia
estatal, tendo em vista que cada Estado possui sua própria norma fundamental pressuposta,
que diz respeito única e exclusivamente àquela comunidade determinada territorialmente12.
Todavia, como explicitado acima, inobstante a teoria de KELSEN apresente-se
como grande marco do positivismo, colaborando para afastar o “ilícito” do “imoral”, ela não
tornou menos complicada a tarefa de reduzir a grande complexidade jurídica existente na
sociedade moderna. Pelo contrário. Se de um lado o paradigma da pirâmide kelseniana
possibilitou uma melhor compreensão do sistema jurídico, houve um exagero na pureza
11 KELSEN, 2003, p.XIII. 12 KELSEN, 2003, p. 239.
19
metodológica, condicionando o exame do fenômeno jurídico também a um rígido fechamento
cognitivo o que reduziu ainda mais a capacidade do Direito em apreender a complexidade
social.
A clausura auto-referencial do Direito, consubstanciada no conceito de pureza,
não vem acompanhada de uma abertura cognitiva que permita ao sistema jurídico questionar-
se e se modificar segundo seus próprios elementos e critérios. Além disso, a rigidez na
concepção da unidade estrutural dada pela norma fundamental se desdobra na preponderância
absoluta da jurisdição estatal, sendo esta a única reconhecida pelo Direito por uma questão de
soberania.
Tal entendimento limita a capacidade seletiva do sistema jurídico e causa
bloqueios destrutivos na relação entre Direito e sociedade. O sistema jurídico se vê incapaz de
absorver a complexidade social e passa a atuar conforme uma perspectiva limitada pela
unidade da jurisdição Estatal e a sociedade, por sua vez, não se vê contemplada pelas soluções
oferecidas pelo sistema jurídico, o qual considera insuficiente para a resolução dos conflitos e
para pacificação social.
A valorização da estrutura escalonada de normas em seu círculo fechado não
acompanha o dinamismo existente no surgimento de novas possibilidades de frustração e
confirmação das expectativas normativas, aumentando o nível de contingência e fazendo com
que aumente o grau de instabilidade entre as expectativas sociais não contempladas pela
ordem jurídica Estatal.
O radical fechamento auto-referencial do sistema jurídico tem de ser
acompanhado por uma abertura para absorção dos elementos e perturbações que se encontram
no ambiente, capaz de fazer com que os desvios aos padrões de conduta sejam considerados
não apenas como comportamentos que não observam a norma e que devem estar sujeito à
sanção, mas que também dêem ensejo a uma atuação seletiva do sistema jurídico, para que
este se aperfeiçoe, para que se multiplique e se modifique de acordo com a complexidade
presente na sociedade. Não há ainda no pensamento kelseniano possibilidade de abarcar no
mesmo sistema jurídico expectativas cognitivas e normativas diferentes daquelas eleitas como
padrão de conduta pela maioria (ou pela minoria detentora do poder de dominação) da
comunidade.
Todo esse conjunto de conceitos e valores que se formaram pós "Teoria Pura do
Direito”, cujos reflexos se observam, entre outros, na construção de uma semântica própria do
20
Direito, baseada na relação hierárquica: norma superior/norma inferior, na unidade da ordem
jurídica e na valorização da soberania, foram determinantes para a construção de um
pensamento que defende acima de tudo unidade do Direito estatal e que se mostra intolerante
com relação à pluralidade característica da hipercomplexidade da sociedade pós-moderna.
Em detrimento de buscar o respeito mútuo entre as diferentes formas de
manifestação do fenômeno jurídico na sociedade, a fim de reorganizar o sistema jurídico ante
o surgimento de novas manifestações de expectativas normativas desvinculadas do Direito
estatal, esta forma de pensamento prega a unidade e a superioridade de uma única ordem
jurídica soberana para um mesmo território, como se o sistema jurídico tivesse sempre de
rumar para uma ultima ratio, presente dentro da própria ordem jurídica do Estado, garantidora
da unidade e da validade das normas, sem a qual o próprio Direito não pode fazer sentido.
São estas idéias que fortalecem o desenvolvimento de categorias hipotéticas
universalizantes que desconsideram a complexidade social para tentar explicar os fenômenos
que giram em torno do Estado Nacional (Soberania, povo, nação). Justamente pelo fato de a
epistemologia estar envolvida por uma forte tendência de busca e valorização da unidade.
Porém, como já explicitado acima, há o risco enorme de este pensamento
centralizador em relação ao Estado e ao Direito dar início a uma posição de intolerância em
relação às possibilidades de frustração de expectativas sociais diversas daquelas generalizadas
nos padrões de conduta positivados, iniciando um processo de exclusão ou de sub-integração
dos grupos de indivíduos que não comungam dos mesmos valores cristalizados pela parcela
dominante da sociedade que controla as esferas de poder.
Para se opor a esta forma de pensamento surge no discurso da pós-modernidade
uma epistemologia que parte da complexidade social como um pressuposto, e, portanto,
valoriza a noção de pluralidade. No dizer de Paulo FREIRE13,
“há uma pluralidade nas relações do homem com o mundo, na medida em que responde à ampla variedade dos seus desafios. Em que não se esgota num tipo padronizado de resposta. A sua pluralidade não é só em face dos diferentes desafios que partem do seu contexto, mas em face se um mesmo desafio. No jogo constante de suas respostas, altera-se no próprio ato de responder. Organiza-se. Escolhe a melhor resposta. Testa-se. Age. (...) Nas relações que o homem estabelece com o mundo há, por isso mesmo, uma pluralidade na própria singularidade.”
É esta característica que faz a sociedade moderna ser altamente complexa: as
infinitas possibilidades de comportamento ou de resposta às expectativas sociais
13FREIRE, 2006, p. 48.
21
generalizadas, somadas às expectativas que o próprio indivíduo singularmente tem com
relação à sociedade. O fato de não existir um padrão de respostas cria um ambiente de
contingência, no qual o número de possibilidades de respostas às expectativas é muito maior
do as possibilidades atualizáveis ou apreensíveis pelo sistema social. Nesse contexto ganha
destaque a teoria dos sistemas, fundada na obra de Niklas LUHMANN. Partindo de uma noção
de sociedade enquanto sistema complexo de comunicações, esta teoria pode servir de base
para a identificação de diferentes funções do sistema social orientadas para tentar apreender o
máximo possível a complexidade.
1.2. A sociedade como sistema complexo de comunicações e identificação do
Direito como sistema autopoiético.
Com o surgimento de uma epistemologia fundada na pluralidade, que leva em
conta a complexidade crescente da sociedade pós-moderna, constata-se a ocorrência da
diferenciação funcional dos diversos sistemas sociais. A diferenciação funcional ocorre em
razão da grande pressão seletiva ocasionada pelo aumento da contingência em relação às
possibilidades de confirmação ou frustração de expectativas sociais. Para poder aumentar a
capacidade de atualização das possibilidades surgidas no ambiente e tentar aumentar sua
apreensão da complexidade, o sistema de comunicação social atua seletivamente dividindo-se
em diferentes sistemas parciais especializados e funcionalmente autônomos14.
A diferenciação funcional não deve se confundir com isolamento em relação ao
restante da sociedade, e pode ser melhor compreendida à luz da teoria dos sistemas
autopoiéticos. Os sistemas sociais se diferenciam ao fechar sua operacionalidade funcional e
adquirem autonomia com relação aos demais sistemas para aumentar seu poder de apreensão
da complexidade existente no ambiente. Todavia, mantêm sua unidade básica na
comunicação, que é a base elementar de todos os sistemas sociais15.
O elemento básico e fundamental de um sistema social é a comunicação, e não o
ser humano individualmente considerado. O ser humano por si só não é elemento de um
sistema social. O sistema social só existe a partir da constatação de uma rede comunicacional
entre indivíduos. Comunicação aqui deve ser entendida como a unidade de forma de
14 NEVES, 2008 p. 16 15 “A unidade básica dos sistemas sociais é a comunicação”, LUHMANN, 1988, p. 16.
22
expressão, informação e compreensão que constitui o sistema social por reproduzir
comunicação recursivamente16.
Diante disto, pode-se concluir que o sistema social é um sistema de comunicação
à medida que este se constitui por uma auto-reprodução circular e intersubjetiva dos próprios
comunicados. Ou seja, é um sistema composto por atos de comunicação que geram novos atos
de comunicação17.
Nesse sentido, o sistema social pode ser compreendido como um sistema
autopoiético. Segundo TEUBNER, um sistema autopoiético produz e reproduz seus próprios
elementos pela interação desses mesmos elementos18. A principal característica da autopoiese
é que os sistemas são capazes de criar não apenas a ordem própria, mas de criar seus próprios
elementos, constituindo-se em um sistema auto-referencial por meio de uma seqüência de
interação circular e fechada19.
O sistema social então constitui um sistema auto-referencial fechado em que os
elementos (atos de comunicação) são produzidos e reproduzidos pelos elementos contidos no
próprio sistema (atos de comunicação).
No sistema social geral relacionam-se os mais diferentes tipos de atos de
comunicação. Como ressaltado anteriormente, alguns se desenvolvem e diferenciam-se
funcionalmente em círculos comunicacionais específicos, atingindo elevado grau de
autonomia e complexidade. Tal aquisição de autonomia pressupõe o surgimento de um
código-diferença de comunicação que possibilite ao sistema parcial iniciar um círculo próprio
de auto-referência mediante a criação de seus atos de comunicação específicos, um código
binário próprio que guie a auto-reprodução sistêmica20. A partir do momento que esses
subsistemas desenvolvem um código-diferença próprio para guiar seu círculo comunicacional,
destacam-se do sistema social geral, autonomizando-se para formar sistemas autopoiéticos de
segundo grau21. É o caso, por exemplo, da Política e da Economia, que possuem um circuito
de comunicação diferenciado e autônomo em relação ao sistema social geral, guiado pelo
código binário específico do sistema político (poder/não poder) e do sistema econômico
(ter/não ter), respectivamente.
16 LUHMANN, 1988, p. 17 17 TEBNER, 1989, p. 139. 18 TEBNER, 1989, p. 43. 19 TEBNER, 1989, p.XI 20 NEVES, 2007, p. 134 21 TEBNER, 1989, p. 139.
23
O sistema jurídico não foge a essa regra. Segundo afirma LUHMANN, o Direito,
enquanto um sistema social diferenciado funcionalmente existe apenas como comunicação22.
O sistema jurídico se diferencia mediante sua clausura operacional, formando um sistema
autopoiético de segundo grau por meio do surgimento de um código binário próprio
(lícito/ilícito). Esse código é que proporciona a autonomia do sistema jurídico em relação aos
demais sistemas sociais, pois permite a auto-reprodução dos elementos básicos (atos de
comunicação especificamente jurídicos) de acordo com uma rede circular e fechada que se
opera mediante a aplicação do código binário próprio.
A diferenciação do Direito pode então ser entendida como o controle exclusivo da
aplicação do código “lícito/ilícito” por um sistema funcional especializado que se auto-
reproduz circularmente com base nesse mesmo código23. Ou seja, o sistema jurídico é
constituído por uma rede comunicativa fechada de elementos (atos de comunicação) que se
auto-qualificam como jurídicos ou não jurídicos mediante a incessante aplicação de seu
código-diferença (lícito/ilícito). Assim sendo, é a auto-reprodução dos atos jurídicos que
define o que é ou não jurídico, formando assim um círculo autônomo que diferencia o que é
ou não jurídico na sociedade.
Circularidade sugere fechamento. Parece então que a autopoiese é uma teoria de
auto-suficiência do Direito em relação ao resto do mundo, propondo um fechamento
comunicativo do direito (ou seja, o sistema jurídico comunica apenas acerca de si mesmo24)
indo na contramão de todo o pensamento moderno de que as ordens jurídicas devem ser
abertas ao ambiente para poder absorver sua complexidade. Porém, Teubner afirma que esse
fechamento circular é uma “meia verdade”. Para ele, paradoxalmente, o fechamento radical
do sistema, sob certas circunstâncias, implica sua radical abertura25.
Esse é o grande paradoxo da teoria da autopoiese. Segundo se afirma, os sistemas
autopoiéticos se auto-reproduzem em uma clausura radical, porém esta clausura não significa
uma auto-suficiência em relação ao restante dos outros sistemas sociais. O sistema
autopoiético não é um sistema autocrático, mas sim um sistema autônomo que absorve as
perturbações do ambiente segundo seus próprios elementos e critérios. Ao absorver estas
perturbações por meio dos elementos que produz, o sistema é capaz de realizar sua auto-
referência independente da influência externa. Nesse sentido, pode-se concluir que a clausura
22 LUHMANN, 1988, p. 17 23 NEVES, 2007, p.135 24 TEBNER, 1989, p. XXII 25 TEBNER, 1989, p 141.
24
do sistema é o que possibilita a interação com o ambiente, respeitando a autonomia interior. O
fechamento então é a condição fundamental de abertura para o ambiente.
É isso que possibilita ao sistema autopoiético que não seja determinado
diretamente pelas influências externas do ambiente ou de outros sistemas sociais parciais. Sua
clausura operacional permite que ele absorva o ambiente de uma forma autônoma, segundo
seu critério próprio de diferenciação, garantindo assim sua autonomia em relação às
influências externas.
No caso do sistema jurídico a compreensão do paradoxo entre fechamento
operacional como possibilidade de abertura para o ambiente fica mais clara à medida que se
distinguem na sociedade as expectativas normativas das expectativas cognitivas26. Isso só é
possível após a institucionalização de padrões de conduta por meio de normas escritas,
fazendo com que os padrões de expectativas generalizadas na sociedade se tornassem mais
duráveis com relação às possibilidades de frustração.
Para compreender melhor a diferença entre expectativas cognitivas e normativas,
tomemos o exemplo utilizado pelo professor Tércio Sampaio FERRAZ JR.27 ao comparar as leis
científicas com as normas jurídicas. No campo da ciência, há uma lei que diz que os objetos
tendem a se dilatar com o aumento do calor. Há uma expectativa generalizada que todos os
objetos submetidos a uma alta temperatura se dilatem. Porém, se algum dia for descoberto um
metal que mesmo submetido a altas temperaturas passe a se comprimir, esta lei da dilatação
será questionada e não corresponderá mais à verdade científica, devendo ser substituída por
outra. A quebra da expectativa generalizada faz com que a permanência daquela lei científica
se torne insuportável. Isso não ocorre com as normas jurídicas. Há uma norma que proíbe o
homicídio, imputando uma pena para quem o cometer. Porém, tal norma não impede que
homicídios ocorram, e o fato de ser frustrada a expectativa generalizada de que as pessoas não
matem umas às outras não faz com que a norma jurídica que veda o homicídio tenha de ser
substituída por outra. A quebra da expectativa generalizada não faz com que a vedação ao
homicídio seja questionada, pois a expectativa de que as pessoas não matem umas às outras se
mantém, apesar de vez ou outra ocorrerem frustrações.
Esta é a diferença entre expectativas cognitivas e normativas. Ambas são geradas
por uma generalização de determinado comportamento, porém as expectativas cognitivas se
26 LUHMANN, 1988, p. 19. 27 FERRAZ JUNIOR., 2003, p.104.
25
adaptam mais facilmente às mudanças surgidas no ambiente e seu objetivo é descrever
tendências de comportamento mediante observação da causalidade, enquanto que as
expectativas normativas não precisam se modificar quando ocorrem reiteradas frustrações,
admitindo-as como um fato, e seu objetivo é prescrever tendências de comportamento
mediante imputação de um dever-ser às condutas dos indivíduos, visando a evitar a ocorrência
do comportamento indesejado.
O sistema jurídico usa essa diferença entre expectativas cognitivas e normativas
para combinar o fechamento operacional com a abertura para as relações ocorridas no
ambiente. De acordo com o que afirma LUHMANN, isso faz com que o Direito seja um sistema
normativamente fechado, mas cognitivamente aberto28.
Apenas o sistema jurídico pode atribuir a qualidade de normas jurídicas a certos
atos de comunicação existentes em seu interior mediante a aplicação do código binário
próprio, criando atos de comunicação jurídicos por meio de outros atos de comunicação
jurídicos. Nesse sentido ele é normativamente fechado. Porém, o sistema jurídico precisa
coordenar-se com o ambiente, absorvê-lo de acordo com seus elementos para poder distinguir
o que é lícito do que é ilícito, razão pela qual é, de maneira simultânea, cognitivamente aberto
ao ambiente.
É desta maneira que o direito enquanto sistema autopoiético é capaz de absorver a
enorme complexidade do ambiente. Por meio de uma abertura cognitiva, se mantém atento às
modificações e às novas perturbações advindas do ambiente ao mesmo tempo em que mantém
sua autonomia produtiva e funcional com base em seu círculo comunicacional fechado por
meio da aplicação do código binário de descrição (lícito/ilícito). Isso faz com que o direito
não seja diretamente influenciado pelo ambiente, mas que tenha a capacidade de filtrar as
inevitáveis influências por meio de seus próprios critérios e elementos.
No caso do sistema jurídico, é a clausura operacional que permite a definição
autônoma do que é lícito ou ilícito independente da influência direta de critérios ou elementos
pertencentes a outros sistemas parciais como a Política ou a Economia. Mediante a clausura
operacional o Direito pode reproduzir-se exclusivamente com base em seu código binário
próprio, sem ser influenciado pelos códigos-diferença comunicacionais pertencentes a outros
sistemas, como o código econômico “ter/não ter”. Não se pretende aqui defender a idéia
utópica de que o sistema jurídico não é influenciado pelos interesses econômicos ou por
28 LUHMANN, 1988, p. 20.
26
critérios políticos. O que se defende é a capacidade do sistema jurídico em “filtrar” esses
eventos de maneira autônoma mediante a aplicação de seu código-diferença próprio. Trata-se
de uma capacidade de aprendizagem do sistema jurídico com relação aos eventos do ambiente
mediante uma absorção seletiva e não imediata das perturbações29.
Para tanto, LUHMANN desenvolveu o conceito de acoplamento estrutural. O
acoplamento serve para lidar com as influências recíprocas entre os diferentes sistemas
parciais de comunicação, permitindo que essas influências se dêem de maneira duradoura sem
interferir no processo de filtragem, proporcionando uma liga entre as estruturas sistêmicas
sem que cada sistema parcial perca sua autonomia30. Para utilizar um exemplo da biologia, o
acoplamento estrutural atua como uma membrana celular permeável que permite a troca
seletiva de certos elementos entre uma célula e outra, sem descaracterizar o funcionamento
autônomo de cada uma das células.
Trazendo esta noção para os sistemas sociais, os acoplamentos estruturais então
constituem “mecanismos de interpenetrações concentradas e duradouras entre sistemas
sociais” 31. A título de exemplo, pode-se citar a Constituição dos Estados Modernos como
tentativa de acoplamento estrutural entre o sistema político e o sistema jurídico.
Porém, não há como negar que as interferências proporcionadas pelo ambiente
complexo e pelos demais sistemas parciais ocorrem em uma velocidade muito maior do que a
capacidade seletiva de filtragem interna do sistema jurídico.
O desequilíbrio, à primeira vista, pode ser considerado como natural, pois
consistiria na condição própria para a constante evolução do sistema jurídico em busca de
oferecer as melhores soluções para os conflitos sociais. Mas, na maioria dos casos é possível
notar que o desequilíbrio é causado pela influência de fatores externos ao sistema jurídico,
sem que seja possível a filtragem necessária à sua condição de autopoiese. Essas
interferências ocorrem em razão de problemas estruturais existentes na relação entre os mais
diversos sistemas sociais parciais, fazendo com que os elementos não sejam adequadamente
selecionados de maneira autônoma pelo sistema jurídico e acabem por limitar sua abertura
cognitiva, tendo como conseqüência o fato de que a clausura operacional permaneça repetindo
uma auto-referência normativa que não condiz com os anseios do ambiente.
29 NEVES, 2007, p. 136. 30 NEVES, 2009, p.31. 31 NEVES, 2009, p. 33
27
Assim, ocorre uma crise de hetero-referência cognitiva do sistema jurídico, que
prejudica a manutenção de sua auto-referência normativa, trazendo conseqüências nocivas
para o modo como se coordenam sistema e ambiente, ou nesse particular, Direito e sociedade.
A crise de hetero-referência cognitiva do sistema jurídico se dá quando ocorre a
interferência indiscriminada de fatores pertencentes a outros sistemas parciais por falhas na
estrutura de relacionamento destes com o Direito. Há uma falha na construção do
acoplamento estrutural, descaracterizando o controle de sua “permeabilidade”. É o caso de
interesses econômicos e relações de dominação política influenciando diretamente na
aplicação do código binário “lícito/ilícito”.
Tal distorção estrutural faz com que certos valores políticos e econômicos, os
quais não deveriam estar presentes na reprodução autônoma do sistema jurídico, passem a ser
determinantes na aplicação do código-diferença “lícito/ilícito”, fazendo com que o controle
acerca do que é jurídico ou não na sociedade deixe de ser exercido exclusivamente pelo
Direito. A partir do momento que o controle do código “lícito/ilícito” deixa de ser uma
exclusividade do sistema jurídico, passando a sofrer influência direta dos códigos “ter/não
ter”, “rico/pobre”, “dominador/dominado”, ‘poder /não poder”, o direito deixa de ser
concebido como sistema autopoiético, e sua clausura normativa operacional deixa de
corresponder às necessidades do ambiente. Agora, o fechamento operacional já não é
condição para abertura cognitiva, pois não há mais hetero-referência cognitiva no Direito, mas
a clausura normativa passa a ser a condição para o desenvolvimento da aplicação dos valores
pertencentes a outros sistemas sociais. Para esse fenômeno, Marcelo Neves deu o nome de
“alopoiese do direito” 32
Ou seja, o fechamento normativo do sistema jurídico em torno da aplicação do
código binário “lícito/ilícito” deixa de ser uma auto-referência do próprio Direito para passar
a ser um instrumento de aplicação de interesses econômicos ou de critérios de dominação
política, mediante a cristalização de expectativas normativas em torno de valores próprios que
não correspondem ao sistema jurídico. Há uma sobreposição de outros códigos de
comunicação, em especial do econômico (ter/não ter) e do político (poder/não-poder), sobre o
código “lícito/ilícito”33.
32 Para uma compreensão mais aprofundada do o conceito de alopoiese, ver NEVES, 2007, p.140-148. 33 NEVES, 2007, p.146
28
Este quadro de corrupção sistêmica prejudica a identificação do Direito estatal,
territorialmente determinado, como sistema funcional diferenciado e autônomo ocasionando
enorme descrédito na sociedade que não se vê contemplada pelas soluções oferecidas pelo
Direito. Destarte, se já havia uma dificuldade natural de apreensão da complexidade social por
meio de um sistema jurídico único para fornecer a pacificação dos conflitos sociais,
doravante, com a perda da condição de abertura cognitiva esta tarefa fica ainda mais difícil.
Em certos casos, como nos Estados da América Latina, o que se vê é uma
constante corrupção sistêmica no nível estrutural que impede a autonomia operacional do
Direito estatal, caracterizando-o pela influência direta de elementos externos, impedindo o
desenvolvimento do acoplamento estrutural com os demais sistemas sociais parciais. Como
será abordado no próximo tópico, isso se deve ao desenvolvimento específico da modernidade
nesse continente, em que se desenvolveu uma expectativa generalizada de que os sistemas
corrompidos não são capazes de reagir aos episódios de corrupção34.
1.3. O desenvolvimento de uma modernidade periférica na América Latina:
falta de autonomia funcional do Direito enquanto sistema social parcial, relações de sub-
integração e identificação do pluralismo jurídico.
De fato, o modelo apresentado por LUHMANN de identificação do Direito como
sistema autopoiético apresenta fortes limitações do ponto de vista empírico. É muito difícil
encontrar uma comunidade em que os interesses econômicos e a dominação política não
interfiram diretamente na aplicação do código binário “lícito/ilícito”.
Isso se justifica em razão da própria evolução histórica da formação do Estado
Moderno, pois o Direito tradicionalmente sempre serviu aos interesses de um grupo
dominante política ou economicamente. Mesmo com o surgimento da constitucionalização e a
tentativa de realizar um acoplamento estrutural entre o sistema político e o sistema
econômico, na imensa maioria das comunidades do mundo o sistema jurídico não conseguiu
diferenciar-se funcionalmente a ponto de ser capaz de controlar seu próprio código-diferença
de comunicação sem a influência direta de elementos externos.
34
NEVES, 2009, p. 38.
29
A abertura cognitiva do sistema jurídico sempre foi limitada pela interferência de
critérios políticos, interesses econômicos, condicionamentos de moral religiosa,
relacionamentos familiares, relacionamentos de amizade e etc. Nesse aspecto, pode-se dizer
que no sistema jurídico a “alopoiese” é a regra, e autopoiese a exceção.
No âmbito da América Latina, que apresenta interesse especial a este trabalho,
identifica-se claramente o desenvolvimento alopoiético do Direito em razão das
peculiaridades do desenvolvimento de seus sistemas parciais de maneira não-diferenciada.
Neste continente em específico, a dominação política e os interesses econômicos de uma
classe tradicionalmente dominante, herdeira das relações de dominação do sistema colonial
europeu, bem como a influência dos interesses econômicos não determinados territorialmente
do período da globalização, foram determinantes para que o sistema jurídico apresentasse
grande limitação de sua hetero-referência cognitiva.
Em razão disso, há uma enorme dificuldade de apreensão da complexidade social
por meio do sistema jurídico e uma falta de identificação generalizada da grande maioria da
sociedade que não se sente contemplada pelos elementos presentes nos sistemas parciais de
comunicação. A institucionalização do sistema político e jurídico unificados territorialmente
prescindiu de um ambiente democrático em que se compatibilizassem as diferentes
perspectivas políticas, realidades econômicas e diferentes manifestações do fenômeno
jurídico. Não houve uma busca pelo consenso em um ambiente de dissenso democrático,
tendo se operado de maneira intolerante a imposição de um “consenso suposto” baseado em
padrões de conduta próprios dos valores das classes dominantes, não correspondentes às reais
expectativas cognitivas e normativas da comunidade. Os sistemas sociais de comunicação
institucionalizaram-se por argumentos de autoridade impostos mediante dominação e
opressão das demais parcelas da população que não participaram da construção das relações
de comunicação.
Na realidade da América Latina não cabe falar em generalização congruente de
expectativas normativas, mas sim em institucionalização imposta de um consenso baseado
nos valores e nos padrões de conduta eleitos por uma classe dominante por meio de relações
de opressão.
Este consenso imposto por uma parcela privilegiada da população representa mais
um desdobramento da modernidade periférica: as relações de “sub-integração” e “sobre-
30
interação” sistêmicas35. Os sub-integrados em regra não têm acesso aos benefícios da ordem
jurídica. Existem inúmeras barreiras que os separam do exercício pleno de seus direitos como
a morosidade e os altos custos do processo e a falta de aparelhamento das defensorias
públicas36. Todavia, ainda que faltem condições para exercerem seus direitos, estes sub-
cidadãos não estão completamente excluídos, pois “não estão livres dos deveres e
responsabilidades impostas pelo aparelho coercitivo estatal, submetendo-se radicalmente a
suas estruturas punitivas37”. Para essa parcela da população, que representa a maioria, as
garantias constitucionais são absolutamente ineficazes e o aparato estatal só aparece para
cobrar-lhes coativamente, em momentos específicos, a adequação a uma cidadania da qual
eles não compartilham.
Por outro lado, os sobre-integrados constituem uma parcela minoritária mas
privilegiada da população que tem livre-acesso ao aparato burocrático do Estado e geralmente
não se submetem às estruturas coercitivas. Segundo Marcelo NEVES “a garantia da
impunidade é um dos traços característicos da sobre-cidadania”. Estes sobre-cidadãos se
valem das garantias constitucionais como instrumento para atingir seus interesses particulares
e utilizam os direitos fundamentais e os princípios como retórica em seu discurso de
dominação. O enorme número de demandas judiciais propostas por esta parcela da população
infla os cartórios e secretarias judiciais, tornando o sistema judiciário lento e diminuindo o
espaço de litigância da parcela marginalizada da população.
Em linhas gerais, esse quadro demonstra as peculiaridades da modernidade no
continente sul-americano, que permite caracterizá-la como “modernidade periférica” ou
“modernidade negativa38”: A falta de autonomia-identidade de seus sistemas sociais parciais,
a sobreposição indiscriminada de códigos-diferença que impedem uma adequada absorção da
realidade e as relações de sub-integração e sobre-integração de certas parcelas da população,
dão origem a uma complexidade absolutamente desestruturada. Isso potencializa a alopoiese
do sistema jurídico e proporciona segundo Marcelo Neves, um “inbricamento bloqueante e
destrutivo” do código jurídico com os demais códigos sociais39. Este quadro ocasiona não
apenas uma crise hetero-referencial cognitiva, mas também torna insuficiente a clausura
operacional interna do sistema jurídico, que deixa de ser normativamente fechado, fazendo
35 NEVES, 2003, p. 277 36 SOUSA SANTOS, 2007, p. 45 e ss. 37 NEVES, 2003, p. 278 38 Sobre o sentido de modernidade periférica ou negativa, ver NEVES, 2003, p. 266. 39 NEVES, 2003, p. 273.
31
com que haja uma não-diferenciação adequada do Direito que permanece sem uma identidade
definida.
Os acoplamentos estruturais não conseguem cumprir seu papel, pois não há
seletividade na interferência inter-sistêmica. Muito embora os acoplamentos estruturais
estejam textualmente positivados, como no caso dos documentos políticos constitucionais, o
teor dessas normas não se efetiva na prática. O discurso presente no texto constitucional
(autonomia dos poderes, liberdade, igualdade, acesso à justiça e etc.) não se concretiza no seio
das relações sociais e passa a fazer parte de uma retórica vazia de sentido e com uma função
meramente simbólica, pois o que se observa na realidade é interferência indiscriminada de
interesses econômicos e políticos a determinar uma “aloprodução” do sistema jurídico.
A esta falta de autonomia-identidade interna do sistema jurídico, que prejudica
sua clausura operacional enquanto sistema normativamente fechado limitando sua condição
de abertura para o ambiente, adiciona-se a crise de identificação generalizada da sociedade
para com o Direito, tendo em vista que esta não acredita que a corrupção estrutural advinda da
ineficácia seletiva dos acoplamentos estruturais possa ser superada e também não se vê
contemplada pelas soluções apresentadas para a resolução dos conflitos sociais.
A parcela sub-integrada da sociedade, que não comunga dos valores presentes no
consenso imposto opressivamente pelos padrões de conduta fixados pela classe dominante,
não vê sentido nas normas jurídicas institucionalizadas pelo Estado. Em primeiro lugar
porque do ponto de vista semântico há uma nítida hipossuficiência técnica que torna o
discurso especializado dos profissionais do Direito absolutamente ininteligível para a grande
maioria da população40; e em segundo lugar, porque do ponto de vista pragmático os atos de
comunicação próprios do sistema jurídico não correspondem às expectativas normativas
generalizadas da comunidade sub-integrada, sendo portanto, em sua maioria, um aglomerado
de textos legislativos vazios de sentido cuja aplicação não cumpre a função de estabilização
das expectativas em conflito para solução dos litígios.
Segundo o professor Tércio Sampaio FERRAZ JR., há dois níveis de comunicação
humana: o cometimento e o relato41. O relato é a mensagem que emanamos e o cometimento é
a mensagem que emana de nós. O cometimento é uma mensagem simultânea que corresponde
à diferença existente entre o emissor e o receptor do comunicado. Por exemplo, se alguém diz
40 SOUSA SANTOS, 2007, p.55 e 56. 41 FERRAZ JUNIOR., 2003, p.106
32
“faça silêncio” todos são capazes de compreender que o relato da mensagem é silenciar-se.
Porém, há uma diferença significativa se quem emana essa mensagem é, por exemplo, um
colega de turma ou o professor que ministra a aula. No caso da comunicação normativa, o
cometimento é a relação hierárquica existente entre a autoridade que emana a norma e o
sujeito a que ela se destina.
Ainda na esteira do pensamento do professor Tércio Sampaio de Ferraz Jr., a
relação comunicacional de cometimento (que se opera segundo a diferença autoridade/sujeito)
pode ser encarada pelos receptores da mensagem de três maneiras: (i) ela pode ser
confirmada; (ii) pode ser negada; (iii) ou pode ser desconfirmada. A relação é confirmada
quando a autoridade impõe a prescrição normativa e todos acatam sem protestos. A relação é
negada, quando muito embora reconhecida a posição da autoridade, os receptores não
identificam sentido para submeterem-se, e o fazem apenas por temor a eventuais represálias e
a relação é desconfirmada quando a autoridade é absolutamente ignorada e os receptores não
reconhecem sua legitimidade comportando-se da maneira diametralmente oposta à
normativamente estabelecida.
No caso do sistema jurídico dos países da América Latina, a crise de referência
cognitiva faz com que os indivíduos sub-integrados deixem de enxergar uma relação de
sentido nas normas porque há um abalo na construção da relação de comunicação normativa
(cometimento/relato). Os relatos das normas são passados aos receptores, que por sua vez não
se identificam com eles porque não participaram de sua construção (haja vista que os atos de
comunicação jurídicos não surgiram de expectativas normativas generalizadas, mas da
imposição repressiva de um consenso suposto baseado nos valores de uma classe dominante,
prescindido de um ambiente democrático). Além disso, apesar de reconhecerem a autoridade
existente na esfera comunicacional de cometimento, rejeitam-na, porque não vêem sentido
para submeter-se. Submetem-se, contudo, para evitar serem atingidos pelo aparato coercitivo
do Estado.
A relação não é mais autoridade/sujeito, mas autoridade/objeto. Os indivíduos da
sociedade não se sentem sujeitos da relação de comunicação normativa, mas meros objetos,
atuando como repositório em que se depositam os enunciados de permitir, proibir e obrigar.
Não são sujeitos porque não se sentem parte, porque não enxergam sua contribuição na
formação do consenso que institucionaliza as normas, porque não participam da construção
dos elementos que compõem o sistema jurídico. Por esse motivo, não vêem sentido em se
33
sujeitar a uma ordem na qual não enxergam legitimidade, com a qual não se identificam e
nem se sentem contemplados pelas soluções por ela propostas.
A autoridade do direito estatal permanece reconhecida em razão do temor à
atuação coercitiva do Estado que se direciona de maneira especial à parcela sub-integrada da
população, mas é cotidianamente negada por esta no seio das relações sociais. Isso é algo
nocivo pois há uma enorme insegurança nos conflitos e a estabilização das expectativas
acontece apenas de maneira aparente. O Direito não cumpre sua função de maneira adequada
e muitas vezes obriga os indivíduos pertencentes à comunidade a buscar a solução de seus
conflitos por meios não-oficiais, ou seja, não pertencentes ao aparato burocrático Estatal.
Surgem então, nas lacunas não preenchidas pela ausência do Direito estatal, outras
esferas de juridicidade que pretendem assumir um controle parcial do código binário
lícito/ilícito com base em uma relação de autoridade difusa no meio social. Não há
propriamente uma diferenciação funcional, mas o surgimento de códigos jurídicos misturados
a outros códigos sociais, sem autonomia referencial clara e com uma hetero-referência
cognitiva relativa a certos grupos específicos da sociedade. A autoridade difusa, com base em
padrões de conduta pertencentes a um grupo determinado, institucionaliza estes padrões por
meio da produção de atos de comunicação jurídicos criados da generalização concentrada das
expectativas normativas correspondentes a esse grupo respectivo.
Há quem pretenda identificar neste fenômeno uma manifestação de pluralismo
jurídico. No caso da América Latina, surgem, por exemplo, as expressões “jurisdição especial
indígena” para se referir ao direito consuetudinário dos povos originários anteriores à
colonização européia do continente, que se diferencia do direito estatal formando uma ordem
jurídica própria desta parcela sub-integrada da população; “lei do asfalto” para se referir ao
quase-direito das favelas ou subúrbios brasileiros, em que uma autoridade difusa formada por
líderes comunitários ou por líderes de organizações criminosas estruturadas pela prática do
tráfico de entorpecentes, que, mediante a imposição do poder econômico gerado pelos lucros
do comércio ilegal e do poder coercitivo de seu forte aparato bélico, desenvolvem uma
autoridade repressiva que passa a ditar certos padrões de conduta no seio da comunidade.
Por outro lado, há quem defenda que não há como se referir a estes fenômenos
como pluralismo jurídico no sentido pós-moderno, tendo em vista que a falta de
autonomia/identidade do sistema jurídico e dos demais códigos de comunicação na
modernidade periférica formam uma super-complexidade desestruturada, uma mistura de
esferas de comunicação jurídicas e sociais geradoras de insegurança e que não cumprem a
34
função do Direito por não fornecerem estabilização de expectativas. Assim sendo,ao invés de
pluralismo jurídico o mais correto seria fazer menção a uma mistura de códigos, uma
miscelânea não apenas jurídica, mas social42.
Para seguir adiante nesta discussão será preciso identificar o que se entende por
pluralismo jurídico no sentido pós-moderno, propondo uma delimitação semântica adequada
com objetivo de responder se o surgimento de esferas de juridicidade não-estatais como
regra, representa uma complexidade desestruturada, ou uma alternativa para a busca de
estabilização de expectativas em meio ao ambiente de sub-integração sistêmica existente na
modernidade periférica da América Latina.
1.4. Por uma definição de Pluralismo Jurídico
Inúmeras são as teorias acerca da origem do Pluralismo Jurídico. Alguns autores,
como GRIFFITHS, partem da distinção entre o que ele chamou de “legal centralism” e “legal
pluralism43
”. Esse autor assume uma posição radical baseada em constatações empíricas,
advindas de seus estudos antropológico-jurídicos, ao afirmar enfaticamente que “legal
pluralism is the fact. Legal centralism is a myth, an ideal, a claim, an illusion”44.
Griffiths afirma que a provável origem do fenômeno se deu com a expansão
colonizadora européia, que ao invadir os territórios não-europeus, impôs aos agrupamentos
sociais colonizados a autoridade de estruturas institucionalizadas na Metrópole. Tais
estruturas, por terem sido impostas por uma dominação estrangeira, encontraram forte
resistência, passando a conviver com as estruturas consuetudinárias dos povos colonizados.
Essa convivência conflituosa entre diferentes formas de estrutura e autoridade originaram uma
esfera jurídica plural.
Acompanhando este pensamento, Sally Engle MERRY45 afirma que o termo
"Pluralismo Jurídico" surgiu no início do séc. XX, de estudos que examinavam o direito
indígena que permeava as tribos e pequenas habitações nas sociedades colonizadas da África,
42 NEVES, 2003, p 274. 43 GRIFFITHS, 1986, p.3. 44 GRIFFITHS, 1986, p.4. Acerca desse tema, ver também os estudos de WOODMAN, 1998, p. 33: “Griffiths recognises non-state law more emphatically than the previous writers, because a central part of his programme is to combat the ideology of legal centralism and its denial of the character of law to normative orders other than that of the state.”. 45 MERRY, 1988, P. 870 e ss.
35
Ásia e dos países do Pacífico. Nesse período, os cientistas sociais e antropólogos se
debruçavam em tentar entender como esses diferentes grupos étnicos mantinham uma ordem
social baseada em costumes institucionalizados, mas não positivados.
A partir dos estudos de autores como John GILISSEN, Jacques VANDERLINDEN e
Barry HOOKER em meados da década de 1970, a temática ganhou uma maior repercussão na
comunidade científica e se despertou o interesse no modo peculiar com que os habitantes das
colônias possuíam tanto o direito indígena quanto o direito positivado imposto pela metrópole
Européia. Os nativos possuíam um direito desenvolvido ao longo dos anos e dos costumes, e
com a colonização houve uma imposição do direito formal europeu. O racionalismo Europeu,
voltado para uma realidade completamente distinta da realidade das colônias, acabou por
forçar a adoção de princípios e procedimentos muito distantes do estilo de vida dos colonos.
A imposição do direito Europeu era justificada pela idéia dominante da época de
que se tratava de uma benesse à colônia apresentar-lhe um modelo jurídico mais "civilizado",
livrando-a da "anarquia" existente antes da presença da metrópole. Chegava-se a dizer que o
direito colonial era até admitido apenas quando não era "repugnante para a justiça natural” 46.
Dizia-se que tal direito era inconsistente, pois não era escrito.
Para Sally E. MERRY, independente do surgimento do termo, o pluralismo jurídico
como fato vai muito além de uma simples coexistência entre direito colonial e direito europeu
nos países da África e da Ásia no início do sec. XX. Segundo se afirma essa não foi a primeira
vez que houve uma imposição externa ao direito desenvolvido por povos nativos. O Direito
dos povos originários sofreu retaliações e imposições dos colonizadores ao longo de séculos.
Alguns autores, baseados em uma abordagem histórica do fenômeno, também
defendem que o pluralismo jurídico como fato sempre existiu nas mais diferentes sociedades,
e desde tempos remotos há a coexistência de um direito oficial que se sobrepõe
conflituosamente a um direito marginal, informal. Cita-se, para ilustrar a idéia, que durante o
Império Romano houve grande diversidade jurídica formada pelo direito central dos cidadãos
romanos e o direito dos "estrangeiros" dominados, a quem era permitida certa autonomia
jurídica47.
46 MERRY, 1988, P. 870 e ss. 47 WOLKMER, 2001, p. 184.
36
Nessa perspectiva, MERRY busca um conceito para o Pluralismo Jurídico. Partindo
das idéias de GRIFFITHS, afirma que este pode ser genericamente definido como a “situação na
qual duas ou mais esferas legais coexistem em um mesmo campo social48”.
Outros autores que pesquisaram sobre o tema também buscaram elaborar um
conceito para o fenômeno. Entre eles há o conceito de coexistência do direito estatal com
campos sociais semi-autônomos de regulação jurídica. Ou de “mecanismos jurídicos
diferentes existentes em uma mesma sociedade49”. Sob outro enfoque, Boaventura de SOUSA
SANTOS, em seu famoso trabalho escrito após o período que residiu em meio à comunidade da
favela do jacarezinho no Estado do Rio de Janeiro (a que concedeu gentilmente o nome de
Pasárgada), identificou a existência de uma esfera jurídica própria da comunidade local,
exercida independentemente do Estado pela autoridade de líderes comunitários que
propunham a conciliação dos moradores nos casos de conflitos envolvendo relações de
propriedade dos terrenos invadidos e das benfeitorias construídas sobre eles. Boaventura
chamou atenção para o fato de a “lei de Pasárgada” ser um exemplo de sistema legal informal
e não-oficial desenvolvido por classes urbanas oprimidas que buscavam sobrevivência na
sociedade capitalista da época50.
Como se pode observar, muitos foram os estudos dedicados ao tema do
pluralismo jurídico. Muita polêmica foi levantada a respeito de qual seria o conceito ideal
para sua identificação. O assunto gerou verdadeiro fascínio nos juristas, que enxergavam na
relação entre ordens não-oficiais, subversivas e obscuras com o direito estatal a chave para
entender algumas das muitas implicações da pós-modernidade no estudo do Direito.
Outrossim, é importante ressaltar que todas as correntes que tratam do pluralismo
jurídico se desenvolveram no âmbito Europeu e Anglo-americano51. Conquanto, não foram
raros os juristas que tentaram utilizar-se desses conceitos para se referir ao fenômeno das
esferas de juridicidade difusas presentes na América Latina. Como ressaltado anteriormente, a
modernidade que se desenvolveu nos países sulamericanos apresenta algumas peculiaridades
que tornam necessária uma releitura cuidadosa dos conceitos “importados” de países cuja
modernidade se deu de maneira diferente.
48 MERRY, 1988, P. 883. 49 L’existence, au sein d’une société déterminée, de mécanismes juridiques différents s’appliquant à des situations identiques. VANDERLINDEN, 1971, p.19. 50 SOUSA SANTOS, 1977, p. 89. 51 Nesse mesmo sentido, NEVES, 2003, p. 265.
37
Além disso, o próprio professor Boaventura de SOUSA SANTOS fez questão de
enfatizar recentemente em uma palestra proferida aos estudantes da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, que em nome da valorização e defesa do reconhecimento de um
pluralismo jurídico na América Latina não se deve cometer o equívoco de “romantizar” certas
relações como as que se travam no interior de algumas favelas brasileiras. Dentro da ordem
jurídica própria das comunidades contém ainda muita opressão e violência, que não permite
dizer que sejam sistemas normativos com pretensão de autonomamente assumir uma função
jurídica parcial em coexistência com o Direito estatal, mas em muitos casos, trata-se apenas
de auto-afirmação da autoridade imposta pelo crime organizado querendo fazer valer seus
interesses particulares.
Assim sendo, faz-se necessário um olhar crítico sobre as teorias que cercam o
pluralismo jurídico quando se pretende fazer referência à realidade da América Latina. O
estudo do fenômeno pode ser melhor compreendido na perspectiva da teoria dos sistemas,
sem deixar de fazer menção às implicações da alopoise do sistema jurídico, das relações de
sub-integração e das características da modernidade periférica. Então, deve-se ir um pouco
além do referencial teórico de Niklas LUHMANn. Para ele, a autopoiese é um conceito bastante
rígido - ou um sistema é autopoiético ou não é; não existe sistema parcialmente autopoiético.
A fim de flexibilizar essa compreensão, deve-se ter como pressuposto que a
autonomia do sistema jurídico apresenta uma realidade gradativa52. Isso quer dizer que há um
acúmulo de relações auto-referenciais até que se atinja a auto-reprodução circular e fechada
do sistema.
De acordo com Gunther TEUBNER, há um aumento gradativo de relações
circulares no sistema, que podem ser distinguidas em três níveis: auto-observação, auto
constituição e auto-reprodução. Desta forma, “o grau de autonomia dos subsistemas sociais é
determinado, em primeira linha, pela definição auto-referencial dos seus componentes (auto-
observação), adicionalmente pela incorporação e utilização operativa no sistema dessa auto-
observação (auto-constituição) e, finalmente, pela articulação hiper-cíclica dos componentes
sistêmicos auto-gerados, enquanto elementos que se reproduzem entre si numa circularidade
recíproca (autopoiese) 53.” Para Teubner, é o hiper-ciclo que garante a autonomia completa do
sistema parcial, pois apenas assim o sistema se reproduz sem a interferência direta do meio
envolvente. Apenas quando as relações auto-referenciais circulares interagem entre si, em um
52 TEBNER, 1989, p. 64 e ss. 53 TEBNER, 1989, p. 68.
38
hiper-ciclo, é que se pode dizer que o sistema atingiu sua clausura autopoiética. Conclui-se
então que existem níveis intermediários de autonomia sistêmica, os quais podem caracterizar
certos tipos de subsistemas jurídicos que não desenvolveram de maneira adequada sua auto-
reprodução diferenciada funcionalmente em relação ao restante dos outros sistemas sociais.
A posição de Teubner acerca da autopoiese parece ser mais adequada para
compreender o desenvolvimento do sistema jurídico no âmbito da modernidade periférica da
América Latina. A sobreposição de códigos binários pertencentes a outros sistemas sociais ao
código de descrição do sistema jurídico ocasiona uma mistura entre atos de comunicação
sociais e jurídicos, além disso, a falta de efetivação dos acoplamentos estruturais e a
corrupção sistêmica generalizada, bem como o surgimento de atos de comunicação baseados
em padrões de conduta fixados por relações de autoridade difusas no meio social, obriga-nos a
buscar uma nova maneira de apreender a complexidade desestruturada dos países sul-
americanos. Identificar essa realidade como sendo tão somente a manifestação de um
pluralismo jurídico e social nos termos das teorias européias e anglo-americanas, a despeito
do esforço teórico, não se mostra uma solução satisfatória para o problema porque não
apresenta condições de superá-lo. Assim, é imprescindível observar a situação sob o prisma
de um referencial teórico que se aproxime da complexidade peculiar existente na realidade
periférica.
Ao adotar o pressuposto de autonomia do Direito como uma realidade gradativa
com base na idéia de hiper-ciclo, Teubner conclui que a autonomia do sistema jurídico se
desenvolve em três fases: “Direito socialmente difuso”, “direito parcialmente autônomo” e
“direito autopoiético54
”.
No “direito socialmente difuso” os atos de comunicação jurídicos não se
diferenciam funcionalmente de maneira adequada dos demais atos de comunicação
pertencentes a outros sistemas parciais ou ao sistema de comunicação social geral. Embora
exista uma tênue diferença entre normas jurídicas e padrões de conduta sociais
institucionalizados (regras de comportamento, preceitos morais), os códigos jurídicos e os
códigos de conduta sociais ainda remanescem misturados de maneira desestruturada no seio
da comunidade. Os conflitos sociais se resolvem na tentativa de estabilização de expectativas
com base na aplicação de um código lícito/ilícito, mas não se observa a aplicação diferenciada
de uma norma essencialmente jurídica. “(...) não se pode ainda falar de um sistema jurídico
54 TEBNER, 1989, p. 77
39
em sentido estrito, dada a identidade entre as ações jurídicas e as ações sociais gerais, entre as
normas jurídicas e as normas sociais, e entre os processos jurídicos e os processos comuns de
resolução de conflitos55”.
Cumpre ressaltar que neste estádio estão presentes, ainda que de maneira
rudimentar, as características elementares de um sistema jurídico, quais sejam: a tentativa de
resolução de conflitos sociais para estabilização das diferentes expectativas e a aplicação da
distinção entre lícito e ilícito para proferir uma decisão. Diferentemente no que acontece em
regramentos cuja resolução de conflitos se baseie apenas no uso da força para fazer prevalecer
os interesses particulares de uma autoridade imposta opressivamente.
Já com relação ao “direito parcialmente autônomo”, tem-se que alguns elementos
pertencentes ao sistema jurídico passam a diferenciar-se dos atos de comunicação social,
adquirindo autonomia por meio de uma auto-referência circular. O sistema jurídico passa
então a observar seus próprios elementos, diferenciando-os do restante dos códigos sociais.
Surgem assim, normas jurídicas que se direcionam a identificar a existência de outras normas
jurídicas. Ainda não há uma completa clausura operacional, pois se trata apenas de uma auto-
descrição e não uma auto-constituição ou uma auto-produção autônoma de elementos pelo
próprio sistema. O sistema jurídico parcialmente autônomo ainda não confecciona por si
mesmo seus elementos (atos de comunicação normativos) em um circuito fechado, mas já é
capaz de se referir a certos atos de comunicação social e identificá-los como sendo, ou não,
jurídicos. Já é capaz de distinguir o que é ou não ato jurídico no seio da sociedade e de aplicar
o código lícito/ilícito para proferir decisões, mas não o faz ainda de maneira exclusiva, sem a
interferência determinante e direta de fatores externos.
Teubner ressalta que esta idéia pode ser bem exemplificada pelo conceito de
“normas secundárias56”. Citando Hart, Teubner afirma que só se pode falar de direito
parcialmente autônomo quando “normas de conduta primárias são ultrapassadas e reguladas
por normas secundárias de identificação e processualização”. Ou seja, apenas quando
elementos essencialmente jurídicos passam a versar sobre outros elementos de comunicação
jurídicos, identificando-os como pertencentes a um mesmo sistema de comunicação
diferenciado, e prevendo de que maneira este sistema deve organizar-se e se estruturar para
cumprir sua função, é que se estabelece um “direito parcialmente autônomo”.
55 TEBNER, 1989, p. 80 56 TEBNER, 1989, p. 80
40
Por fim, Teubner caracteriza a existência de “direio autopoiético” a partir do
momento que os elementos pertencentes ao sistema jurídico não apenas se auto-descrevem e
se auto-identificam em uma relação de circularidade, mas se auto-reproduzem em uma rede
própria e autônoma, em uma relação circular hiper-cíclica auto-reprodutiva,
independentemente da interferência direta de fatores externos. “a autopoiese jurídica apenas
pode emergir caso as relações auto-referenciais circulares do sistema sejam constituídas por
forma a permitirem a sua própria articulação e interligação num hiper-ciclo auto-
reprodutivo57”.
À vista desses pressupostos fundamentais, é possível elaborar um conceito
adequado para o pluralismo jurídico existente em alguns Estados da América Latina. Todavia,
ressalte-se desde logo que a pretensão aqui não é esgotar o tema na mera identificação da
pluralidade de ordens jurídicas. Os conceitos aqui elaborados servirão como ferramenta para
doravante se buscar uma forma de superação da complexidade jurídica desestruturada
existente em países do continente sul-americano.
De qualquer maneira, à luz da modernidade peculiar da América Latina, o
pluralismo jurídico deve ser entendido como uma fragmentação sub-sistêmica, que se opera
no interior do sistema jurídico, ocasionada pela falta de autonomia-identidade e pela crise de
hetero-referência do Direito tradicionalmente controlado pelo Estado, bem como pela falta de
identificação deste Direito com as parcelas sub-integradas da população.
No seio da comunidade sub-integrada surgem conflitos em que ocorre uma
divergência de expectativas, para as quais é necessária a tomada de decisão. Entretanto, as
expectativas envolvidas, em sua maioria, não chegam a se manifestar perante o direito oficial
ante as dificuldades de acesso ao Poder Judiciário, ou então porque não se identificam
semântica e pragmaticamente com as normas jurídicas elaboradas com base no consenso
imposto pela autoridade Estatal, tendo em vista que, como explicitado no capítulo anterior,
este consenso diz respeito à imposição de padrões de conduta que se referem a valores
próprios de uma classe dominante econômica e politicamente. Assim sendo, no seio das
relações sociais da população sub-integrada, emergem constantemente lacunas de decisão as
quais o direito Estatal não consegue contemplar.
Para suprir a omissão do direito estatal, em seu lugar se desenvolvem certos
regramentos sociais cujo objetivo é proferir decisões e pacificar os conflitos. Tal fenômeno se
57 TEBNER, 1989, p. 84
41
opera em meio a uma estrutura difusa, construída no seio da comunidade sub-integrada, a fim
de institucionalizar as expectativas normativas que surgem permanentemente nas relações de
comunicação dos indivíduos. Emergem então atos de comunicação que se assemelham aos do
sistema jurídico, operando-se e referindo-se entre si com base no código-diferença
lícito/ilícito. Essas entidades informais passam a utilizar-se de meios de processualização
semelhantes aos existentes no sistema jurídico. Em linhas gerais, o pluralismo jurídico se
forma “como uma multiplicidade de diversos processos comunicativos que observam a
atuação social mediante um código lícito/ilícito58
”.
Porém, como ressalta Teubner, “nem toda resolução de conflitos
institucionalizada pode ser confundida ou reconduzida ao direito59”. Destarte, exclui-se do
que se entende por pluralismo jurídico a resolução de conflitos por intermédio do uso da força
operada mediante a aplicação de normas de comportamento social impostas por uma
autoridade opressora, a qual tem apenas a intenção de se auto-afirmar pela dominação
exercida sobre uma determinada comunidade, tendo em vista a possibilidade de exercer meios
coercitivos para fazer valer seus interesses, seja por meio de poderio bélico ou econômico,
geralmente resultado de práticas ilegais inseridas no contexto do crime organizado, como é o
caso de certos regramentos que vigoram nas favelas brasileiras dominadas por milícias
armadas que comandam o tráfico de entorpecentes.
Não há como admitir que o Direito permeie esse tipo de regramento, estruturado
de acordo com os interesses particulares de certos líderes criminosos, porque não estão
presentes características elementares de um sistema jurídico, quais sejam: divergências de
expectativas a serem estabilizadas e resolução do conflito com base na distinção lícito/ilícito.
Deste modo, percebe-se a dificuldade em identificar como se opera a invocação
do código jurídico no ambiente informal das parcelas sub-integradas da população. Na
maioria dos casos, não há diferença significativa entre um código estritamente jurídico e um
código social (normas de comportamento, preceitos morais, regras de boa educação e etc.). Os
atos de comunicação que se diferenciam na comunidade com o objetivo de solucionar
conflitos se assemelham muito aos atos de comunicação jurídicos, mas seguem misturados
aos demais atos de comunicação social. Esta realidade se assemelha com o estádio do “direito
socialmente difuso”. Aqui há o risco de estar-se diante de uma verdadeira miscelânea jurídica
e social na qual estão presentes de maneira difusa, vários regramentos e autoridades, operando
58 TEBNER, 2005, p. 89 59 TEBNER, 1989, p. 79.
42
sem uma definição de autonomia e identidade. Não há como diferenciar o surgimento de uma
ordem jurídica própria, que se fragmenta em um sub-sistema contido dentro do sistema
jurídico.
Para poder-se falar em pluralismo jurídico no sentido pós-moderno em meio a esta
realidade desestruturada, deve-se ir um pouco além na gradação da autonomia deste direito
difuso no meio social. Deve-se identificar na esfera de juridicidade surgida no âmbito de uma
comunidade sub-integrada uma nítida pretensão de adquirir autonomia. E não apenas isso. É
necessário que essa esfera de juridicidade consiga se auto-descrever por meio de seus próprios
atos de comunicação, ou seja, que seja capaz de diferenciar os atos de comunicação jurídicos
dos demais atos de comunicação social por meio da auto-aplicação do código-diferença
lícito/ilícito.
Mesmo que não apresente um fechamento operacional completo e uma autonomia
de auto-constituição, ou ainda que não tenha autonomia para aplicação do código binário
jurídico sem a intervenção direta de elementos advindos de outras esferas de comunicação
social e que não consiga operar-se autonomamente em relação ao próprio direito Estatal, tem
de ser apta a diferenciar com clareza os elementos sistêmicos próprios dos demais elementos
sociais, tem de ter a pretensão inequívoca de diferenciar-se dos demais atos de comunicação
social para satisfazer a estabilização de expectativas normativas e proferir decisões.
Este é o caso de certas ordens jurídicas existentes no seio de comunidades
indígenas que habitam Estados da América Latina. Estas comunidades são formadas por um
grupo de sub-cidadãos que, muito embora não tenham acesso ao sistema jurídico para
satisfazer suas expectativas, não estão livres das responsabilidades e deveres que lhe
estabelecem o direito Estatal, como a limitação e demarcação de seus territórios, a proibição
de certas condutas presentes em seus costumes, mas que contrariam normas de ordem pública
e etc.
Estes indivíduos, apesar de inseridos no mesmo espaço-tempo em que vigora a
ordem jurídica estatal única, não se identificam com esta ordem jurídica. Não estabelecem
uma relação de sentido com as normas jurídicas legais e constitucionais, tanto no nível
semântico quanto no nível pragmático. Não reconhecem a autoridade do aparato burocrático
estatal e não vêem motivos para submeter-se a ela, desconfirmando-a integralmente. Todavia,
em alguns casos são obrigados a submeter-se a autoridade, mesmo que a rejeitando, para
evitar serem vítimas dos instrumentos coercitivos do aparato burocrático do Estado.
43
Estes agrupamentos sociais exercem o controle do código binário lícito/ilícito
mediante a aplicação deste código em processos jurídicos típicos, os quais envolvem normas
de comportamento institucionalizadas por costumes milenares. Estes atos de comunicação
diferenciam-se dos demais atos de comunicação sociais, e formam um sistema parcial com
relativa autonomia operacional.
Os elementos pertencentes a estas ordens jurídicas são capazes de descrever-se
segundo a orientação programada pelo código-diferença próprio, e são capazes de identificar
os atos de comunicação essencialmente jurídicos dos demais atos de comunicação sociais. São
verdadeiros microssistemas fragmentados, que formam ordens jurídicas periféricas que
convivem com o direito estatal. Embora não consigam diferenciar-se da ordem jurídica estatal
que se apresenta como centro do sistema jurídico, estas ordens jurídicas se desenvolvem na
periferia do sistema jurídico com pretensão inequívoca de adquirir autonomia sistêmica.
Em alguns países cuja população indígena é mais expressiva, como é o caso da
Bolívia, estas ordens jurídicas periféricas atingiram tal grau de institucionalização e
autonomia que foram reconhecidas pela ordem jurídica central, e passaram a ser previstas
constitucionalmente como possuidoras de uma jurisdição especial dentro do mesmo território,
diferenciada da jurisdição ordinária tradicionalmente controlada pelo aparato burocrático do
Estado.
Nesse caso, não se está mais diante de um direito difuso no meio social, mas há o
surgimento de um direito parcialmente autônomo, capaz de descrever-se circularmente em um
circuito auto-referencial independente de outros códigos sociais. Muito embora dependente do
reconhecimento por meio do documento político constitucional característico do direito
Estatal, esta ordem jurídica periférica destaca-se da miscelânea de códigos sociais e jurídicos
uma vez que deixa de conter em seus elementos apenas normas de conduta, e passa a operar
em seus atos de comunicação jurídicos segundo normas auto-referenciais de competência,
normas de descrição, de adjudicação, reconhecimento e mudança. Esta ordem jurídica
periférica, surgida da fragmentação do sistema jurídico por meio da institucionalização
constitucional, deixa de possuir apenas normas primárias, mas desenvolve também normas
secundárias no sentido do ensinamento de Hart, como nos demonstrou Teubner60.
Ou seja, apenas quando se atinge o estádio de “direito parcialmente autônomo” é
que se configura uma verdadeira fragmentação sub-sistêmica que dá origem a uma nova
60 TEBNER, 1989, p. 80
44
ordem jurídica existente paralelamente à ordem jurídica estatal. Desta forma, passam a
conviver em um mesmo sistema jurídico normas pertencentes a ordens jurídicas diferentes:
normas de Direito institucionalizadas pelo Estado e atos de comunicação jurídicos advindos
da institucionalização de uma autoridade estruturada perifericamente no interior do sistema
normativo. A ordem jurídica oficial do Estado deixa de deter a exclusividade no controle do
código binário próprio do Direito, e passa a compartilhá-lo com uma modalidade diferente de
jurisdição extraordinária.
Sob este prisma, pode-se identificar com segurança a existência de um pluralismo
jurídico. No caso de alguns Estados como a Colômbia e a Bolívia este pluralismo jurídico que
se observa nitidamente na realidade já se efetivou também formalmente na elaboração dos
documentos políticos constitucionais destes países.
Identificada uma delimitação semântica adequada para o fenômeno do pluralismo
jurídico na América Latina, podemos avançar no estudo da relação entre as ordens jurídicas
perifericamente estruturadas no interior do sistema jurídico dos Estados Nacionais e a ordem
jurídica central institucionalizada pelo aparato burocrático do Estado.
Cumpre a este trabalho superar a mera “identificação”, “constatação” ou
conceituação do pluralismo jurídico a que se limitaram seus estudiosos, os quais
tradicionalmente se referem ao problema como um ponto de tensão insuperável entre Direito e
sociedade, no qual as ordens jurídicas múltiplas inseridas em um mesmo espaço-tempo têm de
estar envolvidas em uma espécie de conflito potencial permanente e constante.
Deve-se superar esta noção, pois o pluralismo jurídico em si já foi largamente
percebido empiricamente. O reconhecimento formal das múltiplas ordens jurídicas fundadas
na multiplicidade cultural já teve início por meio das novas constituições que têm sido
aprovadas na América do Sul. O que importa agora é superar a mera constatação e a
identificação de um "conflito potencial" entre as diferentes jurisdições para passar a estudar
como promover a inter-relação entre as ordens jurídicas no seio dos Estados Nacionais. Qual
será a chave para a convivência entre duas ordens jurídicas em um mesmo espaço-tempo? A
intenção deste trabalho é propor uma possível resposta a esta pergunta.
Para tanto, no próximo capítulo será estudado o modelo proposto pela nova
Constituição boliviana, aprovada por meio de referendo popular em 02 de fevereiro de 2009,
particularmente sob a perspectiva do desenvolvimento das idéias de “Estado Plurinacional”,
“Jurisdição Especial Indígena”, e “multiculturalismo”. A realidade constitucional boliviana
45
servirá de pano de fundo para a discussão acerca da relação entre ordens jurídicas indígenas
consuetudinárias, pertencentes a uma parcela da população que na Bolívia representa a
maioria, mas que tradicionalmente se mantém sub-integrada ao sistema social, e o Direito
ordinário Estatal.
46
2. UMA ANÁLISE DO CASO BOLIVIANO: A JURISDIÇÃO
ESPECIAL INDÍGENA NO NOVO DOCUMENTO POLÍTICO
CONSTITUCIONAL
O novo documento político constitucional do Estado boliviano foi aprovado
mediante referendo popular na data de dois de fevereiro de dois mil e nove em meio a um
período de intensa agitação política no país. Pela primeira vez na história da Bolívia um
presidente de origens indígenas exercia o cargo de chefia no Poder Executivo. Juntamente
com a chegada de Evo Morales à presidência, tem início um novo projeto de Estado
boliviano, voltado para atender a uma agenda social e política de valorização indígena e
popular.
A realidade boliviana é de clara transição61. A elite economicamente dominante,
formada por grandes proprietários de terra herdeiros das relações de caudilhismo, passou a
perder força política à medida que a população indígena, operária e campesina começou a se
organizar conjuntamente para lutar por melhores condições de vida. As principais mudanças
que se deram de maneira preliminar foram o reconhecimento de direitos trabalhistas e após, a
valorização da cultura e das línguas indígenas.
Os povos indígenas campesinos - parcela absolutamente miserável da população -
representam a grande maioria no país. Desta forma, percebeu-se que se organizando
politicamente poderiam unir-se em torno de uma liderança comum para promover mudanças
estruturais e reduzir as desigualdades sociais. É neste cenário que surge a figura de Evo
Morales. O líder político de origem indígena conseguiu reunir as parcelas mais carentes da
população, antes fragmentadas e dominadas pelas relações de dependência travadas com a
classe dominante, e assim, construiu uma grande força política que lhe garantiu um
surpreendente segundo lugar nas eleições presidenciais de 2002, e a vitória, por maioria
absoluta ainda no primeiro turno, nas eleições de dezembro 2005.
A enorme adesão popular de Evo Morales permitiu-lhe iniciar uma série de
transformações de ordem econômica e social, dentre elas o processo de estatização de
algumas empresas privadas, e, em especial, a polêmica nacionalização da exploração dos
61 Nesse sentido, STEFANONI, 2007 p. 65, e CALDERÓN, p. 33.
47
hidrocarbonetos. Com isso, Morales deu início a profundas reformas estruturais que podem
ser consideradas uma verdadeira revolução na sociedade boliviana.
As mudanças trazidas pelas ações do novo governo provocaram resistência dos
setores mais conservadores da sociedade, e em algumas províncias como Pando e Tarija, cujo
governo pertencia à oposição, houve contra-ofensiva armada na intenção de aplicar um golpe
de Estado e tirar o governo das mãos de Evo Morales. Todavia, o presidente contava com
apoio de grande maioria da população do país que corroborou democraticamente por meio de
plebiscitos e referendos a aprovação das medidas adotadas pelas políticas do Executivo.
Álvaro Garcia LINERA, vice-presidente do governo de Evo Morales, chamou o
momento político vivido pela Bolívia de “ponto de bifurcación62
”:
“(...) la renuncia de Sánchez de Lozada a la presidencia y la elección de Evo Morales como primer mandatario, se consolidó un proceso de construcción de un nuevo proyecto social y político, indígena y popular, capaz de disputarle el poder al neoliberalismo de los bloques dominantes. Ninguno de estos sectores, sin embargo, se encuentra en condiciones de hegemonizar los ámbitos y el consenso para la toma de decisiones. Esto provoca una crisis que deberá definirse en algún tipo de instancia en la que se pueda resolver la institucionalización del nuevo Estado. Esta crisis puede concluirse de manera insurreccional. por exhibición de fuerzas o (...) por via democrática, a través del diálogo y la construcción plural, teniendo como eje la nueva Constitución.63”
Todo esse processo de transformação culminou com a promulgação de uma nova
Constituição, ou seja, com a fundação de um novo modelo de Estado e de Nação para a
Bolívia. A população indígena que até o momento era parcela sub-integrada ao sistema social,
foi convidada a ajudar a construir os novos elementos que serviriam de base para o
desenvolvimento dos sistemas sociais diferenciados.
Assim, conclui-se que diante da enorme complexidade social, dever-se-ia adotar
um modelo que levasse em conta a pluralidade de manifestações culturais, políticas e jurídicas
dentro do território boliviano, reconhecendo constitucionalmente a existência de um Estado
unitário, mas multicultural que se constituiria por meio do diálogo intercultural.
As bases fundamentais do novo Estado boliviano estão descritas no artigo
primeiro da nova Constituição:
“Artículo 1 - Bolivia se constituye en un Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario, libre, independiente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado y con autonomías. Bolivia se funda en la pluralidad
62 LINERA, 2008, p. 27. 63 LINERA, 2008, p. 24.
48
y el pluralismo político, económico, jurídico, cultural y lingüístico, dentro del proceso integrador del país. (grifo nosso)64”
Pela definição acima, nota-se que o Estado boliviano caracteriza-se pela
valorização da pluralidade e do pluralismo que se desdobra em vários aspectos: político,
jurídico, cultural e lingüístico. Nota-se que o legislador constituinte fez questão de enfatizar
que a Bolívia não é um Estado formado por uma só nação, tendo em vista que não há a
previsão de uma categoria hipotética única com a pretensão de abarcar universalmente toda a
população, mas o define como sendo um “Estado de Direito Plurinacional”, com o objetivo de
integrar as diferentes “nações” que residem no mesmo território em um único Estado.
O respeito e a tolerância às diferentes manifestações de cultura parecem ser a
tônica deste modelo, buscando estabelecer um meio de coexistência harmônica entre as
variadas etnias sob o mesmo aparato burocrático. Para isso, foram institucionalizadas
ferramentas de auxílio e calibração, bem como foram criados conceitos fundamentais para
promover a integração das diferenças em um ambiente de dissenso democrático e de busca
pelo consenso, respeitadas as autonomias.
No aspecto que mais interessa a este trabalho, tem destaque a institucionalização
do pluralismo jurídico como base fundamental do Estado, por meio da fragmentação do
sistema jurídico em duas ordens jurídicas distintas, tendo sido criada uma jurisdição
extraordinária que rompeu com a tradicional exclusividade da ordem Estatal para controlar o
que é ou não Direito na sociedade. A aplicação do código lícito/ilícito foi dividida duas
ordens inseridas no mesmo sistema jurídico: A jurisdição ordinária e a jurisdição especial
“indígena originária campesina”.
Para entender como o novo Estado boliviano pretende lidar com o fenômeno do
pluralismo jurídico existente em seu território à luz da realidade complexa e desestruturada,
típica da modernidade periférica da América Latina, faz-se necessário o estudo do conceito de
“plurinacionalidade” como base fundamental do Estado e da construção da jurisdição especial
indígena pelo legislador constituinte. É exatamente a esses dois pontos que este capítulo de
dedica.
64 BOLIVIA. Nueva Constitución Política Del Estado, outubro de 2008. Disponível em < Http://www.presidencia.gob.bo/download/constitucion.pdf>
49
2.1. Estado de Direito “Plurinacional”: multiculturalismo e
plurinacionalidade como base fundamental do Estado Boliviano
O caráter “plurinacional” do novo modelo de Estado boliviano tem a ver com o
reconhecimento da preexistência das nações indígenas no país, anteriores ao período colonial.
É o reconhecimento da origem da formação da população boliviana, que se deu
principalmente pela junção entre os povos indígenas originários e a chegada dos
colonizadores espanhóis. A importância deste conceito está na transição de um modelo de
Estado unitário e social, construído com primazia no pensamento e na tradição européia de
unidade da nação, sem levar em conta as manifestações culturais indígenas, para um Estado
que tenta promover a unidade social respeitando as diferenças e convidando os povos
indígenas a participar desta construção, contribuindo com seus valores e modos de
organização e estrutura próprios65.
O novo documento político constitucional fala de diferentes nacionalidades
compondo um único Estado, e não apenas de diferentes etnias, ou de uma sociedade
multicultural. A Constituição boliviana vai além, e procura identificar os povos indígenas
como “nações” diferenciadas do restante da população. Este aspecto do novo texto
constitucional sofreu duras críticas dos grupos políticos mais conservadores durante o período
da Assembléia Constituinte. Estes grupos defendiam que a Constituição deveria prever uma
sociedade com variedade étnica e com múltiplas manifestações culturais, mas não deveria
adotar o caráter de plurinacionalidade, tendo em vista que tal reconhecimento abalaria a
unidade do Estado boliviano66.
Todavia, parece que o legislador constituinte tomou a decisão correta. Não se
deve confundir o conceito de Estado com o conceito de Nação. É equivocado o pensamento
de que a cada nação deve possuir um Estado próprio67. Esta pretensão de caracterizar o Estado
moderno como Estado unicamente nacional remonta ao período de formação dos Estados
Nacionais europeus. O surgimento do conceito de nação está atrelado à luta pela constituição
65 Em uma perspectiva parecida, Ester Sanchez BOTERO, ao analisar a aprovação da Constituição colombiana de 1991, chamou atenção para o fato de que nascera um "novo modelo de nação na Colômbia, orientado a valorizar e fortalecer as diferenças", pois com as profundas mudanças constitucionais experimentadas, houve uma espécie de ruptura no chamado "Estado Monocultural e etnocentrista" que excluía as demais culturas que se diferenciavam do padrão eleito pela ordem jurídica, para se configurar um "Estado Multicultural". BOTERO, 2003, p. 2. 66 Nesse mesmo sentido MAYORGA (2007). 67 Nesse sentido, FAJARDO, 2000, p. 1.
50
de unidades políticas estáveis e delimitadas territorialmente. Era preciso um artifício para unir
todo o povo em prol da construção de um mesmo centro político diferenciado dos demais, e
para isso foi criado o conceito de nação68.
O que se observa com a pós-modernidade é que a idéia de nação não coincide
mais com o Estado, passando a se desvincular deste à medida que as fronteiras territoriais
passam a ser relativizadas pelo desenvolvimento de meios de comunicação e locomoção
globais e inter-regionais. De acordo com o professor Dalmo de Abreu DALLARI, a principal
diferença entre Estado e Nação é que o Estado corresponde à idéia de sociedade, e Nação
corresponde à idéia de comunidade69.
As sociedades se formam mediante vínculos jurídicos estabelecidos pelos
indivíduos por atos de vontade com respeito a atingir um fim comum. Reúnem-se pessoas,
geralmente diferentes em relação aos aspectos culturais, mas que almejam conseguir um
objetivo que a todas interessa, sem que desapareçam as diferenças entre si70. Já as
comunidades, surgem em um primeiro momento independentemente da vontade, quase que
inconscientemente, como manifestação de afinidades psíquicas e espirituais entre um grupo
de indivíduos que simpatizam entre si, evoluindo esta relação de simpatia para uma relação de
confiança recíproca e fazendo com se unam por vínculos de sentimento. Conscientes deste
fato, as pessoas pertencentes à comunidade passam a agir de modo a fortalecer a união71, e
por pertencerem a uma mesma comunidade unida passam a desenvolver pensamentos e
práticas comuns, sentimentos comuns e costumes comuns que culminam na emersão de um
conjunto de expectativas cognitivas e normativas comuns.
À vista dessa diferença, pode-se considerar que o Estado corresponde a uma
sociedade, porque surge de um vínculo jurídico entre pessoas diferentes para atingir um
determinado fim que a todas interessa, e a Nação corresponde a uma comunidade porque se
dá pela união de vínculos de sentimento entre pessoas que comungam dos mesmos valores e
afinidades psíquicas e espirituais, não se confundindo um com o outro, portanto72.
Aplicando-se estes conceitos para descrever a realidade boliviana, percebe-se
claramente que os povos indígenas formam grupos cujos sentimentos, anseios e expectativas
comuns são distintos do restante da população. Há na Bolívia um Estado que corresponde a
68 DALLARI, 2005, p.132. 69 DALLARI, 2005, p.133. 70 DALLARI, 2005, p 134. 71 DALLARI, 2005, p.134. 72 DALLARI, 2005, p.137
51
uma sociedade formada pela união de diferentes comunidades. Ou seja, há de fato um Estado
que visa a integrar diferentes nações sob o mesmo aparato burocrático. Destarte, identifica-se
nitidamente um Estado Plurinacional.
O Estado Plurinacional pretende unir em um mesmo espaço geográfico varias
comunidades nacionais as quais lutam por reconhecimento de sua identidade diferenciada e
buscam uma maior autonomia em relação a um poder centralizador. Pode-se citar como
exemplo, além da Bolívia, o Canadá que possuiu em seu território a província de Quebec que
constitui uma comunidade nacional distinta do restante do país73.
A distinção entre as comunidades no novo documento político constitucional
boliviano não se reduz somente à busca de autonomia regional ou à valorização das
diversidades culturais dentro do mesmo Estado, mas, além disso, tem a ver com a
identificação cultural de valores psíquicos, espirituais e sentimentais comuns em um mesmo
grupo de indivíduos, que evoluem para a formação de comunidades nacionais com base no
estabelecimento de relações de confiança recíprocas, as quais fazem surgir expectativas
normativas comuns que evoluem para a construção de estruturas próprias desenvolvidas de
maneira autônoma.
Na Bolívia, tais comunidades nacionais, apesar de reconhecidas pelo antigo
documento político constitucional, eram tradicionalmente parcelas da população sub-
integradas ao sistema social, o qual ainda se baseava em uma concepção de Estado e Nação
típicos das teorias liberais euro-continentais e anglo-americanas. Porém, com as mudanças
trazidas pelo governo de Evo Morales, o reconhecimento das comunidades indígenas
significou uma verdadeira revolução, uma nova fundação do Estado Boliviano pra que
deixasse de ser um Estado Unitário e Social, que apenas reconhecia a multiplicidade cultural
de seu povo, mas para se tornar um “Estado Unitário de Direito Plurinacional”.
O reconhecimento da plurinacionalidade não envolve apenas a busca por
autonomias regionais, mas implica uma redefinição da divisão geográfica e política do
território, bem como a reestruturação dos poderes, tendo em vista o reconhecimento dos
novos poderes locais e a participação das comunidades nacionais na construção conjunta do
Estado74.
73 Nesse sentido, MAYORGA (2007). 74 Nesse mesmo sentido, RAMIRO, 2005, p.206. Sob o prisma do reconhecimento das ordens jurídicas em outros países da América Latina, Raquel Z. Yrigoyen FAJARDO afirma que “Es recién a finales del siglo, en la década de los noventa, que los países andinos reconocen constitucionalmente que sus Estados están conformados por
52
A importância do novo documento político constitucional foi reconhecer o
relevante papel das comunidades indígenas na formação da sociedade. Não se pretende com a
plurinacionalidade excluir certas parcelas da população na afirmação das diferenças existentes
entre elas, mas integrar todas as diferentes comunidades75 em torno de uma mesma sociedade
epistemologicamente fundada na pluralidade, valorizando as distintas manifestações culturais
que formam o Estado boliviano, fazendo com que todas contribuam com seus sentimentos e
expectativas para que se atinja um objetivo comum, para que se busque um consenso em um
ambiente de dissenso democrático.
Nesse mesmo sentido afirma o professor Raúl Prada Alcoreza: “Como puede
observarse, la nueva Constitución Política del Estado comprende a las naciones y pueblos
indígenas originarios no solo como poblaciones, culturas, saberes plenamente reconocidos,
sino también desde la perspectiva de los derechos. No solamente se trata de la declaración de
derechos colectivos, sino de un capítulo específico dedicado a los derechos de las Naciones y
Pueblos Indígenas Originarios Campesinos. Las naciones y pueblos indígenas forman parte de
la estructura de los derechos constitucionales, son parte estructurante de la estructura de la
nueva Constitución76”.
O artigo oitavo do novo texto constitucional é um dos principais exemplos em que
se consubstancia a plurinacionalidade boliviana. Ao traçar os princípios éticos fundamentais
do novo Estado, o legislador constituinte fez questão de mesclar aos valores do Estado
Democrático de Direito os valores fundamentais das comunidades indígenas andinas e
amazônicas77. A intenção foi mostrar que ambos os valores são importantes na consecução
dos objetivos do Estado. Tanto os valores do Estado Democrático de Direito, quanto os
valores indígenas, sozinhos não são suficientes, pois se mostram como perspectivas
una diversidad de culturas y por ende buscan garantizar la pluralidad cultural y el derecho a la identidad cultural. También se reconoce a los diversos pueblos indígenas y sus derechos, oficializando sus idiomas, protegiendo sus costumbres, trajes, y promoviendo su propia cultura. En tal marco, se reconoce también el derecho al propio derecho, esto es, el derecho indígena o consuetudinario y la jurisdicción especial”. FAJARDO, 2000, p. 3. 75 As diferentes comunidades que representam mais de 36 nacionalidades diferentes entre o povo boliviano (Aymaras, Quechuas, Urus, Afroboliviano, Guaraní, Chiquitano, Guarayo, Ayoreo, Tapieté, Wenhayek, Paiconeca, Araona, Baure, Canichana, Cavineño, Cayuvaba, Chácobo, Chimán, Esse Ejja, Itonama, Joaquiniano, Leco, Machineri, More, Mosetén, Movida, Mojeño, Nahua, Pacahuara, Sirionó, Tacana, Toromona, Yaminahua, Yuqui). Fonte: REPAC 2007:18. 76 PRADA ALCOREZA, 2008, p.50. 77 Artículo 8 I. El Estado asume y promueve como principios ético-morales de la sociedad plural: ama qhilla, ama llulla, ama suwa (no seas flojo, no seas mentiroso ni seas ladrón), suma qamaña (vivir bien), ñandereko (vida armoniosa), teko kavi (vida buena), ivi maraei (tierra sin mal) y qhapaj ñan (camino o vida noble). II. El Estado se sustenta en los valores de unidad, igualdad, inclusión, dignidad, libertad, solidaridad, reciprocidad, respeto, complementariedad, armonía, transparencia, equilibrio, igualdad deoportunidades, equidad social y de género en la participación, bienestar común, responsabilidad, justicia social, distribución y redistribución de los productos y bienes sociales, para vivir bien.
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inconclusas da sociedade. Apenas com a interação construtiva desses valores culturais é
possível estabelecer um fim para o Estado boliviano que seja mais contemplativo dos anseios
complexos da sociedade.
Sob esse aspecto, percebe-se a valorização de cada uma das culturas nacionais,
sem a pretensão universalizante de homogeneizá-las, respeitando as diferenças internas, mas
sem promover uma separação meramente intercultural. Promove-se, ao contrário, uma
permeação recíproca de influências culturais mediatizadas pelo diálogo. Supera-se a
compreensão da cultura como homogeneização e consolidação de agrupamentos étnicos
diferenciados, como ilhas isoladas que diferenciam o que está dentro do que está fora de uma
comunidade determinada pela imposição de barreiras.
O novo Estado boliviano vai além ao estabelecer a construção conjunta dos
princípios estruturantes da Constituição pelas diferentes comunidades nacionais, ao
estabelecer valores culturais que se entrelaçam para servir de base para operação de todos os
sistemas sociais. Por meio de um diálogo constitucional entre as comunidades indígenas e a
comunidade derivada da etnia herdeira dos colonos espanhóis, é possível a edificação
recíproca dos valores e fins que servem de orientação para toda a sociedade boliviana,
permeando todos os seus sistemas parciais de comunicação (político, econômico e jurídico, e
etc.).
Para a consolidação desses princípios constitucionais, contudo, faz-se necessário
que a relação entre as comunidades deixe de ser assimétrica, e se instaure uma relação
dialógica e horizontal de aprendizado recíproco, na qual seja possível uma ajudar a outra a
educar-se constitucionalmente com base no outro. As diferentes comunidades estabeleceram
em comunhão as finalidades do novo Estado, e devem ser capazes de conjuntamente
desenvolver o mesmo objetivo enquanto sociedade.
Vale lembrar que esses valores essenciais do novo Estado boliviano podem ser
invocados por todos os indivíduos pertencentes à sociedade a qualquer tempo, sejam estes
indivíduos originários de etnias indígenas ou de etnias herdeiras da colonização espanhola. Ou
seja, um indígena campesino deverá sempre levar em conta a legalidade, a dignidade e
liberdade, podendo invocá-las a qualquer tempo, ao mesmo tempo em que um indivíduo de
outra etnia, mais próxima aos valores europeus e anglo-americanos, deverá sempre levar em
conta o “ama qhilla, ama llulla, ama suwa” (não seja fraco, no seja mentiroso, nem seja
ladrão), ou o “suma qamaña” (viver bem).
54
À vista disso, cumpre concluir que o novo documento político constitucional
representa um marco da tentativa de integração intercultural das comunidades nacionais
formadoras da sociedade boliviana por meio da construção conjunta de uma estrutura comum,
de um aparato burocrático que contemple a pluralidade e a complexidade existentes no
ambiente, a fim de abarcar democraticamente sob a égide do mesmo Estado a unidade do
consenso social cultivado em meio a um ambiente de dissenso axiológico comunitário e
plurinacional.
2.2. Pluralismo Jurídico e a Jurisdição especial indígena
Uma vez admitida a plurinacionalidade do Estado, deve-se reconhecer que as
diferentes comunidades nacionais desenvolvem perifericamente estruturas próprias com
pretensão de autonomia em relação ao poder Estatal central. Surgem nestas comunidades atos
de comunicação diferenciados funcionalmente com o intuito de controlar o código-diferença
próprio do sistema jurídico (lícito/ilícito).
Esta ordem jurídica periférica parcialmente autônoma é institucionalizada: (i) no
interior da própria comunidade nacional mediante a relação de autoridade a que se submetem
seus indivíduos perante as lideranças comunitárias, as quais emergem das relações de
confiança recíprocas e dos costumes compartilhados entre os indivíduos a ela pertencentes; e
(ii) é institucionalizada pelo Estado por meio do reconhecimento constitucional do pluralismo
jurídico78, como um dos desdobramentos da admissão da plurinacionalidade.
O legislador constituinte boliviano, com o intuito de abarcar as diferentes
manifestações do fenômeno jurídico ocorridas no interior das comunidades nacionais, criou
um interessante instrumento a que deu o nome de “Jurisdição indígena originário
campesina”. Esta jurisdição extraordinária convive dentro do sistema jurídico boliviano
juntamente com o a jurisdição ordinária do Estado, não havendo hierarquia entre elas79, ou
seja, as decisões proferidas pela jurisdição indígena são vinculantes e não podem ser revistas
pela jurisdição ordinária. Há um aparato burocrático criado para o exercício da jurisdição
78 O texto constitucional aponta em seu artigo 179 o pluralismo jurídico e a interculturalidade como princípios norteadores da função jurisdicional do Estado. “Artículo 179: La potestad de impartir justicia emana del pueblo boliviano y se sustenta en los principios de pluralismo jurídico, interculturalidad, equidad, igualdad jurídica, independencia, seguridad jurídica, servicio a La sociedad, participación ciudadana, armonía social y respeto a los derechos. 79 “Artículo 179: (...) II. La jurisdicción ordinaria y la jurisdicción indígena originario campesina gozarán de igual jerarquia.
55
ordinária, enquanto que para a jurisdição indígena, o constituinte apenas afirma
genericamente que será exercida por suas próprias autoridades, de acordo com princípios
próprios e normas e procedimentos comuns existentes nas comunidades80.
A designação genérica se deve ao fato de existirem na Bolívia um grande número
de comunidades nacionais diferentes81. Segundo afirma o antropólogo boliviano Xavier
ALBÓ, não é necessário analisar em detalhe como se administra a justiça no interior de cada
comunidade indígena, tendo em vista que cada etnia possui seu desenvolvimento cultural
próprio, e o direito consuetudinário aplicado em cada uma das comunidades se expressa de
maneira diversa e específica82, embora possam ser identificados certos princípios semelhantes
e um caráter procedimental relativamente comum83.
O antropólogo Xavier ALBÓ realizou aprofundado estudo acerca do direito
consuetudinário das comunidades nacionais indígenas da Bolívia, tendo observado as
características desta ordem jurídica parcial em sete comunidades diferentes84. Seis das
comunidades estudadas localizam-se no interior do País, em uma zona considerada rural.
Além disso, foram observadas comunidades que se localizam na periferia de grandes centros
urbanos como La Paz e Cochabamba.
A primeira conclusão importante do trabalho de ALBÓ é que nas comunidades
indígenas mais próximas da zona rural o direito consuetudinário indígena é facilmente
identificado, diferenciando-se claramente dos outros atos de comunicação sociais. Porém, na
medida em que as comunidades aproximam-se das grandes cidades a diferenciação torna-se
mais difícil.
A título de exemplo, pode-se dizer que não é possível identificar um direito
consuetudinário diferenciado nas regiões localizadas nas periferias das grandes cidades, ainda
dentro do perímetro urbano, como é o caso da periferia de La Paz, pois, embora existam
comunidades indígenas ali residindo, há a presença de muitos indivíduos de outras localidades
e etnias, os quais não compartilham dos mesmos valores e expectativas, e, além disso, este
80 Artículo 190. I. Las naciones y pueblos indígena originario campesinos ejercerán sus funciones jurisdiccionales y de competencia a través de sus autoridades, y aplicarán sus principios, valores culturales, normas y procedimientos propios. 81 Estima-se que existam cerca de 36 etnias indígenas diferentes no território boliviano, ver op cit.. 82 ALBÓ (1999). 83 ALBÓ,(1998). 84 1. Andina aymara rural, en Jesús de Machaqa, La Paz; 2. Andina quechua rural, en Tapacarí, Cochabamba; 3. Andina quechua rural, en Chuquisaca; 4. Oriental chaqueña, guaraní izoceño; 5. Oriental, ayoréode; 6. Oriental, chiquitano de Lomerío; 7. Andina, periferia urbana en Cochabamba (villas San Miguel y Alto Sebastián Pagador, quechua y aymara) y en El Alto de La Paz (Villas Adela y Alto Lima, aymaras).
56
direito consuetudinário está mais exposto a influência de elementos políticos econômicos e
jurídicos próprios de outras comunidades85.
Ou seja, há uma mistura de atos de comunicação jurídicos e sociais que não
permite identificar uma diferenciação funcional da ordem jurídica consuetudinária nas
proximidades das grandes cidades bolivianas. Esta ordem ainda permanece difusa no meio
social. Nesse caso, não se pode falar com segurança em pluralismo jurídico e na presença
nítida da ‘jurisdição especial indígena originária campesina”, mas sim em um miscelânea
social e jurídica típica do estádio de um direito socialmente difuso.
Por esse motivo, o legislador constituinte estabeleceu os limites territoriais,
pessoais e materiais do exercício da jurisdição indígena, que é competente para conhecer todo
tipo de relação jurídica envolvendo as pessoas que pertencem à comunidade indígena por
meio de um vínculo particular de nacionalidade, ou seja, pela identificação de um vínculo
psíquico e espiritual com o grupo étnico respectivo86. De acordo com o legislador, o principal
critério para a aplicação da jurisdição indígena ao caso concreto é a identificação do indivíduo
envolvido como membro de uma comunidade nacional indígena, bem como que os fatos
jurídicos sejam gerados dentro da comunidade ou mesmo quando produzirem efeitos em seu
interior87.
Contudo, para resolver qual a jurisdição tem de ser aplicada aos conflitos
existentes nas periferias urbanas, deverá haver, em primeiro lugar, uma manifestação do órgão
legislativo pois o constituinte delegou ao legislador comum a atribuição de determinar os
mecanismos de coordenação e cooperação entre a jurisdição ordinária e a jurisdição
indígena88. E, em segundo lugar, deverá haver uma manifestação do órgão pertencente à
85 “Se constató al mismo tiempo que ya no resulta viable recurrir de manera habitual y alternativa a este sistema consuetudinario en aquellas regiones urbanas periféricas donde coinciden inmigrantes de muchos orígenes, que no comparten por igual las mismas normas consuetudinarias y que están ya mucho más expuestos a otras influencias políticas, sociales y legales.” ALBÓ, 1998, p. 2. 86 Artículo 191. I. La jurisdicción indígena originario campesina se fundamenta em un vínculo particular de las personas que son miembros de la respectiva nación o pueblo indígena originario campesino (...). 87 Artículo 191. (...)II. La jurisdicción indígena originario campesina se ejerce en los siguientes ámbitos de vigencia personal, material y territorial: 1. Están sujetos a esta jurisdicción los miembros de la nación o pueblo indígena originario campesino, sea que actúen como actores o demandado, denunciantes o querellantes, denunciados o imputados, recurrentes o recurridos. 2. Esta jurisdicción conoce los asuntos indígena originario campesinos de conformidad a lo establecido en una Ley de Deslinde Jurisdiccional. 3. Esta jurisdicción se aplica a las relaciones y hechos jurídicos que se realizan o cuyos efectos se producen dentro de la jurisdicción de un pueblo indígena originario campesino. 88 Artículo 192. III.El Estado promoverá y fortalecerá la justicia indígena originaria campesina. La Ley de Deslinde Jurisdiccional, determinará los mecanismos de coordinación y cooperación entre la jurisdicción
57
função jurisdicional do Estado incumbido de resolver os conflitos entre a jurisdição ordinária
e a jurisdição indígena. Apenas pelo exercício jurisprudencial vislumbrar-se-á uma solução a
este problema identificado por ALBÓ, tendo em vista que a delimitação territorial presente na
Constituição não aponta objetivamente quais são os territórios sujeitos à jurisdição
extraordinária.
Por outro lado, o antropólogo identificou uma forte vigência do direito
consuetudinário comunitário nas outras seis comunidades estudadas, as quais habitavam a
zona considerada rural, ou campesina, distantes dos grandes centros urbanos. Segundo afirma,
há entre essas comunidades um forte referencial cultural que as une em torno de seus
costumes89.
Neste caso, há uma diferenciação clara da ordem jurídica indígena, a qual tem
pretensão inequívoca de adquirir autonomia em relação ao Direito Estatal. Assim, pode-se
identificar com segurança uma manifestação de pluralismo jurídico pela presença de um
direito parcialmente autônomo, o qual se auto-descreve e se auto-referencia circularmente
pelas estruturas próprias de controle do código lícito/ilícito desenvolvidas pelas comunidades
e reconhecidas constitucionalmente por meio da institucionalização da jurisdição
extraordinária.
Conclui-se então que uma vez definida a limitação territorial, material e pessoal
de aplicação da Jurisdição especial indígena pelo legislador constitucional boliviano,
ressalvados os casos de iminente conflito como ressaltado acima, para os quais terão de se
dedicar tanto o legislador ordinário quanto a interpretação jurisprudencial, tem-se que não
foram estabelecidos de maneira explícita os limites materiais para o exercício da jurisdição
especial. Isto é, dentro dos limites da comunidade indígena, a Jurisdição Especial é
competente para julgar todos os tipos de relação envolvendo atos jurídicos de seus
integrantes, sem qualquer interferência do Direito estatal.
O único limite que parece ser imposto é o que se observa na leitura do artigo 191,
II, que afirma: “II. La jurisdicción indígena originaria campesina respeta el derecho a la vida y
los derechos establecidos en la presente Constitución”.
Neste aspecto em particular do texto constitucional, deve-se tomar muito cuidado
para não cometer o equívoco de afirmar que o legislador pretendeu impor o direito à vida, ou
indígena originaria campesina con la jurisdicción ordinaria y La jurisdicción agroambiental y todas las jurisdicciones constitucionalmente reconocidas. 89 ALBÓ, 1999, p.2
58
os demais direitos fundamentais garantidos pela nova constituição, como valores universais
aos quais a Jurisdição indígena deve se submeter em qualquer situação. Este dispositivo deve
ser interpretado de maneira sistemática, à luz das premissas básicas fundamentais do novo
Estado boliviano, quais sejam, a plurinacionalidade, o pluralismo jurídico e a
interculturalidade.
As comunidades indígenas lidam com a vida, com este valor humano
fundamental, de uma maneira culturalmente diferente daquela observada na tradição da
formação do Estado Democrático de Direito que inspirou a formação dos Estados da América
Latina. Da mesma maneira que, culturalmente, as comunidades indígenas lidam de maneira
distinta com as relações familiares, com as liberdades individuais, com o direito de
propriedade e etc.
É equivocado o entendimento que o legislador procurou impor o respeito ao
direito a vida intolerantemente, desconsiderando a maneira como as comunidades indígenas
lidam com a vida, e colocando como premissa básica que a vida é valor universal no território
boliviano. Isso seria ir contra todo o esforço constitucional de respeito à plurinacionalidade e
às diferentes formas de manifestação do fenômeno jurídico no seio da população boliviana.
De maneira diversa, o legislador pretendeu apenas eleger uma matéria relevante para
inaugurar o diálogo intercultural entre as comunidades nacionais, a fim de que o conceito de
direito à vida fosse reconstruído em comunhão por meio de uma relação dialógica que
permitsse o aprendizado mútuo dos valores de cada comunidade.
É necessário então buscar compreender as principais características e tentar
identificar como se opera a ordem jurídica especial no interior das comunidades indígenas
para saber de que maneira o direito à vida há de ser respeitado pelas comunidades. Este
dispositivo de aparente limitação material da Jurisdição indígena parece ter sido colocado
pelo legislador para sinalizar a importância da matéria na elaboração pluranacional do Estado
boliviano, ou seja, o direito à vida é uma matéria para a qual o diálogo constitucional
intercultural é absolutamente primordial. Inúmeras são as matérias e os valores que serão
objeto de trocas de experiência intercultural entre as comunidades nacionais bolivianas sob a
égide da nova Constituição, porém para este valor em especial, por uma escolha legislativa,
está consagrada constitucionalmente a inauguração do diálogo.
O legislador, ciente da importância do direito à vida para ambas as comunidades,
inaugura a orientação para conversação constitucional elegendo o direito à vida como um
tema gerador em torno do qual será construído o aprendizado recíproco e a educação mútua
59
entre as ordens jurídicas do sistema de direito. É uma opção legislativa de orientação
pedagógica para aprendizado constitucional recíproco90. Assim, para melhor compreender a
relação entre as ordens jurídicas, é importante compreender como se opera e como se
estrutura a ordem jurídica indígena.
2.2.1 As características do Direito Consuetudinário das comunidades indígenas
bolivianas.
Em seus estudos antropológicos, muito embora Xavier ALBÓ saliente que cada
uma das comunidades nacionais possua uma estrutura própria de administração da justiça
interna, ele aponta a presença de traços comuns que se manifestam na grande maioria dos
diferentes agrupamentos étnicos. Cada grupo comunga de uma referência cultural própria, a
qual é determinante para definir um princípio-matriz, um consenso axiológico fundamental
que permeia a ponderação de valores comunitários, irradiando-se na aplicação do código
lícito/ilícito para solução dos conflitos sociais.
As ordens jurídicas dessas comunidades diferenciam-se entre si justamente pela
presença desse referencial cultural próprio, garantidor do consenso suposto em cada um dos
agrupamentos indígenas. Cada comunidade possui uma identidade psíquica e espiritual
fundamental que a individualiza com relação às demais e que é determinante para a
construção de seus elementos jurídicos peculiares, mas o desenvolvimento das ordens
jurídicas apresenta certos traços estruturais comuns quanto à maneira como se
institucionalizam internamente as normas e como se manifesta o procedimento de tomada de
decisão no caso concreto.
Alguns desses traços estão presentes em praticamente todas as comunidades
indígenas bolivianas. Em seus estudos, Xavier ALBÓ fez um levantamento dos elementos
estruturais comuns que podem ser considerados como base de formação do que se
convencionou denominar Direito Consuetudinário indígena91. Vale ressaltar que, ao apontar
90 Os conceitos ora apontados de “orientação pedagógica”, “diálogo constitucional” e “tema gerador” serão melhor desenvolvidos no próximo capítulo. 91 Esta é a denominação utilizada por Xavier ALBÓ. Outro antropólogo boviano, Marcelo Fernandez OSCO, defende ser um equívoco chamar a ordem jurídica indígena de “direito consuetudinário” pois isto significaria considerá-la subordinada e essencialmente inferior ao direito Estatal. Porém, não há motivos para entender que a denominação direito consuetudinário represente uma desvalorização do direito indígena perante o direito estatal,
60
as características comuns, não se pretende deixar de lado as particularidades que envolvem
cada uma das comunidades, tendo em vista a riqueza de manifestações culturais das diferentes
etnias indígenas O intuito é traçar um perfil mínimo que permita caracterizar o direito
consuetudinário, diferenciando-o do direito Estatal. Para isso, são apontadas sete
características fundamentais.
Dentre as semelhanças estruturais apontadas por ALBÓ92, pode-se citar que de
uma maneira geral as comunidades baseiam sua ordem jurídica nos (i) costumes que se
desenvolvem por gerações. Daí a enorme importância que dão à tradição, ou seja, à
generalização congruente de expectativas comportamentais reiteradas que motivam o
surgimento de um conjunto de normas jurídicas visando à estabilização das relações sociais,
tentando diminuir o número de possibilidades reais de comportamento dos indivíduos e
aproximando-o do número de possibilidades atualizáveis pela ordem jurídica comunitária;
Além disso, deve-se ressaltar o fato de que nas comunidades indígenas o (ii)
fenômeno jurídico é entendido como um todo unitário, sem as fragmentações teóricas
comumente observadas na ordem jurídica ordinária entre direito público e direito privado, ou
direito constitucional, direito civil e direito penal. Para as ordens jurídicas indígenas, tudo
gravita em torno de um mesmo princípio-matriz advindo do referencial cultural comum, que
se localiza no centro da ordem jurídica irradiando seus efeitos em todas as oportunidades que
a autoridade é chamada para proferir uma decisão93;
(iii) Outro ponto comum é que a assembléia da comunidade constitui a principal
autoridade94, funcionando em um contexto jurídico totalizante das ordens locais como órgão
de manutenção dos costumes tradicionais, por meio de funções análogas às funções executiva,
legislativa e jurisdicional do Estado Democrático de Direito. Não há uma separação clara de
poderes e funções, tendo em vista o elevado grau de institucionalização interna da assembléia
mas representa uma classificação que permite aproximá-lo de sua característica marcante que é a formação estrutural com base nos costumes e na tradição comunitária. OSCO (2000). 92 En medio de las variantes propias de cada contexto cultural, el Derecho Consuetudinário presenta una serie de rasgos comunes como los siguientes: “1. Acumula una larga tradición de prácticas probadas en un determinado contexto cultural; 2. Se basa en una visión global, no sectorializada; 3. Es administrado por autoridades nombradas y controladas por la comunidad y su asamblea; 4. Suele funcionar a niveles más locales y directos; 5. Es fundamentalmente oral y muy flexible en el tiempo y el espacio; 6. No es automáticamente equitativo; 7. Está permanentemente abierto a influencias ajenas; 8. Su acceso y resoluciones son rápidos y de bajo costo; 9. Cuando el conflicto es interno, los arreglos acordados dan alta prioridad a la recuperación social del culpable y al mantenimiento de la paz comunal, más que al castigo, como tal; 10. Pero si ya no se percibe ninguna posibilidad de una reconciliación o se trata de delincuentes externos y desconocidos, se prioriza la intimidación y hasta su pleno rechazo por expulsión o incluso muerte. Xavier Albó, 1998, p. 4. 93 Em outra perspectiva, Marcalo Fernandez OSCO defende que o direito indígena é formado por uma trilogia de fundamentos imperativamente imbricados: sanção moral, sanção social e sanção jurídica. Osco, 2000, p. 15 94 Nesse mesmo sentido ver Osco, 2000, p. 15.
61
da comunidade como autoridade última e também em razão do caráter eminentemente
localizado, que faz com que seja desnecessária a existência de mais de uma autoridade para
cumprir as funções estruturais do agrupamento étnico. É a assembléia comunal que profere a
decisão final nos casos de conflito, sendo por excelência o órgão de controle do código
diferença do sistema jurídico dentro da comunidade;
(iv) O Direito Consuetudinário é barato e bastante acessível para os membros da
comunidade que pretendem levar seus conflitos à instância de decisão da Assembléia; além
disso, (v) É marcado profundamente pela oralidade95, o que não impede existirem certas
normas escritas em algumas comunidades. Essa oralidade contribui para outro fator comum e
importante que é (vi) a grande flexibilidade e adaptabilidade da ordem jurídica à solução do
caso concreto. Nas palavras do próprio ALBÓ,
“a diferencia del derecho positivo, el DC (direito consuetudinário) no es una norma fija dada de una vez por todas y que exige un pesado procedimiento para ser modificado. De ahí también su gran flexibilidad, según los actores y las situaciones, incluso dentro de un mismo lugar y época. No hay un único DC sino tantos como grupos culturales. Además, dentro de cada grupo cultural y sin apartarse de los principios generales que rigen su DC, hay una amplia gama de variantes locales.96” (grifo nosso).
A proximidade da autoridade manifestada pela Assembléia com o restante da
população comunitária torna a decisão proferida mais contemplativa à realidade dos
indivíduos em conflito, que tendem a respeitar a decisão não apenas por temerem as
conseqüências coercitivas da desobediência, mas porque se identificam com a Autoridade que
profere a sentença final. À medida que se submetem às decisões da assembléia, enxergam
uma relação de sentido na comunicação normativa e, mesmo sofrendo as conseqüências de ter
praticado um ato ilícito perante a comunidade, não chegam a negar ou a desconfirmar a
autoridade, não sendo raras as vezes que aceitam a sanção imposta, reconhecendo sua culpa e
o dever de recompensar a má conduta praticada.
Sentem-se sujeitos da relação de cometimento e não meros objetos-depositários de
imposições de dever-ser. Sentem-se sujeitos construtores da própria ordem jurídica que lhes é
95 Acerca deste tema OSCO (2000) defende que: “En nuestra perspectiva, el derecho indígena se rige por principios radicalmente distintos al derecho estatal, tanto en la tipificación de delitos como en los aspectos procedimentales y el objeto último de sancion, con un aparato coactivo esratuido por códigos orales como las iwrus (adagios juridicos), sawis (determinaciones, acuerdos), sara (ley), thakhi (camino, orden relacionado), taripaiia (tribunal), qamachi (administración de justicia). Estos términos apuntan directamente a un particular concepto de orden prático-legal normativo, de caracter indicativo y prescriptivo, cuya meta es la reconciliaci6n y no asi la sanción misma, corno concibe el derecho estatal que se rige por la dialectica y culpabilidad, inocencia y castigo”. 96 ALBÓ (1998).
62
imputada, tendo em vista que os costumes e tradições norteadoras das decisões são objeto de
uma experiência comunitária acumulada em meio as deliberações e diálogos entre a
comunidade e a Assembléia.
Por último, cumpre ressaltar como fato comum e relevante no direito das
comunidades indígenas, (vii) as penas imputadas aos transgressores das tradições mais
importantes do Direito Consuetudinário. Via de regra, a recuperação e a exclusão do
indivíduo que manifesta a conduta desviante são as conseqüências mais observadas nos
estudos de ALBÓ97.
Segundo afirma o autor, o resultado mais comum é a recuperação do indivíduo
que comete o desvio de comportamento, solução esta menos traumática e que ocorre em
benefício dele e de toda a comunidade. O direito consuetudinário tem como regra geral a
busca pela reconciliação da comunidade com o infrator. Porém, em certos casos, a
recuperação não se torna possível, e a solução encontrada pela Assembléia é o impedimento
do convívio do indivíduo delinqüente com o restante da comunidade. Essa solução, que ocorre
apenas ocasionalmente, pode se manifestar de duas maneiras. Ou o delinqüente considerado
culpado é expulso, “sacarlo en burro98”, como se diz no seio da comunidade, ou, em casos
ainda mais excepcionais é decretada sua pena de morte, que é executada pela própria
assembléia ou por quem ela decline a tarefa, não sendo raros os casos em que o próprio
sentenciado e sua família reconheçam a culpa, identificando a pena de morte como única via
para a solução do conflito.
Neste ponto reside o grande fator de resistência dos setores tradicionais da
sociedade no reconhecimento das ordens jurídicas indígenas pelo Estado, pois há um conflito
essencial entre as práticas comunitárias e o respeito ao direito à vida e aos valores
fundamentais dos Direitos Humanos. Todavia, deve-se atentar para certas características do
Direito Consuetudinário antes de pretender criminalizá-lo encarando-o aprioristicamente
como violação aos Direitos Humanos.
É preciso encarar este potencial conflito de valores sob uma epistemologia
fundada na pluralidade de manifestações culturais, e não sob uma visão universalista e
intolerante. Não se defende aqui um relativismo total com relação ao direito à vida, mas sim o
fato de que não se deve considerar as manifestações culturais dos povos indígenas sul-
97 ALBÓ, 1998, p. 8. 98 ALBÓ, 1998, p. 8
63
americanos de maneira intolerante, impondo barreiras ao reconhecimento de suas ordens
jurídicas, e excluindo desde o princípio a possibilidade de que por meio de um aprendizado
recíproco, os valores e práticas desses povos não possam humanizar-se no sentido de preferir
outros tipos de punição às condutas desviantes do que, por exemplo, a pena de morte99.
Reconhecer a ordem jurídica dos povos indígenas não pode prescindir de uma
relação dialógica na qual se construam maneiras de lidar com as diferenças culturais. Não se
pode afirmar a priori que as comunidades indígenas não são capazes de compartilhar valores
dos direitos humanos, uma vez que por meio do diálogo constitucional, as comunidades
indígenas podem entender que não devam mais realizar a prática da pena de morte, e por meio
da autoridade exercida pela assembléia comunitária, possam reeducar a população a não mais
nutrir a expectativa de aplicação da pena capital.
Por outro lado, também é possível que por meio do diálogo constitucional fique
evidenciado que a pena de morte é um desdobramento cultural fundamental de vital
importância para as comunidades indígenas, fazendo parte de sua identidade e determinação
enquanto etnia. Nesse caso, nada impede que o sistema jurídico reconheça algumas
mitigações à proibição da pena de morte, desde que inseridas no contexto da jurisdição
especial indígena, reeducando o restante da sociedade a aceitar esta prática excepcional como
uma manifestação de um valor essencial de certos povos inseridos no âmbito do Estado.
Antes de se iniciar qualquer polêmica sobe o assunto, devem ser evitados os
juízos que negam de plano a possibilidade de aprendizado mútuo entre as comunidades
nacionais e a possibilidade de construção conjunta de novos valores fundamentais para a
sociedade.
Ainda no que tange ao aspecto das penas aplicadas pelas comunidades indígenas,
vale lembrar que o mecanismo de expulsão do delinqüente parece ser em alguma medida
análogo ao mecanismo preponderantemente adotado pela jurisdição ordinária dos Estados
quando condena os sentenciados a cumprirem pena reclusos ao cárcere, distantes, portanto, do
convívio social.
Ademais, enfatizando-se o caráter de absoluta excepcionalidade na aplicação da
pena de morte pelas comunidades indígenas bolivianas, tem-se que os casos em que ela se
opera geralmente representam afronta à própria existência ou dignidade cultural da
99 Esta discussão será retomada com maior profundidade no capítulo seguinte. Por ora, cabe apenas apontar a existência do conflito potencial.
64
comunidade, como em casos de roubo ou violação de objetos e lugares considerados sagrados.
A ocorrência de fatos como esse gera uma verdadeira “psicose social coletiva100” no interior
do agrupamento social, que pode acarretar em linchamentos públicos de suspeitos. Então, para
evitar o completo descontrole emocional e o linchamento de inocentes, a Assembléia
comunitária centraliza o julgamento para identificar o verdadeiro culpado, que, como dito
acima, não raro confessa o crime e aceita juntamente com sua família o fato de que a sua
morte é a única maneira de haver reconciliação com a comunidade101.
Nos locais em que a autoridade indígena é difusa no meio social, como nas
periferias dos grandes centros urbanos bolivianos, quando ocorre a prática de condutas
consideradas graves e violadoras da cultura e dos valores étnicos fundamentais indígenas,
instaura-se o clima de psicose coletiva e, na maioria dos casos, ocorrem linchamentos
públicos102. Tais práticas provocam repúdio dos setores conservadores da sociedade, que
rechaçam as comunidades indígenas como instauradoras da barbárie social, e com as quais
não é possível uma convivência harmônica, fortalecendo o discurso de exclusão da elite
etnocentrista que não pretende ver as ordens jurídicas indignas reconhecidas pelo Estado.
Todavia, o que precisa ser entendido é que a prática dos linchamentos públicos se
deve justamente à falta de autonomia-identidade da ordem jurídica indígena e da ausência de
uma manifestação nítida de pluralismo jurídico, fazendo com que não seja possível existir
uma estrutura organizada para presidir o procedimento jurisdicional de identificação do
culpado mediante a aplicação do código lícito/ilícito e impossibilitando o fornecimento de
uma decisão ao caso que de fato pacifique as relações sociais para a estabilização das
expectativas envolvidas.
Por esse motivo, é importante o reconhecimento da jurisdição especial indígena
pelo documento político constitucional boliviano, e será ainda mais importante o
desenvolvimento da jurisprudência do órgão jurisdicional criado para a solução dos conflitos
100 ALBÓ, 1998, p. 8. 101 Sob esta mesma perspectiva, Marcelo Fernandez Osco afirma que para as comunidades indígenas, os casos de roubo ou violação de objetos considerados sagrados supõem uma interrupção do fluxo de energia das relações sociais que obriga necessariamente a reparação do dano na consciência individual do infrator e da comunidade. OSCO, 2000, p.22. Pode-se concluir que em casos mais graves esta reparação de consciência se daria apenas com a morte do delinqüente. 102 Albó apresenta um exemplo ilustrativo: “(...) En un barrio periférico de La Paz, había una racha incontrolable de robos y las autoridades vecinales decidieron finalmente intervenir. En una ronda nocturna pescaron a los delincuentes y los ahorcaron de inmediato en postes de luz, para escarmiento general. Al día siguiente, cuando la principal autoridad comunal descubrió que uno de los condenados no era ladrón sino un simple borracho del barrio, murió de infarto. Su pánico no era por haber administrado el castigo sin pasar a los delincuentes a la justicia ordinária (de la que todos desconfiaban) sino por haber castigado a un inocente.” ALBÓ, 1998, p. 9.
65
de competência entre a jurisdição ordinária e a jurisdição indígena. Apenas dessa maneira
evitar-se-á a instauração da “psicose social”, pois haverá uma maior identificação da
autoridade competente para protagonizar a apuração dos fatos e a aplicação do código jurídico
para o julgamento dos acusados.
Após a consideração das principais características do direito consuetudinário,
cumpre ressaltar os mecanismos e as estruturas que o legislador constituinte cria para
promover a relação entre as duas ordens jurídicas. Cabe analisar de que maneira o novo
documento constitucional boliviano pretende lidar com o pluralismo jurídico reconhecido em
seu sistema de Direito.
2.2.2 O Tribunal Constitucional Plurinacional
Contrariamente ao pensamento europeu tradicional o centro do sistema jurídico
não é mais o poder legislativo. Segundo afirma Teubner, o centro do sistema jurídico reside
atualmente na hierarquia dos tribunais103. Os juízes e tribunais produzem o direito em sua
forma mais autônoma uma vez que ao aplicarem a distinção lícito/ilícito para a solução dos
conflitos sociais são capazes de estabilizar as expectativas sociais, pacificando entendimentos
acerca de matérias controvertidas e assim, criam novas formas de expectativas congruentes e
especializadas104.
Destarte, o estudo dos tribunais, principalmente o estudo dos tribunais superiores,
é de vital importância para entender como se estrutura o sistema jurídico de um Estado. No
caso do novo documento constitucional da Bolívia, o principal órgão de exercício da função
jurisdicional do Estado é o Tribunal Constitucional Plurinacional.
Este órgão é o responsável pelo zelo aos princípios e regras constitucionais, bem
como pelo controle de constitucionalidade. É, portanto, o principal intérprete das normas
constitucionais, e se afigura como o órgão supremo do sistema jurídico105.
Em sua própria denominação, o tribunal demonstra sua principal característica que
é a plurinacionalidade, ou seja, é um órgão jurisdicional construído em comunhão pelas
103 TEUBNER, 2005, p. 98. 104 TEUBNER, 2005, p. 98 105 Artículo 196. I. El Tribunal Constitucional Plurinacional vela por la supremacia de la Constitución, ejerce el control de constitucionalidad, y precautela el respeto y la vigencia de los derechos y las garantías constitucionales.
66
diferentes comunidades nacionais para figurar como centro de gravidade visando a promover
a integração do sistema jurídico.
O tribunal constitucional plurinacional é a última instância de decisão e se dispõe
hierarquicamente acima das ordens jurídicas existentes no sistema, com uma jurisdição
superior que se sobrepõe permeando tanto à jurisdição ordinária quanto à jurisdição especial
indígena. É o tribunal constitucional plurinacional que tem a incumbência de julgar os
conflitos de competência envolvendo a jurisdição ordinária e a jurisdição indígena. Ou seja, é
o órgão jurisdicional incumbido de estabelecer para cada caso concreto em que houver
divergência qual a jurisdição que deve ser aplicada106.
Para respeitar a diversidade cultural e o pluralismo jurídico e assim conferir maior
legitimidade para suas decisões, o tribunal constitucional é formado por Magistrados eleitos
segundo critérios de plurinacionalidade, ou seja, há uma distribuição paritária de
representantes da ordem jurídica ordinária, que exercem a jurisdição estatal, e da ordem
jurídica indígena originária campesina, que exercem a jurisdição especial em seus territórios.
Os magistrados serão eleitos por meio de sufrágio universal e para formalizarem a
candidatura devem preencher requisitos específicos. Os candidatos advindos da ordem
jurídica ordinária devem ter pelo menos trinta e cinco anos além de ter pelo menos oito anos
de experiência no estudo ou magistério das disciplinas de Direito Constitucional, Direito
Administrativo ou Direitos Humanos. Para os candidatos advindos da ordem jurídica especial
indígena, exige-se que tenham exercido a qualidade de autoridade em meio a uma
comunidade nacional indígena, ou seja, que tenham sido membros da assembléia
comunitária107.
Esta disposição estrutural do Tribunal Constitucional é fundamental para garantir
que o sistema jurídico reste permeado pela plurinacionalidade, consagrando o pluralismo
jurídico no interior do Estado. Como afirma Raul Prada ALCOREZA:
“El órgano judicial se constituye a partir de la complementariedad de dos formas de justicia, la formal, “occidental”, ordinaria, y la justicia comunitaria que, a pesar de manifestar un carácter práctico, tiene otra formalidad, ceremonialidad y valores. La
106 “Artículo 202. Son atribuciones del Tribunal Constitucional Plurinacional, además de las establecidas en la Constitución y la ley, conocer y resolver: (...)11. Los conflictos de competencia entre la jurisdicción indígena originaria campesina y la jurisdicción ordinaria (...).” 107 Artículo 199. I. Para optar a la magistratura del Tribunal Constitucional Plurinacional se requerirá, además de los requisitos generales para el acceso al servicio público, haber cumplido treinta y cinco años y tener especialización o experiência acreditada de por lo menos ocho años en las disciplinas de Derecho Constitucional, Administrativo o Derechos Humanos. Para la calificación de méritos se tomará en cuenta el haber ejercido la calidad de autoridad originaria bajo su sistema de justicia.
67
complementariedad de ambos sistemas propone una articulación dual, enriquece y expande las formas de administración de justicia, estableciendo una comisura en la ligazón de ambos en términos de tribunales que comparten una conformación plurinacional e intercultural. El tribunal constitucional es plurinacional intercultural, garantizando de esta forma la interpretación de ambos sistemas, la conjugación y la conjunción de los mismos
108.
A participação obrigatória e paritária de Magistrados advindos das comunidades
indígenas apresenta uma forte tentativa de superar as relações tradicionais de subintegração
dessa parcela da população ao sistema jurídico, e ademais, proporciona uma igualdade de
poder de decisão que permite a inauguração de uma relação horizontal no tratamento de
questões constitucionais, como o controle de constitucionalidade e a defesa dos princípios
consagrados pelo documento constitucional.
A intenção do legislador é não permitir um desenrolar assimétrico na relação entre
a ordem jurídica ordinária e a ordem jurídica indígena, garantindo absoluta igualdade de
condições e consagrando a total ausência de hierarquia. O objetivo é não permitir a
interferência desmedida de uma ordem jurídica na outra, garantindo maior autonomia
operacional e evitando o estabelecimento de sobreposições de códigos de comunicação de
uma sobre a outra, gerando bloqueios reciprocamente destrutivos e desestruturantes que, por
fim, resultariam em uma miscelânea de códigos jurídicos e sociais.
O legislador então coloca o Tribunal Constitucional, enquanto instância suprema
do sistema jurídico, como protagonista da relação horizontal entre as ordens jurídicas e as
jurisdições existentes no território boliviano, atuando como centro de gravidade que permite a
existência do pluralismo jurídico.
Deste modo é possível visualizar o sistema jurídico proposto no novo documento
político boliviano como sendo formado pela fragmentação em duas ordens jurídicas
periféricas referentes às comunidades nacionais (tanto indígena quanto ordinária),
funcionando operacionalmente de maneira não totalmente diferenciada, como sistemas
parcialmente autônomos de comunicação com base na aplicação do código-diferença
lícito/ilícito segundo critérios e valores próprios de auto-referência, processualização e
normatividade, acopladas estruturalmente pela meta-união em um sistema jurídico único, cujo
centro consiste na sobreposição do órgão de controle e calibração do Tribunal Constitucional
Plurinacional, o qual, por sua vez, é composto por Magistrados advindos do exercício da
jurisdição das duas ordens jurídicas diferentes em condições iguais de representatividade.
108 ALCOREZA, 2008, p.42
68
Em resumo, o sistema jurídico é constituído por dois círculos de auto-referência
comunicacional jurídica que operam de maneira parcialmente autônoma tendo em vista que
estão acoplados entre si e a um meta-círculo comunicacional baseado no poder de decisão do
Tribunal Constitucional que a eles se sobrepõe.
A disposição paritária do Tribunal é antes de tudo um estímulo para o
desenvolvimento de uma relação dialógica entre as duas ordens jurídicas pertencentes às
comunidades nacionais acerca das questões constitucionais que envolvem o meta-cículo
comunicacional de coordenação e calibração sistêmicas, permitindo que a Constituição não
seja um fenômeno absolutamente estático e preso ao texto do documento político, mas que
seja um movimento dinâmico e interpretativo, por meio do qual a sociedade não é constituída,
mas está sendo constituída.
A Constituição da Bolívia passa a ser um movimento de construção recíproca e
permanente das estruturas do Estado com base no diálogo constitucional de valores sob o
prisma da plurinacionalidade. A plurinacionalidade e o diálogo intercultural formam o que se
pode considerar princípio-matriz constitucional que permeia todo o sistema jurídico boliviano.
Os grandes conflitos entre os valores existentes nas diferentes comunidades que formam a
sociedade boliviana serão objeto, em última instância, do debate protagonizado pelo Tribunal
Constitucional formado pelas ordens jurídicas em pé de igualdade. Para que este debate seja
proveitoso, não é possível que os magistrados e intérpretes adotem uma posição intolerante de
valorização de suas próprias manifestações culturais em caráter universal. Devem partir de
uma epistemologia fundada na pluralidade de manifestações do fenômeno jurídico e na
vontade de aprender com o outro.
É necessário então a adoção de uma relação pedagógica peculiar, que permita
tomar os valores em conflito intercultural potencial, como no caso do respeito ao direito à
vida, como temas geradores que impulsionem o diálogo. Apenas com a humildade de cada um
dos magistrados do tribunal constitucional será possível que a Bolívia constitucionalize-se por
meio de um aprendizado recíproco e da construção conjunta de valores com base no consenso
que se obtém pelo dissenso axiológico presente nas comunidades nacionais.
Os direitos e garantias presentes no texto constitucional funcionam como uma
codificação da realidade. O que importa aos intérpretes constitucionais é descodificar os
direitos fundamentais garantidos pelo Estado por meio de uma relação dialógica que permita a
ambas as ordens jurídicas expor a sua experiência acumulada acerca daquele valor
consagrado.
69
Assim, será possível que cada ordem jurídica eduque-se com base na apreensão
valorativa da outra, à luz da maneira culturalmente diferente que o outro lida com o mesmo
valor, ou com um valor análogo, e assim, buscar constituir um novo valor que contemple as
visões de mundo diferentes, consagradas pelas expectativas congruentemente generalizadas
de cada uma das ordens jurídicas, a fim de que, em última análise, tornem-se expectativas
generalizadas de toda a sociedade na construção de um consenso contemplativo que respeite a
autonomia e o dissenso valorativo essencial de cada comunidade.
Esse movimento de construção constitucional permanente e dialógica que permite
o aprendizado mútuo entre as comunidades é que pode garantir uma Constituição
verdadeiramente democrática, e um aparato burocrático com maior capacidade de apreensão
dos fenômenos jurídicos e políticos, mais capaz de absorver a ultra-complexidade do
ambiente social.
É claro que a mera previsão no texto constitucional da existência de um tribunal
paritário para atuar como protagonista na relação entre as duas ordens jurídicas distintas não é
suficiente para garantir que essa relação se dê de fato simetricamente de maneira a evitar a
sobreposição de uma ordem jurídica em relação à outra. A concretização desta previsão
dependerá de se na prática o Tribunal Constitucional Plurinacional poderá transcender as
relações de subintegração sistêmica percebidas pelas comunidades indígenas ao longo dos
séculos no continente latino-americano.
Se mesmo com a nova ordem constitucional em vigor na Bolívia as relações de
inclusão/exclusão ou as relações de ter/não-ter continuarem a ser determinantes para a
apreciação do sistema jurídico, não será possível verificar satisfatoriamente o desempenho do
tribunal plurinacional109.
Além disso, será preciso elaborar um método para a realização da
constitucionalização recíproca das ordens jurídicas no seio dos diálogos interculturais
protagonizados pelos magistrados do Tribunal. Este método de relação e conversação
constitucional é a proposta contida no capítulo seguinte.
109 NEVES, 2009, p. 69.
70
3. PROPOSTA PARA A RELAÇÃO CONSTITUCIONAL
ENTRE AS ORDENS JURÍDICAS INDÍGENAS E O DIREITO ESTATAL
NA AMÉRICA LATINA
Até o momento tomou-se como ponto de partida o conceito de pluralismo jurídico
para buscar compreender a relação entre duas ordens jurídicas sob a égide de um mesmo
Estado. Procurou-se identificar no modelo adotado pelo recente movimento constitucional
boliviano uma forma de relacionamento entre uma ordem jurídica local, referente às
comunidades indígenas, e a ordem jurídica estatal.
Porém, o que se observa do exemplo boliviano é que a mera constatação do
pluralismo jurídico e o embate ideológico entre monismo/pluralismo no âmbito dos sistemas
sociais de comunicação não apresenta uma solução satisfatória para os problemas que
emergem nas relações sociais interculturais.
É preciso ir além das meras constatações de diferença nas manifestações culturais
da sociedade, da mera constatação da existência de uma ordem jurídica própria das
comunidades indígenas. Deve-se buscar compreender a contribuição de cada comunidade
diferenciada na construção das estruturas sociais comuns. É preciso transcender as
concepções hirtas de pluralismo jurídico e de sociedade multicultural para entender qual o
papel da Constituição do Estado na relação entre as diferentes comunidades que a compõem.
A pluralidade de manifestações jurídicas e culturais que se opera na modernidade
não pode mais ser contemplada de maneira estática pelo jurista. Quem estuda o fenômeno
jurídico na pós-modernidade tem de encará-lo sob o prisma de uma dinâmica inerente, de um
movimento constante de construção de novas expectativas normativas por meio de
interpenetrações recíprocas dos outros sistemas parciais de comunicação.
Nesse aspecto, a teoria dos sistemas pode contribuir somente como um referencial
teórico inaugural, pois como já foi abordado no primeiro capítulo, no âmbito da América
Latina a autopoiese dos sistemas sociais ocorre apenas excepcionalmente enquanto que
alopoiese é a regra. Dessa forma, para o estudo da relação entre ordens jurídicas presentes
nesse contexto deve-se aprimorar a noção de acoplamento estrutural que pode não ser
suficiente para compreender as influências e interpenetrações realizadas pelos sub-sistemas
jurídicos fragmentados.
71
Assim, há que se levar em consideração a proposta de Marcelo Neves, acerca do
“transconstitucionalismo” como uma nova maneira de pensar a relação entre ordens jurídicas
estatais e ordens jurídicas locais extra-estatais110, principalmente no que tange ao
aprimoramento do conceito de acoplamento estrutural de Niklas Luhmann à luz do conceito
de “razão transversal111” proposto por Wolfgang Welsh. Da interação entre esses dois
referenciais teóricos, Marcelo Neves apresenta a noção de “pontes de transição112” entre como
elemento-chave para o surgimento de uma relação contínua de influência recíproca
estruturada e aprendizado mútuo entre sistemas comunicacionais diferenciados. É ao estudo
dessa nova proposta de convivência sistêmica entre ordens jurídicas distintas que este último
capítulo se dedica.
O primeiro passo para a compreensão do “transconstitucionalismo” e da
construção de pontes de transição na relação entre ordens jurídicas tem de ser um
compromisso do jurista com a superação da posição sectária no que diz respeito às diferentes
manifestações culturais e jurídicas. O sectarismo não mais se justifica na epistemologia
jurídica da sociedade moderna hipercomplexa. A tolerância e a alteridade devem ser a tônica
do pensamento e da tomada de decisões para a estabilização das expectativas sociais.
Após, será proposto um método para o transconstitucionalismo sob o prisma da
teoria da ação dialógica, e da pedagogia libertadora de Paulo Freire113, a fim de que o conceito
se instrumentalize em uma nova maneira de lidar com a existência da pluralidade de
manifestações do fenômeno jurídico, permitindo o entrelaçamento horizontal e o aprendizado
recíproco entre as ordens jurídicas, para que se constitucionalizem em comunhão por meio da
“conversação constitucional114”. É preciso adotar uma pedagogia própria para o diálogo
constitucional entre ordens jurídicas, principalmente no que diz respeito às ordens de
comunidades tradicionalmente subintegradas ao sistema social que são reconhecidas e
institucionalizadas paralelamente à ordem jurídica ordinária do Estado, bem como no que diz
respeito às ordens jurídicas de Estados não constitucionais e antidemocráticos, os quais a
priori não estariam dispostos ao diálogo.
Como referencial de estrutura que permita a aplicação deste método e conceito
apresentados anteriormente, será levada em consideração a proposta do legislador constituinte
110 NEVES, 2009. p. 190. 111 WELSCH, 1998. p.25. 112 NEVES, 2009. p.37 113 FREIRE, 2005. p.191 114 NEVES, 2009, p.XVIII.
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boliviano ao criar o Tribunal Constitucional Plurinacional para figurar como protagonista
fundamental da manutenção das pontes de transição entre a ordem jurídica indígena e a ordem
jurídica estatal, ressaltando-se o grande potencial deste órgão jurisdicional para criar uma
jurisprudência fundada na racionalidade transversal, nos diálogos constitucionais de
construção estrutural conjunta e no aprendizado e intercâmbio recíproco de experiências
jurídicas acumuladas pelas diferentes comunidades nacionais para a solução de problemas
sociais e jurídicos comuns.
3.1. Por uma superação da epistemologia monista-sectária: Os conceitos de
transculturalidade, razão transversal e transconstitucionalismo.
3.1.1 Identificação da epistemologia monista e sectária.
Não há como desvincular monismo de sectarismo, pois todo monismo leva
invariavelmente ao antidiálogo, à incapacidade de observar o outro senão sob um olhar de
superioridade, impossibilitando o aprendizado mútuo, para o qual é necessário sempre o olhar
horizontal, pressuposto da capacidade de aprender com o diferente.
No nosso modo de entender, a epistemologia monista-sectária é o grande entrave
na compreensão da complexidade jurídica da sociedade atual. Ela limita a capacidade de
apreensão dessa complexidade, fazendo com que se adote uma posição intolerante com
relação à pluralidade e à alteridade. Por ser uma perspectiva de valorização da unidade
totalizante e universalizante de uma racionalidade parcial115, tem como principal objetivo a
afirmação do essencialmente relativo como invariavelmente absoluto, pois acredita que
permitir a influência do que vem de fora, ou seja, permitir a influência da racionalidade
parcial do outro, corresponde a uma necessária desvalorização do que está dentro.
Adverte-se desde logo que é impossível compreender o Direito e a sociedade pós-
moderna em toda a sua complexidade de relações partindo de um pressuposto uno e sectário
de valores. A sociedade pós-moderna é mundial e multicêntrica116. Os sistemas parciais de
comunicação ao se auto-referenciarem por meio de seu código-diferença próprio, pretendem
115 Racionalidade parcial deve ser entendida como a possibilidade de apreensão de um elemento cognoscível do ambiente por meio de sistemas (ou subsistemas) de comunicação diferenciados, cuja perspectiva é limitada pela aplicação do código-diferença auto-referencial próprio do sistema. 116 Nesse sentido, NEVES, 2009. p.21.
73
cada qual figurar como ultima ratio, obstinando-se a querer fazer prevalecer a aplicação de
seu código binário sobre os demais. Os sistemas especializam-se e, diferenciando-se, buscam
totalizar-se em relação aos demais sistemas pretendendo ocupar a posição de maior destaque
para explicar os fenômenos do ambiente. Assim, a sociedade torna-se policontextural, pois há
uma pluralidade de discursos especializados com pretensão de universalização e auto-
suficiência operacional e explicativa117.
Dessa forma, por exemplo, a economia pretende protagonizar a explicação dos
fenômenos sociais, sobrepondo-se aos discursos políticos, jurídicos e educacionais, buscando
uma auto-afirmação com relação aos discursos próprios do direito e da educação, exercendo
forte pressão, oriunda da força do sistema econômico no período da globalização, para que o
código diferença ter/não-ter e as racionalidades parciais de custo benefício sobressaiam às
conclusões advindas de outros sistemas de comunicação. Da mesma maneira, modernamente
a ciência busca ser a ultima ratio no fornecimento de respostas às angustias e dúvidas
humanas, pretendendo sobrepor-se a qualquer custo sobre o discurso religioso ou metafísico.
Todavia, não é possível mais crer nesta auto-suficiência discursiva, tendo em vista
que cada sistema diferenciado de comunicação possui apenas uma racionalidade parcial. Cada
sistema parcial absorve a complexidade do ambiente de acordo com uma perspectiva limitada
de observação. Esta perspectiva limitada diz respeito ao código binário próprio de
comunicação. Destarte, o sistema jurídico sempre apreende a realidade por meio de uma
perspectiva que leva em conta o caráter lícito/ilícito. A economia, por sua vez tem a
perspectiva limitada pelas relações ter/não ter, e a política pelas relações entre quem detém o
poder e quem exerce oposição ao poder.
Por exemplo: o economista tem uma visão acerca do contrato a qual, por sua vez,
diferencia-se da visão do jurista. O economista tem em mente a relação de custo benefício, o
quanto se pode ganhar ou perder com o negócio. Já o jurista está atento para todas as
possibilidades de adimplemento ou inadimplemento contratual, de como se pode fazer para
garantir o adimplemento da outra parte, mesmo que seja forçado, de como se faz para evitar a
ocorrência de vícios de consentimento das partes na consecução do negócio e etc. Por esse
motivo o fenômeno contratual para a racionalidade parcial jurídica é diferente do que
representa para a econômica.
117 NEVES, 2009. p.22.
74
Cada uma apreende o fenômeno de acordo com sua perspectiva limitada. O
economista geralmente acha o jurista “impertinente” no momento do fechamento de um
negócio, pois este fica a todo o momento alertando os agentes econômicos das inúmeras
possibilidades de frustração da execução do contrato, o que causa desestímulo no momento
em que as partes mais desejam contratar e pode proporcionar um aumento do preço ou da
valorização dos riscos inerentes ao negócio, antes desconsiderados. O jurista por sua vez,
acredita que o economista seja um inconseqüente ao exaltar apenas as vantagens/desvantagens
econômicas sem levar em conta os efeitos de um possível conflito entre os contratantes no
futuro.
Ou seja, cada sistema diferenciado de comunicação tem uma visão limitada e
parcial do ambiente, não podendo considerar-se auto-suficiente sob pena de jamais conseguir
compreender satisfatoriamente a complexidade social em sua inteireza. Para que isso aconteça
é preciso o entrelaçamento de todas as perspectivas limitadas, uma união estruturante e
holística de todas as racionalidades parciais118. Se uma racionalidade parcial pretender
colocar-se em um patamar superior, deixando de levar em conta as perspectivas dos demais
sistemas diferenciados, torna-se intolerante e autista. Em sua pretensão de universalização,
passa a reproduzir-se em um isolamento que a distancia da compreensão do ambiente.
As racionalidades parciais, sejam elas jurídicas, políticas ou econômicas, não
podem ter a cobiça de a todo o momento querer unificar exclusivamente a múltiplas
expectativas sociais119 - cognitivas ou normativas - em totalidades, confeccionando categorias
hipotéticas universais, e desconsiderando sua limitação essencial de perspectiva120.
A pretensão de auto-suficiência de uma racionalidade parcial é um grande
problema de ordem epistemológica, pois inevitavelmente evolui para o surgimento de
posições monistas e sectárias. Isso provoca um bloqueio essencial no desenvolvimento de um
ambiente de dissenso democrático. O dissenso fica prejudicado pois o monista-sectário não
está disposto a contemplar a experiência acumulada por outra racionalidade parcial acerca do
118 CAPRA, 2006, p 259. Holístico refere-se ao equilíbrio dinâmico entre tendências auto-afirmativas e integrativas no processo biológico subjacente de auto-organização de estruturas em múltiplos níveis nos organismos biológicos. Em cada nível estrutural os holons atuam como interfaces, ou seja, como pontes de revezamento entre os vários subsistemas orgânicos. Importando este conceito das ciências biológicas, conclui-se que para uma melhor apreensão do ambiente social é necessário que se estabeleçam pontes de revezamento holísticas entre as diferentes racionalidades parciais. 119 WELSCH, 1998, pp. 25. Fala exatamente da pretensão de exclusividade de certas perspectivas limitas de racionalidade, que não obstante tenham apreensão racional limitada, frequentemente possuem uma ilimitada auto-confiança. 120 Nesse sentido, NEVES, 2009, p.22.
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mesmo fenômeno por ele observado, e por esse motivo, não colabora na busca de um
consenso, mas pretende fazer valer sua perspectiva particular em relação a todas as demais,
atribuindo a ela o caráter de compreensão universal do fenômeno, para a qual não admite
mitigações.
A pretensão universalizante deste tipo de pensamento, que em seu fanatismo não
é capaz de admitir a limitação de perspectiva na compreensão da realidade, que se obstina a
delimitar rigidamente onde termina o ego de uma racionalidade parcial, e se inicia o alter, só
chega a conclusões restringidas, provincianas, e, atualmente, contenta-se a profetizar seus
próprios fracassos de abrangência explicativa. Por não conseguir compreender e lidar com as
diferenças de perspectiva, tendo em vista sua inexperiência dialógica e democrática, a
epistemologia monista cria toda uma esfera fatalista em torno de um mundo com problemas
de difícil ou impossível solução, ostentando crises insuperáveis nos mais variados campos do
conhecimento humano (direito, economia, educação e etc.), o que, a bem da verdade, consiste
numa retroalimentação de seus pressupostos filosóficos ineficientes.
Esse universo fatalista e desesperançoso com relação aos problemas da pós-
modernidade nada mais é do que reflexo do erro de perspectiva na apreensão da
complexidade social, porque as racionalidades parciais desenvolvem-se sobre o mito
presunçoso da auto-suficiência. Abdicam da troca de experiências acumuladas por outras
racionalidades parciais, as quais consideram inferiores ou ineficientes para explicar os
fenômenos do ambiente.
Assim, isolam-se na crença equivocada de que suas respostas contemplam
qualquer dúvida ou conflito que possa surgir na sociedade. Já se tornam defensoras da
unidade universal de seus próprios atos de comunicação diferenciados, enfatizando a clausura
operacional do sistema parcial, esquecendo-se de sua necessária abertura cognitiva para o
ambiente, como condição intrínseca para o próprio fechamento. Tornam-se então perspectivas
monistas e sectárias de valorização exclusiva de ego em detrimento de alter.
Por monista deve-se entender esta concepção que defende a unidade pura e
simples da racionalidade parcial de um sistema comunicacional diferenciado como auto-
suficiente, desconsiderando a super-complexidade da sociedade pós-moderna. O termo
sectária é empregado no sentido que lhe dá Paulo Freire: “(...) a sectarização tem uma matriz
preponderantemente emocional e acrítica. É arrogante, antidialógica e por isso
anticomunicativa. (...) O sectário nada cria porque não ama. Não respeita a opção dos outros.
Pretende a todos impor a sua, que não é opção, mas fanatismo. Daí a inclinação do sectário ao
76
ativismo, que é ação sem vigilância da reflexão. Daí seu gosto pela sloganização, que
dificilmente ultrapassa a esfera dos mitos e, por isso mesmo, morrendo nas meias verdades,
nutre-se do puramente ‘relativo que atribui valor de absoluto121”
O pensar e o agir do jurista na pós-modernidade não pode mais comungar dessa
perspectiva falaciosa. Enquanto a epistemologia unitarista, monista, sectária e antidialógica
for a base para a compreensão de fenômenos sociais em conflito, de fato o desenvolvimento
complexo da sociedade estará sempre muito distante da possibilidade de compreensão e
reflexão dos indivíduos, os problemas restarão sem uma resposta contemplativa e as
expectativas estarão longe de ser estabilizadas de maneira efetiva.
O entendimento da complexidade social por meio dos sistemas parciais de
comunicação deve iniciar-se por uma relação linear e horizontal para com o outro, que me é
diferente. Ego e Alter não devem jamais se sobrepor. Sua relação é fundada basicamente na
comunicação, e o pressuposto dessa relação de comunicação não pode ser hierárquico. Deve
ser horizontal. Isto implica uma observação mútua, que se permeia pelo diálogo e pelo
aprendizado recíproco entre as racionalidades parciais que leva à construção conjunta de
conclusões para problemas comuns.
Se ego tenta simplesmente sobrepor seus valores e sua razão parcial a alter, ou
ainda, se se recusa a meramente observar os valores de que alter comunga, recusa-se ao
diálogo porque se considera superior, como se os valores e a racionalidade de alter fossem
inferiores e não merecessem maiores considerações.
Nesse caso ocorrerá sempre um distanciamento, um bloqueio recíproco de
comunicação que destrói as possibilidades de aprendizado mútuo, abrindo caminho para uma
relação de dominação, que cedo ou tarde implicará o uso da violência. A imposição de valores
e de expectativas sobre o outro, negando-lhe o direito de construir por si mesmo seus próprios
valores e expectativas é uma enorme violência.
Assim sendo, de nada adianta afirmar, por exemplo, a unidade e superioridade de
uma ordem jurídica em relação à outra, ou em relação a todo o direito internacional. Isso
apenas denota a inexperiência dialógica e democrática daquela comunidade, a qual, de
maneira intolerante, pretende fazer prevalecer seu modo particular de enxergar a realidade e
os problemas que cercam as relações humanas, impondo uma mera racionalidade parcial, de
perspectiva essencialmente limitada, como valor universal inquestionável.
121FREIRE, 2006. p.59.
77
Infelizmente, a retórica dos direitos humanos muito tem servido ultimamente para
a cristalização de valores unitários e universalizantes. O apelo à democracia e ao respeito aos
direitos humanos tem sido utilizado como critério de distinção de qualidade entre uma e outra
ordem jurídica existente, justificando a imposição desses valores por meio da força, como se
fosse possível "impor", de cima pra baixo, os valores da democracia e dos direitos humanos.
As racionalidades parciais de certas ordens jurídicas, como as ordens indígenas da
América Latina, acerca de valores fundamentais como o direito à vida, à liberdade e à
propriedade, construída ao longo dos anos pelo acúmulo de experiência consuetudinária, pela
generalização congruente de expectativas normativas das diferentes comunidades originárias,
têm sido desconsideradas por setores mais conservadores da sociedade que se utilizam da
retórica dos direitos humanos para argumentar pelo não reconhecimento do pluralismo
jurídico e pelo não reconhecimento da jurisdição especial indígena nesses Estados da América
Latina.
Este discurso intolerante das elites latino-americanas é reforçado pelo papel
desempenhado por certas lideranças políticas e econômicas que surgem no cenário
internacional como defensoras da democracia e dos direitos humanos, as quais se atribuem o
papel de impor militarmente esses valores às ordens jurídicas que não os respeitam, como se a
própria concepção de democracia e direitos humanos dessas lideranças não fosse ela mesma
uma mera racionalidade parcial, uma perspectiva limitada, que ao invés de ser imposta
deveria ser dialogada e construída horizontalmente com o restante das demais ordens jurídicas
do mundo.
Ao contrário do que pode imaginar o leitor mais cauteloso, a alternativa que aqui
se propõe não é ingênua. Não se nega que há ordens jurídicas que não se constituíram com
base em um referencial democrático. Não se nega que existam ordens jurídicas que não
respeitam e não comungam os valores dos direitos humanos. Pelo contrário. Há de fato ordens
jurídicas que negam veementemente qualquer desses valores de liberdade, igualdade e
solidariedade, e não estão sequer dispostas ao diálogo constitucional. Mas é para essas
comunidades, a despeito do que se pode conceber preliminarmente, que a relação horizontal e
o aprendizado mútuo por meio do entrelaçamento de experiências constitucionais torna-se
mais imprescindível.
O que se nega veementemente nesta oportunidade é a imposição unilateral dos
valores democráticos às sociedades antidemocráticas, como se se tratassem de comunidades
essencialmente inferiores jurídica e politicamente, como se devessem ser desconsideradas a
78
autonomia, os valores e o modo com a racionalidade parcial dessas comunidades
antidemocráticas percebem os fenômenos culturais e sociais.
É preciso que a comunidade antidemocrática perceba, por sua própria autonomia,
a importância da democracia e dos direitos humanos, e julgue com base em seu próprio
referencial axiológico se comungar destes novos valores é relevante para a construção de
novas bases para o desenvolvimento das estruturas comunitárias. O que não pode acontecer é
que a democracia e os direitos humanos sejam unilateralmente depositados sobre ordens
jurídicas tradicionalmente totalitárias e de inclinação ao Estado de polícia, à violência e à
opressão. Deve haver um diálogo constitucional ainda mais cuidadoso com essas
comunidades, há que se consolidar o estabelecimento de uma relação horizontal ainda mais
cautelosa por parte das demais ordens jurídicas democráticas mundiais, para que ajudem as
ordens antidemocráticas ou anti-constitucionais a democratizarem-se e a
constitucionalizarem-se autonomamente.
A ausência de diálogo constitucional denota a incapacidade de certas lideranças
políticas e econômicas em ajudar as ordens jurídicas antidemocráticas existentes atualmente a
democratizarem-se. As comunidades que não possuem referencial democrático, que não
respeitam a vida, a liberdade e a dignidade humana devem ser ajudadas a educar-se
constitucionalmente com base na construção de valores democráticos que surjam de seu
interior, que representem o consenso emergente de um dissenso essencial da sociedade.
Esta educação constitucional de democratização não pode jamais ser uma
educação depositária de valores pré-determinados pela ordem jurídica educadora, em que,
assimetricamente, a ordem jurídica democrática desconsidere a experiência social e
comunitária acumulada pela ordem jurídica interlocutora que está em processo de
transformação. Deve ser uma educação dialógica, desveladora do ambiente comunitário e das
respectivas expectativas sociais, que respeita a autonomia das comunidades antidemocráticas
em realizarem sua auto-composição estrutural e normativa com base em seus próprios
referenciais axiológicos, em uma relação na qual ordens jurídicas sejam educadoras e
educandas entre si, inobstante o fato de serem ordens jurídicas culturalmente diferentes. Há
que se elaborar uma pedagogia própria para as relações de aprendizado mútuo entre ordens
jurídicas.
As comunidades antidemocráticas têm uma visão limitada acerca da democracia e
dos direitos humanos, justamente porque tradicionalmente estão expostas a relações de
opressão. Não estão acostumadas a buscar consensos. Não se sentem capazes de fazê-lo por si
79
mesmas, e têm dificuldades em lidar com o dissenso, pois o referencial que possuem não é de
respeito mútuo às divergências de opinião, mas de imposição intolerante de uma ultima ratio
mediante o uso da força. Estas comunidades estão imersas no ativismo de reprodução das
relações de opressão, tendo nos regimes políticos repressivos o seu testemunho de
organização da vida social122.
O que comprova esta realidade é o fato de não serem raras as vezes em que
ocorrendo uma revolução contra um regime ditatorial que dominava uma comunidade
antidemocrática, instaurar-se uma nova ditadura ainda mais dura que a anterior, a qual irá se
destinar contrariamente ao grupo que exercera anteriormente a dominação política. Isso
ocorre porque no inconsciente coletivo desta comunidade estão imersas as relações de
opressão. A parcela oprimida da população internaliza o opressor, hospedando-o, e passa a
adotá-lo como uma referência, a qual irá reproduzir na primeira oportunidade que tiver de
tomar o poder123. O que ocorre nesses casos não é uma verdadeira revolução, pois a
comunidade de fato não se libertou das relações de opressão. Houve apenas uma inversão de
pólos da relação assimétrica de dominação. O sectarismo e a perspectiva limitada de
apreensão da complexidade social permanecem nos regimes que vão se sucedendo sem que a
comunidade antidemocrática tenha a oportunidade de refletir acerca de seu próprio destino124.
Por esse motivo, de nada adiantará a imposição unilateral e depositária da
democracia e do respeito aos direitos humanos sobre estas comunidades sem que lhes seja
dada a oportunidade de construir autonomamente um referencial democrático próprio, pois,
caso contrário, esta experiência não passará de mais uma imposição opressora e violenta a que
se submeterão os indivíduos que a ela pertencem. E o que é ainda mais delicado, é que se a
democratização vier a tornar-se uma experiência frustrante para estas comunidades, há o
122 FREIRE, 2008, p.35. 123 FREIRE, 2008, p. 36. Paulo FREIRE ao tratar da situação de opressão diz que o oprimido é um ser dual, que tem em si tanto sua consciência própria quanto a do opressor “hospedado”, que faz com que reproduza as relações de opressão por enxergar no opressor seu testemunho de homem. 124 Há exemplos como estes que se repetem na quase totalidade de relações de opressão do mundo. No Brasil, por exemplo, durante o período de escravidão os escravos libertos, ou que atuavam como capatazes dos donos das fazendas, tornavam-se, freqüentemente senhores ainda mais severos com seus semelhantes, agindo com ainda mais dureza e violência contra os indivíduos que ainda se encontravam na condição de escravos. Isso reflete o quanto a relação de opressão é capaz de violentar a condição humana por representar uma afronta vital à dignidade. O Oprimido imerso na relação de opressão tem o opressor como uma referência e paradoxalmente admira o opressor por este ser seu testemunho de humanidade. Quando supera a condição de oprimido sem a consciência desta mudança, passa a reproduzir as relações de opressão com ainda mais afinco, para se tornar cada vez mais parecido com o referencial valorativo que lhe foi imposto violentamente. Há exemplos disso até mesmo na literatura nacional, como a passagem do escravo Prudêncio em “As memórias póstumas de Brás Cubas”, obra de Machado de Assis. Brás Cubas, ao encontrar-se com Prudêncio que havia sido seu escravo na infância, surpreende-se com o fato de Prudêncio, agora liberto, tratar pior e ainda mais violentamente os próprios escravos, mesmo tendo sofrido a mesma violência no passado.
80
grande risco de permanecerem ainda mais avessas e reticentes à possibilidade de
transformação, aos referenciais democráticos. O Estado constitucional e a democracia não
devem ser concebidos para estas comunidades, mas devem ser construídos com elas. Elas têm
de ser sujeito do processo de transformação e democratização e não meros objetos, como
pretendem as intervenções militares de certas potências mundiais.
Assim, cumpre concluir que em hipótese alguma é possível que se imponha
unilateralmente a democracia, muito menos se obrigue a respeitar os direitos humanos. É
necessário uma conversação constitucional que respeite a autonomia da comunidade
antidemocrática na construção de seus próprios valores constitucionais. Esta conversação
constitucional deve ser mediatizada pelo aprendizado recíproco em comunhão com o restante
das outras ordens jurídicas existentes no mundo, as quais por sua vez, devem estimular a auto-
composição dos valores democráticos e constitucionais no seio das comunidades que não
comungam destes valores por meio do diálogo. Para isso há que se estabelecer um método.
Uma pedagogia própria que oriente as relações de aprendizado e entrelaçamento de valores,
expectativas, normas jurídicas, estruturas, manifestações culturais e etc.
3.1.2 Transculturalidade, razão transversal e transconstitucionalismo.
Para melhor representar a conversação constitucional e a construção conjunta e
dinâmica das estruturas sociais comuns, deve ser superada também a concepção de cultura
que identifica em cada comunidade nacional diferente uma esfera própria e homogênea de
manifestação cultural. As diferentes comunidades nacionais ao buscarem superar o sectarismo
para iniciar diálogo já não podem querer isolar-se como se fossem ilhas de cultura. Ao
permitirem-se aprender com a experiência do outro, as comunidades e as diferentes ordens
jurídicas devem ser capazes de reconhecer o quanto do outro já é fundamental para a
reprodução interna de seus atos próprios de comunicação.
O caráter plurinacional do Estado boliviano procura exatamente ir além da
formação de um Estado multicultural, que por sua vez seria uma soma de esferas culturais
isoladas as quais têm o interesse de coexistir em um mesmo território e sob o mesmo aparato
burocrático. Essa idéia sugere que o isolamento das comunidades é a regra e o compromisso
multicultural do Estado é garantir que as relações esporádicas entre as diferentes esferas de
cultura não seja traumático, evitando conflito entre mundos diferentes que não se misturam.
81
Essa concepção de culturas meramente conviventes e separadas por uma linha
tênue entre coexistência harmoniosa e potencial conflito étnico não representa mais as
necessidades do Estado Plurinacional. As comunidades nacionais não estão isoladas em
esferas autômatas de cultura e comunicação, mas interligadas, entrelaçadas e misturadas em
uma relação dinâmica de mútua interferência e de influência recíproca.
Nesse aspecto, tem de se reconhecer que as manifestações culturais do “outro” já
são determinantes para o desenvolvimento da “minha” cultura própria. Destarte, já não há
uma diferença tão clara onde termina o que é do “outro” e se inicia o que é “próprio”. Não há
mais fronteiras capazes de separar claramente as esferas cultuais homogêneas de um Estado
multicultural. Então, tem de se evoluir a idéia de relação intercultural, ou multicultural, que
parte do pressuposto da diferença intrínseca, do conflito essencial entre as diferentes
comunidades nacionais, para o que Wolfgang Welsh chamou de “transculturalidade125.”
Na transculturalidade há uma mistura complexa de visões de mundo diferentes,
um entrelaçamento de experiências acumuladas por múltiplas comunidades nacionais e que
vão determinando uma complementaridade entre racionalidades parciais próprias e as
racionalidades parciais do outro. Isso faz com que se ampliem as possibilidades de surgimento
de afinidades psíquicas e espirituais entre um grupo de indivíduos que transcende os limites
de uma única comunidade determinada. As racionalidades parciais dos sistemas de
comunicação das comunidades nacionais passam a tomar consciência de serem racionalidades
inconclusas, de que não são auto-suficientes para se referirem aos estímulos do ambiente.
Assim, passam a compor uma gama de “racionalidades transversais126”, que
buscam a compreensão do ambiente por uma junção de perspectivas diferentes, diminuindo
assim a possibilidade de contingência e o risco inerente de cognição superficial das interações
sistêmicas. A transculturalidade é uma primeira manifestação da leitura do mundo em
comunhão com o referencial do outro. É um reajuste de foco. Significa um primeiro passo
para a construção conjunta de uma lente comum para a observação da realidade, ampliando as
possibilidades dimensionais de compreensão em uma somatória de perspectivas limitadas,
mas complementares.
125 “(...)The concept of transculturality sketches a different picture of the relation between cultures. Not one of isolation and of conflict, but one of entanglement, intermixing and commonness. It promotes not separation, but exchange and interaction. If the diagnosis given applies to some extent, then tasks of the future - in political and social, scientific and educational, artistic and design-related respects - ought only to be solvable through a decisive turn towards this transculturality.” WELSH, 1999. p.198. 126 NEVES, 2009, p. 37.
82
Segundo Welsch, a razão sempre possui a faculdade de fazer transições127. Ocorre
que com o aumento da complexidade social esta característica da razão passa a orientar uma
nova concepção de racionalidade, uma racionalidade que não parte de um referente individual
superior, de um ponto de vista anterior e sobreposto, mas é uma razão que transita
horizontalmente entre as formas de racionalidade diferentes128. O esforço racional da pós-
modernidade está em fazer transições entre as diferentes racionalidades que contemplam os
fenômenos do mundo da vida.
Destarte, conclui ser esta forma de razão o que ele designou de “razão
transversal”. A razão transversal é o elemento da razão que lhe permite a faculdade de fazer
transições entre diferentes formas de racionalidade, entre diferentes leituras do mundo
realizadas por outras perspectivas de um mesmo objeto cognoscível129. Somente assim seria
possível a compreensão do estado de desordem proporcionado pela grande complexidade da
sociedade moderna. Em meio ao aparente estado de desordem estabelecido pelas múltiplas
formas de racionalidade existentes, a razão transversal surge para estabelecer transições entre
as racionalidades parciais. Para buscar uma “orientação em meio ao estado de desordem130”.
Não propriamente para a busca de um consenso, ou de uma supra-racionalidade que se
sobreponha hierarquicamente às racionalidades parciais, mas para que conscientes de sua
inerente inconclusão, as racionalidades parciais busquem complementar sua contemplação da
realidade por meio de um entrelaçamento construtivo com a perspectiva do outro.
É esta concepção de razão transversal que Marcelo Neves utiliza para aprimorar o
conceito de acoplamento estrutural da teoria dos sistemas. Como salientado anteriormente, o
acoplamento estrutural serve para lidar com as influências recíprocas entre os diferentes
sistemas parciais de comunicação, permitindo que essas influências se dêem de maneira
duradoura sem interferir no processo de filtragem, proporcionando uma liga entre as
estruturas sistêmicas sem que cada sistema parcial perca sua autonomia131. Nesse caso, o
acoplamento estrutural atuaria como um filtro de influências intersistêmicas para garantir a
127 WELSCH, 1998, p. 25. 128 WELSCH, 1998, p. 25. 129 “(...) the axis of reason rotates from verticality to horizontality. Reason becomes a faculty of transitions. It does not contemplate from a lofty viewpoint, but passes between the forms of rationality. This is a consequence of its status of purity, since it is just as pure reason that it cannot begin with the possession of contents, but must operate processually. All reason's activities take place in transitions. These form the proprium and the central activity of reason. Reason is thus transformed from a static and principle-oriented faculty into a dynamic and intermediary faculty. In view of this transitional character, I designate the form of reason thus outlined "transversal reason". (WELSCH, 1998, p. 26). 130 WELSCH, 1998, p. 26. 131 NEVES, 2009, p.31.
83
autonomia dos sistemas. Porém, os acoplamentos estruturais ao permitirem a observação
mútua entre os sistemas diferenciados, colocam à disposição do sistema receptor uma
complexidade desestruturada a qual ele não é capaz de compreender integralmente por conta
própria.
O conceito de razão transversal adiciona um aspecto importante ao acoplamento
estrutural, que é a idéia de que as racionalidades transversais parciais dos respectivos sistemas
em observação desenvolvem pontes de transição que servem para o intercâmbio e o
aprendizado recíproco132. Dessa forma os sistemas de comunicação diferenciados ao
entrelaçarem-se em pontes de transição partilham de suas racionalidades parciais e
compartilham por meio de uma racionalidade transversal experiências sistêmicas acumuladas,
colocando à disposição do sistema receptor de informações uma complexidade preordenada,
que facilita a compreensão133. Destarte, os sistemas interlocutores são capazes de não apenas
observar-se mutuamente, mas de compartilhar dimensões cognitivas.
Nesse aspecto, por exemplo, a Constituição do Estado deixa de ser apenas um
acoplamento estrutural entre política e direito, para passar a ser também o estabelecimento de
pontes de transição entre a racionalidade parcial do sistema político e a racionalidade parcial
do sistema jurídico, proporcionando o aprendizado recíproco entre as dimensões de
perspectiva dos sistemas diferenciados, contribuindo para que possam construir
conjuntamente uma resposta aos estímulos do ambiente complexo. Este é o papel da
“constituição transversal134”. Estabelecer não apenas os limites entre os dois sistemas, mas
atuar como palco de uma relação dinâmica e duradoura de aprendizado mútuo e de troca de
experiências entre política e direito.
Fixadas estas premissas e tomando o aprimoramento do conceito de acoplamento
estrutural à luz da racionalidade transversal, é importante ressaltar como se observa o
fenômeno do estabelecimento de pontes de transição no sistema jurídico, principalmente no
que diz respeito ao relacionamento entre ordens jurídicas diversas. Pois como já foi salientado
anteriormente, o direito já não está mais vinculado estritamente aos limites territoriais do
Estado nacional, podendo ser identificadas ordens jurídicas no plano internacional,
transnacional, bem como no caso de manifestações de pluralismo jurídico, em que o sistema
jurídico de um mesmo Estado fragmenta-se internamente, apresentando duas ordens jurídicas
132 NEVES, 2009, p.43. 133 NEVES, 2009, p.43. 134 NEVES, 2009, p.55
84
semi-autônomas, conviventes sob o mesmo aparato burocrático estatal. Nesse caso, é possível
dizer que há mais de uma ordem jurídica com pretensão de aplicar o código binário próprio do
direito.
Para tratar desde aspecto do relacionamento entre diferentes ordens jurídicas que
transcendem o âmbito do Estado nacional, Marcelo Neves desenvolveu a noção de
“transconstitucionalismo135”. Há uma pluralidade de ordens jurídicas que se apresentam na
sociedade mundial, e cada qual se manifesta com a pretensão de controlar a aplicação do
código diferença lícito/ilícito. Cada uma dessas ordens possui uma racionalidade parcial
acerca do fenômeno jurídico que corresponde aos valores culturais respectivos das
comunidades a que se referem. Na medida em que surgem conflitos complexos e de grandes
proporções, os quais geram efeitos em mais de uma dessas ordens jurídicas surge o impasse
de como este conflito deve ser resolvido. Se as ordens jurídicas adotarem posições
intolerantes, acreditando serem auto-suficientes para lidar com o problema, e desconsiderando
a racionalidade parcial das demais ordens jurídicas envolvidas, há o risco de que o conflito
não seja satisfatoriamente resolvido, deixando o sistema jurídico de cumprir seu papel de
estabilizar as expectativas sociais.
O transconstitucionalismo é uma proposta de superação da epistemologia
monista-sectária no relacionamento entre ordens jurídicas. De nada adianta a identificação de
conflitos que envolvem mais de uma ordem jurídica constitucional em torno de problemas
referentes aos direitos humanos ou aos limites do exercício do poder, se as ordens jurídicas
atingidas pelos efeitos dos conflitos acreditarem ser auto-suficientes para apresentar uma
solução. Deve ser estabelecida uma conversação constitucional por meio do entrelaçamento
em pontes de transição para que as ordens jurídicas envolvidas possam compartilhar das
experiências jurídicas cognitivas e normativas entre si na solução conjunta do conflito. Para
isso não podem furtar-se ao diálogo, à humildade e ao respeito à alteridade, à vontade de
aprender com as soluções encontradas pelo outro. Nesse caso, o entrelaçamento constitucional
vai além de uma mera abertura cognitiva entre as ordens jurídicas, mas perfaz também uma
abertura normativa entre elas, permitindo que ambas compartilhem dos elementos jurídicos
utilizados pela experiência acumulada da outra.
Por esse motivo não podem ser mais aceitas no contexto da pós-modernidade
concepções de valorização cega do direito estatal como ultima ratio de decisão jurídica sob
135 NEVES, 2009, p.101.
85
pena de ferir a soberania do estado, bem como não se pode também afirmar a primazia do
direito internacional, ou do direito das ordens jurídicas locais, na defesa de um pluralismo
jurídico que permanece na superficialidade da identificação do conflito e do eterno impasse
em apresentar uma solução. Enquanto os juristas se debruçam na tarefa épica de afirmar qual
das ordens jurídicas deve deter a primazia para aplicação do código lícito/ilícito para um
determinado caso concreto, se é a ordem jurídica do Estado, ou a ordem jurídica internacional,
ou por outro lado a ordem jurídica indígena, melhor seria que direcionassem seus esforços no
estudo de como complementar as racionalidades parciais de cada uma das ordens jurídicas
envolvidas, entrelaçando-as para que ao comungarem das experiências jurídicas acumuladas
entre si, possam produzir conjuntamente uma decisão mais satisfatória para o problema,
instaurando pontes de transição que permitam o aprendizado recíproco, que por sua vez pode
servir para evitar que novos conflitos semelhantes surjam no futuro.
O transconstitucionalismo entre ordens jurídicas apresenta-se então como uma
superação da velha dicotomia monismo/pluralismo. Como afirma Marcelo NEVES:
“O transconstitucionalismo não toma uma única ordem jurídica ou um tipo determinado de ordem como ponto de partida ou ultima ratio. Rejeita tanto o estatalismo quanto o internacionalismo, o supranacionalismo, o transnacionalismo e o localismo como espaço de solução privilegiado dos problemas constitucionais. Aponta, antes, para a necessidade de construção de ‘pontes de transição’, da promoção de ‘conversações constitucionais’, do fortalecimento de entrelaçamentos constitucionais entre as diversas ordens jurídicas: estatais, internacionais, transnacionais, supranacionais e locais. O modelo transconstitucional rompe com o dilema ‘monismo/pluralismo’. A pluralidade de ordens jurídicas implica a perspectiva do transconstitucionalismo, a relação complementar entre identidade e alteridade.(...) 136”.
No contexto da modernidade periférica da América Latina e sua inerente
complexidade desestruturada de códigos jurídicos sociais, o transconstitucionalismo pode ser
concebido como um tipo ideal de relação entre as ordens jurídicas indígenas e as ordens
jurídicas dos Estados nacionais. Um modelo-guia para servir de perspectiva a ser alcançada
com o desenvolvimento da relação constitucional entre ordens jurídicas. Deve-se superar a
noção de pluralismo jurídico pela carga valorativa de separatismo, isolamento e conflito
étnico potencial que ela traz. A busca pelo reconhecimento das ordens jurídicas extra-estatais
no interior do território nacional não tem de ser encarada como afirmação e valorização do
dissenso essencial da sociedade, mas da procura incessante pelo consenso na solução dos
conflitos sociais comuns.
136 NEVES, 2009, p. XVIII.
86
3.2. O transconstitucionalismo entre ordens jurídicas presentes em um
mesmo Estado.
No que mais interessa a este trabalho, tem-se que transcontitucionalismo presente
na relação entre ordens jurídicas locais (extra-estatais), e ordens jurídicas ordinárias (estatais),
só é possível a partir do momento em que se identifica de fato o surgimento de um subsistema
jurídico parcialmente autônomo com pretensão de autonomia referencial e explicativa.
Enquanto os atos de comunicação jurídicos encontram-se difusos no meio social, pouco
diferenciando dos códigos sociais de comunicação, fica difícil afirmar a possibilidade de
entrelaçamento, ou de estabelecimento de pontes de transição.
No caso de alguns países da América Latina, como a Bolívia e a Colômbia, é
possível observar como as ordens jurídicas indígenas constituem-se em sistemas parcialmente
autônomos cuja racionalidade parcial acerca do fenômeno jurídico é compartilhada por uma
grande parcela da população. O reconhecimento das ordens jurídicas indígenas pelo texto
constitucional não é o único fator determinante, mas contribui para que se proceda à uma
relação constitucional de aprendizado recíproco entre a ordem jurídica local e a ordem
jurídica do Estado.
Todavia, geralmente as ordens jurídicas indígenas dizem respeito a comunidades
nacionais que em razão de seu referencial axiológico não comungam dos valores do
constitucionalismo, ou seja, da democracia, da limitação do poder e do respeito aos direitos
individuais. Esse fator pode causar um empecilho preliminar, pois a ordem jurídica indígena
pode não estar disposta ao diálogo transconstitucional. Porém, a ordem jurídica estatal não
pode pretender impor unilateralmente os valores constitucionais à ordem jurídica indígena,
sem respeitar sua autonomia e a racionalidade parcial desta comunidade acerca dos principais
temas dos direitos humanos.
A ordem jurídica estatal não pode adotar uma postura intolerante, mas tem de
buscar aprender o significado dos valores presentes na ordem jurídica indígena, para então
encontrar os meios necessários para ajudar a ordem jurídica indígena a constitucionalizar-se.
Não há como desconsiderar a experiência acumulada pelo direito consuetudinário indígena
acerca do direito à vida, à liberdade, à propriedade, ao meio ambiente e etc. O direito estatal,
se se permitir conhecer a racionalidade parcial da ordem jurídica indígena, pode encontrar
87
soluções e alternativas para problemas jurídicos às quais não poderia nunca ter chegado por
conta própria. Apenas pela perspectiva diferenciada e vivenciada pelo outro é que se podem
ampliar as possibilidades de apreensão do objeto cognoscível.
Da mesma maneira, as ordens jurídicas indígenas ao entrelaçarem-se
constitucionalmente com a ordem jurídica estatal podem descobrir novas leituras do ambiente
que produzem conclusões diferentes acerca dos conflitos sociais existentes no interior da
comunidade. Podem perceber que talvez a manutenção de penas duras como a pena de morte
não são uma solução satisfatória para diminuição da delinqüência. Mas as comunidades
indígenas devem perceber essa realidade de acordo com sua autonomia. Não pode haver um
imperialismo do direito estatal influenciando diretamente na formação constitucional da
ordem jurídica indígena.
Se a relação entre as ordens jurídicas for horizontal e de aprendizado recíproco
não há dúvida que ambas ampliarão sua capacidade de compreensão da complexidade jurídica
da sociedade. Como já salientado no item anterior, as ordens jurídicas devem ser educadoras e
educandas umas das outras. Apenas assim poderá estabelecer-se um transconstitucionalismo
verdadeiro, que respeite as racionalidades parciais em transição. Se a ordem jurídica indígena
mostrar-se intolerante, sectária e avessa aos valores constitucionais democráticos, o esforço
do diálogo transconstitucional da ordem jurídica estatal deve ser ainda maior para estimular a
ordem jurídica indígena a despertar a reflexão acerca do constitucionalismo. Porém a ordem
jurídica estatal deve cuidar para que os valores constitucionais e democráticos surjam do
interior da comunidade indígena, e não por imposição dos valores e da racionalidade parcial
do direito estatal, depositando conteúdos a que a ordem jurídica indígena estaria obrigada a
obedecer, pois dessa forma a ordem jurídica indígena ver-se-ia diante de uma complexidade
desordenada a qual ela ainda não possuiria meios de compreender satisfatoriamente.
Por isso deve haver uma construção conjunta de conhecimento constitucional,
possibilitando o aprendizado recíproco entre as ordens jurídicas em relação.
Para ilustrar o que foi dito anteriormente, vale mencionar um fato narrado por
Esther Sánchez BOTERO137, em que se evidencia a presença do transconstitucionalismo que se
137 “También hay para administrar justicia como medio y símbolo el uso de bastones de mando y oratoria amplia (Wayu), equipos humanos especializados de trabajo y bien pagos (emberas), utilización de equipos modernos computadores conectados a internet con el mundo, conocimiento de los tratados internacionales, de la jurisprudencia de las Cortes (paeces). Muchos realizan y formalizan sus tareas por escrito, como por ejemplo los guambianos. Hay pueblos también que ejercen justicia internamente y contratan abogados de fuera –no
88
manifesta por iniciativa da ordem jurídica indígena local. Determinada comunidade indígena
colombiana utiliza-se para motivar suas decisões, além de seus costumes tradicionais, as
experiências e o aprendizado obtido com a ordem jurídica estatal, e até com a ordem jurídica
internacional. Por meio do acesso à internet, alguns povos pesquisam as normas e princípios
presentes em tratados internacionais, decisões das cortes e tribunais estatais, para formar uma
razão de decidir a um determinado caso concreto. Estes povos realizam verdadeiras pontes de
transição entre seus usos e costumes milenares e as normas do direito positivo estatal, além do
disposto em tratados internacionais, buscando assim a melhor solução possível, a que mais
contemple a justiça no caso concreto. É um exemplo de olhar horizontal perante a
manifestação do fenômeno jurídico em outras culturas. Sem imposições e vetos
preconceituosos à ordem jurídica do outro.
Deve ser ressaltada aqui a capacidade desta ordem jurídica indígena colombiana
em estabelecer um diálogo com a racionalidade parcial de outras ordens jurídicas para
encontrar, por meio da análise da experiência própria e da experiência vivida pelo outro, a
melhor forma de superar o conflito social.
Há quem critique esta interação, dizendo que o que ocorre é que os povos
indígenas estão sendo "contaminados pela civilização". Esta é uma posição muito
isolacionista dos povos indígenas. Para contribuir com o transculturalidade, há de existir esta
contaminação cultural, e é necessário que ela exista. Tanto a ordem jurídica estatal quanto a
ordem jurídica indígena devem ser constantemente "contaminadas uma pela outra", desde que
o contágio respeite a autonomia de ambas, operando-se de maneira horizontal e espontânea,
sem a imposição ou pretensão de qualquer uma das partes em defender que os valores
respectivos são superiores aos do outro.
3.3. Uma proposta de método para a relação transconstitucional entre ordens
jurídicas: O Tribunal Constitucional Plurinacional boliviano como protagonista do
diálogo constitucional entre a ordem jurídica indígena e a ordem jurídica ordinária do
Estado.
indígenas-, para com ellos recrear y ejercer mejor la competencia, dado que el Estado monocultural elimino muchas de sus formas propias." BOTERO, 2003, p.3.
89
Não basta apenas afirmar os pressupostos do transconstitucionalismo sem que seja
possível instrumentalizá-los de maneira a permitir que se realizem na prática das cortes
constitucionais. Ressaltou-se ao longo deste trabalho a importância da adoção de um método,
de uma pedagogia própria para viabilizar a conversação constitucional entre as ordens
jurídicas de diferentes comunidades, para que por meio de uma racionalidade transversal
recíproca pudessem ampliar a limitação de perspectiva de cada racionalidade parcial para
enfrentar um mesmo problema jurídico, construindo conjuntamente uma solução comum, que
além de satisfazer a estabilização de expectativas de ambas as comunidades envolvidas,
servisse de aprendizado mútuo, enriquecendo o acúmulo de experiências e a dimensão de
apreensão cognoscível dos elementos do ambiente por cada um dos sub-sistemas de
comunicação que se operam mediante aplicação do código lícito/ilícito.
No caso dos Estados da América Latina que reconheceram a ordem jurídica
indígena como sub-sistema integrante do sistema jurídico do Estado, admitindo
constitucionalmente a existência do pluralismo jurídico e fornecendo estruturas de
operacionalização, calibração e controle dessas ordens em relação com a ordem jurídica
ordinária do Estado, o transconstitucionalismo se opera na modalidade de conversação
constitucional entre ordens estatais e ordens locais extra-estatais. Como visto anteriormente,
no caso específico da Bolívia, tomado como pano de fundo para este trabalho, o novo texto
constitucional consagrou a ausência de hierarquia entre a jurisdição “indígena originário
campesina” e a jurisdição ordinária.
Além disso, criou o Tribunal Constitucional Plurinacional como instância
suprema do Poder Judiciário, responsável pela guarda da Constituição e pela resolução do
eventual conflito entre as jurisdições presentes dentro do Estado. Este Tribunal possui
composição paritária entre magistrados advindos do sub-sistema jurídico estatal e magistrados
advindos do sub-sistema jurídico indígena. Nota-se então que esta Corte Constitucional tem a
oportunidade de exercer a conversação constitucional entre as ordens jurídicas, atuando como
protagonista no estabelecimento de pontes de transição entre as perspectivas existentes na
experiência acumulada pelo direito consuetudinário indígena e pelo direito positivo estatal. É
o órgão jurisdicional que será responsável por conduzir a orientação no “estado de
desordem138” causado pela convivência complexa de duas diferentes racionalidades parciais
jurídicas oriundas de duas diferentes comunidades nacionais que compõem a sociedade
boliviana. Comunidades que comungam de referenciais axiológicos diferentes, de valores
138 WELSCH, 1998, p. 25.
90
culturais próprios, e que possuem um discurso jurídico específico a ser aplicado ao caso
concreto com a pretensão de ser a resposta definitiva, a ultima ratio do processo de decisão.
Como lidar então com esta pretensão de cada uma das ordens jurídicas envolvidas
no Tribunal Constitucional para fornecerem a decisão de acordo com seus valores próprios,
tendentes a desconsiderar a racionalidade parcial do outro? Ora, se os magistrados de origem
indígena de um lado entenderem de uma forma, e os de origem estatal entenderem de outra,
não haverá decisão, pois haverá um empate. Engenhosamente o legislador constitucional ao
estabelecer a composição paritária do Tribunal impôs que em algum momento haverá de ter
um consenso.
Surge então o impasse: os magistrados poderão digladiar-se em plenário para
tentar convencer apenas um dos magistrados pertencentes ao primeiro grupo, que decida
favoravelmente às razões do segundo, o que não parece ser a postura ideal para a solução do
caso concreto, pois assim estar-se-ia diante de uma decisão simbólica que não é suficiente
para satisfação das expectativas envolvidas.
Se os magistrados agirem dessa forma contribuirão para o isolamento das ordens
jurídicas, aumentando as barreiras e o distanciamento entre elas. Os magistrados devem estar
conscientes de seu papel enquanto ensejadores do diálogo entre as diferentes comunidades. Se
adotarem posturas monistas e sectárias diante do conflito trazido para solução,
desconsiderando a racionalidade parcial da outra ordem jurídica envolvida, não serão capazes
de fornecer decisões satisfatórias para a pacificação social, estimulando que os indivíduos em
sua concepção individual de relacionamentos comportem-se no sentido de desconsiderar os
valores do outro. Criarão bloqueios desestruturantes e destrutivos na relação constitucional
entre as ordens jurídicas envolvidas.
Os magistrados têm de permitir que ocorram os entrelaçamentos de experiências
jurídicas. A relação entre eles deve ser horizontal para que construam conjuntamente a
decisão, a fim de que a decisão seja contemplativa da realidade das comunidades envolvidas,
fazendo com que os indivíduos se sintam sujeitos da autoridade do Tribunal Constitucional, e
não meros objetos. Os magistrados não podem acreditar que a racionalidade parcial do sub-
sistema jurídico a que pertencem seja suficiente para resolver integralmente o conflito. Devem
sempre buscar a ligação transversal com a racionalidade do outro para que aumentem a
capacidade dimensional de apreensão do conflito, e ao observarem o conflito de todos os
ângulos possíveis, sejam capazes de fornecer uma decisão mais contemplativa do problema,
91
que satisfaça um maior número de expectativas sociais, diminuindo assim a dupla
contingência e a desconfiança recíproca existente entre as ordens jurídicas em relação139.
Essa busca horizontal pelos entrelaçamentos jurídicos com a racionalidade parcial
da outra ordem jurídica só pode dar-se pelo diálogo. Exatamente por isso que o método ideal
para o transconstitucionalismo que permite o aprendizado mútuo entre as ordens jurídicas
deve levar em conta uma pedagogia permeada pelo diálogo. A teoria da ação dialógica de
Paulo Freire140 é importante neste aspecto porque visa a fornecer técnicas que permitam o
aprendizado entre as ordens jurídicas, evitando que uma tente sobrepor seus conteúdos
assimetricamente à outra.
Paulo Freire denomina de “educação bancária” aquela em que o educador, ao
adotar uma posição hierarquicamente superior a do educando, desconsidera o saber que o
educando traz consigo, e transforma o ato de aprender em um mero depósito de informações,
conduzindo-os à memorização mecânica dos conteúdos narrados141. Nesse caso os educandos
são como recipientes dóceis a serem preenchidos pelo saber do educador. Destarte, esse não
pode ser o método do transconstitucionalismo entre ordens jurídicas. Aqui uma das
racionalidades parciais é desconsiderada por ser tida como inferior, cedendo lugar para que a
outra racionalidade parcial sobreponha-se. Não há, portanto o estabelecimento verdadeiro de
pontes de transição para a construção de uma decisão comum. O Tribunal Constitucional
boliviano não pode atuar desta maneira pois o pressuposto aqui é que uma das ordens
jurídicas envolvidas não seja capaz de fornecer uma resposta ao conflito, havendo imposição
de uma racionalidade parcial sobre a outra e não um entrelaçamento contínuo e duradouro
entre ordens jurídicas.
Xavier ALBÓ ressaltou bem esta questão ao abordar que:
“Cuando se empiezan a analizar en detalle todas estas prácticas tradicionales, constatamos que con frecuencia, si el derecho ordinário llega a las comunidades indígenas y campesinas originarias, no es para llenar un vacío jurídico. Demasiadas veces, su presencia complica más bien la situación previa. Las comunidades no están allí con su vaso vacío, esperando que jueces y abogados se lo llenen con algo nuevo y mejor, traído de afuera. El vaso ya lo tienen lleno con su propia historia y práctica. Lo más en que podemos pensar, unos y otros, es en enriquecer la bebida con algún nuevo ingrediente, que nos brinde um "cocktelito jurídico" bien pensado y dosificado, si vale la comparación142.”
139 NEVES, 2009, p.242. 140 FREIRE, 2008, p. 191. 141 FREIRE, 2008, p.66 e ss.: “Na visão bancária da educação, o saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão (...)”. 142 ALBÓ, 1998, p.18.
92
O fundamental a ter em mente é que o aprendizado é recíproco, ou seja, ambas as
ordens jurídicas tem de estar dispostas a aprender com a outra. Uma racionalidade parcial tem
de estar disposta a ser, ao mesmo tempo, educadora e educanda no processo de aprendizado e
construção constitucional. Esta é concepção de “educação problematizadora”, formulada por
Paulo Freire, em que não existem pólos estáticos na relação de construção do conhecimento
que deve ser levada em conta no desenvolvimento do transconstitucionalismo: “Desta
maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em
diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos assim se tornam sujeitos
do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já não valem (...)
Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens
se educam em comunhão (...) mediatizados pelos objetos cognoscíveis143”.
Para utilizar uma paráfrase, poder-se-ia concluir então que no
transconstitucionalismo as ordens jurídicas não constitucionalizam outras ordens: não
impõem sua racionalidade parcial unilateralmente a uma outra maneira de enxergar o
fenômeno jurídico. Tampouco as ordens jurídicas são capazes de constitucionalizarem-se
sozinhas, pois não são auto-suficientes: As ordens jurídicas constitucionalizam-se em
comunhão, mediatizadas pelos conflitos que apreendem conjuntamente da complexidade
jurídica da sociedade.
A constitucionalização ganha uma dinâmica inerente que foge a uma concepção
estática do texto constitucional. Toda vez que é chamada a proferir uma decisão a um caso
concreto, a corte constitucional constrói um novo entendimento acerca da constitucionalidade
daquela matéria, entendimento este que é resultado de um método problematizador no qual os
magistrados expõem suas perspectivas e leituras do conflito, que por sua vez são limitadas
pela visão que cada um nutre do fenômeno jurídico. Estas visões são compartilhadas por meio
do diálogo em que se permite uma compreensão do fenômeno em diferentes níveis de
racionalidade. A decisão deve surgir da construção de pontes de transição entre essas
racionalidades, permitindo que as racionalidades transversais apreendam a complexidade do
problema holisticamente, ou seja, por meio da complementaridade entre a racionalidade
parcial individual a as racionalidades parciais dos outros. Nenhuma das formas de aplicação
do código diferença do sistema jurídico proposto pelos magistrados é tida como ponto de
partida ou razão de decidir. Pelo contrário, a razão de decidir é construída para o caso
concreto pela comunhão transconstitucional e pelo entrelaçamento entre as ordens jurídicas.
143 FREIRE, 2008, p. 79.
93
Isso significa que a ordem jurídica Estatal por ter uma estrutura burocrática e
formalizada não pode crer que deve prescrever a maneira de solução de conflitos à ordem
jurídica indígena, desconsiderando a experiência consuetudinária desta na composição das
controvérsias que surgem no seio da comunidade. Tampouco a ordem jurídica indígena pode
fechar-se a priori para as eventuais influências da ordem jurídica estatal. Não existe uma
concepção de justiça ou de processo jurisdicional mais evoluída do que a outra. Existem
concepções diferentes acerca do fenômeno jurídico que advêm de um distinto referencial
axiológico, porém as duas ordens, em sua respectiva racionalidade parcial, operam igualmente
mediante a aplicação do código-diferença lícito/ilícito.
O Tribunal Constitucional Plurinacional, ao deparar-se com um conflito que
envolve as duas ordens jurídicas presentes no país, deve propor inicialmente um debate acerca
dos pressupostos objetivos e subjetivos do conflito. Quem são as partes envolvidas? Qual a
suposta violação ao texto constitucional? Qual a relevância e os efeitos e os impactos da
decisão a ser proferida? Do debate que se opera dialogicamente, surgirão os temas
fundamentais que permeiam o caso para cada um dos magistrados. Estes por sua vez revelam
na enunciação do que acreditam ser mais fundamental no caso concreto qual o limite de suas
perspectivas. Cada um dos magistrados enunciará um ponto de vista que corresponde a uma
visão impregnada pela racionalidade parcial própria de seu referencial axiológico. As
racionalidades parciais dos magistrados acerca do conflito constituem o universo temático144
em torno do qual se dará a construção conjunta da decisão.
Esse universo temático reflete para cada um dos magistrados um tema gerador.
Por exemplo, imagine que o conflito colocado diante dos magistrados seja para decidir acerca
da constitucionalidade ou não da aplicação da pena de morte por algumas comunidades
indígenas bolivianas nos casos de furto ou violação de objetos sagrados. O conflito é levado
para que o Tribunal Consitucional Plurinacional se manifeste.
Cada um dos magistrados durante o debate inicial enuncia sua perspectiva acerca
do caso concreto e de qual deve ser a decisão. Em meio ao debate percebe-se que o universo
temático corresponde a um impasse entre o direito à vida do indivíduo, e o direito da
comunidade indígena em tutelar o bem jurídico que acredita ser relevante. Valores
constitucionais são contrapostos.
144 FREIRE, 2008, p.101.
94
Identificado o universo temático da controvérsia deve-se iniciar a conjugação das
ações cognoscentes de cada um dos magistrados em torno um dos temas geradores surgidos
anteriormente. Todos os magistrados devem buscar dialogar acerca da representação e da
significação do direito à vida e do direito de proteção aos objetos sagrados, de acordo com o
que esses valores representam para as respectivas racionalidades parciais envolvidas. Cada
um dos juízes deve buscar compreender o significado desses valores perante a racionalidade
parcial do outro, permitindo, ao mesmo tempo, que os outros percebam o significado que os
valores têm para consigo. Os valores consignados como temas geradores do diálogo nada
mais são do que codificações de um conteúdo valorativo importante para a sociedade de
maneira genérica. A tarefa dos magistrados é descodificar esse conteúdo valorativo abstrato
de acordo com uma perspectiva que revele a experiência acumulada de cada uma das ordens
jurídicas envolvidas em torno daquele valor. A descodificação se opera mediante o
desvelamento do tema gerador por cada racionalidade parcial.
Após os magistrados terem tomado conhecimento da significação destes valores
constitucionais para cada uma das ordens jurídicas envolvidas, devem voltar-se novamente
para o conflito, construindo conjuntamente uma decisão que vise a contemplar uma solução
complexamente adequada do caso. O que importa não é propriamente o conteúdo da decisão,
ou seja, se a pena de morte será considerada constitucional ou não, ou se a constitucionalidade
será reconhecida apenas em certos casos específicos, bem como se será plenamente aceita
como prática lícita no Estado boliviano.
O importante é que as ordens jurídicas envolvidas tiveram a oportunidade de
dialogar acerca do direito à vida e do direito das comunidades indígenas em proteger seus
elementos de cultura. Cada ordem jurídica pôde compartilhar da racionalidade parcial nutrida
pela outra, ampliando sua respectiva capacidade de apreensão da complexidade social. A
decisão, não importando qual seu conteúdo, não tomada unilateralmente de acordo com a
perspectiva limitada de apenas uma parcela da população, mas foi construída em comunhão.
Cada ordem jurídica foi sujeito do processo de decisão e não mero objeto a que se destinou a
imposição de um imperativo de dever-ser.
A decisão que se opera em observância ao transconstitucionalismo entre ordens
jurídicas é mais contemplativa da pluralidade de manifestações do fenômeno jurídico,
contribui de maneira mais eficiente para a estabilização de expectativas, pois os indivíduos
identificam-se com a autoridade que profere a decisão. As racionalidades parciais presentes
no sistema jurídico estão, em tese, representadas pelo tribunal constitucional plurinacional que
95
ao construir uma razão de decidir compartilha da enorme complexidade existente no ambiente
social.
Isso torna o sistema jurídico mais capaz de diminuir a contingência e a tensão
causadas pelo conflito social. A sociedade boliviana tem a oportunidade de por meio do novo
Tribunal Constitucional construir dinâmica e democraticamente padrões de conduta pela
generalização congruente de expectativas em diálogo. A ponte de transição estabelecida na
corte constitucional pode significar não apenas a abertura cognitiva dos sub-sistemas jurídicos
existentes no país, como também uma abertura normativa. As ordens jurídicas conviventes
podem colocar reciprocamente à disposição seus atos de comunicação jurídicos próprios, bem
como os fundamentos de suas razões de decidir na aplicação do código binário lícito/ilícito,
dando a oportunidade para que a ordem jurídica observadora possa reprogramar-se na
aplicação de seus elementos com base na experiência vivida pela outra ordem jurídica.
Portanto, a utilização do método acima proposto permite uma melhor avaliação do
problema jurídico, uma vez que possui dois pontos extremamente positivos à construção do
Direito: em primeiro lugar, a decisão será mais legítima a toda a sociedade por ser fruto de um
diálogo entre representantes de ambas as ordens jurídicas; em segundo, a solução proposta
poderá ser mais interessante e melhor estruturada porque foi resultado (síntese) da construção
dialética entre teses provenientes de culturas distintas, as quais se propuseram a dialogar
mediante respeito mútuo.
Os magistrados devem ter em mente que atuar transconstitucionalmente no
estabelecimento da relação de aprendizado mútuo e construção conjunta de soluções exige
alguns pressupostos fundamentais. O diálogo constitucional entre as ordens jurídicas exige
dos magistrados que respeitem o saber do outro, ou seja, que respeitem a racionalidade parcial
e autonomia da ordem jurídica interlocutora. Isso exige uma postura radical e corajosa do
magistrado que assume os riscos de protagonizar o debate transcultural, em uma completa
aceitação do novo, do diferente, rejeitando qualquer forma de discriminação étnica que
implique polêmicas e sectarismos. Além disso, o magistrado tem de afirmar a identidade
cultural da ordem jurídica que representa ao mesmo tempo em que se permite envolver pela
experiência de vivenciar a alteridade.
Por fim, cumpre ressaltar que os magistrados devem inflar-se de uma boa dose de
“humildade jurídica”, conscientes de que sua racionalidade parcial é inacabada e insuficiente
para contemplar os anseios da complexidade social. O transconstitucionalismo exige essa
consciência do inacabamento e a permanente disponibilidade para o diálogo.
96
CONCLUSÃO
Como ficou evidenciado ao longo do trabalho, há problemas jurídicos complexos
da sociedade pós-moderna para os quais a solução apresentada pela ordem jurídica estatal não
é suficiente para oferecer uma resposta contemplativa que estabilize as expectativas socais
envolvidas de maneira eficiente. As relações econômicas, culturais, pessoais e políticas
transcendem atualmente os limites do território do Estado nacional. Nesse contexto, surgem
ordens jurídicas com pretensão de tutelar e proteger as relações que o direito estritamente
vinculado ao Estado não é capaz de abarcar.
No caso específico do sistema jurídico de alguns países da América Latina, como
o da Bolívia, que foi utilizado como pano de fundo para a elaboração dos conceitos da
presente tese, houve o reconhecimento do surgimento de uma ordem jurídica especial,
correspondente ao direito praticado no seio de comunidades indígenas originárias campesinas.
O novo texto constitucional boliviano consagrou a existência do pluralismo jurídico no Estado
e forneceu instrumentos de controle e calibração para que possam operar conjuntamente as
duas ordens jurídicas (indígena e estatal) sob o mesmo aparato burocrático, cada uma
ostentando uma jurisdição própria. Cada uma das jurisdições aplica-se aos casos previstos no
texto constitucional, não havendo hierarquia entre elas, e ambas sujeitam-se a jurisdição do
Tribunal Constitucional Pluranacional, que é a instância máxima do Poder Judiciário no país e
a quem incumbe o julgamento dos eventuais conflitos entre a jurisdição indígena e a
jurisdição estatal.
À vista disso, cumpre ressaltar que o mero reconhecimento do pluralismo jurídico
pelo legislador constituinte, bem como a presença de estruturas e instrumentos constitucionais
para promover a interação entre as ordens jurídicas do Estado não são suficientes para que os
problemas jurídicos advindos da relação entre as comunidades indígenas e as comunidades
ordinárias sejam bem solucionados do ponto de vista da pacificação social e da decidibilidade
dos conflitos.
De nada adianta o reconhecimento da pluralidade de ordens jurídicas em um
mesmo Estado se ambas manifestarem uma postura intolerante com relação à racionalidade
parcial própria da outra. De nada serve o pluralismo jurídico como constatação de um duelo
de forças entre racionalidades parciais das comunidades nacionais, buscando
97
autodeterminação mediante a pretensão de buscar sobrepor sua maneira particular de encarar
o fenômeno jurídico à outra.
A idéia de pluralismo jurídico subentende a existência de um conflito potencial no
sentido de auto-afirmação das comunidades por meio da identidade com a ordem jurídica
correspondente. Ao valorizarem as diferenças entre si como consignação dessa identidade
cultural, as ordens jurídicas apenas contribuem para um maior isolamento entre as
comunidades, gerando bloqueios destrutivos em uma relação que se opera assimetricamente.
É como se as comunidades fossem grupos isolados de cultura que não podem relacionar-se de
maneira horizontal sem que isso importe uma desvalorização da identidade da própria
comunidade. Todavia, este tipo de pensamento é falacioso, como restou comprovado ao longo
do trabalho.
Por esse motivo a noção de pluralismo jurídico deve ser superada para que surja
uma nova maneira de encarar a relação constitucional entre as ordens jurídicas de um mesmo
Estado. As ordens jurídicas referentes às diferentes comunidades nacionais não podem adotar
uma posição monista e sectária com relação aos problemas jurídicos comuns. Não podem
acreditar ser auto-suficientes para apresentar uma solução aos conflitos sociais, bem como não
podem pretender buscar figurar como ultima ratio na aplicação do código binário próprio do
sistema jurídico, sob pena de não oferecer uma resposta satisfatória ao problema do ambiente.
As ordens jurídicas devem reconhecer que possuem uma perspectiva limitada
acerca do conflito, que não permite enxergá-lo em todas as suas dimensões e efeitos. Faz-se
necessário que atuem em diálogo transconstitucional com a outra ordem jurídica,
entrelaçando-se, abrindo-se cognitiva e normativamente para observar maneira como a outra
ordem enxerga o mesmo conflito. Assim, as ordens jurídicas serão mais capazes de instaurar
uma relação duradoura, fundada no respeito mútuo, na valorização da alteridade e no
aprendizado recíproco proporcionado pela troca de experiências com o interlocutor. Suas
decisões já não serão reflexo de uma perspectiva limitada por uma única racionalidade
parcial, mas pela construção conjunta e transversal de razões de decidir oriundas do
aprendizado e da troca de experiências acumuladas em torno da solução de conflitos.
Amplia-se a probabilidade de que forneçam uma decisão mais consistente, mas
digna de estabilizar as expectativas sociais imersas na complexidade pós-moderna. Como
pondera Marcelo NEVES:
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“(...) em um mundo de problemas constitucionais comuns para uma pluralidade de ordens jurídicas, o método do transconstitucional parece mais adequado à passagem de uma simples situação de fragmentação desestruturada para uma diferenciação construtiva entre ordens jurídicas, no plano de suas respectivas autofundamentações (...).145
Este é o papel do diálogo transconstitucional entre ordens jurídicas: superar a
“fragmentação desestruturada”do pluralismo jurídico para promover o estabelecimento de
uma construção conjunta de soluções para problemas jurídicos comuns.
Na observação final de sua proposta do tranconstitucionalismo, com muita
felicidade Marcelo NEVES afirma que todo observador de um problema jurídico tem um limite
no “ponto cego”. Conclui então que a consagração do diálogo transconstitucional é o
reconhecimento pelo observador de que o “meu ponto cego o outro pode ver146”, ou seja, o
outro pode complementar construtivamente minha apreensão do objeto cognoscível a partir do
momento que coloca à minha disposição a maneira como enxerga o mesmo objeto. Da mesma
forma que eu poderei complementar a apreensão dele colocando dialogicamente à sua
disposição a minha perspectiva individual. Assim, ambos ampliamos as possibilidades de
intelecção dos estímulos do ambiente.
Esta passagem me fez recordar uma parábola, cuja autoria é por mim
desconhecida, mas que ouvi há muito tempo. Resumidamente, a parábola contava que certa
vez um príncipe indiano mandou chamar seis cegos de nascença que eram considerados
sábios na região, e, para testá-los em sua sabedoria, colocou diante deles um elefante. Em
seguida, conduzindo-os pela mão, até o elefante para que o apalpassem. Um apalpou a
barriga, outro a cauda, outro a orelha, outro a tromba, outro uma das pernas e outro a presa de
marfim. Quando todos os cegos tinham apalpado o paquiderme, o príncipe ordenou que cada
um explicasse aos outros o que era o elefante. O primeiro que apalpara a barriga afirmou com
convicção de que se tratava de um objeto de grandes dimensões, uma espécie de muro
maciço. O segundo que apalpou a cauda afirmou que o elefante era como uma corda, um cipó.
Já o terceiro discordando dos demais podia jurar que o elefante era similar a um abano. O
quarto inconformado com o que ouvia dos companheiros não hesitava em argumentar que o
elefante era uma mangueira, e assim sucessivamente os cegos foram descrevendo aquilo que
sua limitação de percepção permitiu.
145 NEVES, 2009, p. 246. 146 NEVES, 2009, p. 265.
99
Os cegos se envolveram numa discussão sem fim, cada um querendo provar que
os outros estavam errados, e que o certo era o que ele dizia. Evidentemente cada um se
apoiava na sua própria experiência e não conseguia entender como os demais podiam afirmar
tais ponderações acerca do mesmo objeto. O príncipe deixou-os falar para ver se chegavam a
um acordo, mas quando percebeu que eram incapazes de aceitar que os outros podiam ter tido
outras experiências, ordenou que se calassem, concluindo que na verdade os cegos não eram
dotados de tanta sabedoria assim. "O elefante é tudo isso que vocês falaram.", explicou.
"Tudo isso que cada um de vocês percebeu é só uma parte do elefante. Não devem negar o
que os outros perceberam. Deveriam juntar as experiências de todos e tentar imaginar como a
parte que cada um apalpou se une com as outras para formar esse todo que é o elefante."
Na complexidade jurídica da pós modernidade há conflitos e problemas jurídicos
cujas dimensões são análogas às do elefante narrado acima. As ordens jurídicas em sua
limitação de perspectiva só podem apreender parte do problema. Por esse motivo de nada
adianta que ofereçam soluções parciais com base apenas em sua racionalidade limitada,
insistindo que apenas o seu ponto de vista é certo enquanto os demais estão errados, pois
atuarão como os cegos, que pretendiam fazer valer o seu entendimento como ultima ratio
sobre os demais, incorrendo em um erro fundamental como conseqüência de sua posição
sectária.
As ordens jurídicas devem humildemente conscientizar-se de sua incompletude e
passar a promover entrelaçamentos com as demais ordens para juntar experiências e, unindo
as demais leituras do problema coma sua própria seja capazes de identificar a real dimensão
do conflito que se apresenta para a tomada de decisão.
Destarte, conclui-se que o diálogo transconstitucional é a consagração da máxima
de que "Todo ponto de vista é a vista de um ponto147
" correspondendo ao métido mais
adequado para tratar da relação entre ordens jurídicas indígenas e ordens jurídicas estatais no
âmbito dos Estados da América Latina, permitindo o aprendizado mútuo entre as diferentes
comunidades e a aproximação transcultural entre elas.
147 “Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação. Sendo assim, fica evidente que cada leitor é co-autor. Porque cada um lê e relê com os olhos que tem. Porque compreende e interpreta a partir do mundo que habita.”(BOFF, 1997, p.2).
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