Autobiografia de um bichorro

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Autobiografia de um bichorro

Olá, meu nome é Hermes. Tenho quase quatro anos. Nasci num beco entre latas de lixo e panos sujos, um lugar frio e escuro. Eu era peludo e negro. Diferente dos meus irmãos. Sempre comia bastante, mas era o mais magro da família.

Um dia chovia muito e nós estávamos numa garagem. Mamãe tinha ido procurar comida. Apareceu uma moça com jeito de bondosa e olhou para nós. Meus irmãos saíram correndo, menos eu. Então, ela me pegou no colo, viu como era magro e me levou embora.

A moça me levou para sua casa. Deu-me leite, cuidou dos meus pelos pretos e longos e me pôs para dormir numa almofada vermelha. Dormi muito, não sei quanto tempo. Estava escuro quando uma menina rosada, de cabelos escuros, me acordou. Era minha dona, muito carinhosa.

Às vezes sentia saudade das ruas, das travessuras, da minha família. Sei que fui adotado e se isso significava almofada vermelha, água limpinha, comida, amor e carinho, então eu adorava ser adotivo. Já quebrei umas coisinhas da minha dona, mas sem importância. Eu era muito agitado, depois fui castrado e fiquei mais calmo.

Ocorreram muitas coisas, a mais importante foi a descoberta de outra raça: os cães. Todos avisaram que gatos e cães eram inimigos mortais. Sempre fugi deles. Mas na minha casa nova tinha um cão, o Platão. Por ser muito distraído nem notou que eu era um gato. Nós nunca brigávamos, ao contrário, éramos amigos e ele me ensinou muitas coisas.

Uma vez a empregada esqueceu-me do lado de fora do apartamento. Esperei que abrisse a porta, mas ela nem notou. Quando perceberam eu já estava longe. Passei a pior noite da minha vida, com fome, frio e quebrado depois de dormir em cima de uma árvore. Andei, andei e não reconheci o lugar onde estava. Fiquei diferente, sujo, machucado, magro, com olheiras e com meu pelo sem brilho.

Até que um dia, por milagre, ouvi a voz da minha dona. O detalhe que me salvou foi a ponta do meu rabo que era quebrada. Que bom voltar para o meu lar! Quem mais ficou feliz com a minha volta foi meu amigo Platão. Eu tinha virado um gato doméstico, cada vez mais preguiçoso, gordo e dengoso. Gostava cada vez mais da companhia de Platão, entendia seus latidos e gestos.

Meu amigão estava ficando velho tinha 14 anos de idade. Aos poucos foi ficando surdo, eu falava e ele não me ouvia. Começou a tropeçar nos móveis, estava ficando cego. Um dia sem eu esperar ele foi levado para o sítio. Disseram que lá ele estaria melhor. Mas e eu, ficaria sozinho? A solidão foi grande. Os dias eram compridos e chatos. Que falta meu amigo fazia!

Passei a ter comportamentos esquisitos. Em vez de me lamber, passei a me coçar. Ao ouvir a campainha tocar, saia correndo e esperava que abrissem a porta. Percebi que andava com costumes de cachorro!

Num belo dia, ocorreu um fato estranho. Vi a família correndo de um lado ao outro, estavam nervosos. Ouvi um choro. O que era aquilo? Não acreditei quando vi. Parecia um filhotinho de cachorro. Só entendi quando minha mãe adotiva falou: _ A mãe desta cachorrinha foi atropelada. Vamos cuidar e rezar para que ela sobreviva. Seu nome será Laila. Então, ganhei uma irmã.

Minha irmãzinha sobreviveu e está muito bagunceira. Morde os pés dos móveis, puxa toalhas e faz xixi fora do jornal. Nós dormimos na almofada vermelha e cuido bem dela. Laila me ensinou a rolar. Cada dia que passa eu amo mais minha vida. Já até olho para minha família com olhar quase canino. Bom, estou cada vez mais bichorro, meio bichano, meio cachorro.