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O MISTÉRIO DE COLARES
Alice era uma mulher na casa dos 30 anos bem-sucedida. De formas voluptuosas
e cabelo de um castanho invulgar esvoaçante, a sua presença não passava despercebida
em qualquer sala onde entrasse. O seu aroma era inconfundível, tinha o cheiro de quem
sabe e consegue sempre o que quer. Os olhos amendoados eram impenetráveis: viam
mas não deixavam ver.
Máximo Andaluz, detective policial há mais de 20 anos, conheceu-a numa noite,
num bar. Máximo pensava em todas as coisas que tinham corrido mal naquele dia: a
detenção de Gonzo, um perigoso traficante, tinha deixado colegas feridos. O capitão
anunciara a sua demissão. A ex-mulher tinha ligado pela centésima vez a insultá-lo.
Imerso nestes pensamentos, mal deu pela mulher que se instalou a seu lado no balcão.
— Whiskey, sem gelo — disse a mulher.
Máximo olhou-a de soslaio. A mulher envergava um vestido preto, curto e muito
justo, evidenciando as suas formas. O cabelo estava cuidadosamente arranjado, unhas
vermelhas que condiziam com os lábios ainda mais vermelhos.
— Por acaso tem lume? — perguntou Alice a Máximo.
Sem sequer conseguir responder, Máximo estendeu-lhe uma caixa de fósforos. A
mulher serviu-se de um e acendeu um cigarro que fumou vagarosamente enquanto
degustava o whiskey.
“Mulher estranha, no mínimo”, pensou Máximo. Uma mulher assim bonita, que
bebia whiskey como quem bebe um trago de água, e que transbordava segurança e
sensualidade por todos os poros só podia significar problemas. Máximo levantou-se e
saiu, tentando esquecer a mulher.
No dia seguinte, Máximo acordou com dores de cabeça. Andava a abusar do
álcool e sabia-o, mas encarava-o como um remédio para esquecer todas as frustrações
de ultimamente. A mulher que o tinha deixado, as contas que se acumulavam, a carreira
que parecia ter estagnado. Máximo era um bom polícia, respeitado por todos os colegas.
Tinha métodos pouco ortodoxos, mas raramente se enganava e era um homem temido e
respeitado por toda a comunidade policial. Mas ultimamente sentia que a profissão tinha
deixado de lhe servir. Sentia que dedicava a sua vida a prender toxicodependentes,
traficantes, ladrõezecos que roubavam por bebida ou droga. Nesse dia, e para melhorar
tudo, ia saber quem seria o próximo capitão, o próximo “chato” que certamente lhe iria
infernizar a vida devido à sua capacidade nata no que dizia respeito à transgressão de
regras.
Máximo chegou à esquadra atrasado. Foi de imediato chamado por um dos
colegas que lhe disse que havia uma ocorrência numa casa, um assalto e um homicídio.
Máximo encolheu os ombros e disse que iria lá.
— Vais se o Capitão deixar — retorquiu o colega.
— Eu vou onde me apetecer — respondeu Máximo.
— Como é mesmo? — Uma voz atrás indagou.
Máximo sentiu-se a congelar. Conhecia aquela voz. Conhecia aquele tom
arrogante e desmedido de quem se acha acima de todos. Conhecia o cabrão que lhe
tinha tentado passar a perna mais do que uma vez, intrometendo-se nos seus casos e na
sua vida. Conhecia o cabrão que lhe tinha roubado a mulher…
— Bom dia, Máximo. Estás com ar de quem dormiu bem… Caso ainda não
tenhas sido notificado, sou o novo capitão desta esquadra, o que faz de ti… bem, nem
sei o que faz de ti, mas certamente passas a obedecer-me.
— Renato. Há quanto tempo!... Até já tinha saudades. A família está boa? Folgo
em saber que a divisão está bem entregue. Posso ir cumprir o meu dever agora? —
retorquiu Máximo, com a ironia que lhe era característica.
— Vais, apenas porque não há mais ninguém disponível e porque eu deixo. E
levas o Eduardo contigo.
Máximo nem respondeu. Fez sinal ao colega, que ouvia incrédula e atentamente
a conversa, e fez menção de sair.
— Máximo… um último aviso — disse Renato. — Cuidadinho, vou estar de
olho em ti.
Máximo riu-se. “Que idiota”, pensou. Saiu da esquadra acompanhado por
Eduardo. Conhecia-o há poucos anos e não desgostava do “rapaz”, como lhe chamava.
Falava pouco, o que lhe agradava. O problema era ser desastrado em quase tudo o que
fazia. Raro era o dia em que não se queimava com o café ou em que não caía por causa
de um cordão desapertado. Entraram no carro e arrancaram a todo o gás.
***
A casa sinalizada ficava ainda a uma boa distância da esquadra. Era uma
daquelas casas típicas de Colares, a cidade onde viviam. Uma casa branca, com um
pequeno jardim repleto de arbustos perfeitamente arranjados. A casa era antiga mas
estava bem tratada, as paredes caiadas de um branco imaculado, as portadas e vitrais
limpíssimos. Portões altos, obviamente destinados a proteger uma propriedade daquele
valor. A porta da frente era em tom avermelhado, a contrastar com o resto. Uma
verdadeira obra de arte. Ouviam-se pássaros a chilrear e o cheiro a flores e natureza era
intenso. Era uma daquelas casas que irritavam o detective. Sempre arranjadinhas, muito
bonitinhas, muito espaço, piscina, enfim, casa de gente com vida perfeita. Uma
ambulância e o instituto legal já tinham chegado.
— Então, o que é que temos? — perguntou Máximo a um dos técnicos.
— Há um cadáver, morto com três facadas. Homem, 60 anos, viúvo, vivia
sozinho. Álvaro Freitas. E uma mulher. Boa, pá… e essa está viva — riu o técnico.
Máximo entrou na casa acompanhado por Eduardo. Técnicos por todos o lados,
os flashes das fotografias que incomodavam aquela ressaca que teimava em disfarçar…
Máximo esfregou os olhos e tentou concentrar-se. No chão jazia um homem bem
vestido com vestígios de três facadas no peito. No sofá, de costas para Máximo, uma
mulher que se servia de um copo de água dado por um dos técnicos.
— Minha senhora, vai-me desculpar, mas precisamos de lhe fazer umas
perguntas — disse Máximo enquanto contornava o sofá. Mal viu a cara da mulher,
reconheceu-a. A mulher do bar, da noite anterior!
— Pode explicar-nos quem é a senhora e o que se passou aqui? — perguntou
Máximo, disfarçando.
— O meu nome é Alice Simões. E não faço a mínima ideia do que se passou
aqui.
— A casa é sua, é do falecido, está aqui porquê?
— Vim visitar um amigo. A porta estava aberta, entrei e vi isto.
A mulher falava num tom frio, distante. Tão distante que numa série seria a
primeira pessoa que os espectadores apontariam como culpada do homicídio.
— Era amigo ou mantinha outro tipo de relação com o falecido? — perguntou
Eduardo.
— Ser-se amigo não é manter uma relação? — questionou Alice.
Os dois agentes ficaram momentaneamente paralisados com a resposta.
— O que o meu colega queria saber é se havia alguma intimidade entre os dois
— retorquiu Máximo.
— Acho que isso não é da vossa conta. Mas não, não havia.
— Do que conhece da casa, parece-lhe que falta alguma coisa?
— Falta uma tela, mesmo ali — apontou Alice para um espaço em branco por
cima da lareira.
— Tem ideia de ser uma tela cara, comum?
— Não faço a mínima ideia. Talvez seja melhor perguntar à empregada ou aos
filhos, que já devem vir a caminho, certamente.
Máximo olhou em volta, tentando perceber a vida da pessoa que tinha vivido e
morrido naquela casa. Tudo luxuoso, bem pensado, coisas boas.
— Continua com a senhora que eu vou dar uma vista de olhos lá acima —
ordenou Máximo a Eduardo.
Máximo apressou-se a subir as escadas. “O homem fazia colecção de quadros,
só pode”, pensou. Em quase todas as paredes, mais do que um quadro. Foi abrindo
portas à medida que lhe apareciam à frente. Quartos eximiamente arrumados, tudo com
estilo. “Casa grande, para quem vivia sozinho”, pensou. Faltava-lhe inspeccionar uma
última divisão. Mal a sua mão pousou sobre a maçaneta, um péssimo pressentimento
invadiu-o. Ainda assim, avançou. Só teve tempo de ver aquilo que lhe pareceu ser um
lobo branco saltar sobre ele. No chão, Máximo debatia-se com o pesado animal
tentando desesperadamente alcançar a sua arma. No momento em que sentiu o punho e
o gatilho e se preparava para disparar, o animal começou a lamber-lhe a face. Máximo
deixou de resistir e deixou que o animal o cheirasse. Depressa saiu de cima dele e
Máximo pôde apreciar o cão que tinha à sua frente. Um cão de porte majestoso, alvo
como as paredes da casa, enorme, que continuava a cheirá-lo, parecendo aflito.
Subitamente, começou a uivar. Uns uivos tristes, longos, persistentes.
— Pois, já percebeste, não é, amigo? O teu dono já não está aqui.
Máximo ajoelhou-se e afagou o pêlo do cão enquanto lhe sussurrava palavras de
conforto. Estava nestes trejeitos quando Eduardo assomou à porta.
— Que é que se…?
Nem teve tempo de terminar a pergunta. O cão rosnou-lhe ameaçadoramente.
— Deve ser o cão do morto. Parece que não gosta lá muito de ti — riu Máximo.
— Olha, os filhos já chegaram. Prepara-te para o histerismo que não tiveste até
agora.
Máximo suspirou. Detestava esta parte, a de falar com a família dos mortos.
Nunca sabia bem o que dizer e como tinha tendência a desconfiar de qualquer um,
facilmente era áspero nas palavras que dirigia a quem muitas vezes apenas estava a
sofrer.
— Vamos lá — respondeu.
— Eh, chama-me alguém para ficar com essa coisa, não quero isso perto de mim
– disse Eduardo, enquanto recuava.
— O cão vem para baixo connosco, os filhos certamente o conhecem e quererão
ficar com ele.
Os três desceram as escadas, com Eduardo a tropeçar a cada degrau com medo
do animal que ainda não tinha parado de o fitar. Ouviam-se alguns gritos no andar de
baixo, gritos de mulher.
Chegados à sala depararam-se com um cenário no mínimo caricato. Alice
engalfinhada numa cena que parecia de wrestling no chão com outra mulher, e dois
homens que assistiam impávidos e serenos à cena. Luke rosnou. Eduardo correu a
separar as duas mulheres.
— Mas que raio se passa aqui? — perguntou Máximo.
— Foi esta cabra, esta cabra matou o meu pai — respondeu a filha do falecido
Álvaro.
— Eu não matei ninguém. Mas neste momento vontade não me falta —
respondeu Alice, com o mesmo tom frio de sempre.
— Meus senhores, é muito grave estar a fazer acusações nesta altura. O melhor
será mesmo fazer-vos algumas perguntas na esquadra, num sítio onde todos se portem
bem — respondeu Máximo.
O seu tom foi condescendente de propósito. Tentou perceber as reacções de cada
um quando falou na esquadra, mas nada mais perscrutou além de indiferença. De súbito,
lembrou-se: o cão! O cão continuava a seu lado e não tinha avançado para nenhum dos
filhos, para quem olhava agora indiferentemente.
— Presumo que este seja o cão do vosso pai…— disse.
— Esse é o Luke. O meu pai comprou-o há pouco, para protecção — disse o
filho mais alto e encorpado.
“Daí ele não reagir a nenhum dos filhos, mal os conhece”, pensou Máximo.
— Pedia aos filhos que verificassem se falta alguma coisa em casa. Não toquem
em nada. De seguida irão acompanhar-me à esquadra. O agente Eduardo levará a Sra.
Alice noutro carro entretanto.
Já tinham levantado o corpo de Álvaro e neste momento apenas os técnicos
forenses continuavam com as fotografias e recolha de provas. Eduardo seguiu com uma
Alice desgrenhada pelas mãos da outra mulher porta fora. A filha de Álvaro continuava
histérica, chorando e gritando pelo pai. Os dois filhos vaguearam pela casa e
rapidamente regressaram junto de Máximo.
— Só damos pela falta do quadro da lareira. Tudo o resto parece igual.
— Vamos para a esquadra, então. Temos algumas perguntas a fazer sobre o
vosso pai — disse Máximo, dirigindo-se aos três filhos.
Quando saiu de casa, Máximo ficou a olhar para o cão por longos instantes,
indagando sobre o que deveria fazer. Entregá-lo aos técnicos não lhe pareceu boa ideia.
Decidiu levá-lo para a esquadra, logo resolveria o que fazer.
***
Já na esquadra, e depois de Alice e os filhos de Álvaro terem sido levados para
diferentes salas de interrogatório, Máximo decidiu falar com o Capitão, não sem antes
beber água e lavar a cara. “Maldita ressaca, tenho mesmo de deixar de beber”, pensou.
Uma promessa que fazia a si mesmo todos os dias e que adiava sempre para o dia
seguinte. O cão mantinha-se junto dele. Bateu à porta do gabinete de Renato.
— Capitão, desculpe, mas tenho aqui uma situação que gostaria de discutir
consigo…
— Diga lá, Máximo, o que foi desta… Mas que raio é isso e porque é que está
aqui?!
Luke rosnou de imediato.
— É um cão — respondeu Máximo, divertido.
— Que é um cão sei eu ver! Mas o que está aqui a fazer? Afaste-o de mim!
Luke continuava a rosnar ameaçadoramente. Parecia que a única coisa que o
impedia de se atirar a Renato era a mão de Máximo no seu dorso.
— É uma potencial testemunha — continuou Máximo, sem se dar ao trabalho de
esconder o gozo que lhe dava a situação.
— E está a pensar fazer o quê? Levá-lo para interrogatório? Pô-lo num
polígrafo?! Pelo amor de Deus, Máximo, leve-me isso daqui, se não tem dono vai para o
canil! Quer o quê?
— Não quero nada, já tenho o que preciso — respondeu. Máximo bateu com a
porta e afagou o cão. “Da minha beira não sais, não vais para canil nenhum. Se és capaz
de cheirar um canalha destes à distância ainda me hás-de ser muito útil”, pensou.
Assobiando, seguiu caminho e dirigiu-se à primeira sala de interrogatório, onde já se
encontrava o filho mais velho do morto.
— Ora então, vamos lá fazer umas perguntinhas, nada de especial, procedimento
de rotina. Pode ser que tenha algumas pistas que nos conduzam ao assassino do seu pai.
Diga-me o seu nome, idade e profissão, por favor.
— Não vejo que possa eu dizer que possa ser relevante, mas está bem. O meu
nome é André Freitas, tenho 34 anos e sou CEO na empresa do meu pai, a DeTech, já
deve ter ouvido falar.
— Sabe de alguém que pudesse querer ver o seu pai morto? Alguém que lhe
quisesse fazer mal?
— Nada, não sei de nada. O meu pai era um homem rico e como todos os
homens ricos tem as suas invejas, mas nada de mais.
— E o quadro que desapareceu era valioso?
— Não me parece. O meu pai era um homem excêntrico e gostava de
coleccionar coisas antigas. Gostava de ir a antiquários e comprar quadros. Nunca vi
grande valor em nenhum deles, só o amor que ele lhes tinha.
— Não me parece muito afectado pela morte do seu pai…
— Sr. Detective, como já lhe disse, o meu pai era um homem rico, um homem
de negócios. Nunca foi muito ligado à família. Era meu pai, mas as nossas conversas
resumiam-se a negócios e pouco mais. Claro que estou triste e chocado, mas não preciso
de estar aos gritos para sentir dor. De nós os três, quem ainda conseguia ter alguma
relação afectiva com ele era a Marta, talvez por ser mulher, não sei.
— Consegue dizer-me onde esteve ontem à noite? O relatório preliminar diz-nos
que o seu pai terá falecido entre as duas e as seis da manhã.
— Estive em casa, com a minha mulher e os meus filhos, a dormir, obviamente.
— Eles podem confirmar isso?
— É natural que sim, embora todos estivéssemos a dormir.
— Muito bem, Sr. André, por agora pode ir, está dispensado. Mais tarde
entraremos em contacto consigo.
André levantou-se sem grandes pressas, vestiu o casaco e saiu. Máximo ficou a
pensar em que raio de filho é que não transpareceria nenhuma emoção perante a morte
do pai. Seria a empresa um motivo para o assassínio? Poderia querer André, o filho
mais velho, herdar a empresa do pai? Bom, de qualquer forma o filho tinha um álibi…
Mais tarde verificá-lo-ia. Com algum esforço levantou-se e seguiu para a outra sala,
onde se encontrava o filho do meio. Deu-lhe as mesmas indicações que havia dado ao
irmão.
— Chamo-me Ricardo, tenho 32 anos e trabalho… ou trabalhava na empresa do
meu pai.
— Porque é que diz “trabalhava”?
— Porque agora com a morte do meu pai não sei até que ponto ainda tenho
emprego — pigarreou.
“Mas que raio de família, ninguém se dá bem com ninguém?”, interrogou-se
Máximo.
— Adiante. Sabe de alguém que desejasse ver o seu pai morto?
— Muita gente, provavelmente, o meu pai não era um homem lá muito
simpático.
Máximo olhou para Ricardo e achou-o nervoso. Transpirava, estava irrequieto,
remexia-se, esfregava freneticamente as mãos uma na outra. Pensou nas diferenças entre
os dois irmãos, até nas respostas que davam às mesmas perguntas.
— Sobre o quadro da lareira, sabe alguma coisa? Tinha algum valor?
— Depende do que entende por valor. O meu pai tinha mais amor a todos
aqueles quadros do que aos próprios filhos.
Ricardo pareceu a Máximo amargurado, ressentido.
— Parece-me que ficaram alguns assuntos pendentes com o seu pai, pelas suas
respostas…
— Não ficou pendente coisa nenhuma. O meu pai nunca foi muito presente e eu
nunca fui o filho perfeito, também sei disso. Famílias…— suspirou Ricardo.
— Sabe dizer-me onde estava ontem à noite?
— Ontem à noite estive com os amigos num bar, no Morgans. Pode perguntar a
quem quiser. Saí de lá já era dia.
— Não tinha que trabalhar de manhã?
— Não vejo em que é que isso possa ser relevante para a investigação…
— Tem razão. Pode ir. Mais tarde entraremos em contacto consigo.
Máximo pensou no seu próprio pai, que também não tinha sido muito presente.
Ainda assim, tinha sofrido bastante com a sua morte. Podia não ter sido um pai
presente, mas no tempo em que o foi, foi um bom pai. Suspirou e chamou pelo cão, que
continuava a parecer feliz na sua companhia. Mais um interrogatório, desta feita com a
filha. Máximo só queria que o dia acabasse, e se havia coisa que neste momento não
tinha vontade era de falar com uma mulher histérica.
— Olá, de novo — disse Máximo, quanto entrou na sala onde já se encontrava a
filha de Álvaro. “Pelo menos alguém já teve a decência de trazer lenços e água, bem me
parece que vamos precisar”, pensou.
— Ouça, foi aquela cabra que matou o meu pai, tenho a certeza, tenho a certeza!
Porque é que ela não está já presa? — disse a mulher, levantando-se da cadeira. Luke
ergueu as orelhas e rosnou, voltando a deitar-se.
— Minha senhora, vamos lá acalmar-nos. Já percebi que está muito chocada
com a morte do seu pai, mas tem que ter calma, está bem? Vou fazer-lhe umas
perguntas e vamos ver se com as suas respostas conseguimos chegar ao assassino do seu
pai.
A mulher começou a chorar copiosamente. “Pronto, era só esta que me faltava.
Foda-se. Onde é que está o Eduardo?”, pensou Máximo.
— Pronto, pronto, vamos ter calma. Beba um pouco de água e inspire fundo.
Não se esqueça que as suas declarações podem ser cruciais para desvendarmos este
crime. Vá, acalme-se, pelo menos pelo seu pai.
O discurso de Máximo pareceu resultar e a mulher enxugou as lágrimas, fungou
e começou a falar.
— Ouça, o meu pai sempre foi uma pessoa querida. Tudo o que tenho a ele o
devo. Ele só começou a ficar diferente quando conheceu aquela… Alice. Eu avisei-o, eu
avisei-o, eu disse-lhe tantas vezes que ela só queria o dinheiro dele. Mas ele nunca
acreditou em mim e ainda se chateou comigo e agora, agora, agora está…— e largou
em pranto outra vez.
— Vamos por partes, sim? Diga-me por favor o seu nome, a idade e a sua
profissão.
— Eu chamo-me Marta. Era assistente do meu pai. Tenho 30 anos — disse a
mulher, entre fungadelas.
— Pronto, Dona Marta, agora explique-me direitinho porque é que acha que a
Dona Alice matou o seu pai.
— Porque ela é uma interesseira, ou vê por aí mulheres com a idade dela a
andarem com homens da idade do meu pai porque gostam muito deles? Só se for por
gostarem da carteira!...
— A Dona Alice tinha-me dito que a relação que mantinha com o seu pai era de
simples amizade…
— Desculpe, Sr. Agente, mas eu, pelo menos, não vou para a cama com os meus
amigos!
— Tem provas de que isso algum dia aconteceu?
— Não preciso de ter, notava-se. O meu pai ficou estranho desde que a
conheceu. Ficou frio, distante… Começou a gastar muito dinheiro em roupas, perfumes,
coisas de mulher. Como assistente tenho acesso a todos os extractos do cartão. Costuma
dar coisas caras às suas amigas?
— Muito bem, já percebi. Conhece mais alguém que quisesse fazer mal ao seu
pai?
— Não, o meu pai era um homem muito querido e respeitado por todos à sua
volta. Mais depressa acreditaria se quisessem fazer mal a um dos meus irmãos do que a
ele.
Máximo sentiu a sua família como a mais funcional do mundo quando ouviu
estas palavras. Que raio de família era esta em que todos diziam coisas diferentes, em
que todos pareciam ter um pai diferente?
— Aos seus irmãos?
— Sim, claro, ou ainda não deu para reparar? Um é um ditador que manda em
tudo e todos, o outro é um desgovernado que só anda com más companhias. Não é
difícil ter inimigos sendo assim.
— E onde esteve ontem à noite, pode dizer-me? — perguntou Máximo.
— Em casa, a dormir.
— Sozinha?
— Não propriamente, tive uma amiga de visita que ficou lá a dormir.
— E ela poderá confirmá-lo, certo?
— Claro.
— Então por agora é tudo, Dona Marta. Quando houver mais desenvolvimentos
entramos em contacto consigo.
— Agradeço. E por favor prenda-me aquela mulher.
Marta saiu, deixando Máximo entregue aos seus pensamentos. Bolas, nem a
meio do dia ia e sentia-se estourado. E ainda tinha um último interrogatório, o de Alice.
Aquela mulher preocupava-o, era difícil de descortinar. Até agora Máximo conseguia
resumir os seus interrogados: um indiferente, um amargurado, uma desesperada. De
Alice não sabia o que esperar. Reparou que o cão tinha urinado num canto da sala.
“Espectacular, era só isto que me faltava”, pensou. Ainda se riu, pensando na reacção do
Capitão. Mais uma vez assobiou ao cão e saiu da sala para ir ao encontro de Alice.
— Dona Alice, desde há bocado… — disse, quando entrou.
A mulher encontrava-se sentada, já mais composta, de perna cruzada. Máximo
tentou afastar pensamentos que o conduziam a uma cena à “instinto fatal”. Raio de
mulher. Eduardo ainda estava na sala, “guardando a testemunha”, como argumentou.
“Pois, pois, pensou Máximo. Guardá-la querias tu…”. Tentando parecer o mais
indiferente possível, Máximo sentou-se de frente para ela e começou a falar.
— Dona Alice, tenho aqui umas perguntinhas para si, nada de especial…
Começou por dizer que não mantinha nenhuma relação com o desconhecido. A filha de
Álvaro discorda.
— Continuo a afirmar que não havia nenhuma relação.
— A filha de Álvaro diz que ele lhe dava presentes caros e que passava muito
tempo consigo…
— Não quer dizer que tivesse uma relação amorosa com ele.
— Não havia contactos íntimos?
— Que quer dizer com íntimos, detective? — perguntou Alice, aproximando o
corpo da mesa, numa atitude claramente provocatória.
— Sexo. — respondeu Máximo, sem rodeios.
— Nada de sexo — sorriu ela de volta.
— Onde esteve ontem à noite?
— Estive num bar até perto da uma. Depois fui para casa dormir.
— Sozinha?
— Sim, detective. Sozinha e abandonada.
Alice provocava uma vez mais e Máximo sabia-o. A falta de companhia que
sentia ultimamente não ajudava a conseguir sentir-se indiferente às provocações.
— Muito bem. Por agora pode ir, mais tarde falaremos consigo.
Alice levantou-se, bamboleando as ancas num andar sensual. Deixou para trás
um Máximo pensativo e um Eduardo boquiaberto.
— Fecha a boca, pá. Só dá mau aspecto — disse Máximo ao colega.
— Que queres? Que mulherão…
— Ela disse-te alguma coisa enquanto esteve contigo?
— Não, pediu água, apenas.
— Está bem. Vou para o meu gabinete. Se chegar mais alguma coisa do
laboratório ou houver algo de novo avisa-me.
— E o cão? Vais adoptar o cão?
— E se for? Tens problemas com isso? Ou precisas de ser adoptado também?
Máximo dirigiu-se para o seu gabinete, acompanhado de Luke. O cão
rapidamente se instalou no seu velho sofá. Máximo sentou-se à mesa com os ficheiros
das quatro testemunhas e do falecido e começou a pensar. Um homem tinha morrido,
um quadro estava desaparecido, três filhos que eram tudo menos funcionais, uma
mulher mistério que não se sabia ao certo se seria amiga ou amante do morto. “Rica
embrulhada. Bom, a chave deve estar no quadro, por isso é por aí que vamos começar.”
Máximo passou o resto da tarde na casa de Álvaro onde descobriu fotografias que
envolviam o quadro como pano de fundo. Depois disso dirigiu-se ao antiquário mais
próximo. Nada, o quadro parecia ser um quadro comum, pintado por um artista amador,
sem qualquer valor. “Merda de dia perdido”. Deixou Luke em casa, trincou qualquer
coisa e foi até ao bar onde ia sempre, tentar espairecer e perceber o que é que lhe estava
a escapar.
***
O bar estava quase vazio, ao contrário do que era habitual. Depois de emborcar
duas ou três vodkas, Máximo deixou de sentir a má-disposição que o tinha assolado
todo o dia.
— Desculpe, tem lume? — ouviu perguntar. Perdido nos seus pensamentos não
tinha sequer sentido ninguém a aproximar-se de si. Reconheceu de imediato aquela voz.
E o perfume. Aquele perfume. Alice.
— Por aqui? – respondeu. — Quase parece perseguir-me.
— Não tenho culpa que frequentemos o mesmo sítio — respondeu com um
sorriso a mulher.
— E eu não tenho culpa que nunca tenha lume — respondeu com aspereza
Máximo.
— Importa-se que me sente ao pé de si?
— Não me parece ser o mais correcto a fazer tendo em conta a investigação.
— Então eu não sou uma testemunha? Ou de repente passei a suspeita?
— É livre de se sentar onde quiser, o bar tem muitos lugares disponíveis.
A mulher voltou a sorrir e sentou-se. Pediu um whiskey, como já havia feito da
vez que conheceu Máximo, e emborcou-o de um trago.
— Quer falar? — perguntou ela.
— Não, passei o dia a falar. Se agora me apetece alguma coisa é silêncio.
Alice calou-se. Os dois ficaram sentados lado a lado, um par de horas, sem
trocar uma única palavra. Beberam e fumaram bastante, cada um perdido nos seus
pensamentos. Com o álcool já a toldar-lhe o raciocínio, Máximo pagou a conta e fez
menção de sair.
— Vai embora? — perguntou a mulher.
— Vou, quer boleia?
— Não me parece que esteja em condições de conduzir. E eu também não. E se
partilhássemos um táxi?
— De acordo — respondeu o detective.
Alice ligou para um táxi que demorou menos de cinco minutos a chegar. A casa
do detective Andaluz ficava a caminho da de Alice. Quando o táxi fez a primeira
paragem, Máximo estendeu uma nota a Alice e disse-lhe que seria para pagar toda a
viagem. A mulher nada disse, apenas assentiu com a cabeça. Máximo saiu e entrou em
casa. Luke dormia no sofá e apenas levantou uma orelha. Máximo dirigiu-se ao quarto,
relativamente trôpego, quando ouviu a campainha tocar. Dirigiu-se à porta. Era Alice.
Sem trocarem uma única palavra e inebriados pelo álcool, não demorou aos dois corpos
a aproximarem-se um do outro. Envolveram-se num longo beijo e não tardou que as
roupas dos dois fossem espalhadas pelo chão e os dois acabassem na cama.
Na manhã seguinte, Máximo acordou novamente com dores de cabeça. Na
cama, a seu lado, não estava ninguém. Apressou-se a tomar banho e saiu a correr para o
bar, onde tinha deixado o carro, acelerando depois para a esquadra. Alice não lhe saía
do pensamento. Nem do corpo. Ainda sentia o seu sabor, o seu cheiro entranhado na
pele, a maciez do seu toque. Apesar das dores de cabeça, pela primeira vez em meses
sentia-se bem.
Chegado à esquadra, foi de imediato ter com Eduardo.
— E novidades, temos?
— Chegou o relatório do médico legista. Nada que não soubéssemos já. Três
facadas, Álvaro não ofereceu resistência. Devia conhecer o homicida. Não havia
vestígios de álcool ou drogas no sangue. Mas há uma coisa que vais gostar de saber…
— Máximo Andaluz, aqui, já! — a voz de Renato entoou pelos corredores.
— Oh que merda, já começa este, logo pela manhã — resmungou entredentes
Máximo.
Sem pressa nenhuma, dirigiu-se ao gabinete do Capitão.
— Parece que temos que ter uma conversa séria — disse Renato.
— Acho que nunca tive uma que não fosse séria consigo — retorquiu Andaluz.
— Que me diz disto? — Renato apontou para um conjunto de fotografias
espalhadas em cima da mesa.
Máximo olhou para as fotografias e não conseguiu disfarçar o espanto.
Fotografias dele e de Alice no bar, à entrada do táxi, à porta de sua casa, o beijo…
“Foda-se”, pensou.
— Que há para dizer?
— O que há para dizer é que estás automaticamente afastado do caso. Dormir
com uma testemunha que pode muito bem ser suspeita? Mas que raio te passa pela
cabeça?
— Muita coisa — respondeu, enigmaticamente.
— Meu menino, podes tirar o resto do dia e ir para casa descansar ou fazer o que
quer que te apeteça. O que não podes fazer é envolver-te com testemunhas. Estás
afastado do caso até ordem em contrário. Vais com muita sorte se não fores suspenso –
ameaçou Renato.
Máximo nem respondeu. Virou costas e abandonou o gabinete. Alguém o tinha
tramado. Quem é que teria interesse em afastá-lo do caso? Não estava nem perto de
descobrir o assassino, por isso quem o quereria afastar? Não fazia sentido. E não ia
desistir. Já se encontrava com um pé fora da esquadra quando ouviu Eduardo chamar.
— Eh! Onde vais? Não ouviste o que te ia dizer!
— Estou fora do caso.
— Porquê? — respondeu Eduardo, boquiaberto.
— Não interessa. Mas diz-me lá, antes que venha o chato.
— Falámos com o advogado de Álvaro. O testamento foi alterado. Se Álvaro
morresse ou ficasse incapacitado, Alice ficava com 30% da empresa, mais do que
qualquer um dos filhos dele. Parece-me que afinal temos suspeito, motivo e, melhor
ainda, ela não tem álibi para aquela noite.
Máximo não respondeu. Deixou o colega a falar sozinho e saiu. “Boa porra em
que me meti”, pensou. Não sabia o que fazer, não tinha como contactar Alice, não sabia
para onde se virar. Decidiu voltar a casa, mais que não fosse tinha que passear o cão.
Luke recebeu-o efusivamente. Máximo deu-lhe de comer e de beber e deitou-se no sofá
a pensar em tudo o que tinha acontecido até ali. Sem querer, passou pelas brasas.
Quando acordou, olhou para o relógio e viu que já a tarde ia a meio. Tinha que fazer
alguma coisa. Decidiu passar pela DeTech. Afinal, os filhos de Álvaro ainda não
deveriam saber que estava afastado do caso. Pegou nas chaves do carro, em Luke, e
saiu.
Dali até à empresa foi um instante. Máximo tinha pé pesado e abusava
frequentemente da sua própria autoridade para acelerar mais do que o que devia. O
edifício era enorme.
— Ficas aqui, está bem, amigo? Eu já volto — disse Máximo ao cão.
Entrou na DeTech e viu naquele edifício um reflexo daquilo que era a casa de
Álvaro. Moderno, cheio de estilo, vibrante. Dirigiu-se à recepção e pediu para falar com
Marta. Dos três filhos era a que lhe tinha parecido mais acessível. Foi-lhe indicado que
subisse até ao último piso, onde Marta tratava de umas papeladas no outrora gabinete do
pai. Marta tinha acedido a uma conversa e Máximo esperava mais respostas às suas
tantas questões.
Chegado ao último piso percebeu logo qual era o gabinete pela placa dourada
que ainda exibia o nome de Álvaro. Bateu à porta com os nós dos dedos e uma voz
feminina pediu-lhe que entrasse.
— Boa tarde, Dona Marta. Peço desculpa por incomodá-la aqui, mas precisava
de lhe fazer mais umas questões.
— Não tem qualquer problema, detective. No que eu puder ajudar…
— Por acaso não sabe onde é que o seu pai comprou o quadro que está
desaparecido?
— O meu pai comprava quadros em diferentes antiquários. Mas habitualmente
era no Antiquário da Quinta Avenida que fazia mais compras. Se foi lá que comprou
este, sinceramente não sei…
— O advogado já fez a leitura do testamento? Já está a par…?
— Já estamos todos a par, mas a leitura ainda não foi oficializada. Pelo que
sabemos, Alice é co-proprietária da empresa, terá direito até a mais do que nós. Estamos
a tentar recorrer, mas não será fácil, o meu pai estava em perfeitas condições mentais
quando mandou alterar o testamento. Mas como acredito que ela será presa em breve
pelo seu assassinato, não estou preocupada com isso.
— Faz ideia porque é que o seu pai deixou tanto a Alice?
— Amor? Paixão? Crises de um velho de sessenta anos? — respondeu,
revoltada, Marta.
Máximo emudeceu. Compreendia a dor daquela filha que não só tinha perdido o
pai como tinha visto parte da sua fortuna ser entregue a uma desconhecida devido a uma
paixão assolapada. O detective não duvidou das questões de Marta. Alice era capaz de
enfeitiçar qualquer homem… até ele se tinha deixado levar por aquela mulher. No
entanto, intrigava-o que Alice nunca tivesse assumido a relação com Álvaro.
— E os seus irmãos, como estão a reagir?
— Como seria de esperar. O André exasperado como sempre e a tentar resolver
todas as burocracias, o Ricardo nem aparece no trabalho.
— Será possível falar com André, ele está cá?
— Lamento, Sr. Máximo, o André está em reuniões desde manhã, dificilmente
poderá ser interrompido. Mas certamente poderá passar pela esquadra depois.
— Eeeer… Não será necessário. E Ricardo, faz ideia onde estará?
— Em casa, a curar a ressaca, provavelmente.
— Problemas de bebida?
— Problemas de tudo. Ricardo sempre foi o problemático, o borgas. Ele
instalou-se em casa do nosso pai, se passar por lá com certeza que o apanha.
— Obrigado, Dona Marta. Passe bem.
Máximo abandonou o edifício e dirigiu-se a casa de Álvaro. O portão estava
aberto. Entrou, saiu do carro com Luke, tocou à campainha e não obteve resposta. O cão
começou a rosnar.
— Que se passa, amigo? Eh? — perguntou Máximo ao cão.
Máximo rodeou a casa e tentou espreitar pelas janelas. As cortinas não deixavam
ver nada. O cão continuava inquieto. “Bom, perdido por cem, perdido por mil”.
Máximo tinha visto um pequeno postigo de aspecto frágil que dava acesso às traseiras
da casa. Bastaram uns abanões para as portadas cederem. Máximo içou-se e entrou.
Luke seguiu-o de imediato. A casa estava totalmente silenciosa. Máximo caminhou com
cuidado, sabendo de antemão a quantidade enorme de regras que infringia naquele
momento. Na mão levava a arma. O comportamento do cão alertava-o para algo, algo
que não parecia estar bem. Avançou pé ante pé. Esperava tudo menos aquilo que viu
quando chegou à sala. Pendurado no candeeiro por uma corda estava Ricardo. Muitas
garrafas de álcool espalhadas pelo chão. Um banco tombado. O corpo com um esgar de
horror, língua pendente, rosto inchado, arroxeado. Máximo aproximou-se da mesa e
num pequeno papel viu escritas as palavras “desculpa”. “E agora, que raio é que faço?”,
pensou. Percorreu o resto da casa, não havia ninguém. Não havia sinais de
arrombamento. Ricardo tinha-se enforcado. “Culpa?”, questionou-se o detective. Não
podia ligar para a esquadra, tinha sido afastado do caso. “Eduardo”, lembrou-se.
“Eduardo ajuda-me, de certeza.” Pegou no telemóvel, abandonou a casa pelo mesmo
postigo, entrou no carro com Luke e arrancou a todo o gás. Pelo caminho ligou a
Eduardo.
— Sim? — a voz do colega atendeu do outro lado.
— Pá… Não sei como dizer isto. Vim a casa do Álvaro ver se descobria mais
alg…
— Estás doido?! O Capitão proib…
— Eu sei que proibiu, caraças, ouve-me! Encontrei o Ricardo Freitas enforcado
na sala. Tens que mandar lá alguém rapidamente.
— Encontraste o quê???
— Tu ouviste, inventa uma desculpa qualquer e vai para lá, quando souberes
mais pormenores liga-me, ok?
— Max, se o Capitão sonha…
— Não há um único vestígio meu naquela casa. Confia em mim, confias?
— Certo. Qualquer coisa ligo-te.
— Obrigada, até já.
Máximo continuou a guiar e dirigiu-se a casa. Pousou o casaco, as chaves, a
carteira e atirou com tudo para cima da mesa. Ao olhar para a carteira lembrou-se que
no meio da bebedeira com Alice, ela lhe tinha deixado o número num cartão. Remexeu
freneticamente na carteira e encontrou o pequeno post-it amarelo que a mulher lhe tinha
deixado. Ligou, mas apenas o voice mail atendeu. Não conseguia deixar de pensar nas
últimas palavras deixadas por Ricardo: “desculpa”. Não era “desculpem”, era
“desculpa”. A quem estaria ele a pedir desculpa? Ao pai? Teria o filho morto o pai? Que
é que lhe estava a escapar? Sentia-se lento, frustrado. Lembrou-se do antiquário de que
Marta lhe tinha falado e resolveu lá dar um salto.
A loja era pequena e tinha todo o tipo de objectos e velharias. Um velhote careca
e de óculos apareceu e perguntou a Máximo se precisava de alguma coisa.
— Boa tarde. Precisava, precisava de umas informações suas, se me puder
ajudar — respondeu Máximo.
— Diga, diga, no que eu puder…
— O senhor conhecia Álvaro Freitas, um homem que pelos vistos comprava
aqui muitos quadros?
— Ah, o Sr. Álvaro, sim, claro. Foi uma pena o que lhe aconteceu. Fiquei
chocado. Já sabem quem poderá ter sido?
— Ainda estamos a investigar, daí precisar da sua ajuda…
— Força, não sei se há muito que eu possa dizer que vá ajudar. O Sr. Álvaro
comprava muitas coisas aqui, era um coleccionador nato.
— Lembra-se qual foi o último quadro que o Sr. Álvaro comprou aqui?
— A última vez que o Sr. Álvaro esteve cá não foi para comprar, foi para
restaurar. Veio mandar restaurar um quadro antigo.
— Restaurar?
— Sim, sim, restaurar. Era um quadro pintado por um amador, já tinha muitos
anos e tinha algumas imperfeições e bastante desgaste.
— Não sabe quem pintou o quadro, por acaso?
— Não sei, não. Mas sei que o quadro tinha uma declaração na parte de trás da
tela, aliás, era precisamente isso que o Sr. Álvaro estava a tentar recuperar.
— Lembra-se do que dizia a mensagem?
— Não propriamente… mas acho que tenho lá para dentro fotografias do
trabalho de restauro. Gosto sempre de tirar fotos, sabe? Assim os clientes podem ver o
antes e o depois dos meus trabalhos.
O velhote saiu por uma porta e deixou Máximo entregue aos seus pensamentos.
Que teria o quadro de tão importante para Álvaro querer restaurar uma simples
mensagem? Seria uma raridade, um quadro valioso, afinal? O telemóvel tocou. Era
Eduardo.
— Já estamos no local. Mais uma vez não há indícios de arrombamento, de
nada. Parece que estamos num beco sem saída, foi mesmo suicídio — disse Eduardo.
— Eu estou a tentar seguir outra pista.
— Ok, vou desligar, vem aí o Renato.
A chamada caiu. Máximo continuava a pensar no bilhete de suicídio. O velhote
regressou à sala com uma capa cheia de fotografias na mão.
— Está a ver? Era este o quadro.
O velhote apontou para um quadro com um campo com flores. Uma orquídea
distinguia-se no meio de todas as flores.
— E a mensagem?
O homem mostrou a Máximo imagens da mensagem por trás da tela. Numa tinta
esbatida e já depois de o restaurador ter feito o seu trabalho conseguia ler-se “Alice…
Maravilha…”. “Alice no País das Maravilhas?!” O quadro estava datado: 13/02/1979. O
nome do autor estava imperceptível.
— O Sr. Álvaro nunca lhe disse nada sobre este quadro?
— Não, apenas que tinha imenso valor sentimental.
— Agradeço a sua atenção, já me ajudou muito.
Máximo saiu e dirigiu-se a casa novamente. Durante noites a fio procurou Alice
no bar, mas sem sucesso. O telemóvel estava permanentemente desligado. Parecia que
Alice se tinha evaporado da face da terra. Nos dias seguintes foi trabalhar e foi-se
inteirando dos pormenores do caso através de Eduardo. O funeral de Ricardo já tinha
sido há uns dias e neste momento a polícia tinha Alice como principal suspeita. A
DeTech continuava a funcionar plenamente, com os dois irmãos a assumirem funções
principais, já que Alice continuava sem dar sinais de vida.
Num dos dias em que a vida decorria normalmente, com Máximo sentado atrás
da secretária à volta de papeladas – Renato continuava a chateá-lo permanentemente e
andava sempre atrás dele – uma questão passou-lhe pela cabeça. Álvaro era viúvo. De
que teria morrido a mulher? Nunca tinham chegado a saber.
— Eh, Eduardo! — o colega encontrava-se na secretária imediatamente atrás
dele. — Sabes de que é que morreu a mulher de Álvaro?
O colega, assustado com o grito do colega, entornou o café em cima da
secretária e por si abaixo.
— Bolas, pá. — disse, enquanto tentava limpar-se. — Suicidou-se, porquê?
— Também se suicidou? Quando?
— Não sei, deixa cá ver, tenho isso apontado num sítio qualquer.
Eduardo remexeu na confusão de papéis e café que era a sua secretária, pegou
numa pasta e enquanto via aos ficheiros atirou a Máximo:
— Em Fevereiro do ano passado. Mas porquê?
— Humm… Nada de especial, não ligues, não deve ser nada de relevante.
Máximo passou o dia a matutar naquilo. Nada lhe afastava da cabeça o
pensamento de que aquele quadro e o suicídio da mulher de Álvaro estavam ligados.
Não percebia bem como, mas iria descobrir.
Já no fim do dia, ia Máximo a sair da esquadra, quando entraram dois agentes
com Alice algemada.
— Alice? Mas que…? — ia perguntar Máximo.
— É que nem penses, Máximo Andaluz!!! — a voz de Renato apareceu do nada
por trás dele. – Ainda continuas afastado do caso!
Os dois agentes seguiram com Alice para uma das salas. Máximo ficou
impaciente, nervoso. Precisava de saber o que se iria passar naquele interrogatório.
Dirigiu-se à cadeira de Eduardo.
— Pá, vai assistir ao interrogatório e depois diz-me o que puderes.
— Não sei se o Renato me irá deixar, mas vou tentar. Estás mesmo apanhado
pela mulher, não estás?
Máximo não respondeu e sentou-se à secretária. As horas seguintes foram duras,
não conseguia deixar de pensar que se calhar se tinha envolvido com uma assassina e
posto a carreira em risco. Passou todos os minutos a fingir que trabalhava, rabiscando
coisas inúteis em papéis ou fazendo de conta que via casos por resolver. Ao fim do dia
viu Alice sair. Olhou-a de soslaio e ela retribuiu o olhar, piscando-lhe o olho e
abandonando a esquadra de seguida. Eduardo chegou-se ao pé do colega.
— Nada de mais, Máximo. Diz que foi fazer uma pequena viagem à casa da
falecida mãe. Como é um local isolado não tem rede e ficou incontactável. Não sabia
sequer das alterações no testamento. Pareceu verdade, agora vamos ver… O facto de
não ter álibi para aquela noite não a ajuda nada.
— E os álibis dos outros, foram todos confirmados?
— Sim, principalmente o de Ricardo. Os outros estavam acompanhados mas
com toda a gente a dormir em casa. Ainda assim, todas as testemunhas garantem que
teriam reparado caso alguém tivesse saído de casa.
— Tens o ficheiro dela?
— Dela?
— De Alice.
— Tenho, mas sabes que não posso dar-to.
— Não mo podes dar mas podes mostrar-mo. Cinco minutos, é só o que te peço.
— Ainda me vais meter em trabalhos…
Eduardo foi a outra sala e trouxe um ficheiro com ele. Máximo pegou nele e
folheou-o. Nada de mais. Ambos os pais falecidos, umas multas de estacionamento, boa
aluna, trabalhava numa empresa como gestora. Nada que o pudesse ajudar.
— E esta conversa de casa da mãe? Já confirmaram?
— Não há forma de confirmar. Ela diz que é uma propriedade à qual vai de vez
em quando para arejar as ideias. Tem caseiros mas nesses dias não estiveram lá, pelo
que diz.
— Dá-me a morada.
— Máximo…
— Anda lá, pá.
Eduardo apressou-se a rabiscar um endereço num papel. Ainda estava a escrever
quando Renato apareceu.
— Espero que sua excelência não queira ser afastada do caso, como o seu
colega. É que se lhe estiver a passar informações será o que vai acontecer — ameaçou o
Capitão.
— Nada disso, Senhor, nada disso — disse Renato enquanto amarfanhava
nervosamente o papel atrás das costas.
— Há coisas mais importantes para tratar. Mandou-me afastar do caso e eu
assim o fiz — retorquiu Máximo.
— Que me passe pela cabeça um segundo que seja!... E o aviso é para os dois —
continuou o Capitão.
— Nada disso, nada disso, Senhor – Eduardo continuava a tentar esconder o
papel. De tão nervoso tombou o copo com canetas em cima da secretária. “Vai lixar
tudo, este”, pensou Máximo.
— Então não sei porque está tão nervoso — disse Renato.
— Ele não está nervoso — interrompeu Máximo. — Anda é cansado porque tem
menos uma pessoa a partilhar o trabalho com ele…
— Sempre muito engraçado, detective. Um dia que se afaste da polícia talvez se
decida a fazer comédia — rosnou Renato.
Máximo sorriu. Pelo menos tinha conseguido desviar as atenções do
destrambelhado do Eduardo. Mal Renato se afastou, Máximo pegou no papel e saiu.
***
A propriedade da mãe de Alice também era em Colares, mas ainda ficava a uma
boa meia hora da esquadra. Máximo passou em casa a apanhar Luke e conduziu à maior
velocidade que conseguia, ainda sem saber ao certo o que iria fazer quando lá chegasse.
Chegado à morada que se encontrava no papel, Máximo viu um casarão em pedra. “Mas
será que toda a gente é rica menos eu?”, pensou o detective. Os portões eram em tons de
verde, mas aparentavam já ter um certo ar enferrujado. Como estavam entreabertos,
Máximo apressou-se a entrar. O cão parecia endoidecido com tanto espaço. “Se calhar
devia passeá-lo mais vezes”, suspirou Máximo. Avançou em direcção à casa e reparou
que ainda tinha daqueles grilhões antigos, em vez de uma campainha. Bateu duas ou três
vezes e aguardou. Ninguém parecia estar em casa.
Máximo deu uma volta pelo alpendre e decidiu perguntar pela vizinhança onde
poderia encontrar os caseiros. Subitamente, Luke fugiu.
— Luke, eh, Luke, anda cá! — gritou Máximo.
Nada a fazer, Luke tinha contornado a casa e não respondia ao chamamento. “É
mesmo sinal que tenho que começar a passeá-lo mais vezes, porra, era só o que me
faltava”, pensou Máximo, enquanto corria atrás do cão. Quando chegou às traseiras da
casa viu Luke, impávido e sereno, sentado e a admirar o ambiente que o rodeava.
— Rapaz, não me podes assustar assim…
Só a pequena corrida já tinha tirado o fôlego a Máximo. Sentou-se junto do cão a
admirar a paisagem. Já há muito que não parava assim, simplesmente por parar,
admirando a natureza e os longos campos pejados de flores que se estendiam diante
dele. De súbito, fez-se luz.
— Luke, meu grande Luke, minha grande ajuda. Vamos lá desvendar isto.
A caminho da esquadra, Máximo fez mais dois ou três telefonemas. Tinha a
certeza de ter descoberto o assassino.
***
Na grande casa de Colares, vivia-se um ambiente tenso. Um advogado, munido
de bastante documentação, fazia a leitura do testamento de Álvaro. Três pessoas
ouviam-no atentamente: André, filho mais velho, Marta, a filha mais nova, e Alice.
Álvaro tinha mudado o seu testamento há poucas semanas. O testamento indicava que
tudo seria dividido igualmente pelos três irmãos (agora dois, já que Ricardo se tinha
suicidado) e Alice. Tudo… excepto a empresa: Alice ficava com 30% da empresa,
enquanto os filhos de Álvaro ficavam com somente 23. Uma cláusula indicava que, na
possibilidade de acontecer alguma coisa a algum dos irmãos, essa parte ficaria
automaticamente para Alice. Marta vociferava impropérios, André estava de mãos na
cabeça, Alice mantinha-se silenciosa. A campainha tocou, interrompendo as palavras do
advogado. Foi Marta quem foi abrir a porta.
— Boa tarde, Dona Marta.
— Detective Máximo… não vem na melhor altura. Está a ser feita a leitura do
testamento.
— Tenho algumas informações comigo que podem mudar o rumo das vontades
de seu pai. Importa-se que entre?
— Faça favor — disse a mulher, convidando-o a entrar.
Máximo entrou e, junto de Luke, rumou à sala.
— Boa tarde a todos, peço desculpa por interromper, mas queria mesmo
apanhar-vos a todos juntos.
Em todos apareceu um ar de surpresa. Máximo sorriu enigmaticamente.
— Penso ter descoberto o assassino de Álvaro. E já agora… também quem
roubou o quadro.
André levantou-se exaltado.
— E vai demorar muito a partilhar essas informações connosco?
— Vamos por partes, sim? Quando este caso começou, nomeadamente com a
morte do Sr. Álvaro, as pistas não eram nenhumas. Havia apenas indícios e motivos,
nalguns casos falta de álibi até — disse Máximo, olhando de soslaio para Alice, que
pareceu encolher-se. — De qualquer forma, poderia ter sido qualquer pessoa que não
um de vocês. Mas a primeira coisa que estranhei foi não haver sinais de arrombamento,
pelo que Álvaro deveria conhecer o assassino.
— Até aí já todos tínhamos chegado — disse Marta.
— Outra coisa que me intrigou foi o desaparecimento do quadro. Porquê roubar
um quadro que não parecia ser valioso? Dirigi-me ao antiquário da preferência do vosso
pai, que me disse, não que ele o teria comprado ali, mas sim restaurado.
— E que tem isso de estranho? — perguntou André.
— Não há nada de estranho nisso, o estranho era a mensagem por trás do
quadro. Dona Alice, posso perguntar-lhe há quanto tempo faleceram os seus pais?
— Eeeer… O meu pai faleceu quando eu ainda era bebé, a minha mãe faleceu há
uns meses atrás. Mas que tem isso a ver?
— Tem tudo a ver. Já lá vamos. Sr. André, é verdade que a empresa não estava a
atravessar uma boa fase?
— É verdade. Mas todas as empresas têm os seus altos e baixos. Tanto eu como
o meu pai acreditávamos que fôssemos ultrapassar esta fase.
— Dona Marta, também concorda?
— Acho que não estávamos muito bem, não — respondeu a mulher, baixando a
cabeça.
— Outra coisa que achei estranho no meio disto tudo, foi o bilhete de suicídio do
vosso irmão, que pedia desculpa, como se pedisse a uma única pessoa e não aos irmãos.
Geralmente os bilhetes de suicídio são escritos para a família ou para alguém com quem
se tem um relacionamento amoroso. No caso do Sr. Ricardo, investiguei e não havia
nenhum. O que me levou inicialmente a pensar que tivesse sido ele a assassinar o
próprio pai e que as desculpas a ele se dirigissem. Mesmo assim, as peças do puzzle
ainda não encaixavam.
— Onde quer chegar, detective? — perguntou Alice.
— Outra peça que não fazia sentido era a nossa. Alguém se deu ao trabalho de
tirar fotos nossas. Ou para me afastar do caso deliberadamente, ou para envenenar mais
a sua imagem. Até agora tudo isto não encaixava em nada na minha cabeça. Até que
hoje, aqui o meu fiel companheiro deu uma ajuda e fez-me perceber tudo — continuou
Máximo, afagando o pêlo do cão.
— Importa-se de me dizer a sua data de nascimento, Sr. André?
— Nasci a 5 de Maio de 1979.
— Sendo portanto o primogénito de Álvaro, certo?
— Sim, sou o mais velho.
— E se eu lhe disser que não é?
— Como assim? Claro que sou!
— Não, não é. Há um filho mais velho, alguém que poderia mudar o rumo da
empresa, alguém que poderia chefiar as coisas ou ter direito a tanto quanto vocês.
— Não estou a perceber — disse André.
— Dona Marta e Sr. André... apresento-vos a vossa irmã Alice.
O ar de choque estampado na cara dos três foi notório.
— Mas, mas… — começou a tentar falar Alice.
— Por isso é que a Dona Alice sempre disse que não era nenhuma relação
amorosa. Nem nenhuma relação de cariz sexual. Não sabia sequer que era filha dele,
pois não? — perguntou Máximo.
— Nunca… pensei… — balbuciou Alice.
— Quando conheceu Álvaro?
— Há uns meses atrás, numa reunião entre as nossas empresas.
— E deixe-me adivinhar, ele pareceu simpatizar logo consigo.
— Sim… — respondeu Alice, ainda meia atordoada. — Não foi imediato, mas
acabámos por almoçar juntos. E depois os encontros repetiram-se. O Sr. Álvaro
começou a dizer-me que me via como uma amiga e chegou até a dizer-me que eu era a
filha que nunca tinha tido. Mas eu nunca imagin…
— Eu sei que não — sossegou-a Máximo. — O seu pai queria manter tudo em
segredo até alterar o testamento. Por essa altura deveria estar a planear contar-lhe. Mas
houve alguém que descobriu tudo antes.
— Mas quem é que…? — perguntou André.
— Volto a pedir calma. Deixem-me explicar como é que percebi que a Dona
Alice era sua irmã. O quadro que desapareceu era uma pintura campestre, com uma
orquídea que se evidenciava no meio. A mensagem que estava atrás do quadro nunca
pôde ser totalmente recuperada. A princípio pensei que não tivesse influência nenhuma.
Entretanto a data que o quadro continha fez-me lembrar alguma data que tinha visto
pouco tempo antes. Em que dia nasceu, Dona Alice?
— A 13 de Fevereiro de 1979.
— Exactamente. Eu lembrava-me de ter visto essa data algures, nomeadamente
no seu ficheiro. A sua mãe tratava-a de alguma forma especial, tinha algum nome mais
carinhoso que lhe desse?
— A minha mãe costumava dizer que eu era a pequena maravilha dela…
— Claro... No quadro, as únicas palavras perceptíveis eram Alice e Maravilha.
Presumo agora que a mensagem fosse dirigida a Álvaro aquando do seu nascimento:
“Alice, a nossa pequena Maravilha”. Percebi que tinha sido a sua mãe a pintar o quadro
quando vi os campos por trás da sua propriedade. São semelhantes aos da pintura, com a
excepção da orquídea, que imagino que simbolize a própria Alice.
— Mas, mas, continuo sem entender… — balbuciou novamente Alice.
— Pelo que investiguei, a sua mãe faleceu com cancro. E pelos registos
telefónicos a que tive acesso há bocado, falou com o seu pai há algum tempo. Imagino
que o Sr. Álvaro nem sequer soubesse que tinha uma filha e que só o tenha sabido por
essa altura e por a sua mãe estar a ver a própria vida chegar ao fim. O quadro deve ter
sido enviado pela sua mãe. A relação que os seus pais tinham era extra conjugal.
Quando a sua mãe descobriu que a mulher de Álvaro estava grávida, fugiu. O dinheiro
nunca interessou muito para a sua mãe, pois não?
Por esta altura já uma Alice muito emocionada e frágil respondia a Máximo.
— Não, ela era feliz com outras coisas. A pintar, por exemplo.
— Daí nunca ter dito nada ao Sr. Álvaro sobre sequer estar grávida. O problema
é que quando percebeu que ia morrer não quis deixar a filha desamparada. E ligou ao Sr.
Álvaro, contando-lhe tudo. Imagino que a reunião que fez com que os dois se
conhecessem tenha sido mais do que planeada.
Alice chorava silenciosamente.
— A mulher do Sr. Álvaro deve ter-se suicidado com o desgosto quando soube,
há uns meses atrás, quando o seu pai lhe deve ter contado. E ainda há uma terceira
pessoa.
— Continuo sem perceber onde quer chegar, detective — disse André.
— Houve uma terceira pessoa que descobriu tudo isto e percebeu que ia ficar a
perder com a entrada de mais um elemento para a família. Uma pessoa que se sentiu
enganada, traída e injustiçada perante tantos anos de devoção ao Sr. Álvaro. A única
pessoa a quem ele teria coragem de contar estas coisas todas antes de as tornar públicas,
alguém em quem confiava. Essa pessoa é a sua irmã Marta.
— Não, isso não é verdade, isso não é verdade!!! Eu não sabia que Alice era
minha irmã, eu pensei que ela andava com o meu pai — tentou defender-se Marta.
— Não adianta tentar enganar-me. Foi a Dona Marta que nos tirou as
fotografias. Foi a Dona Marta quem matou Álvaro. Ainda só não entendi qual o motivo
principal. O suicídio da sua mãe? Não ter a hipótese de vender a empresa como
planeava fazer quando o seu pai morresse, juntando as suas acções com as de Ricardo?
Impedir o pai de juntar Alice ao testamento? Já era tarde, ele já o tinha feito…
— Não compreende, não é verdade! — gritou a mulher.
— Isso não é consistente com as provas que encontrámos nesta casa aquando do
suicídio do Sr. Ricardo. Muitos documentos e provas que agendavam reuniões para
breve com possíveis interessados na empresa.
— Isto é verdade, Marta? — inquiriu André.
— Eu, eu… — Marta estava desorientada, mal articulava as palavras.
— Parece-me é que o Sr. Ricardo não conseguiu resistir à culpa de ter encoberto
o assassínio do pai. Sei que ele não ajudou à sua execução porque, pelo que apurámos,
estava tão bêbedo nessa noite, que não conseguiria sequer acertar num elefante. Mas
acredito que a Dona Marta soubesse que ele era o mais fraco dos irmãos e que
conseguiria manipulá-lo para em conjunto tentarem vender a empresa. Afinal, os
negócios não eram nada para o Sr. Ricardo, interessava-lhe bem mais o dinheiro. Daí o
bilhete dizer “desculpa”, estava a pedir desculpas à própria irmã.
Alice começou a sentir-se tonta e nauseada. Tentou mover-se mas as pernas
falharam-lhe e embateu contra a mesa de apoio, mandando tudo o que ali repousava
para o chão. De imediato Máximo e André correram a ajudá-la. Alice estava branca
como a cal. Devagar pousaram-na no sofá. Máximo bateu-lhe ao de leve na face.
— Alice, Alice — sussurrou.
Aproveitando a distracção com Alice, Marta saiu da sala. Foi Luke, que também
se tinha aproximado de Alice, quem deu o alerta, rosnando insistentemente na direcção
da porta.
— Ela fugiu! — gritou André.
Máximo saltou por cima do sofá e saiu porta fora. Máximo viu Marta correr
desenfreadamente por entre os jardins. Estava em vantagem em relação a Máximo, que
não conhecia a casa. O detective corria o mais que podia, o coração na garganta, o
fôlego que não lhe chegava. “Vá lá, vá lá”, implorou. Sabia que se Marta alcançasse o
carro seria difícil apanhá-la, o seu tinha ficado para trás. Depois de contornar aquilo que
lhe pareceu ser mil árvores, canteiros e arbustos, alcançou os portões traseiros da casa.
Marta abeirava-se do carro. Máximo não tinha trazido a arma consigo. “Vou perdê-la”,
pensou. Quando nada o fazia prever, uma sombra meteu-se no meio dos dois e alcançou
Marta antes que esta conseguisse entrar no carro. Era Luke, que também conhecia bem
os cantos à casa. O lobo branco tinha alcançado Marta e tinha-a deitado ao chão.
Mostrava-lhe os dentes ameaçadoramente e parecia apenas esperar uma ordem para
atacar.
— Calma, vá, calma, amigo — disse Máximo, aproximando-se dos dois. Luke
parecia ter percebido que tinha sido aquela mulher a matar-lhe o dono e não mostrava
vontade de se afastar dela. — Tem calma, vá. Eu tomo conta dela.
Máximo sacou das algemas e algemou Marta.
— Só gostava de perceber o porquê — disse o detective.
— Não percebe, nem nunca vai perceber. Foi um acidente! — gritou Marta.
Por esta altura já o advogado tinha chamado a polícia e os irmãos abeiravam-se
do carro.
— Um acidente com três facadas, Marta? E o que entende por acidente, o seu pai
ameaçou-a? — perguntou Máximo, ironicamente.
— Eu fui a casa do meu pai nessa noite para tratar de coisas da empresa. O meu
pai não se calava com Alice. Eu chamei-o à razão, disse-lhe que estava a ter uma crise
de meia-idade, que não tinha sentido andar com uma rapariga quase da minha idade. Foi
quando ele me disse que não andava nada com Alice, que ela era filha dele. Mostrou-me
o quadro. Falou da mãe de Alice. E do bilhete de suicídio da minha mãe, que só ele leu.
E ainda me disse que dos quatro, a filha predilecta era Alice, que não era uma
interesseira como nós. Interesseira, ele chamou-me a mim interesseira! A mim, que
sempre fiz tudo para lhe agradar, que fiz sempre tudo para que fosse feliz! E ainda me
disse que a iria pôr como principal beneficiária do testamento… Depois não sei como é
que… o que é que…
Marta debatia-se e gritava coisas que não faziam sentido. A polícia tinha
chegado entretanto. Máximo entregou a mulher a dois agentes e dirigiu-se a Renato.
— Máaaaaximo…
— Falamos na esquadra, capitão. Acho que temos muito para falar. Todos.
***
Um mês passou e Máximo desfrutava de umas merecidas férias em Sintra.
Pensava em como aquele último caso que tinha resolvido era cheio de tragédias
coincidentes e interligadas. Uma mãe que não deu a conhecer a filha ao pai, um pai que
quando soube da existência da filha a assumiu como se não tivessem passado mais de
30 anos, uma mulher que se suicidou devido ao caso amoroso do marido, uma filha
muito mais amargurada do que qualquer um dos irmãos… a filha que tinha morto o pai
para não perder o seu direito a uma parte da empresa, a filha que não perdoou o pai por
não lhe ter reconhecido tantos anos de dedicação. A mesma filha que o tinha tramado,
entregando à polícia fotografias que o haviam afastado do caso. O irmão que ajudou a
encobrir o crime da irmã desfazendo-se do quadro que podia servir de prova e
preparando-se para vender a empresa juntamente com a assassina. O testamento que
afinal já tinha sido alterado. O suicídio do irmão. Tanta coisa. “Tanto numa só família”,
pensou.
Máximo tentava afastar todos estes pensamentos, relembrando-se a si mesmo
que estava de férias. As últimas coisas que tinha sabido era que Alice e André
comandavam a empresa, que pelos vistos ia de vento em popa. Tentando abstrair-se de
todos aqueles pensamentos concentrou-se no belíssimo pôr-do-sol que tinha à sua
frente. Na esplanada estavam pouquíssimas pessoas, apenas Máximo e Luke, que se
tinha tornado o seu companheiro mais inseparável, mais uns tantos ou quantos turistas.
Máximo bebia um Martini com gelo, o cão dormitava a seus pés. Chamou o empregado
e pediu-lhe o menu, dizendo-lhe que pretendia jantar ali. O empregado estranhou, dado
o frio que se costumava fazer na serra à noite e que afastava os clientes da esplanada,
mas nada disse e apressou-se a satisfazer o pedido de Máximo. “Que se lixe, ao menos
aqui posso fumar”, pensou o detective. Subitamente, uma voz familiar ao seu ouvido
perguntou:
— Desculpe, tem lume?
FIM
© Flávia Morais Barbosa
Informações: flaviamoraisbarbosa@gmail.com
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