Por uma Geografia do Poder. Claude Raffestin
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- 1. 1 C l a u d e R a f f e s t i n POR UMA GEOGRAFIA DO PODER
Terceira parte O TERRITRIO E O PODER "A geografia poltica clssica
na verdade uma geografia do Estado, que seria necessrio
ultrapassar, propondo uma problemtica relacionai, na qual o poder a
chave em toda relao circula o poder que no riem possudo nem
adquirido, mas simplesmente exercido. Exercido por quem? Por atores
sados dessa populao que foi analisada antes do territrio. No
entanto, esta prioridade no nos poupar.das acusaes, pois rompe uma
tradio bem estabelecida em geografia poltica. Mas por que a populao
em.primeiro lugar? Porque a fonte de poder, o prprio fundamento do
poder, por sua capacidade de inovao ligada a seu potencial de
trabalho. Assim, por ela que passam todas as relaes."...Claude
Raffestin
- 2. 2 CAPTULO I O que o territrio? I - Do espao ao territrio
Espao e territrio no so termos equivalentes. Por t-los usado sem
critrio, os gegrafos criaram grandes confuses em suas anlises, ao
mesmo tempo que, justamente por isso, se privavam de distines teis
e necessrias. No discutiremos aqui se so noes ou conceitos, embora
nesses ltimos vinte anos tenham sido feitos esforos no sentido de
conceder um estatuto de noo ao espao e um estatuto de conceito ao
territrio. O estatuto de conceito permite uma formalizao e/ou uma
quantificao mais precisa do que o estatuto de noo. essencial
compreender bem que o espao anterior ao territrio. O territrio se
forma a partir do espao, o resultado de uma ao conduzida por um
ator sintagmtico (ator que realiza um programa) em qualquer nvel.
Ao apropriar de um espao concreta ou abstratamente (por exemplo,
pela representao), o ator "territorializa" o espao. Lefebvre mostra
muito bem como o mecanismo para passar do espao ao territrio: "A
produo de um espao, o territrio nacional, espao fsico, balizado,
modificado, transformado pelas redes, circuitos e fluxos que a se
instalam: rodovias, canais, estradas de ferro, circuitos comerciais
e bancrios, auto-estradas e rotas areas etc.". O territrio, nessa
perspectiva, um espao onde se projetou um trabalho, seja energia e
informao, e que, por conseqncia, revela relaes marcadas pelo poder.
O espao a "priso original'', o territrio a. priso que os homens
constroem para si. Para um marxista, o espao no tem valor de troca,
mas somente valor de uso, uma utilidade. O espao , portanto
anterior, preexistente a qualquer ao. O espao , de certa forma,
"dado" como se fosse uma matria-prima. Preexiste a qualquer ao.
"Local" de possibilidades, a realidade material preexistente a
qualquer conhecimento e a qualquer prtica dos quais ser o objeto a
partir do momento em que um ator manifeste a inteno de dele se
apoderar. Evidentemente, o territrio se apia no espao, mas no o
espao. uma produo, a partir do espao. Ora, a produo, por causa de
todas as relaes que envolve, se inscreve num campo de poder.
Produzir uma representao do espao j uma apropriao, uma empresa, um
controle portanto, mesmo.se.isso permanece nos limites.de.um
conhecimento. Qualquer projeto no espao que expresso por uma
representao revela a imagem desejada de um territrio, de um local
de relaes. Todo projeto sustentado por um conhecimento e uma
prtica, isto , por aes e/ou comportamentos que, claro, supem a
posse de cdigos, de sistemas smicos. por
- 3. 3 esses sistemas smicos que se realizam as objetivaes do
espao, que so processos sociais. preciso, pois, compreender que o
espao representado uma relao e que suas propriedades so reveladas
por meio de cdigos e de sistemas smicos. Os limites do espao so os
do sistema smico mobilizado para represent- lo. Unimo-nos aqui ao
pensamento de Wittgenstein ("The limits of my language mean the
limits of my world"). Mas o prprio sistema smico marcado por toda
uma infra- estrutura, pelas foras de trabalho e pelas relaes de
produo, em suma, pelos modos de produo. Isso o mesmo que dizer que
a representao s atinge no espao aquilo que suscetvel de
corresponder as "utilidades" sociais lato sensu. Assim, portanto, a
representao compe o cenrio, tendo a organizao como o espetculo da
tomada original do poder. .Se, atualmente, a matriz da representao
provm do sistema topogrfico, ao longo da Histria ocorreram muitos
outros tipos de representao. Os sistemas de projeo de um lugar ou
de um conjunto de lugares no foram, talvez, suficientemente
analisados sob o ngulo do poder, isto , na perspectiva de uma
comunicao social que assegura a ligao entre os objetivos
intencionais e as realizaes. A imagem ou modelo, ou seja, toda
construo da realidade, um instrumento de poder e isso desde as
origens do homem. Uma imagem, um guia de ao, que tomou as mais
diversas formas. At fizemos da imagem um "objeto" em si e
adquirimos, com o tempo, o hbito de agir mais sobre as imagens,
simulacros dos objetos, do que sobre os prprios objetos. A partir,
da, devemos nos admirar se os manipulamos, se os temos manipulado e
se os manipularemos cada vez mais? Poderamos imaginar o estudo dos
sistemas de representao em ligao com as classes que detinham o
poder atravs da Histria. Descobriramos coisas bastante intrigantes
que revelariam natureza das diferentes dominaes que pesaram sobre o
mundo. Mas tal no o nosso propsito. No pode s-lo, pois isso nos
levaria longe demais. Contudo, preciso que nos detenhamos um pouco
na representao moderna do espao. A cartografia moderna apareceu na
Renascena. Seguiu, portanto de perto o nascimento do Estado
moderno. Muito rpido, se tornou um instrumento de poder e do
"Poder". Essa cartografia privilegiou uma "sintaxe" euclidiana que
certamente no deixou de contribuir para modelar os comportamentos
do poder. Essa sintaxe muito eficaz, pois s mobiliza trs elementos
fundamentais: a superfcie ou o plano, a linha ou a reta e o ponto
ou momento o plano. da combinao desses elementos que resultam as
imagens ou as representaes do espao. A eficcia desse sistema smico
reside tambm no fato de que se trata de um puro jogo estrutural que
transcende os objetos representados, mas que preserva seus
contatos, suas relaes. Esse puro jogo estrutural satisfez as
necessidades de representao durante muito tempo e pode-se mesmo
perguntar se aos axiomas do jogo no corresponderia, ou no teria
correspondido, um sistema no explicitado de axiomas que governaria
o uso do
- 4. 4 poder no espao. projeo sobre um espao qualquer E de um
sistema a preciso fazer corresponder a projeo de um sistema de
intenes de poder que se molda sobre o primeiro. A delimitao de um
territrio, o controle de pontos, de ilhas, de cidades etc. e o
traado de rodovias, de vias etc. no surgem de uma axiomtica
euclidiana traduzida em termos de relaes de poder? No somente
estamos tentados a diz-lo, como o afirmamos! A nica coisa que no
imediatamente possvel mostrar o sistema de axiomas dessas relaes de
poder. Para a chegar, seria conveniente analisar, desde o
Renascimento, as grandes polticas espaciais dos Estados em relao s
suas realizaes territoriais. Na sua vontade de atingir o mar, de
preservar o acesso s rodovias, de implantar cidades, de fazer
coincidir uma fronteira com uma linha de cristas ou um rio, os
Estados modularam suas polticas segundo uma axiomtica no claramente
assumida, mas bem presente e bem real. simples: desde que o jogo
estrutural funcione, a ao coordenada, bem preparada sobre o plano,
no pode ter o carter sistemtico da geometria, pois intervm ento os
dados reais do contexto espao-temporal. Isso significa que se passa
de uma axiomtica pura para uma axiomtica comandada peio carter
probabilista e necessariamente descontnuo da ao. Isso pode ser
mostrado de uma maneira intuitiva por meio de um exemplo formal que
no ser a representao do ator, mas a representao possvel, digamos,
uma das representaes possveis de um ator engajado como elemento no
sistema. Inicialmente, o ator est situado num ponto do espao, num
ponto a partir do qual vai representar o espao para si. O ponto no
, ao contrrio do que poderia parecer, privilegiado em relao aos
outros elementos: superfcie e linha. S fornece a origem da
representao, isto , fornece o suporte egocntrico da representao,
pois esta sempre uma manifestao do "eu" em relao ao "no-eu", uma
explicitao da interioridade em relao exterioridade. Nessa
perspectiva, podemos pois colocar o ator num ponto e dispor os
elementos da sua representao. Um esquema simples ser suficiente
para destacar uma imagem possvel. Para as necessidades da
demonstrao, s utilizaremos os pontos, as linhas e as superfcies
(fig. 32).
- 5. 5 Que temos ns neste esquema simplista e, contudo,
suficiente? Pontos que podem representar a localizao de outros
atores ou propriedades que interessam a A; retas que juntam outros
pontos e que delimitam uma superfcie. Ainda a, pouco importa a
natureza dessas retas, que podem ser a representao de coisas
diferentes. O que importante compreender bem o valor desse esquema
como uma representao de um espao para o ator A. evidente que essa
representao no esgota o contedo desse espao, pois nada mais do que
a transcrio dos objetivos intencionais de A. A partir da,
percebe-se que essa representao egocntrica, pois seria bem
diferente (hiptese possvel) se considerssemos um outro ator situado
numa outra poro do plano acima. A representao proposta aqui
portanto um conjunto definido em relao aos objetivos de um ator. No
se trata pois do espao, mas de um espao construdo pelo ator, que
comunica suas intenes e a realidade material por intermdio de um
sistema smico. Portanto o espao representado no mais o espao, mas a
imagem do espao, ou melhor, o espao visto e/ou vivido. em suma, o
espao que se tornou o territrio de um ator, desde que tomado numa
relao social de comunicao. A representao de A, supe um gasto de
energia para adquirir a informao. A representao resulta de um
trabalho e corno tal pode ser qualificada como energia informada.
Essa energia informada, corno todas as outras, alis, no estvel; ela
se modifica e finalmente se degrada. A representao um trabalho de
Ssifo que recomea sem cessar. Imaginar uma representao estvel
imaginar a imobilidade, portanto a morte ou a entropia do ator.
Pode-se, nesse caso, falar de ruptura entre o espao e a sua
representao? Certamente que no, na perspectiva que traamos, pois o
espao s existe em funo dos objetos intencionais do ator. Isso
significa que, se h ruptura, esta s pode existir entre a informao
que seria desejvel no sistema de objetivos e a informao disposio. A
conseqncia dessa ruptura se traduz no nvel da ao, isto , essa
ruptura significar ento uma relao de poder dissimtrica, pois os
ganhos antecipados correm o risco de ser inferiores aos ganhos
efetivamente realizados, considerando-se a energia investida no
processo. S aps a ao se verifica o valor da energia informada,
cristalizada na representao. Se voltarmos ao esquema, constataremos
que uma representao estabelecida em funo dos objetivos
intencionais, ignorados por ns na ocorrncia, uma voz que os
deixamos no domnio hipottico. Assim, impossvel dizer, nesse caso,
se h uma ruptura entre a informao disposio e a informao necessria
para conduzir uma ao qualquer. Entretanto, nota-se que, se nos
situarmos no ponto de vista do ator A, a expresso o espao um lugar
ou um campo de possibilidades, atinge todo o seu valor. De fato, a
partir dessa representao original, o ator pode decidir "construir"
vrios tipos de tessituras e articular todos os pontos, ou somente
alguns, em redes. Pode decidir ligar certos pontos, assegurando
entre eles a continuidade por meio de
- 6. 6 um sistema de junes ou, ao contrrio, impedir que certos
pontos sejam ligados entre si, imaginando um sistema de disjunes.
Em nosso esquema sempre bem simplista, poderamos inscrever tantas
"imagens territoriais" quantos objetivos intencionais diferentes
houver. De novo, contudo, haver uma ruptura entre a imagem
territorial projetada e o territrio real. Primeiro, porque uma
imagem nunca transcrita tal e qual a partir do plano, mas isso
banal. Em seguida, comeamos a atingir o problema, pois no existe
somente um nico ator. De fato, se introduzirmos um segundo ator A'
no esquema, haver uma outra representao mesmo que os objetivos
sejam congruentes. Institui-se ento uma relao entre A e A', uma
relao de poder, sem nenhuma dvida. Um exemplo pode ilustrar muito
bem essa situao: o dos projetos de construo de estradas de ferro na
Itlia. Entre 1845-46 e 1961, cinco projetos ou cinco imagens da
rede ferroviria foram formulados. Eles revelam objetivos
intencionais congruentes, mas contudo diferentes.Enfim, a rede real
no corresponde a nenhum desses projetos, mas resulta do jogo
multilateral dos mltiplos atores em causa. Quer se trate de
tessituras, de ns ou de redes, h muitas ilustraes para compreender
a construo territorial. No deixa de ser verdade que os atores
revelam, quando agem, uma espcie de axiomtica subjacente. Tudo se
passa como se as aes se deduzissem umas das outras. Alguns exemplos
dessa possvel axiomtica podem ser enunciados, ainda que, em matria
de poder, pelo que conhecemos, nenhum esforo tenha sido tentado
nesse domnio. Poderamos enunciar os seguintes axiomas: 1. Toda
superfcie passvel de ser "tecida em malhas";(no sentido de diviso
territorial) 2. Esse sistema de malhas no nico; 3. Pode-se
estabelecer ao menos um caminho entre dois pontos dessa superfcie;
4. Esse caminho no nico; 5. Entre trs pontos dessa superfcie,
pode-se estabelecer ao menos uma rede. Nota-se, por outro lado, que
sua formulao bem vizinha da dos axiomas da geometria euclidiana,
salvo que no se trata de uma geometrizao da ao, mas antes de uma ao
que se procura representar geometricamente, o que no a mesma coisa.
Veremos que, de fato, o poder constri malhas nas superfcies do
sistema territorial para delimitar campos operatrios'. Esses
sistemas de malhas no so nicos; existem diferentes tipos, de acordo
com a prpria natureza das aes consideradas. Observaes anlogas, seno
idnticas, poderiam ser feitas para os ns e as redes. Ainda uma vez,
a axiomtica do poder em matria territorial no uma demarcao de uma
outra axiomtica geomtrica, mas um prolongamento que deve contar com
a heterogeneidade das condies reais nas quais se manifesta.
- 7. 7 No se trata de uma axiomtica fechada, bem ao contrrio,e
ainda mais porque os atores tm comportamentos que resultam das
probabilidades. Enfim, tambm porque todo axioma sustentado por uma
psicossociologia e uma ideologia. Toda axiomtica histrica, e para
atingir o seu significado preciso construir, ou reconstruir, o
contexto scio-histrico no qual se originou e do qual procede. O que
, ento, o territrio? Vamos mostr-lo no pargrafo seguinte, mas antes
convm talvez formalizar as reflexes anteriores. Partimos de E, um
dado que s adquire valor por meio de uma representao. Donde A a E
seja uma representao na qual h trabalho, produo, em outros termos.
Isto , A r (A a E). Essa frmula d conta do quanto de territrio
produzido: T- A r (A a E). O consumo por usurio uma funo de A r (A
a E)8. Isso interessa territorialidade, que trataremos mais tarde.
Antes de abordar essa importante questo que diz respeito ao
conjunto das relaes mantidas com o territrio, convm mostrar como se
elabora, como se produz o sistema territorial. II - O sistema
territorial Apresentaremos primeiro os diferentes elementos do
sistema territorial, aos quais consagraremos em seguida, para cada
um deles, um captulo especfico. A partir de uma representao, os
atores vo proceder repartio das superfcies, implantao de ns e
construo de redes. o que se poderia chamar de "essencial visvel"
das prticas espaciais, ainda que malhas, ns e redes no sejam sempre
diretamente observveis, pois podem pura e simplesmente estar
ligados a decises. Mesmo que no sejam discernveis, tm uma existncia
com a qual preciso contar, pois intervm nas estratgias. Mas, se nos
limitarmos ao territrio concreto, esses atos vo se traduzir por
"atos observveis". Isso percebido desde a Antigidade at os dias
atuais: "Os povos civilizados parecem ter aspirado universalidade
desde muito cedo, porm sempre dividiram cuidadosamente o espao a
fim de se distinguir de seus vizinhos". Ainda que essa observao
seja restritiva, uma vez que no se trata somente de separar, mas de
diferenciar. Toda prtica espacial, mesmo embrionria, induzida por
um sistema de aes ou de comportamentos se traduz por uma "produo
territorial que faz intervir tessitura, n e rede. interessante
destacar a esse respeito que nenhuma sociedade, por mais elementar
que seja, escapa necessidade de organizar o campo operatrio de sua
ao. Os indivduos ou os grupos ocupam pontos no espao e se
distribuem de acordo com modelos que podem ser aleatrios, regulares
ou concentrados. So, em parte, respostas possveis ao fator distncia
e ao seu complemento a acessibilidade. Sendo que a distncia pode se
apreendida em termos espaciais (distncia fsica ou geogrfica),
temporais, psicolgicos ou econmicos. A distncia se refere
interao
- 8. 8 entre os diferentes locais. Pode ser uma interao poltica,
econmica, social e cultural, que resulta em jogos de oferta e
procura, que provm dos indivduos e/ou grupos. Isso conduz a
sistemas de malhas, de ns e redes que se imprimem no espao e que
constituem, de algum modo, o territrio. No somente se realiza uma
diferenciao funcional, mas ainda uma diferenciao comandada pelo
princpio hierrquico, que contribui para ordenar o territrio segundo
a importncia dada pelos indivduos e/ou grupos s suas diversas aes.
Esses sistemas de tessituras, de ns e de redes organizadas
hierarquicamente permitem assegurar o controle sobre aquilo que
pode ser distribudo, alocado e/ou possudo. Permitem ainda impor e
manter uma ou vrias ordens. Enfim, permitem realizar a integrao e a
coeso dos territrios. Esses sistemas constituem invlucro no qual se
originam as relaes de poder. Tessituras, ns e redes podem ser muito
diferentes de uma sociedade para outra, mas esto sempre presentes.
Quer sejam formados a partir do princpio da propriedade privada ou
coletiva, ns os encontramos em todas as prticas espaciais. Se
insistirmos nesse fato porque estamos em presena, sem dvida
nenhuma, de "universais" ou de invariveis propriamente geogrficas.
No as mobilizamos ainda o bastante e no as acionamos, ou seja, no
foram suficientemente analisadas e dissecadas para permitir a
compreenso da natureza das vises intencionais dos grupos sociais.
Com as tessituras, os ns e as redes, temos trs subconjuntos
estruturais que sustentam a pratica espacial. Conjuntos estruturais
aparentemente multiformes mas que so, de fato, imagens possveis de
uma mesma estrutura de base. certo, mas como diria Eco, isso nos
leva a uma outra estrutura e, enfim, nunca atingimos as verdadeiras
estruturas. Para sair do crculo vicioso no qual Eco nos encerra,
pode-se considerar o problema distinguindo o desenvolvimento do
processo, do ponto de vista externo. A estrutura tessiturasnsredes
exteriorizada por um grupo. a encenao de uma outra estrutura
interiorizada, Esta aqui sendo, por pura hiptese, talvez
biossocial. Mas o simples fato de que esse conjunto se manifesta
para qualquer grupo indica que, apesar das formas que possa tomar,
assinalvel na passagem da interioridade exterioridade. Pode-se
sempre constatar a sua presena, mesmo que no se possa explicar suas
origens ou suas razes no homem e/ou no grupo. A partir da, possvel
construir uma matriz que justifique esse conjunto estrutural que
toma, uma vez exteriorizado uma infinidade de imagens. essencial
fazer claramente distino entre "imagem", por um lado, e
"estrutura", por outro. A imagem sendo a forma assumida pela
estrutura manipulada por um sistema de objetivos intencionais e de
aes. Os diferentes modelos urbanos, os diferentes modelos de ncleos
centrais e os modelos de distribuio de densidades nada mais so do
que uma nica e mesma
- 9. 9 estrutura comandada por objetivos e por aes diferentes,
que do imagens variadas de cidades e de redes urbanas, por exemplo
(quadro 1). Este quadro do sistema territorial resume a produo
territorial. No a explica, claro, pois para isso preciso recorrer
aos princpios ou cdigos que asseguram, por meio dos sistemas
smicos,a comunicao entre os modos de produo e o espao. As "imagens"
territoriais revelam as relaes de produo e conseqentemente as
relaes de, poder, e decifrando-as que se chega estrutura profunda.
Do Estado ao indivduo, passando por todas as organizaes pequenas ou
grandes, encontram-se atores sintagmticos que "produzem" o
territrio. De fato, o Estado est sempre organizando o territrio
nacional por intermdio de novos recortes, de novas implantaes e de
novas ligaes. O mesmo se passa com as empresas ou outras
organizaes, para as quais o sistema precedente constitui um
conjunto de fatores favorveis e limitantes. O mesmo acontece com um
indivduo que constri uma casa ou, mais modestamente ainda, para
aquele que arruma um apartamento. Em graus diversos, em momentos
diferentes e em lugares variados, somos todos atores sintagmticos
que produzem "territrios". Essa produo de territrio se inscreve
perfeitamente no campo do poder de nossa problemtica relacional.
Todos nos combinamos energia e informao que estruturamos com cdigos
em funo de certos objetivos. Todos ns elaboramos diversas relaes de
poder. Quando o gegrafo posto diante de um sistema territorial, ele
descobre uma produo j elaborada, j realizada. Produo suscetvel de
mudanas, contudo suficientemente fixa para ser analisada. Mas toda
anlise supe uma linguagem. Sem linguagem, no h leitura possvel, no
h interpretao e, portanto, nenhum conhecimento sobre a prtica que
produziu o territrio. Vamos considerar separadamente os trs
subconjuntos estruturais colocados em evidncia no quadro e tentar
descobrir os princpios de leitura. No sentido mais geral do termo,
toda tessitura implica a noo de limite. Aqui tambm se descobre que
a noo de limite um dos componentes gerais de toda prtica, no
somente espacial. Seria fcil mostrar que a imagem da noo de limite
quase universal em todos os tipos de
- 10. 10 prticas e de conhecimentos, Definir, caracterizar,
distinguir, classificar, decidir, agir implicam a noo de limite:
preciso delimitar, A histria da noo de limite seria apaixonante...
e verdadeiramente estafante, pois estaria alm das possibilidades de
um s homem. Falar de territrio fazer uma referncia implcita noo de
limite que, mesmo no sendo traado, como em gerai ocorre, exprime a
relao que um grupo mantm com uma poro do espao. A ao desse grupo
gera de imediato, a delimitao. Caso isso no se desse, a ao se
dissolveria pura e simplesmente. Sendo a ao sempre comandada por um
objetivo, este tambm uma delimitao em relao a outros objetivos
possveis. O problema da escala sendo, bem entendido, posto de lado.
Delimitar , pois, isolar ou subtrair momentaneamente ou, ainda,
manifestar um poder numa rea precisa. O desenho de uma malha ou de
um conjunto de malhas a conseqncia de uma relao com o espao e, por
conseguinte, a forma mais elementar da produo de territrio.
evidente que se pode tecer uma superfcie de uma infinidade de
maneiras. Na realidade, tal no o caso, pois o sistema de objetivos
e de aes sempre guiado por uma srie de princpios que revelam uma
ordem, hierrquica ou no. A tessitura territorial pode comportar
nveis que so determinados pelas funes que devem se realizar em cada
uma dessas malhas. Conforme a importncia e a natureza das funes
ligadas a cada nvel, se poder falar de centralizaes ou de
descentralizaes. Neste caso, a sutileza da tessitura ambgua,- se no
levarmos em considerao os objetivos. De fato, uma tessitura em
vrios nveis pode ter por objetivo assegurar para a populao o
funcionamento no nvel timo de um conjunto de atividades, ou pode
ter por objetivo assegurar o controle da populao em nvel timo. Por
essas razes, conveniente ser muito prudente na interpretao. preciso
distinguir a tessitura desejada da tessitura suportada pelo grupo.
A tessitura "desejada" aquela que tenta otimizar o campo operatrio
do grupo, enquanto a tessitura "suportada" aquela que tenta
maximizar o controle do grupo. O limite no tem, portanto, de
nenhuma forma, o mesmo significado nos dois casos. No entanto, nos
dois casos a tessitura a projeo de um sistema de limites ou de
fronteiras, mais ou menos funcionalizadas (voltaremos sobre essa
questo). A tessitura sempre um enquadramento do poder ou de um
poder. A escala da tessitura determina a escala dos poderes. H os
poderes que podem intervir em todas as escalas e aqueles que esto
limitados s escalas dadas. Finalmente, a tessitura exprime a rea de
exerccio dos poderes ou a rea de capacidade dos poderes. Isso nos
conduz a considerar os limites no somente do ponto de vista linear,
mas tambm do ponto de vista zonal. A percepo apreendida dos limites
conduz, com freqncia, a privilegiar a linha em detrimento da zona,
e a experincia que temos de fronteiras contribui muito para essa
maneira de ver. De fato, muitos limites so zonais na medida em que
a rea delimitada no , necessariamente, a sede de uma
- 11. 11 soberania fixada de forma rgida, mas a sede de uma
atividade econmica ou cultural que no se esgota bruscamente no
territrio, mas de maneira progressiva. suficiente dizer que as
tessituras se superpem, se cortam e se recortam sem cessar.
Lembremos, por exemplo, da tessitura agrcola: as parcelas de
cultura, malhas funcionais, no correspondem necessariamente, mesmo
raramente, s parcelas como expresso da propriedade. Num nvel mais
elevado, as regies administrativas quase nunca coincidem com as
regies econmicas. Todo projeto de um ator sintagmtico se realiza em
vrias malhas ao mesmo tempo, mesmo quando ele nem suspeita disso.
at, com freqncia, uma fonte de restries e de contradies que desviam
sua ao. As tessituras de origem poltica, aquelas criadas pelo
Estado, em geral tm uma permanncia maior do que as resultantes de
uma ao dos atores empregados na realizao de um programa: os
limites, polticos e administrativos, so mais ou menos estveis,
enquanto os limites econmicos os so bem menos pois so bem mais
dinmicos, isto , se adaptam s mudanas de estruturas e de
conjunturas. Ainda que as reas de distribuio ou de coleta de
empresas monopolistas ou oligopolistas, em geral desconhecidas do
pblico, possam ter uma grande permanncia. Contudo, a grande
diferena entre malha poltica e malha econmica est no fato de que a
primeira resulta de uma deciso de um poder ratificado, legitimado,
enquanto segunda resulta de um poder de fato. Alm disso, as
tessituras polticas no se desfazem, no se apagam to facilmente como
as tessituras econmicas.Podem-se encontrar pores de fronteiras
comunais transformadas em fronteiras nacionais. A Igreja romana
recuperou na Europa uma parte da tessitura do Imprio Romano; os
departamentos franceses no obliteraram de todo os limites das
provncias do Antigo Regime. A tessitura poltica se transmite se
herda com mais facilidade do que a tessitura econmica, pois a
expresso de um estado de direito de soberanias, mais do que de aes
contnuas, como no domnio econmico. As transformaes se fazem por
subdivises ou reagrupamentos. Um trabalho interessante, que ainda
no se fez, seria procurar deslindar as relaes entre dimenso e
natureza do poder. A dimenso de uma malha nunca ou quase nunca
aleatria, pois cristaliza todo um conjunto de fatores, dos quais
uns so fsicos, outros humanos: econmicos, polticos, sociais e/ou
culturais. Os ensaios de Toschi que seguiam essa linha no tiveram
continuao. Em geral, as questes sobre essa matria se colocam a
posteriori. assim que se pode dizer que, na Frana, as regies
planejadas no eram operatrias, por serem muito pequenas. A vontade
de construir regies de igual tamanho no necessariamente racional
nem, muito menos, pertinente. A Histria nos legou comunas bem
dessemelhantes em suas dimenses e sabe-se hoje que as razoes disso
so profundas.
- 12. 12 Essas malhas no so homogneas nem uniformes. Acolhem, alm
da populao, evidentemente, outros elementos que revelam a organizao
territorial, ou seja, os pontos ou as nodosidades territoriais ou,
ainda, aquilo que se chama de marco. Nesses conjuntos de pontos,
que tambm so localizaes e que reagrupam indivduos ou grupos, se
elabora toda a existncia, quer se trate de aldeias, cidades,
capitais ou metrpoles gigantes. Nota-se que, durante muito tempo, a
geografia no soube tratar adequadamente desses ns espaciais, dessas
nodosidades que podiam modificar no somente a imagem, mas tambm a
situao das malhas nas quais estavam inscritas. Sem dvida porque o
ponto, por sua essncia, se presta bem apenas s anlises de repartio
e, sobretudo, de hierarquizao. Claro, o ponto pode ser estudado em
si, mas ento o sacrificamos a uma descrio esttica. Se nos fixarmos
nos exemplos enunciados acima aldeias, cidades etc. , descobre-se
que estamos diante de locais de aglomerao, lugares de poder, ou
seja, de centros. J mostramos que todo ator se v e se representa
como um centro, O ponto , de certa forma, a expresso de todo ego,
individual ou coletivo. Locais de poderes, mas tambm locais de
referncia, cuja posio se determina de uma forma absoluta ou de uma
forma relativa. o mesmo que dizer que, enquanto locais de poder, os
pontos se definem melhor em termos relativos que em termos
absolutos. O que importa saber onde se situa o Outro, aquele que
pode nos prejudicar ou nos ajudar, aquele que possui ou no tal
coisa, aquele que tem acesso ou no a tal recurso etc. Os pontos
simbolizam a posio dos atores. Mas esses atores no se opem; agem e,
em conseqncia, procuram manter relaes, assegurar funes, se
influenciar, se controlar, se interditar, se permitir, se
distanciar ou se aproximar e, assim, criar redes entre eles. Uma
rede um sistema de linhas que desenham tramas. Uma rede pode ser
abstrata ou concreta, invisvel ou visvel. idia bsica considerar
a.rede como algo que assegura a comunicao mas, por natureza a rede
que desenha os limites e as fronteiras no assegura a comunicao. uma
rede de disjuno. Mas mesmo uma rede de comunicaes pode, a um s
tempo, assegurar aquilo para o que foi concebida e impedir outras
comunicaes. Quantas cidades foram cortadas em duas, secionadas por
redes de comunicao rodovirias ou ferrovirias! A ambivalncia surge
em escalas diferentes. O que pode ser visto como comunicao em
pequena escala pode ser visto como perda de comunicao em grande
escala. o que se pode observar no caso de auto- estradas que com
freqncia arrunam o trfego de passagem das cidades pequenas. Isso
particularmente verdadeiro para as redes concretas: redes
rodovirias, ferrovirias, de navegao. Essas redes que se traduzem
por infra-estruturas no territrio partem e/ou ligam sempre pontos
precisos especficos. a prpria expresso da hierarquia dos pontos. Se
seguirmos a formao da rede ferroviria francesa, nota- se que, por
volta de 1845, os pontos privilegiados so: Paris, com ligaes para o
norte
- 13. 13 e para Orlans e Tours; Lyon, com ligaes em direo a
Saint-tienne; e Nmes, com ligaes em direo a Montpellier e Sete. Alm
disso, esses trs conjuntos de pontos se situam todos num eixo
norte-sul. Seria possvel falar de um "eixo central", pois so as
redes que asseguram o controle do espao e o controle no espao.
Entre uma srie de pontos, no h uma infinidade de possibilidades,
mas somente com trs pontos temos j oito possibilidades (fig. 33).
Para quatro pontos tm-se 64 alternativas, e para seis, 32 768!
Basta dizer que as estratgias dos atores so numerosas20. Digamos
que na escala humana so praticamente infinitas. Mas na realidade,
em razo dos recursos disponveis, trata-se de um conjunto finito.
Toda rede uma imagem do poder ou mais necessariamente do Poder do
ou dos atores dominantes. O exemplo ferrovirio francs evidentemente
bem clssico, at mesmo uma caricatura. Sem dvida, mas no se repete
menos nas outras redes concretas. Toda rede revela, da mesma forma
que as tessituras e a implantao dos pontos, um certo domnio do
espao, um domnio do quadro espao temporal, na realidade. Com
efeito, preciso introduzir o tempo, pelas razes evocadas
anteriormente, mas tambm por causa das redes abstratas, cujos picos
podem ser concretos e visveis, mas no os arcos que ligam esses
pontos: redes de rdio e de televiso, redes bancrias etc. De
qualquer forma, as organizaes so muito influenciadas pelas redes de
comunicaes e pode-se pretender que mudanas de rede conduzam a
modificaes sensveis no arcabouo social do grupo. O sistema tanto um
meio como um fim. Como meio, denota um territrio, uma organizao
territorial, mas como fim conota uma ideologia da organizao.
portanto, de uma s vez ou alternadamente, meio e finalidade das
estratgias. Toda combinao territorial cristaliza energia e
informao, estruturadas por cdigos. Como objetivo, o sistema
territorial pode ser decifrado a partir das combinaes estratgicas
feitas pelos atores e, como meio, pode ser decifrado por meio dos
ganhos e dos custos que acarreta para os atores. O sistema
territorial , portanto, produto e meio de produo. Isso nos leva a
abordar o terceiro item deste
- 14. 14 captulo, isto , o problema da territorialidade, que um
dos mais negligenciados pela geografia. III - A territorialidade De
acordo com a nossa perspectiva, a territorialidade adquire um valor
bem particular, pois reflete a multidimensionalidade do "vivido"
territorial pelos membros de uma coletividade, pelas sociedades em
geral. Os homens "vivem", ao mesmo tempo, o processo territorial e
o produto territorial por intermdio de um sistema de relaes
existenciais e/ou produtivistas. Quer se trate de relaes
existenciais ou produtivistas, todas so relaes de poder, visto que
h interao entre os atores que procuram modificar tanto as relaes
com a natureza como as relaes sociais. Os atores, sem se darem
conta disso, se automodificam tambm. O poder inevitvel e, de modo
algum, inocente. Enfim, impossvel manter uma relao que no seja
marcada por ele. A identificao da noo de territorialidade coloca
problemas. A histria dessa noo est por ser feita, principalmente
porque ela nos veio dos naturalistas, que se preocuparam com a
territorialidade animal e no com a territorialidade humana. Embora
pressentida h mais ou menos trs sculos, essa noo s foi
verdadeiramente explicitada pelos naturalistas em 1920, por H. E.
Howard por exemplo, que a definiu como "a conduta caracterstica
adotada por um organismo para tomar posse de um territrio e
defend-lo contra os membros de sua prpria espcie". Depois dele
muitos autores, como John B. Calhoun, Karl von Frisch, H. Hediger,
Konrad Lorenz, desenvolveram muito bem essa idia de
territorialidade animal. Nas cincias do homem ela foi tratada, seja
direta ou indiretamente, por aqueles que de perto ou de longe
abordaram as relaes com o espao ou o territrio. No entanto, os
esforos foram bem menores para identificar a territorialidade
humana com preciso. As tentativas de Hall so significativas, mas
sua proxemia desemboca numa territorialidade "situacionista", que
no facilmente transposta em pequena escala nas anlises
macrogeogrficas. Na tradio americana a territorialidade definida
como "um fenmeno de comportamento associado organizao do espao em
esferas de influncia ou em territrios nitidamente diferenciados,
considerados distintos e exclusivos, ao menos parcialmente, por
seus ocupantes ou pelos que os definem".Como diz o prprio Soja, o
mais geogrfico dos modelos aquele das relaes espaciais determinadas
por incluses ou excluses. Parece-nos que o elemento essencial a
reter a relao com a alteridade. O outro sendo no somente o espao
modelado, mas tambm os indivduos e/ou os grupos que a se
inserem.
- 15. 15 Quando Soja escreveu que uma das ilustraes mais claras
da noo de territorialidade pode ser encontrada na idia ocidental da
propriedade privada, estivemos prontos a segui-lo, mas no entanto
preciso lembrar que o fato de delimitar parcelas, de marc-las,
cerc-las no uma simples relao com o territrio, mas bem mais que
isso. uma relao triangular, como diria Ren Girard, no sentido de
que a relao com o territrio uma relao que mediatiza em seguida as
relaes com os homens, com os outros (fig. 34). Acreditamos ser
possvel definir uma territorialidade lato sensu, que procede de uma
problemtica relacionai. Para tanto, proporemos uma expresso simples
que pode exprimi-la: H r E. H sendo o indivduo, o sujeito, desde
que pertena a uma coletividade; r sendo uma relao particular
definida por uma forma e um contedo e que necessita de mediatos; e
E sendo a exterioridade, isto , uma "topia", um lugar, mas tambm um
espao abstrato, como um sistema institucional, poltico ou cultural,
por exemplo. Mas a vida tecida por relaes, e da a territorialidade
poder ser definida como um conjunto de relaes que se originam num
sistema tridimensional sociedadeespaotempo em vias de atingir a
maior autonomia possvel, compatvel com os recursos do sistema.
Ento, a territorialidade pode assim ser expressa: T H r E. Mas essa
territorialidade dinmica, pois os elementos que a constituem, H r
E, so suscetveis de variaes no tempo. til dizer, nesse caso, que as
variaes que podem afetar cada um dos elementos no obedecem s mesmas
escalas de tempo. Essa territorialidade resume de algum modo, a
maneira pela qual as sociedades satisfazem, num determinado
momento, para um local, uma carga demogrfica e um conjunto de
instrumentos tambm determinados, suas necessidades em energia e em
informao. As relaes que a constituem podem ser simtricas ou
dissmtricas, ou seja, caracterizadas por ganhos e custos
equivalentes ou no. Opondo-se uma outra, teremos uma
territorialidade estvel e uma territorialidade instvel. Na
primeira, nenhum dos elementos sofre mudanas sensveis a longo
prazo, enquanto na segunda todos os elementos sofrem mudanas a
longo prazo. Entre essas duas situaes extremas teremos os outros
casos, nos quais um ou dois dos elementos podem mudar, enquanto o
outro ou os outros permanecem estveis.
- 16. 16 Sem dvida, tudo reside na relao concebida como processo
de troca e/ou de comunicao. Processo que precisa da energia e da
informao, processo que permite aos atores satisfazerem suas
necessidades, ou seja, proporcionar a eles um ganho mas tambm um
custo. Se ganhos e custos se equilibram, as relaes so simtricas, do
contrrio so dissimtricas. A territorialidade aparece ento como
constituda de relaes mediatizadas, simtricas ou dissimtricas com a
exterioridade. urgente abandonar as analogias animais para tratar
da territorialidade humana. A territorialidade se inscreve no
quadro da produo, da troca e do consumo das coisas. Conceber a
territorialidade como uma simples ligao com o espao seria fazer
renascer um determinismo sem interesse. sempre uma relao, mesmo que
diferenciada, com os outros atores. Toda produo do sistema
territorial determina ou condiciona uma consumao deste. Tessituras,
nodosidades e redes criam vizinhanas, acessos, convergncias, mas
tambm disjunes, rupturas e distanciamentos que os indivduos e os
grupos devem assumir. Cada sistema territorial segrega sua prpria
territorialidade, que os indivduos e as sociedades vivem. A
territorialidade se manifesta em todas as escalas espaciais e
sociais; ela consubstancial a todas as relaes e seria possvel dizer
que, de certa forma, a "face vivida" da "face agida" do poder. A
esse respeito, interessante retornar o que Soja diz sobre a
territorialidade, que segundo ele seria composta de trs elementos:
senso de identidade espacial, senso de exclusividade,
compartimentao da interao humana no espao. Percebe-se que a
identidade, se no pode ser posta em causa, no apresenta coerncia
fora da concepo "imaginria" de um grupo constitudo por meio de uma
amostragem de indivduos. A exclusividade completa a identidade e,
quanto interao, esta surge de um outro nvel, em comparao aos dois
primeiros, e talvez a mais significativa em termos relacionais. O
inconveniente do mtodo de Soja que ele mistura o subjetivo e o
no-subjetivo e apaga as situaes de classe. Enquanto os economistas
sempre tendem a homogeneizar o espao, os gegrafos, por seu turno,
homogenezam a sociedade. Eis por que pensamos que a anlise da
territorialidade s possvel pela apreenso das relaes reais
recolocadas no seu contexto scio-histrico e espao- temporal. A
territorialidade de um siciliano, por exemplo, bem constituda pelo
conjunto daquilo que ele vive cotidianamente: relaes com o
trabalho, com o no-trabalho, com a famlia, a mulher, a autoridade
poltica etc. Entretanto, no possvel compreender essa
territorialidade se no se considerar aquilo que a construiu, os
lugares em que ela
- 17. 17 se desenvolve e os ritmos que ela implica. H a parte
interna da territorialidade, o ncleo denso, em certo sentido, e a
parte externa, aquela imposta pelos atores no sicilianos. A
territorialidade siciliana uma longa luta para preservar uma
identidade, uma diferena, mas uma luta esgotante contra o norte da
Itlia. O poder piemonts no obliterou a identidade siciliana, tambm
no modificou sensivelmente as relaes ancestrais mas, ao contrrio,
bloqueou a evoluo da territorialidade e, ao mesmo tempo, foi
modificado por essa relao exaustiva. Se o norte imps Siclia uma
relao dissimtrica no plano econmico, a Siclia, em contraposio, imps
ao norte uma relao conflitual no plano poltico. A relao ItliaSiclia
a histria do choque de duas territorialidades contraditrias,
caracterizadas, respectivamente, por uma racionalidade econmica
capitalista e uma racionalidade poltica "feudal". Melhor que
ningum, Rene Rochefort exprimiu esse confronto, que se traduz por
mltiplos bloqueios: "Para os milaneses e os piemonteses, a Siclia
permanece uma terra estranha, de onde se volta com histrias
coloridas, negras ou rosas, que tm cheiro de idlio ou de filme
policial". Com a racionalidade econmica do norte, h a ruptura
tcnica, psicolgica e sociolgica: "O nascimento de novos plos de
desenvolvimento sicilianos sob o controle e com a ajuda da economia
dominante da Itlia setentrional deixa, assim, a economia siciliana
gravemente desarticulada, para no dizer mais desarticulada que
nunca". Mas o norte est em ruptura com a racionalidade poltica da
Siclia, da qual uma burguesia que procede da terra (e, por uma
certa parte, pela promoo mafiosa) detentora. A territorialidade
siciliana profundamente dissimtrica e conflitual. As relaes com os
seres, com as coisas e com os territrios que a compem so, quase
sempre, atravessadas pela violncia, a forma extrema e brutal do
poder. Pode-se perguntar se a territorialidade no estaria em
condies de favorecer um sistema de anlise ternria que romperia com
a tradio do sistema bipolar clssico, homem-meio. CAPTULO II AS
QUADRCULAS DO PODER I - Limites e fronteiras
- 18. 18 Diariamente, em todas as fases de nossa existncia, somos
confrontados com a noo de limite: traamos limites ou esbarramos em
limites. Entrar em relao com os seres e as coisas traar limites ou
se chocar com limites. Toda relao depende da delimitao de um campo,
no interior do qual ela se origina, se realiza e se esgota. Pode-se
deduzir da que o limite o que constitui o nosso crebro? Laborit
pensa que sim, ou no est longe de pensar, quando escreve que "ainda
possumos em nosso crebro um velho crebro de rptil"1 . E acrescenta:
"Seria til saber o que subsiste, no homem, desse automatismo na noo
de propriedade (grifo nosso), de classe ou de ptria, pois seu
funcionamento reflexo, portanto inconsciente, ignorado ou, mais
dramaticamente ainda, considerado como decorrente de princpios
fundamentais, at mesmo de princpios ticos ligados 'natureza
humana', enquanto, antes de tudo, ele fez parte da 'natureza' rptil
que carregamos sempre em ns"2 . Sempre segundo Laborit, esse crebro
primitivo seria "responsvel" pelo estabelecimento do territrio. O
que seria ento, seno a instaurao de um sistema inculcado de
limites? O limite, a fronteira a fortiori, seria assim a expresso
de urna interface biossocial, que no escapa historicidade e que
pode, por conseqncia ser modificada ou at mesmo ultrapassada . De
fato, desde que o homem surgiu, as noes de limites e de fronteiras
evoluram consideravelmente, sem no entanto nunca desaparecerem.
evidente que os significados do limite variaram muito no decorrer
da Histria. No h por que se admirar, pois o limite um sinal ou,
mais exatamente, um sistema smico utilizado pelas coletividades
para marcar o territrio: o da ao imediata ou o da ao diferenciada.
Toda propriedade ou apropriao marcada por limites visveis ou no,
assinalados no prprio territrio ou numa representao do territrio:
plano cadastral ou carta topogrfica. Toda funo tambm marcada por
limites frouxos ou rgidos que determinam sua rea de extenso ou de
ao. Nesse caso, os limites esto em estreitas relaes com o trabalho,
portanto com o poder. Limites de propriedade e limites funcionais
podem coincidir, superpondo-se, ou, ao contrrio, se recortarem. Mas
v-se logo que, na qualidade de sistema smico, os limites so
utilizados para manifestar os modos de produo, isto , para torn-los
espetaculares. O limite cristalizado se torna ento ideolgico, pois
justifica territorialmente as relaes de poder. Toda quadrcula ao
mesmo tempo a expresso de um projeto social que resulta das relaes
de produo que se enlaam nos modos de produo e o campo ideolgico,
presente em toda relao. Como tal, os limites aparecem como uma
informao que estrutura o territrio. Mas produzir essa informao
estruturante consome energia, aquela mesma que produzida ou
controlada nos modos de produo. H uma inegvel coerncia entre os
sistemas smicos e os modos de produo. Essa coerncia no implica a
ausncia de contradies. De fato, desde que surjam mudanas nos modos
de produo, nas relaes de produo, na organizao das
- 19. 19 foras de trabalho, o sistema de limites conhece ento
mutaes sensveis. Mutaes que no so somente econmicas, como nos
levaria a crer a fase anterior, mas tambm polticas, sociais e
culturais. No h nada de mais absurdo que ouvir dizer que todo
sistema de limites arbitrrio. Sem dvida, todo sistema de limites c
convencional, mas desde o momento em que foi pensado, colocado no
lugar e que funcione, ele no mais arbitrrio, pois facilita o
enquadramento de um projeto social, aquele mesmo de uma sociedade.
Eis o porqu de as revolues constiturem, desse ponto de vista,
momentos privilegiados da anlise pois, se so fundamentais, se
traduzem por uma reviravolta considervel nos sistemas smicos aos
quais pertencem os limites. No h nenhuma grande revoluo no perodo
contemporneo que no se tenha traduzido por uma modificao dos
sistemas smicos. Basta pensar na Revoluo Francesa ou na Revoluo
Russa para se constatar que todos os sistemas smicos sofreram
transformaes c, era particular, o sistema dos limites. E a razo
pela qual absurdo falar em fronteiras naturais, que s existem na
condio de serem subtradas da historicidade. E se as subtramos da
historicidade para "naturaliz-las", ou seja, para faz-las o
instrumento de uma dominao que procura se perpetuar. Convencional,
sem dvida, uma vez que os limites s manifestam um projeto que por
si mesmo no arbitrrio, pois isso seria admitir que a classe
dominante no procura enquadrar seu projeto social e comunic-lo sob
uma forma ideolgica. O limite , portanto uma classe geral, um
conjunto cuja fronteira um subconjunto. Ainda a particularmente
estranho que s a fronteira tenha uma conotao poltica enquanto, de
fato, todo limite possui uma, nem que seja s pelo fato de ele ser
sempre a expresso de uma manifestao coletiva, direta ou indireta.
Na verdade, a fronteira se insere numa categoria particular, pois
os Estado-naes tomaram-na como um sinal, no sentido pleno e prprio
do termo3 . Como tal, a fronteira manipulada como uni instrumento
para comunicar uma ideologia. Sabe-se que o "prncipe" no se priva
dela, ainda que nas sociedades evoludas as manipulaes se tornem
mais difceis. Quando a fronteira se tornou um sinal? Tornou-se um
sinal quando o Estado moderno atingiu um controle territorial
"absoluto" e tornou unvoca a mensagem fronteira ---- limite
sagrado. Para a chegar, foi preciso que se realizasse toda uma srie
de condies especficas, dentre as quais a da fronteira talvez a mais
importante. Durante muito tempo, as fronteiras foram mal definidas,
raramente bem delimitadas e, a fortiori, ainda menos demarcadas. o
que se poderia chamar de fase da fronteira zonal, que caracterizou
o perodo medieval. Uma fronteira zonal pode, naturalmente, possuir
vrios significados: posto avanado, declive defensivo etc.
Entretanto, a fronteira zonal sobretudo a expresso de uma informao
insuficiente; as coletividades medievais que se desenvolviam ao
abrigo de espessas florestas procuravam na fronteira mais uma zona
de defesa do que um traado linear preciso.
- 20. 20 Com o aparecimento do Estado moderno, as coisas mudam.
Mas mudam tambm graas ao surgimento e a vulgarizao de um
instrumento de representao, o mapa. O mapa o instrumento ideal para
definir, delimitar e demarcar a fronteira1 . A passagem de uma
etapa outra se traduz por um acrscimo de informao, mas tambm por um
custo de energia. No fundo, trata-se da passagem de uma representao
"vaga" para uma representao "clara", inscrita no territrio. A linha
fronteiria s de fato estabelecida quando a demarcao se processa.
"De fato estabelecida" significa no estar mais sujeita contestao
por parte de um dos Estados que tivessem essa fronteira em comum.
Pela demarcao, elimina-se no um conflito geral, mas um conflito do
qual a fronteira pudesse ser o pretexto. A linearizao da fronteira
uma tendncia do Estado moderno, que no foi desmentida desde o sculo
XV, para culminar, no sculo XX, nas linhas "rgidas", por vezes
impermeveis porque contornadas por "muros" (Muro de Berlim, por
exemplo). Fatores ideolgicos (Leste-Oeste) conduzem a uma demarcao
que no mais somente um ganho em informaes, mas ainda um gasto
contnuo de energia por todo um sistema de construes, para o qual
necessrio assegurar a manuteno e a vigilncia. Chega- se assim ao
fascnio da linha e reata-se, de certo modo, com os empreendimentos
malucos do passado, ilustrados pelos muros romanos e pela Muralha
da China. Sem dvida, a linha materializada uma "perverso" poltica
que dissimula um estado latente de guerra, ou seja, uma
incapacidade de aliar as relaes de poder das quais a violncia seja
excluda; incapacidade de aliar relaes negociadas de poder. Isto ,
de fato, um paradoxo poltico e geogrfico, pois a cada demarcao
linear extremamente precisa corresponde uma zona geogrfica tanto
mais impermevel. Trata-se, enfim, de uma zona camuflada em linha.
Isso significa que as funes da fronteira entre os blocos surgidos
de ideologias diferentes adquirem uma forma extrema. Os armamentos
muito sofisticados transformam as zonas em que se instalaram em
postos avanados. A demarcao (a delimitao tambm, mas com riscos de
contestao) permite o exerccio das funes legal, de controle e
fiscal. Com efeito, a linha fronteiria adquire diferentes
significados segundo as funes das quais foi investida. A funo legal
delimita uma rea no interior da qual prevalece um conjunto de
instituies jurdicas e normas que regulamentam a existncia e as
atividades de uma sociedade poltica. , sem dvida, a funo mais
estvel e tambm a mais essencial, pois no tem uma conotao negativa.
Em contrapartida, a funo de controle tem por dever inspecionar a
circulao dos homens, dos bens e da informao de uma maneira geral, o
que vale dizer, desde j, que o controle da informao se mostra muito
difcil, na maioria dos casos. Quanto funo fiscal, por muito tempo
ela representou o papel de instrumento de poltica econmica, por
meio do protecionismo. A liberalizao das trocas diminuiu muito a
sua importncia. As funes ideolgicas e militares da fronteira
poderiam completar essa enumerao. A funo ideolgica muito marcante
hoje em dia e esconde os conflitos armados potenciais. Enquanto a
funo militar ambgua, pois s
- 21. 21 pode ser assumida num contexto estratgico convencional.
Os armamentos sofisticados a esvaziaram, em grande parte, de todo
significado. Assim, se considerarmos as trs primeiras funes legal,
de controle e fiscal , podemos construir um sistema hierrquico de
fronteiras que d conta das relaes de poder que se instauram ou que
podem se instaurar entre os atores polticos por intermdio das
fronteiras. Seria errneo pensar que as trs funes esto em cena, em
todas as fronteiras internacionais. A funo legal esta sempre
presente, mas a funo de controle e a fiscal podem ser virtuais.
Assim, para Liechtenstein, a funo de controle e a fiscal so
virtuais. Esse pas poderia assumi-las, mas a elas renunciou; na
verdade, essas funes foram, de alguma forma, adiadas. Isso no
implica que no possam ser restabelecidas em circunstncias
particulares. Todas as fronteiras internas esto investidas da funo
legal, quer se trate de uma pequena ou de uma grande unidade
territorial. Funo legal que pode se reduzir a um conjunto de
regulamentos, por exemplo, ou ento de leis. Um canto suo tem sua
prpria legislao, alm da legislao federal vlida para o conjunto dos
cantes. Contudo, pode-se imaginar, em pocas excepcionais, que se
restabelea a funo de controle no prprio interior do pas, ao longo
das fronteiras internas. o caso, quando h insurreies ou perturbaes
graves. Se as fronteiras passam por fases de funcionalizao ou de
funcionalizao, isso em geral determinado, ou comandado por
modificaes socioeconmicas ou sociopolticas. A funcionalizao ou a
disfuncionalizao no afeta somente ao territrio, mas tambm o tempo
social no interior desse territrio. Com freqncia, o espao e o tempo
sociais se fazem e se desfazem simultaneamente. O invlucro
espao-temporal no qual se originam as relaes de poder um todo.
Assim, pois, o limite ou a fronteira no decorrem somente do espao,
mas tambm do tempo. De fato, a quadrcula no c exclusivamente
territorial, c tambm temporal, pois as atividades que so
regulamentadas, organizadas e controladas se exprimem de uma s vez,
no espao e no tempo, num local e num momento dados, sobre uma certa
extenso e por uma certa durao51 . Essa construo simultnea do espao
e do tempo tem sido muito esquecida ou, talvez, no evidenciada o
bastante, resultando da um tratamento formal dos limites. Assim,
eles so abordados ligeiramente, por vezes sem rigor, e no entanto
constituem uma das bases das prticas espaciais. Sem dvida, o limite
ou a fronteira no passam de um fenmeno banal e por isso que no tm
sido objeto de um grande interesse. Mas, na realidade, eles nada tm
de banal quando retomados na qualidade de sistema smico no projeto
social. Constituem uma informao lato sensu indispensvel a qualquer
ao. Portanto, a cada vez preciso estud-los como portadores de uma
informao que consome energia, para ser criada, controlada e
mantida. Participam de todo projeto sociopoltico ou socioeconmico
e
- 22. 22 por intermdio desses projetos que conveniente situ-los.
Constituem urna dimenso que nunca est ausente, pois no concernem
somente ao invlucro espao-temporal, isto , toda classificao
estruturada por limites. Nesse caso, o termo "classificao" deve ser
tomado no seu sentido mais genrico, no sentido de partio de
qualquer conjunto. Sem parties o poder no tem nenhuma referncia,
nenhuma estrutura, pois no saberia mais como se exercer. Na famosa
frmula "dividir para reinar", encontra-se essa preocupao. O
exerccio do poder implica a manipulao constante da oposio
continuidade versus descontinuidade. O jogo estrutural do poder
conduz a assegurar ora a continuidade, deslocando os limites, ora a
provocar a descontinuidade, criando novos limites. No excessivo
pretender que o poder, para se manter ou se reorganizar, tem
necessidade de se apoiar sobre esse jogo geomtrico dos limites. um
jogo paradoxal, permanente. No, os limites no so nem inocentes, nem
naturais, muito menos arbitrrios. Ainda no nos persuadimos o
bastante disso. Eles fazem parte do nosso jogo de reproduo social:
produo, troca, consumo. A reproduo social no sendo, enfim, nada
mais do que a territorialidade, pois os limites so vividos,
consumidos. E basta nos debruarmos sobre as quadrculas imaginadas
para facilitar, aqui e ali, as atividades sociais, para sabermos
que elas so bem ou mal vividas, qik1 do lugar a relaes simtricas ou
dissimtricas. Esses fenmenos, bem conhecidos, so observveis tanto
nas regies fronteirias como no interior dos pases. exatamente
porque so vividos que os limites participam da territorialidade.
Eis o porqu de a territorialidade constituir um obstculo para as
divises. Sendo "convencionais", tais divises nem sempre so
satisfatrias do ponto de vista existencial. Quando a malha desejada
por um poder, este se esfora por escolher o sistema que melhor
corresponda ao seu projeto, pronto a transformar a existncia
daqueles que a ele esto submetidos7 , a menos que estes recuperem o
seu poder para se oporem ao outro poder. Todo perodo de crise, toda
insurreio, toda revoluo se traduzem por modificaes mais ou menos
fortes nos sistemas de limites. Isso se torna a nova quadriculao na
qual se instaura, por bem ou por mal, uma nova territorialidade.
Toda mudana de malha implica uma nova estrutura de poder. o que
tentaremos ilustrar, escolhendo justamente os momentos de crise, no
sentido amplo do termo. II Mudana de poder, mudana de tessitura. Na
Frana, foram as leis de 24 e 26 de janeiro de 1790 que criaram 83
departamentos, 4 700 cantes e 40 411 municipalidades. Aps 185 anos,
a diviso poltica e administrativa do pas, alguns retoques parte,
continua a mesma8 .
- 23. 23 Essa observao, banal na aparncia, pois resulta da
simples comparao de dois momentos, de fato de um interesse
considervel. , em suma, um resumo da histria poltica. Apegar de
todas as transformaes que a Frana conheceu desde 1790, nenhuma
delas foi bastante forte, ou poderosa, para colocar em questo a
tessitura sada da revoluo de 1789. Sem dvida, tal tessitura
conheceu modificaes, mudanas, ou seja, remanejamentos, mas de fato
nenhuma transformao radical. A passagem do Antigo Regime Revoluo
foi acompanhada portanto de uma mudana nos quadros territoriais. A
passagem de uma estrutura de poder para uma outra significa tambm a
substituio de um embasamento territorial por outro. Qual era a
finalidade da Constituinte quando empreendeu esse imenso trabalho?
Na realidade, quebrar os particularismos locais e proteger as
comunidades humanas, considerando os imperativos de uma boa
administrao5 . Contudo, preciso tomar cuidado com a interpretao que
se pode dar aos objetivos dos constituintes. A. Soboul nos lembra o
perigo que existe em descrever de uma forma simplista a Revoluo
Francesa como unificadora e centralizadora: "Fica claro que as
realidades provinciais e o sentimento regional no podem se abster
dos conflitos sociais e das lutas polticas"1 ". Mudana de poder,
mudana de tessitura, certo, mas a Constituinte estava em condies de
dar livre curso s suas pretensas vontades unificadoras e
centralizadoras? certo que no, pois ento as relaes com a populao
teriam sido particularmente dissimtricas e a posio dos
revolucionrios se enfraqueceria. Vrios cdigos se confrontam: "A
exigncia revolucionria de igualdade e o sentimento nacional
unificador se reforavam um ao outro de 1789 a 1793, a preocupao de
conservao social encontrava apoio nos valores provincianos
tradicionais"11 . Se vrios princpios, vrios quadros se confrontam,
portanto necessrio compar-los e procurar descobrir o que enfim
prevaleceu. No momento em que a deciso de trocar a tessitura foi
tomada, "o quadro departamental foi definido a partir de uma
tessitura terica formada de quadrados de dezoito lguas de lado e do
confronto dessa diviso com aquela j existente das gnralits* e das
provncias". Em outros termos, isso significa que os revolucionrios
imbudos de igualdade vo, em seus sonhos iniciais, projetar no
territrio francs uma grade geomtrica cuja nica justificativa terica
ter malhas equivalentes! O primeiro reflexo se assemelha a uma
utopia euclidiana. Alis, sem dvida a expresso de um poder novo que
representa o objeto de sua gesto fora de toda considerao real e
que, por conta disso mesmo, homogeneza o territrio. a autoridade
abstrata que s consegue se exprimir em termos geomtricos. tpico dos
poderes que negam o tempo que os precede, porque a ele se opem, e
que no podem se apoiar numa histria especfica que esto realizando.
Todavia, se essa utopia tivesse sido realizada, os revolucionrios
teriam provocado rupturas e discordncias, ou seja, fatos
prejudiciais ao seu empreendimento. Isso porque, apesar de seu
desejo de romper tanto quanto possvel com o Antigo Regime, eles
acabaram
- 24. 24 levando em alta considerao os sistemas de limites
anteriores: "Muitos departamentos retomaram os traados das antigas
gnralits, s vezes pouco modificados. Gnralits e provncias so
divises administrativas estabelecidas pela monarquia absoluta por
cima do quadro feudal, para quebr-lo. Elas devem ser consideradas
no como herdeiras das circunscries feudais, mas como beros dos
departamentos"13 . Assim, se num primeiro momento a histria da qual
se quer livrar-se negada, em seguida ela recuperada, a fim de no se
destruir uma territorialidade que constitui a prpria substncia do
trunfo do novo poder. Os revolucionrios descobriram depressa, sem o
saber, que a instaurao de uma ordem geomtrica s teria sentido onde
a Histria no houvesse deixado nenhum depsito, nenhuma sedimentao. A
inrcia da Histria muito grande para ser negada sem dano, e essa a
razo de a antiga tessitura sobreviver na nova. Foi preciso compor
"o presente, integrando o passado, para assegurar o futuro". "A
nova diviso administrativa da Frana em departamentos no foi, como
se escreveu com freqncia, uma obra arbitrria e apressada, sem
fundamentos histricos."E Soboul acrescenta: "Ela aparece, ao
contrrio, como um hbil compromisso entre as necessidades de urna
administrao moderna e os dados da geografia e da histria; respeitou
os particularismos antigos, bem mais do que geralmente se diz". No
menos certo que uma verdadeira relao de poder - na qual o que
estava em jogo era a diviso do territrio francs - se originou entre
partidrios de um sistema geomtrico (tal como Thouret) e partidrios
de um sistema que valorizava as tradies da Histria (tal como
Mirabeau). Este ltimo dir: "Eu desejaria uma diviso material e de
fato, prpria s localidades e s circunstncias, e no uma diviso
matemtica quase ideal cuja execuo me parece impraticvel". Foi nessa
posio que finalmente se concentrou a Assemblia Constituinte. O
comit limitou-se a respeitar as decises tomadas pelos deputados das
provncias... Pensou que a nova diviso do reino deveria oferecer ao
esprito a idia de uma repartio igual, fraternal, nunca a de uni
deslocamento do corpo poltico, e que, como conseqncia, os antigos
limites das provncias deviam ser respeitados todas as vezes em que
no houvesse uma utilidade real para mudana (15 de fevereiro de
1790). Enfim, o essencial do antigo quadro foi conservado, mas de
acordo com um sistema que no deixava mais lugar aos equvocos, s
contestaes, ao vago. Isso no implica que a nova diviso no tenha
suscitado discusses e conflitos; ao contrrio, o compromisso entre
nacionalismo e tradicionalismo, entre geometria e territorialidade,
alimentou os debates. Mais uma vez verifica-se a permanncia das
tessituras antigas que sobrevivem, pois elas so sustentadas pelas
relaes vividas pelas populaes, pelas relaes econmicas, pelos laos
de solidariedade e pelas conformidades entre linguagem e costumes.
Destruir ou apagar os limites antigos desorganizar a
territorialidade e, em conseqncia, questionar a existncia cotidiana
das populaes. Uma transformao
- 25. 25 drstica dos limites teria conduzido a um confronto com o
novo poder. No fundo, em muitos casos, as provncias deram origem
aos departamentos: trs para a Provena, cinco para a Bretanha e para
a Normandia, respectivamente. O mesmo aconteceu com a Franche-Comt,
a Dauphin, a Alscia, a Auverne etc. Diviso, subdiviso, sim, mas no
desmantelamento geomtrico: a vontade revolucionria se afirmou, sem
destruir para sempre os depsitos da Histria. De fato, assiste-se a
uma mudana de escala na estrutura territorial, mas no a urna
destruio desta. Afinal, o que um departamento? uma "subdiviso de um
espao considerado politicamente homogneo, economicamente neutro,
administrado de maneira centralizada e cuja dimenso mdia esta
ligada ao estado das tcnicas de manuteno da ordem e do controle
poltico do fim do sculo XVIII". A expresso "economicamente neutro"
surpreende, mas se explica pelo fato de que os revolucionrios
privilegiaram o fato poltico em detrimento do fato econmico. Essa
definio mostra com clareza que a subdiviso, o departamento, no de
forma alguma arbitrria. Ela resulta da considerao de uma srie de
informaes, , por si mesma, uma informao. Informao cujo objetivo
resgatar uma estrutura operatria, ou seja, um sistema de limites e
uma informao estruturante. O que a Constituinte criou foi uma
informao estruturante cuja durao c notvel, pois ainda hoje
desempenha o seu papel. Contudo, como toda informao que se degrada,
lcito se perguntar se essa informao antiga, seno por demais
envelhecida, ainda desempenha esse papel de uma forma satisfatria.
Aqui preciso fazer a distino entre o quadro comunal, considerado
ultrapassado, e o quadro departamental, que tem numerosos
defensores. Duas crticas fundamentais so feitas ao departamento:
"Os limites atuais representam numerosos obstculos a uma gesto e
uma organizao racionais do espao. Os departamentos so uma
circunscrio cuja dimenso mdia no est adaptada ao administrativa
moderna, muito ampla para certas misses, no o suficiente para
outras, sendo a estreiteza o que mais se denuncia". Quer se trate
da organizao rural ou da organizao urbana, o departamento
questionado pelo vis de suas fronteiras. De fato, muitas vezes as
fronteiras atravessam as regies rurais, cuja dinmica comandada por
tcnicas agrcolas que no se satisfazem com os limites antigos, "O
crescimento da aglomerao de Lyon est bloqueado a nordeste pelo
limite departamental do Ain, e a sudeste pelo do Isre." O segundo
tipo de crtica tem a ver com a dimenso, julgada inadequada em
termos econmicos: "O tamanho ora muito grande, ora muito pequeno".
Portanto, haveria uma crise dessa informao estruturante, que na
realidade a expresso de uma crise do sistema institucional. A
matriz departamental foi criada para permitir a realizao de certas
relaes essencialmente poltico-administrativas,
- 26. 26 enquanto hoje o Estado est cada vez mais implicado nas
relaes socioeconmicas, que ignorava h cerca de dois sculos.
Seguiu-se uma discordncia progressiva cada vez mais evidente. A
diviso departamental surgiu de um modo de produo que no existe
mais. O modo de produo contemporneo necessita de uma redefinio das
unidades territoriais, o que foi feito por planificadores que
"criaram s pressas as regies planejadas". Por um decreto de 30 de
junho de 1955, foram criadas de improviso 22 regies planejadas. Mas
a expresso "s pressas" parece se fortalecer, pois essa nova
constituio "aparece hoje totalmente inadaptada s necessidades do
momento". Essas incertezas quanto s dimenses das malhas
territoriais se refletem nos trabalhos de numerosos economistas e
gegrafos que, nos anos 60, propuseram inmeras divises. Jean Labasse
mostrou, oportunamente, que a pesquisa do gabarito ideal era
urgente. Os resultados dessa pesquisa esto condicionados pelo
sistema de relaes que se quer privilegiar. Mas j no excessivo
privilegiar um sistema de relaes mais do que outro? No h uma
contradio em colocar as coisas em termos exclusivamente polticos ou
exclusivamente econmicos? No a que se encontra o drama da
territorialidade, que no feita apenas de relaes polticas ou apenas
de relaes econmicas mas, entre outras, destas e daquelas? A
territorialidade est em crise e, por conseqncia, a tessitura que a
sustenta tambm. A territorialidade est em crise porque h uma crise
profunda nas relaes. Ento, nenhum quadro territorial seria
conveniente, e as crticas que evocamos ilustram com perfeio no
somente a crise da matriz territorial mas tambm a de todo o sistema
de reproduo social que ali se inscreve. Notaremos que as crticas se
apiam em parte, ou at mesmo no todo, na constatao de que as malhas
territoriais so inadequadas para a ao econmica. Isso o mesmo que
reconhecer que as relaes econmicas se destacam. Alis, essas crticas
so marcadas pelo timbre da poca em que surgiram: a do
desenvolvimento dos anos 1950 a 1970. De fato, no se trata disso,
pois durante esse perodo a ao econmica no prevaleceu sobre a ao
poltica. A primeira substituiu a segunda ou tenderia a substitu-la,
se fosse possvel. As coisas so at mesmo um pouco mais complexas,
pois o poder poltico no substitudo, mas age como se o tivesse sido,
imitando o poder econmico: "Dois palhaos se olham atravs da moldura
vazia de um grande espelho. Um exatamente a rplica do outro pelo
tamanho, pela roupa e pela maquiagem. O primeiro est bbado e o
segundo imita com cuidado todos os seus gestos [...] O primeiro
palhao o Capital, na embriaguez e na cegueira de seu crescimento; o
palhao imitador e lcido o Estado". Tal metfora, como todas as
metforas, talvez bastante eficaz, mas revela urna das razes da
crise: o mimetismo. O mimetismo a no-diferenciao, a perda das
diferenas. Na realidade, o desaparecimento superficial das
diferenas, pois no fundo, como vimos, o Estado
- 27. 27 permanece to lcido quanto pode no seu jogo com o poder
econmico. Mas, por a, ele aceita a obliterao de seus quadros
territoriais. Existe, assim, urna contradio entre a atitude do
Estado que imita a economia e os quadros sobre os quais se apia. O
Estado incita aplicao de uma tessitura de geometria varivel, que no
compatvel com a gesto poltica tradicional. Portanto, a ocorre uma
deformao na ao poltica. O poder econmico postula uma informao
estruturante de curta durao: tessitura instvel contra tessitura
estvel. O debate sem sada, mas no sem interesse. A tessitura o
trunfo fundamental na relao que se instaura em vrios nveis entre
organizaes econmicas e organizaes polticas. As primeiras tm um
interesse evidente em anular os obstculos, para tornar o espao
territorial isotrpico tanto quanto possvel, de maneira a investir
com facilidade ao sabor das modificaes tcnico-econmicas. Quanto
menos disjunes oferece o territrio, mais ele se prestar a mudanas
rpidas. J as organizaes polticas, sobretudo as que se inspiram no
princpio de centralizao, tm interesse em recortar, em subdividir
para melhor assentar seu controle; favorecem um espao territorial
anisotrpico, de maneira a evitar a possvel ocorrncia dos fenmenos
de difuso. Eis a grande diferena: num caso trata-se de favorecer a
difuso, no outro trata-se de impedi-la, eventualmente. Uma primeira
concluso se impe: os objetivos das organizaes econmicas e os das
organizaes polticas so em parte contraditrios, salvo, em tese, nos
regimes socialistas. Mas as contradies podem ser suplantadas, na
medida em que se questionam mais os princpios e os quadros de ao
que incorporam as tessituras em sua estratgia do que a prpria
natureza das tessituras. No a malha, o departamento ou outra coisa
qualquer, que muito pequena, o poder de agir, de operar, de
realizar que no bastante fluido e bastante livre no territrio. A
organizao poltica gera mais relaes verticais que horizontais, por
esse motivo que essas ltimas devem ser suscitadas, do contrrio
entra-se no pesadelo das descontinuidades paralisantes. Uma
tessitura no pode ser modificada sem cessar; por outro lado, o
poder que a utiliza pode ser amaciado c ajustado por intermdio de
seus quadros e de seus princpios. Se relaes necessrias devem se
instituir entre os elementos pertencentes a duas malhas diferentes,
no so os limites que impedem essas relaes, mas as estruturas de
poder que garantem as malhas. III - Mudana de modo de produo,
mudana de tessitura. Vimos no exemplo precedente que uma mudana de
regime poltico induzia a uma mudana de quadrcula territorial.
Modificao que talvez se justificava ainda mais por uma necessidade
funcional de uniformizao no interior de um territrio cujas partes
estavam submetidas a sistemas de organizao variveis do que por
urna
- 28. 28 necessidade funcional de origem econmica. De fato, se a
Revoluo Francesa marca uma ruptura poltica com o Antigo Regime e
prepara novas condies para a atividade econmica, ela no marca, de
forma alguma, a passagem de um modo de produo para outro. Por
ocasio da passagem de um modo de produo para outro, chega-se a uma
situao ainda mais fundamental que anteriormente. A tessitura
territorial um sistema smico que mantm relaes diretas com o modo de
produo, que por se manifestar no territrio tem necessidade de
cdigos. A tessitura um cdigo, da mesma forma que a lngua, por
exemplo. Usemos a Tailndia para ilustrar tal afirmao. Logo de incio
Bruneau declara que no Sudeste Asitico "o poder poltico se
manifesta em dois nveis: o do Estado e o da comunidade alde. Todo
Estado , ao mesmo tempo, origem e reflexo de uma formao econmica e
social". Sob a aparente ambigidade dessa ltima observao,
descobre-se a inextricvel ligao entre o nvel poltico e o nvel
econmico. O primeiro comanda a hierarquizao do segundo, que se
manifesta na base, na aldeia: unidade social e territorial herdada
do modo de produo pr-capitalista. extremamente interessante notar
que a passagem do modo de produo asitico ao modo de produo
capitalista no teve como saldo o desaparecimento dessas comunidades
aldes. Estas constituiriam,pois,acima do sistema,espcies de
invariveis, verdadeiros ndulos de cristalizao de uma
territorialidade que desafiam o tempo.So os elementos originais da
interface biossocial que tecem a trama que serve de suporte para a
expanso de um ou de outro modo de produo. Cada modo de produo
constri sua rede administrativa a partir dessa trama resistente. At
meados do sculo XIX, era o modo de produo asitico que dominava no
Sio: "A aristocracia dos Chao e dos Na a classe dominante que,
encarnando o Estado sob o rei, se apropria do excesso de produo das
comunidades rurais e controla estreitamente o comercio. Essa
aristocracia drenava, pois o excedente de energia e organizava sua
distribuio. Ela residia nos "centros", as cidades (Muang) e a
capital, e preenchia a funo de empregador da populao de camponeses
Pha ou homens livres, submetidos aos trabalhos braais e ligados a
um patro Na ou Cho e dos That ou escravos (um tero da populao, mais
ou menos) quando do desaparecimento de seus donos. No norte ocorria
a mesma repartio em classes, mas com soberanos menos poderosos que
no impunham trabalhos forados to estritos, pois as grandes obras a
eram menos importantes. O modo de produo asitico dominava nas
plancies mas no nas montanhas, onde se conservava um modo de produo
tribal.
- 29. 29 A esse "sistema de autoridade por encaixe (o rei, os
Chao os Na e suas clientelas de Pha e de That)" correspondia um
sistema ideolgico que assegurava; a reproduo do modo de produo
asitico. Mas a esse sistema correspondia tambm, e claro, uma
estrutura espacial especfica. Bruneau fala de estrutura espacial em
aurolas ou ainda de sistemas de encaixe. Ser possvel notar a
coerncia que existe entre a estrutura do poder e a estrutura
espacial que lhe serve de suporte ou de matriz territorial. H,
portanto, uma zona central formada pela capital e pelas provncias
vizinhas que ocupa, grosso modo, o delta do Mae Nam Cho Phraya.
Essa zona prolongada por provncias de terceira, segunda e primeira
classes, cujo lugar determinado pela importncia do seu centro. Numa
coroa ainda mais externa se repartiam os Estados tributrios, cuja
formao econmica e social era distinta da formao siamesa
caracterizada pelas provncias da plancie central. Tal era, cm
pequena escala, a organizao territorial. Em escala maior, o
territrio era organizado a partir do "Muang, que significa, ao
mesmo tempo, cidade, centro e o territrio que ela controla {num
raio de dois dias de caminhada, em princpio)". O centro reagrupava
e organizava uma populao dividida em comunidades aldes. A aldeia
(Ban ou Muban) era, assim, a menor unidade administrativa. A relao
de poder era do tipo patrocliente, que se ligavam por meio de uma
troca recproca de prestaes de servio. V-se que as relaes
significativas eram verticais e, de fato, as relaes horizontais
eram menos importantes (cliente a cliente ou patro a patro).
Espacialmente, a aldeia estava no centro de um terreno de arrozais
e de vegetao rasteira com contornos bastante indefinidos, A partir
da segunda metade do sculo XIX, o aparecimento do modo de produo
capitalista vai questionar essa estrutura. Haver mesmo urna
considervel evoluo de 1890 a 1950. que as redes de vias frreas e as
rodovias vo quebrar a antiga organizao e fornecer os meios para uma
outra centralizao administrativa'. De incio a passagem de um modo
de produo para outro foi marcada pela substituio de impostos sobre
as antigas prestaes e as antigas doaes em espcie. Em seguida, houve
a formao de um pequeno campesinato proprietrio da terra que
explorava. Mas , sobretudo aps a Segunda Guerra Mundial que crescer
o modo de produo capitalista e que se acelerar a expropriao de um
nmero sempre maior de agricultores, que incharo o proletariado
urbano. Seguiu-se um remanejamento da organizao administrativa do
territrio, embora esse remanejamento j houvesse
- 30. 30 comeado entre 1892 e 1897. O sistema em aurolas ento
substitudo por um sistema copiado do modelo colonial ingls. Os
Muang se tornaram unidades territoriais de segunda ordem,
reagrupados em crculos (Monthan), sob um alto comissrio real. Em
1915, havia vinte Monthan. Por outro lado, a centralizao foi
reforada com a introduo de funcionrios reais da provncia e do
distrito e com a eleio dos chefes de aldeias (Muban) e de cantes
(Tamhan). Em seguida procedeu-se aos remanejamentos de provncias
(Changwat), que reagruparam vrios antigos Muang. interessante notar
que, do ponto de vista territorial, houve um esforo em se caminhar
da noo imprecisa de Muang para uma outra mais precisa (no sentido
de nitidamente delimitada), de Changwat (provncia). H, pois, um
certo ganho em informao, sendo que cada Changwat foi subdividido em
distritos (Amphoe). Nesse nvel a administrao centralizada se
estanca, pois os chefes de canto (Tamhan) e de aldeia (Muban) no so
verdadeiros funcionrios, mas auxiliares do poder central. Bruneau
no deixa de assinalar que a autonomia da comunidade alde foi
ameaada, pois o progresso das culturas comerciais coloca a aldeia
cada vez mais sob a dependncia de uma rede comercial dominada por
Bangcoc. A conjuno poltico- econmica do modo de produo capitalista
est a ponto de rasgar a trama original da territorialidade
tailandesa pela manipulao dos cdigos de hierarquia e de
centralizao, de um lado, e dos cdigos de comutao e de acumulao, do
outro. O modo de produo capitalista procura assegurar a fluidez dos
elementos que utiliza, manipula e combina. Ora, a trama alde foi,
durante um longo tempo, uma unidade indivisvel, dotada de uma
grande coeso, que podia fazer malograr o sistema comercial nacional
e, sobretudo, internacional. Sua destruio no , portanto, mais que
uma questo de tempo. J comeou e vai se acelerar, sem sombra de
dvida. Enquanto a coeso das comunidades aldes era a garantia do
funcionamento do modo de produo asitico, essa mesma coeso se torna
um obstculo mobilidade desejada pelo modo de produo capitalista.
Este ltimo se esfora em destruir os espaos moleculares que so as
aldeias, de modo a poder combinar vantagens. Essa estratgia
apresenta uma srie de vantagens: relaes com elementos menores,
portanto, mais facilmente dominveis, possibilidade de aumentar a
mobilidade desses elementos e reforo do controle pelos mecanismos
do mercado. Face aos atores polticos e econmicos, cuja capacidade
de dominao considervel, o ator "comunidade alde" no pode mais
apresentar uma frente uniforme, pelas razes j citadas, tanto que as
relaes de poder se tornaram muito dissimtricas. Portanto, a procura
de uma tal relao tem como resultado a desestruturao, a destruio
final do ator "aldeia", na qualidade de comunidade humana.
- 31. 31 Basta dizer que o ator tessitura no est no auge de sua
evoluo e que tem todas as chances (ou infortnios) de ser
questionado na base. Isso quer dizer a inaugurao, ou melhor, a
perseguio de uma estratgia que favorece uma territorialidade
instvel. Terrvel dilacerao de uma trama espao-temporal, dissoluo
simultnea do espao e do tempo sociais. Nenhum elemento terico
permite se opor evoluo, muito menos fortalec-la. A nica coisa que
se pode dizer que essa mudana no se faz sem um custo elevado para
as comunidades aldes. Esse custo contrabalanado por ganhos para as
comunidades? Em caso afirmativo, quais? Ou se trata de um jogo sem
vencedores, no qual aquilo que as comunidades perdem as organizaes
ganham? IV procura de uma nova malha: a regio Velha idia geogrfica,
emblema sempre brandido, a regio hoje parece focalizar (na verdade,
j h vinte anos) todo um feixe de protestos endereados ao Estado,
que por sua centralizao contribuiu para decompor o tecido social10
. certo que o Estado persegue uma lgica da unidade e da
uniformidade, mas por isso mesmo substitui a diversidade pela
generalidade, o que significa que a regra se torna um puro
instrumento de ordem em vez de ser um instrumento de regulao. De
fato, h uma antinomia entre a vontade c a ao do Estado, de um lado,
e a aspirao a uma vida regional, de outro. Eis por que certas
pessoas pensam que "a questo regional no designa nenhuma realidade
objetiva, no remete a nenhum suporte material; , no mximo, uma
questo vazia. O que significa essa introduo? Duas coisas: 1) Que a
regio permanece, ao menos at hoje, mais um objeto de discurso que
de prticas; 2) a partir dessa constatao que o trabalho do socilogo
consiste, sobretudo, em dar a essa questo um contedo relativo s
relaes sociais". Objeto de discurso versus objeto de prtica, essa
oposio pode constituir o primeiro elemento de um encadeamento de
leitura possvel. E inteiramente da lgica do Estado construir urna
imagem de diversidade que ele assenta sobre a uniformidade. A regio
dita, no vivida. E no entanto podemos nos enganar com isso, e de
fato nos enganamos, uma vez que baterias de decretos e leis parecem
dar uma consistncia idia de regio. A regio no est ausente das
preocupaes do Estado, ao contrrio: ele corta, subdivide, delimita,
quadricula, encerra... o mapa, mas no o territrio, que deve
permanecer essa cera, prestes a receber todos os selos conforme as
necessidades do poder central. "Porque no remete a nenhum
significante, o termo 'regio' e os discursos que se constroem em
torno so independentes de qualquer relao com o real. , sem nenhuma
dvida, um caso de produo de uma informao realizada para marcar o
vazio da prtica: a poltica dita regional, a poltica no dita a
regional. Parece-nos que estaramos errados em falar de duplicidade,
pois se trata de uma coisa bem diferente. Trata-se de um exemplo de
dupla estratgia situado em planos diferentes: discurso regional e
prtica a-regional.
- 32. 32 As aspiraes de inmeros grupos se dirigem para esse plo
regional: uma espcie de terra prometida, mas o Estado no o quer;
ento, ele multiplica os discursos sobre a regio, de modo a manobrar
uma grande quantidade de sentidos. Para o Estado, a regio uma
expresso da qual se conserva sbia e sutilmente a polissemia. um
jogo difcil, mas no qual o Estado se distingue, tanto mais que o
discurso permita agir alternadamente em diferentes escalas: da
pequena grande escala, segundo as necessidades do momento. o jogo
dos sinais que permitem dizer tudo "aquilo que deve ser dito", no
momento em que deve ser dito, sem que por isso a realidade seja
afetada43 . Trata-se de dar a impresso da diversidade na
uniformidade. Poderia ser de outra forma no modo de produo
capitalista, em relao ao qual se pode perguntar se ele no suprime
todas as diferenas e, em particular, toda diferena ligada ao
espao?4 * Se respondemos pela afirmativa, isso implica que o tempo
local e o espao local sero negados. Mas o que esse tempo local e
esse espao local? Visto do centro, muito pouca coisa: um agregado
de particularidades, de hbitos e costumes que constituem outros
tantos obstculos a uma uniformizao. Visto do "local", muito, pois a
"territorialidade" cristalizada, ou seja, a significao da vida
cotidiana. Destruir essa territorialidade destruir toda uma
simbologia cujo desaparecimento impede a manuteno de um dilogo com
o meio espao-temporal: "Nessa perspectiva, o particular, o
singular, o concreto, o local se opem ao universal, ou formal, ao
Estado, da mesma forma que o folclore pode se opor tcnica"'15 . o
fim de um dilogo multidimensional: somente o dilogo alto versus
baixo c mantido, o dilogo horizontal anulado. evidente que isso faz
parte da lgica do poder, que se fundamenta na idia do poder
descendente, isto , do poder que vem do alto e que deve mediatizar
tudo. A relao se torna triangular, pois preciso passar pelo pico
para manter uma relao no nvel da base: o local s tem significado
pelo "todo", abstrato e formalizado. De fato, freqentemente a regio
no remete a nada de material. Assim, por exemplo, o significado
"Bretanha" uma palavra sem suporte e portanto suscetvel de receber
vrias acepes possveis, em funo de projetos polticos diferentes, s
vezes adversos45 . Isso no impede o nascimento de uma reivindicao
regional: Bretanha e Occitnia na Frana, por exemplo. Mas a tambm se
permanece no nvel dos discursos: "O regionalismo breto est mais
ligado queles que fazem a Bretanha funcionar como sociedade do que
queles que do vida a ela". Basta dizer que o "regionalismo breto
preocupa bem mais os notveis da administrao e os mestres do que os
agricultores, pescadores e operrios". Se esse o caso, que de fato
os notveis perceberam, antes dos outros, "uma fissura que preconiza
a morte de uma sociedade". Defender a regio, defender o local "
talvez uma simples busca de sentido. Esse trunfo no deve mais ser
recebido numa acepo filosfica ou psicolgica, mas como
- 33. 33 uma questo referente relao da sociedade para com os
indivduos, ao consentimento dos indivduos em pertencer a tal
sociedade". a descoberta de que primeiro se pertence a um territrio
lato sensu, para depois se pertencer a uma sociedade. Eis todo o
problema da territorialidade. O discurso regional revela de uma
forma muitas vezes pattica o drama da desterritorializao e, por
conseqncia, a crise da territorialidade. H, na base, discursos e
prticas, ou at mesmo protestos, que opem ao discurso do Estado,
que, enfim, se acomoda bastante bem a essa situao. Esses protestos
liberam uma informao que mostra a transformao dos atores
paradigmticos em atores sintagmticos que concorrem para criar novas
relaes de poder. O protesto regional raramente nico, pois alia-se a
outros, tais como o feminismo, a autogesto e a ecologia, Esses
quatro protestos esto ligados: "O que significa simplesmente que no
se poderia ser adepto da autogesto sem ser partidrio de uma liberao
completa da mulher e da autonomia das regies, ao mesmo tempo que no
se pode conquistar a restaurao dos equilbrios naturais sem uma
reformulao das relaes entre os grupos sociais". Eis a demonstrao de
que tal trunfo fundamentalmente a territorialidade, tal como a
definimos. Nesses quatro protestos, o que est em jogo so as relaes
essenciais e existenciais. Por intermdio deles sente-se a vontade
de afirmar a necessidade de relaes simtricas com os seres, com os
locais, o trabalho e o meio espao-temporal. Retomar o poder pela
base por meio do cotidiano e, sobretudo, recuperar uma malha
territorial que possa permitir o exerccio desse poder. Em resumo,
trata-se de redescobrir, para as coletividades, malhas concretas
que se oponham s malhas abstratas propostas pelo Estado. Estamos
certamente no limiar de uma era na qual a regio, a que vivida,
desempenhar um papel cada vez maior para as diversas
comunidades.