As fundações e a solidariedade humana

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IV Encontro Paulista de Fundações

As Fundações e A Solidariedade As Fundações e A Solidariedade Humana Humana

Dr. José Renato NaliniDr. José Renato Nalini

Desembargador do Tribunal de Justiça doEstado de São Paulo

Presidente da Academia Paulista de Letras

Esta era que alguns chamam pós-moderna, com variantes de pós-positivismo e pós-moralismo, oferece ao intérprete muitas e muito instigantes faces.

A sociedade da informação e do conhecimento é também palco de exibicionismo da selvageria capitalista, de predomínio de todas as tendências consumistas que, só oferecem o traço comum da intenção de extirpar valores.

Dentre estes, o valor Pátria parece abatido. “É bem evidente que a mitologia nacionalista exauriu-se. O sentimento nacional tornou-se um elemento de identificação cultural, desvinculado de qualquer sentido de responsabilidade moral superior, e ficou sendo apenas um referencial de índole mais reativa que afirmativa, só vindo a público, efetivamente, durante as grandes competições esportivas internacionais!”1

Não é desprovida de conseqüências essa ruptura com o passado. O patriotismo era realçado no lar e na escola. Os deveres ante a coletividade estavam no ápice da hierarquia das finalidades morais. Durkheim chegou a afirmar: “Agir moralmente significa agir tendo em vista um interesse coletivo; o fim por excelência da conduta moral está em beneficiar a sociedade política ou a pátria.”2

Essa noção de moral praticamente se decompôs. Subsistiu um certo nacionalismo sem patriotismo que parece legitimar a aspiração de cada qual a viver exclusivamente para si. Esse “para si” não dispensa o espetáculo da caridade, nem certa filantropia que dê visibilidade e, portanto, retorno imagético. No mais, prevalece o ideal do bem-estar e, “em lugar e ao invés da moral do civismo, está-se em presença do culto da esfera privada e da indiferença em relação à coisa pública, do dinheiro acima de tudo e da generalização democrática da corrupção.”3

Freqüente o desinteresse pela política, sobretudo na juventude. Generalizar a indigência moral da classe política reflete certo consenso e o lamentável é que tal juízo crítico não se faça acompanhar de um despertar cívico das consciências. Ao contrário, o conceito depreciativo justifica o pretexto para o desinteresse absoluto pela coisa pública.

Paradoxalmente, a sociedade pós-moralista redescobre a preocupação ética. “A derrota do pensamento não é generalizada e o triunfo do barbarismo ainda não é efetivo.” 4

Não existe o risco de linchamento ao se reafirmar a máxima: “ou o século XXI será ético ou não será nada”. Sem que a humanidade toda se convença de que exorbitou na exploração do planeta, ilusão com que se não ousa sonhar, ao menos intuitivamente ela aceita uma tarefa retificadora. “Quando os discursos sobre o futuro humano e o cosmos beiram o catastrofismo, assumem papel determinante o livre exercício da responsabilidade humana e suas alternativas civilizadoras.”5

A lucidez assume um protagonismo salvífico. O Brasil complexo, instância privilegiada para pesquisa antropológica por constituir arquipélago de coexistência de ilhas pré-históricas, pré-medievais, modernas e pós-modernas, ostenta alguns índices instigantes.

Desde 1988, proliferaram as organizações não governamentais. A cidadania, o direito a ter direitos a que se referia Hannah Arendt, embora seja conceito impreciso, não deixa de ser reiteradamente invocada. Ao lado da aspiração ao republicanismo tardio. Clama-se por educação e reconhece-se que a matéria-prima de que a pátria se ressente e que o ufanismo não pode negar é justamente a consciência ética.

Nesse estágio é que as fundações são redescobertas e, simultaneamente, redescobrem elas próprias sua vocação. Na mão contrária dos feéricos desfiles da generosidade pré-fabricada, do show filantrópico televisivo, da contínua exploração emotiva, as fundações prosseguem a senda segura do altruísmo adequado.

São propostas consistentes, não circunstanciais. Perenes, não efêmeras. Criam vínculos de responsabilidades, perseguem fins seguros e vivenciam a real benevolência.

As fundações se nutrem de uma percepção que o egoísmo teima em desconhecer: a finitude da existência humana, que pode perdurar algumas décadas e mais nada. O anseio de infinito que mantém a fantasia humana propõe ao ser mortal algumas táticas de sobrevivência virtual. A mais eficiente delas é instituir uma fundação.

A prática da solidariedade não cabe à esfera estatal. Entre as promessas do Estado-providência e sua incapacidade de responder aos crescentes reclamos de uma sociedade ávida por satisfazer suas necessidades, interpõe-se a atuação gregária. A crise do Estado contemporâneo já sugeriu sua redução a um improvável Estado-mínimo. A receita conciliadora é um Estado coordenador e a realização máxima de missões cruciais por parte da iniciativa cidadã.

Legitimam-se as fundações ante o esgotamento dos projetos políticos. Se as megaplataformas estatais e ideológicas se desvaneceram, impõe-se a retomada dos projetos privados. O exercício da solidariedade imediata readquiriu prestígio social. O novo status fundacional “está na confluência de dois caminhos: a erosão da fé naquilo que é ‘exclusivamente político’, de um lado e a expansão crescente dos ideais de autonomia individual, de outro.”6

A fundação, ao menos em aparência, estaria na contra-corrente da desvalia dominante desta era. Em oposição à vivência egoística, propõe como solução o dinheiro a serviço do bem comum; ao contrário da lógica mercantil, o auxílio mútuo, o desprendimento e a gratuidade; inversamente ao “cada um por si”, o embarque numa “aventura de todos”.

Tece redes de solidariedade, conduz à apetência de novos elos de sociabilidade e estabelece novas fórmulas de intercâmbio entre os humanos. Simultaneamente, contribui para concretizar uma das promessas do constituinte de 1988, o elaborador da Constituição Cidadã: justamente aquela de “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. 7

Fiéis a esses objetivos, as fundações brasileiras – a par do desenvolvimento de suas finalidades institucionais – inserem-se num projeto muito mais amplo que é o de implementar a Democracia participativa prometida pelo formulador da Carta Política.

Da maior relevância, portanto, propiciar a todos aqueles que integram as associações ou federações estaduais de fundações a oportunidade para este debate que, pela seriedade da organização, pela excelência dos demais expositores e maciça participação dos interessados, prenuncia a obtenção dos mais profícuos resultados.

Muito obrigado pela honra da alocução e o merecido êxito a todos os que participam deste 4º Encontro Paulista de Fundações.

Referências:1. GILLES LIPOVETSKY, A Sociedade Pós-Moralista. O crepúsculo do

dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos, São Paulo, Manole, 2005, p.173.

2. ÉMILE DURKHEIM, L’éducation morale, Paris, P.U.F., 1963, p.51 e 69.3. GILLES LIPOVETSKY, op.cit., idem, p.180.4. MICHEL ONFRAY, A política do rebelde. Tratado de resistência e

insubmissão, Rio de Janeiro, Rocco, 2001, p.86.5. GILLES LIPOVETSKY, op.cit., idem, p.188.6. GILLES LIPOVETSKY, op.cit., idem, p.120.7. Preâmbulo da Constituição da República de 5.X.1988.