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A capoeira literária do poeta Nov@to Marcos Fabrício Lopes da Silva Inicialmente uma mistura de dança e jogo, a capoeira se desenvolveu no Brasil a partir da contribuição africana, sobretudo através dos fundamentos introduzidos por escravos da etnia banto. Sua principal característica é a ginga, movimento de corpo destinado a enganar o oponente, e que traduz toda a malícia inerente à prática de dissimular os golpes em esquivos passos de dança. O praticante da capoeira usa o gingado ou ato de gingar, que consiste em bambolear o corpo para a direita e a esquerda, a fim de confundir o adversário, escapar de seus golpes, e procurar o momento e o ângulo certos para atacar. Acredito que este seja o estilo da “capoeira literária” protagonizada pela poesia de Wanderson Adriano Marcelo. Mais conhecido como Nov@to, o jovem poeta, nascido em Belo Horizonte, apresenta uma “caneta diferenciada”, pelo fato de a literatura de testemunho produzida por ele ser extraída de vivências advindas das margens do sistema hegemônico. Trata-se de uma poética do subsolo existencial presente não nas alturas, mas sim no chão do cotidiano. Por morar e participar ativa e solidariamente da vida cultural no morro, tendo vivido na comunidade do Vietnã e hoje residindo no Primeiro de Maio, Nov@to costuma dizer que iscreve com “i”. Para ele, essa é uma forma político-literária de destacar a importância e o mérito da grafia desenvolvida pela própria periferia, sendo esta historicamente apagada por aqueles que escrevem com “e”. Tal rebeldia lapidar é tão legítima e apropriada quanto a clássica distinção entre “estória” e “história”, realizada por um outro escritor mineiro, o canonizado Guimarães Rosa. A “história” pertence ao tempo; é ciência. A “estória” pertence à eternidade; é magia. Quem sabe a “história” fica do mesmo jeito. Quem ouve uma “estória” pode ficar de outro. Pois eu fico outro sempre que ouço as estórias e leio as poesias de Nov@to. Sobrevivente do “Brasil real” e renegado pelo “Brasil oficial”, o poeta, para escrever seus textos, se embebeda dos acontecimentos miúdos das vielas e das ruas tradicionalmente favelizadas. Assim, Nov@to “garrincha” o circuito literário e midiático dominado pelos fatos graúdos produzidos pelos “donos-de-tudo”, que se encontram confortáveis na casa-grande. Passeando com o escritor pelas ruas de Belo Horizonte, ele apontava e me apresentava orgulhosamente os cenários e os personagens reais que faziam parte dos seus escritos. Subindo a Rua da Bahia, tivemos a oportunidade de encontrar um companheiro do poeta, que mendigava pela rua e, por isso, era considerado invisível pelos transeuntes que ali passavam. Nov@to conversou com Fernando, e eles aproveitaram a oportunidade para colocar o assunto em dia: a família sentia a falta do rapaz e queria saber sobre o paradeiro dele. Após anos dedicados ao tráfico, o homem de rua foi descartado pelos traficantes e corre risco de morrer caso volte a freqüentar a quebrada. Sobre esse episódio, Nov@to sapecou esta: “Fernando também é pessoa”, numa referência espirituosa e explícita ao reconhecimento obtido pelo poeta lisboeta, sendo que o xará brasileiro, como sobrevivente do campo de concentração de renda, também deveria ser digno da mais honrosa consideração. Por conta de acontecimentos dessa natureza, o poeta diz que não faz ficção, mas “fiquesão”. Ou seja, a literatura, para ele, não é uma válvula de escape para fugir da realidade, mas sim uma grande porta para acessar a complexidade da vida e extrair dela o máximo de lições. Diante de sua sobriedade literária, não há espaço para fantasias chinfrins. Chegamos a um lema que sintetiza bem o projeto literário de Nov@to: “não sou eu na lira, é nóis na fita”. Amante do hip-hop e das demais manifestações da cultura de rua, o poeta, diferente de assumir discursivamente a tradicional postura do “eu-lírico”, prefere se posicionar como uma espécie de “eu- comunitário”, pois quando escreve, Nov@to faz questão de se identificar como porta-voz daqueles que se encontram “no beco escuro onde explode a violência”, isto é, os parceiros marginalizados pela sociedade de consumo, os companheiros encarcerados pelo sistema prisional e os amigos exterminados pelas tropas de elite, sejam elas da polícia, das facções ou do tráfico. Combatido historicamente pelo “asfalto”, o “morro” é coagido a viver em duradouro e injusto regime de exceção. Tive a honra de receber das mãos de Nov@to dois trabalhos de sua autoria, que são autênticos marcos da literatura marginal: uma coletânea de poemas publicados no volume 3 da Coleção Prosa e Poesia no Morro (Favela é Isso Aí, 2007), além do livro Os monstros nascem anjus (ainda no prelo). Considero este último título uma obra de envergadura nutrida por uma resistência quilombola, podendo muito bem fazer parte de uma tradição literária brasileira fundamentada por obras como Quarto de despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus, Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, e Capão Pecado (2005), de Ferréz. Andarilho da madrugada e catador de grandes estórias, Nov@to não se posiciona de frente pro crime para elaborar seus enredos. É estando no “olho do furação” que o poeta consegue sair daquela sinuca de bico para, em uma tacada de mestre, fundamentar seus frutos literários. Tal façanha provém de uma atitude poÉTICA diante da vida.

A capoeira literária do poeta Nov@to

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A capoeira literária do poeta Nov@to Marcos Fabrício Lopes da Silva

Inicialmente uma mistura de dança e jogo, a capoeira se desenvolveu no Brasil a partir da contribuição

africana, sobretudo através dos fundamentos introduzidos por escravos da etnia banto. Sua principal característica é a ginga, movimento de corpo destinado a enganar o oponente, e que traduz toda a malícia inerente à prática de dissimular os golpes em esquivos passos de dança. O praticante da capoeira usa o gingado

ou ato de gingar, que consiste em bambolear o corpo para a direita e a esquerda, a fim de confundir o adversário, escapar de seus golpes, e procurar o momento e o ângulo certos para atacar. Acredito que este seja o estilo da “capoeira literária” protagonizada pela poesia de Wanderson Adriano Marcelo. Mais conhecido como Nov@to, o jovem poeta, nascido em Belo Horizonte, apresenta uma “caneta diferenciada”, pelo fato de a literatura de testemunho produzida por ele ser extraída de vivências advindas das margens do sistema hegemônico. Trata-se de uma poética do subsolo existencial presente não nas alturas, mas sim no chão do cotidiano.

Por morar e participar ativa e solidariamente da vida cultural no morro, tendo vivido na comunidade do Vietnã e hoje residindo no Primeiro de Maio, Nov@to costuma dizer que iscreve com “i”. Para ele, essa é uma forma político-literária de destacar a importância e o mérito da grafia desenvolvida pela própria periferia, sendo esta historicamente apagada por aqueles que escrevem com “e”. Tal rebeldia lapidar é tão legítima e apropriada quanto a clássica distinção entre “estória” e “história”, realizada por um outro escritor mineiro, o canonizado Guimarães Rosa. A “história” pertence ao tempo; é ciência. A “estória” pertence à eternidade; é magia. Quem sabe a “história” fica do mesmo jeito. Quem ouve uma “estória” pode ficar de outro. Pois eu fico outro sempre que ouço as estórias e leio as poesias de Nov@to. Sobrevivente do “Brasil real” e renegado pelo “Brasil oficial”, o poeta, para escrever seus textos, se embebeda dos acontecimentos miúdos das vielas e das ruas tradicionalmente favelizadas. Assim, Nov@to “garrincha” o circuito literário e midiático dominado pelos fatos graúdos produzidos pelos “donos-de-tudo”, que se encontram confortáveis na casa-grande.

Passeando com o escritor pelas ruas de Belo Horizonte, ele apontava e me apresentava orgulhosamente os cenários e os personagens reais que faziam parte dos seus escritos. Subindo a Rua da Bahia, tivemos a oportunidade de encontrar um companheiro do poeta, que mendigava pela rua e, por isso, era considerado invisível pelos transeuntes que ali passavam. Nov@to conversou com Fernando, e eles aproveitaram a oportunidade para colocar o assunto em dia: a família sentia a falta do rapaz e queria saber sobre o paradeiro dele. Após anos dedicados ao tráfico, o homem de rua foi descartado pelos traficantes e corre risco de morrer caso volte a freqüentar a quebrada. Sobre esse episódio, Nov@to sapecou esta: “Fernando também é pessoa”, numa referência espirituosa e explícita ao reconhecimento obtido pelo poeta lisboeta, sendo que o xará brasileiro, como sobrevivente do campo de concentração de renda, também deveria ser digno da mais honrosa consideração. Por conta de acontecimentos dessa natureza, o poeta diz que não faz ficção, mas “fiquesão”. Ou seja, a literatura, para ele, não é uma válvula de escape para fugir da realidade, mas sim uma grande porta para acessar a complexidade da vida e extrair dela o máximo de lições. Diante de sua sobriedade literária, não há espaço para fantasias chinfrins.

Chegamos a um lema que sintetiza bem o projeto literário de Nov@to: “não sou eu na lira, é nóis na fita”. Amante do hip-hop e das demais manifestações da cultura de rua, o poeta, diferente de assumir discursivamente a tradicional postura do “eu-lírico”, prefere se posicionar como uma espécie de “eu-comunitário”, pois quando escreve, Nov@to faz questão de se identificar como porta-voz daqueles que se encontram “no beco escuro onde explode a violência”, isto é, os parceiros marginalizados pela sociedade de consumo, os companheiros encarcerados pelo sistema prisional e os amigos exterminados pelas tropas de elite, sejam elas da polícia, das facções ou do tráfico. Combatido historicamente pelo “asfalto”, o “morro” é coagido a viver em duradouro e injusto regime de exceção.

Tive a honra de receber das mãos de Nov@to dois trabalhos de sua autoria, que são autênticos marcos da literatura marginal: uma coletânea de poemas publicados no volume 3 da Coleção Prosa e Poesia no Morro (Favela é Isso Aí, 2007), além do livro Os monstros nascem anjus (ainda no prelo). Considero este último título uma obra de envergadura nutrida por uma resistência quilombola, podendo muito bem fazer parte de uma tradição literária brasileira fundamentada por obras como Quarto de despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus, Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, e Capão Pecado (2005), de Ferréz. Andarilho da madrugada e catador de grandes estórias, Nov@to não se posiciona de frente pro crime para elaborar seus enredos. É estando no “olho do furação” que o poeta consegue sair daquela sinuca de bico para, em uma tacada de mestre, fundamentar seus frutos literários. Tal façanha provém de uma atitude poÉTICA diante da vida.

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Um desses “frutos-poemas” atende pelo nome de “Queda”. Nele, Nov@to conta o drama vivido por um comerciante de drogas que acabou se tornando viciado na própria mercadoria que vendia. Vivendo à míngua, o sujeito foi flagrado quando furtava um isqueiro no boteco. Resultado: ele teve que ouvir ali mesmo a sentença ameaçadora: “Que humilhante ouvir/Xingo de cachaceiro/Maconheiro, noiado/Não tem disposição pra comprar isqueiro?/Tentou se explicar, mas não dá/Roubar de rico, tudo bem/Mas de quem não tem/É foda/Se continuar vai pra cova/Falou o botequeiro”. Trata-se de um código de ética cambaleante, visto que ao mesmo tempo condena-se o roubo dirigido aos mais humildes e carentes, sendo que a mesma operação passa a ser aceitável no que se refere a atingir os mais favorecidos e abastados pelo regime de desigualdade social. Tal fato reforça o lendário paradigma comportamental trazido por Charles Anjo 45, imortalizado em uma canção de Jorge Ben Jor, que tinha como características ser “protetor dos fracos/e dos oprimidos/Robin Hood dos morros/rei da malandragem”. Ainda sobre o poema, cabe destacar que foram reprovadas com veemência pelo dono do bar a preguiça e a pilantragem daquele que usurpou o acendedor, com o objetivo de se defender o trabalho e o empenho como procedimentos adequados para conquistar com merecimento e honradez o que se deseja.

Do mundo das drogas, a poesia de Nov@to vai para o universo em desencanto da infância perdida. Com a estrutura familiar desarticulada, a formação escolar insuficiente, a pobreza cada vez mais avassaladora, Juju, personagem do poema “Rua de prazer”, deixa de ser uma vendedora de balas para se transformar em garota de programa: “A menina que vendia bala/Foi seduzida pelo cara/Que se vestia de terno e gravata/Tipo um magnata/Esses que só têm sentimentos/Pelo ouro e pela prata/O carro era importado/A menina descobriu/Que seu pequeno corpo tinha mercado”. Tratada como mulher-objeto, Juju faz parte do perverso processo de mercantilização do sexo cada vez mais em voga. Juju é uma pós-graduada em marginalidade. Assim como ela, outras garotas estão condenadas a seguir a mesma carreira: “iniciam-se no semáforo/Faz mestrado na Guaicurus”. Cabe salientar que a mencionada rua do centro de Belo Horizonte é conhecida por sediar muitos pontos de prostituição. Este poema de Nov@to tem o mesmo vigor cortante de denúncia de abuso sexista, presente na canção “O PIB da PIB”, do irreverente e criativo músico Tom Zé: “Catorze, catorze anos,/Doze anos, doze anos/Imagine um gringo daquele tamanho/Em cima da criança pobre nordestina,/Sufocada, magricela, seca, pequenina,/Ah, Nossa Senhora minha/O PIB da PIB que pimba no seco/Pimba no molhado/Pimba no seco saco seco/Peixe badesco na filha dos outros é refresco/Ô Senhora, Mãe Senhora,/Nessa hora olha pra tua menina, Senhora/A Prostituição Infantil Barata/É a criança coitadinha do Nordeste/Colaborando com o Produto Interno Bruto/E esse produto enterra bruto”

Sabendo que a corda da violência costuma arrebentar para o lado oprimido, Nov@to tem se esforçado para reciclar essas experiências traumáticas de maneira poética, sem perder a ternura. Nos poemas “Sorrir” e “Lamentos do sofredor”, estamos diante de um acrobata da dor que, mesmo vivendo o “negro drama” do emparedamento social, não perde de vista o espírito crítico e a vontade revolucionária de transformar o mundo em um lugar mais justo para todos viverem com dignidade. De forma consciente, Nov@to identifica os obstáculos internos e externos que ainda impedem a realização da felicidade existencial do “homem-coletivo”: “Eu tento sorrir, mas as mortes nas favelas vivem a insistir/Eu tento sorrir, mas há pessoas morrendo de fome no HAITI, JEQUITINHONHA, logo ali./Eu tento sorrir, mas as cadeias e presídios estão superlotados só com gente daqui/Eu tento sorrir, mas as chuvas estão aí,/barracos vão cair,/enchentes vão invadir os barracos e destruir,/defesa civil iludir./Eu tento sorrir, mas as lágrimas não são controladas por mim e teimam em cair./Eu tento sorrir porque sou otimista, se eu fosse me revoltar faria como os terroristas./Eu tento sorrir, mas o meu entorno não deixa, os políticos roubam, roubam e são destaque/da revista veja, mas que peleja!/Eu tento sorrir mas a intolerância está aí”.

Aprendi com Nov@to que existem lamentos dignos de serem ouvidos e compreendidos; jamais esquecidos. Muito mais do que meras reclamações passivas ou ladainhas à espera de um milagre, “Lamentos do sofredor” são declarações ativas feitas por um sujeito que convida o sistema a sentar-se no banco do réu, e ser julgado. Julgado antes mesmo de nascer, como acontece com quem mora nas favelas: “Lamentos do sofredor,/Lamento por te violentar com o meu grito de socorro,/Lamento te violentar com a minha forma de falar,/ Lamento te violentar com historias de dor, desamor, revolta, rancor.../ Lamento te violentar com a minha rebeldia, furtando celular de patricinha, ou vendendo/crack na boca mais quente que a guerra do Iraque./ Lamento te violentar com as minhas crianças que caminham e brincam nos guetos fétidos/e sujos de lama, da última enchente que te levou até a cama, feitas de caixas de banana./Lamento te violentar ao narrar o meu entorno, que bem perto do retorno te traz tanto transtorno./Lamento”. Lamento, poeta, por aqueles que se fingem de surdos para não escutar o seu lamento. Estes não nasceram anjus e preferem continuar monstros.

* Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura

Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG.