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VOLTASTE... (quando da chegada, da minha máquina de escrever que ficara em S.Paulo) Vieste afinal! Poucos minutos faz... Que alegria, meu Deus!.. Surpreso e feliz, eu te vi passar nos braços do querido José, da singeleza melancólica do meu dormitório, de há muito, em sala de estudos improvisada. E novamente te descansaste, bela máquina, sobre a cômoda, móvel à guisa de mesa, uma vez que a difícil consecução do conforto e filhos queridos jamais me ensejou a comodidade do modesto escritório. E essa incessante luta ordenou-se, imperativamente, a função cumulativa de cômoda-e-de-mesa, a mesa e desatraente mesa em que repousavas há dois anos já. Voltaste, afinal, minha eficiente, querida e saudosa máquina de escrever! Com que loucura te vejo à minha frente, ajudando-me a reunir frases inexpressivas, na dorida impossibilidade de juntar preciosas pérolas?! Vieste! Nem acredito! Chegaste, meu amor, para o justificado júbilo do meu peito e para adorno da nossa casa mercê de Deus porque qual os humanos parece teres coração e alma, um dos mais legítimos e sinceros motivos da minha alegria de viver! .............................................................................................................. Depois... depois... ai! Terrível 17 de Setembro de 56! Temporal violento, repentino e impiedoso alterou-me, malaventurosamente o cenário calmo da existência forçando-me como à ave ferida, a abandonar a terra do nascimento e a afastar-me às carícias do ninho antigo para voar... voar... alucinadamente, para longe, bem longe, muito longe, em busca de ramo desconhecido em que pousar... É que algures força incontestável de determinações divinas árvore nova, plena de futuro e cheia de esperança tombara, deixando sem o carinho da fronde protetora a cinco avesitas implumes e que mal haviam nascido para a vida... .............................................................................................................. E lá, ainda, máquina generosa, na contrastante Capital do Estado, suavisava-me as arestas da vida gravando-me diária e cronológicamente, as melopéias nostálgicas que eu quase sempre chorando costumava cantar! Mas tudo, felizmente, já se foi... Tudo já se passou, como tudo se passa, de fato, nesta vida! A tempestade não tem moradia fixa: é nômade e já se afastou, como se afastam, para lugares distantes, todas as tempestades! A calma veio, o sossego chegou... e de tudo se esqueceu, como de tudo se esquece, realmente, neste mundo! Não tardou em a alegria voltar, sorridente, a nosso lar... Tudo se venceu, afinal, como tudo se vence na existência!

Voltaste (Joaquim Antonio do Canto - 1958)

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Page 1: Voltaste (Joaquim Antonio do Canto - 1958)

VOLTASTE...

(quando da chegada, da minha máquina de escrever que ficara em S.Paulo)

Vieste afinal!

Poucos minutos faz...

Que alegria, meu Deus!..

Surpreso e feliz, eu te vi passar nos braços do querido José, da singeleza

melancólica do meu dormitório, de há muito, em sala de estudos improvisada.

E novamente te descansaste, bela máquina, sobre a cômoda, móvel à

guisa de mesa, uma vez que a difícil consecução do conforto e filhos queridos

jamais me ensejou a comodidade do modesto escritório.

E essa incessante luta ordenou-se, imperativamente, a função cumulativa de cômoda-e-de-mesa, a mesa e desatraente mesa em que

repousavas há dois anos já.

Voltaste, afinal, minha eficiente, querida e saudosa máquina de escrever!

Com que loucura te vejo à minha frente, ajudando-me a reunir frases

inexpressivas, na dorida impossibilidade de juntar preciosas pérolas?!

Vieste! Nem acredito!

Chegaste, meu amor, para o justificado júbilo do meu peito e para

adorno da nossa casa – mercê de Deus – porque qual os humanos parece teres

coração e alma, um dos mais legítimos e sinceros motivos da minha alegria de

viver!

..............................................................................................................

Depois... depois... ai! Terrível 17 de Setembro de 56!

Temporal violento, repentino e impiedoso alterou-me,

malaventurosamente o cenário calmo da existência forçando-me como à ave

ferida, a abandonar a terra do nascimento e a afastar-me às carícias do ninho

antigo para voar... voar... alucinadamente, para longe, bem longe, muito

longe, em busca de ramo desconhecido em que pousar...

É que algures – força incontestável de determinações divinas – árvore

nova, plena de futuro e cheia de esperança tombara, deixando sem o carinho

da fronde protetora a cinco avesitas implumes e que mal haviam nascido para

a vida...

..............................................................................................................

E lá, ainda, máquina generosa, na contrastante Capital do Estado,

suavisava-me as arestas da vida gravando-me diária e cronológicamente, as melopéias nostálgicas que eu – quase sempre chorando – costumava cantar!

Mas tudo, felizmente, já se foi...

Tudo já se passou, como tudo se passa, de fato, nesta vida!

A tempestade não tem moradia fixa: é nômade e já se afastou, como se

afastam, para lugares distantes, todas as tempestades!

A calma veio, o sossego chegou... e de tudo se esqueceu, como de tudo

se esquece, realmente, neste mundo!

Não tardou em a alegria voltar, sorridente, a nosso lar...

Tudo se venceu, afinal, como tudo se vence na existência!

Page 2: Voltaste (Joaquim Antonio do Canto - 1958)

Venceu-se com o eficaz auxílio da coragem; com o amparo irresistível do

otimismo; com o escudo prodigioso da Fé e, sobretudo, com a ajuda

indispensável de um Deus!

A paciência encurtou-me os dias amargos de exilado; a conformação

diminuiu-me a extensão amedrontante dos meses; a resignação abreviou-me a

eterna e melancólica passagem dos anos e, destarte, venci até o dia ansiado e

festivo da volta e aqui estou, minha adorada!

..............................................................................................................

Voltei! Voltei ao calor docemente vivificante do ninho amorável, saudoso

e evocativo doutros tempos!

Cá estou, minha querida, na terra idolatrada em que minha santa Mãe –

mulher que se fez Anjo e Anjo que se fez Amor – balouçava-me,

pacientemente, o berço, acariciava-me com beijos e cumulava-me de bênçãos, bênçãos donde brotou esta fonte inesgotável de felicidades de que desfrutei e

de que desfruto ainda!

..............................................................................................................

Vieste, também, minha máquina!

Acabas de chegar, ó linda confidente dos meus sonhos de outro!

E entraste quietinha, muda e silenciosa como é do teu feitio e natureza.

Chegada que, para mim, assume proporções agigantadas de triunfo raro,

autêntico e emocional...

Voltamos ambos, meu amor!

Aqui estamos, um frente ao outro, qual enlevado e ditoso par de

namorados: mãos nas mãos, olhos nos olhos, numa cordial reciprocidade de

amizade e em colaboração amorosamente promissora. E que de conforto me trouxeste ao coração que jamais te ocultou

recônditos segredos de uns raros dias escuros que me vieram quebrar a

monotonia desta minha vida tão clara, tão suave, tão bonita, tão feliz e tão

cheia de sol!..

Transbordas-me de contentamento, ó máquina, como ao coração que,

após grande abandono, um dia se alegra, se renasce e se rejuvenesce ao

regresso muito desejado de um auspicioso, novo, forte e intenso amor!

..............................................................................................................

Voltaste, minha amiga, compreensiva, paciente, saudosa e delicada!

Já há tanto que te espero e só hoje é que chegaste!

..............................................................................................................

Vieste, minha querida, com bastante oportunidade para trazer-me

alegrias e luzes nesta tarde excepcionalmente sombria do meio do mês e do meio do ano, em que meu coração – mais que sempre – carece de consolo e

que minhalma – mais que nunca – anseia por claridades e precisa de sóis!...

Meu amor!

Grande amor!

Imenso amor!

Joaquim Antonio do Canto

Piracicaba, 15/6/1958.