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Competição interna: benéfica ou danosa? Flavio Farah* Histórico O tiro de partida para a competição interna nas empresas provavelmente foi dado em 1916, quando o francês Henry Fayol publicou sua obra Administração Industrial e Geral. Nela, Fayol decretou que a Administração deveria obedecer 14 princípios gerais, um dos quais é o da Unidade de Comando: cada empregado deve receber ordens de um e apenas um superior. Foi a observância estrita desse princípio que produziu as estruturas organizacionais em forma de pirâmide e a conseqüente necessidade de se competir internamente para alcançar os níveis hierárquicos superiores das empresas. Nos dias de hoje, essa histórica modalidade de competição interna tornou- se bem mais acirrada por conta da tendência de enxugamento e redução de níveis hie-rárquicos das estruturas das organizações. A competição interna tornou-se comum Atualmente, as políticas que produzem competição interna tornaram-se comuns. Os exemplos in- cluem o uso do método da distribuição forçada nas avaliações de desempenho, pelo qual apenas um número limitado de funcionários podem receber a avaliação mais alta e a correspondente recompen- sa; prêmios atribuídos a indivíduos por meio de programas do tipo “empregado do mês”; concursos entre departamentos ou entre funcionários de um mesmo departamento, como por exemplo, entre vendedores ou entre equipes de venda. O que todas essas práticas têm em comum é o fato de criarem processos competitivos, isto é, pro- cessos classificatórios em que apenas o primeiro colocado é premiado. Em processos competitivos, a premiação de um significa a não premiação de todos os outros. Apenas o primeiro classificado é considerado “vencedor”; todos os outros recebem o rótulo de “perdedores”. O caso dos bancos de investimento A competição interna é emblemática do setor de bancos de investimento, cuja função básica é asses- sorar negócios como aberturas de capital, emissões de ações, aquisições e fusões de empresas. A cultura dessas instituições apresenta três características que são levadas ao extremo: o gosto pelo risco, a remuneração variável baseada no desempenho individual e a competição interna, isto é, a disputa entre os funcionários para captar um cliente ou um negócio. Nos bancos de investimento, a remuneração dos funcionários tem atingido níveis elevadíssimos. Para se ter uma idéia, segundo reportagem publicada na imprensa especializada, a filial brasileira de uma instituição estrangeira distribuiu à sua equipe, no início de 2007, cerca de 250 milhões de reais, o que dá mais de 700 mil reais para cada um de seus 350 funcionários. Suspeita-se que, na época, tenha sido o maior bônus da história empresarial brasileira. 1 A menção aos bancos de investimento decorre do fato de que o setor cresceu enormemente nos últi- mos anos e estendeu sua influência a vários setores da economia. Essas instituições têm assumido temporária ou definitivamente o controle de empresas que se encontram em dificuldades financei-

Competição interna na empresa: benéfica ou danosa?

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Para defender os sistemas competitivos, usam-se vários argumentos que não se sustentam. Na verdade, a competição interna é danosa às empresas.

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Page 1: Competição interna na empresa: benéfica ou danosa?

Competição interna: benéfica ou danosa? Flavio Farah*

Histórico

O tiro de partida para a competição interna nas empresas provavelmente foi dado em 1916, quando

o francês Henry Fayol publicou sua obra Administração Industrial e Geral. Nela, Fayol decretou

que a Administração deveria obedecer 14 princípios gerais, um dos quais é o da Unidade de

Comando: cada empregado deve receber ordens de um e apenas um superior. Foi a observância

estrita desse princípio que produziu as estruturas organizacionais em forma de pirâmide e a

conseqüente necessidade de se competir internamente para alcançar os níveis hierárquicos

superiores das empresas. Nos dias de hoje, essa histórica modalidade de competição interna tornou-

se bem mais acirrada por conta da tendência de enxugamento e redução de níveis hie-rárquicos das

estruturas das organizações.

A competição interna tornou-se comum

Atualmente, as políticas que produzem competição interna tornaram-se comuns. Os exemplos in-

cluem o uso do método da distribuição forçada nas avaliações de desempenho, pelo qual apenas um

número limitado de funcionários podem receber a avaliação mais alta e a correspondente recompen-

sa; prêmios atribuídos a indivíduos por meio de programas do tipo “empregado do mês”; concursos

entre departamentos ou entre funcionários de um mesmo departamento, como por exemplo, entre

vendedores ou entre equipes de venda.

O que todas essas práticas têm em comum é o fato de criarem processos competitivos, isto é, pro-

cessos classificatórios em que apenas o primeiro colocado é premiado. Em processos competitivos,

a premiação de um significa a não premiação de todos os outros. Apenas o primeiro classificado é

considerado “vencedor”; todos os outros recebem o rótulo de “perdedores”.

O caso dos bancos de investimento

A competição interna é emblemática do setor de bancos de investimento, cuja função básica é asses-

sorar negócios como aberturas de capital, emissões de ações, aquisições e fusões de empresas.

A cultura dessas instituições apresenta três características que são levadas ao extremo: o gosto pelo

risco, a remuneração variável baseada no desempenho individual e a competição interna, isto é, a

disputa entre os funcionários para captar um cliente ou um negócio.

Nos bancos de investimento, a remuneração dos funcionários tem atingido níveis elevadíssimos.

Para se ter uma idéia, segundo reportagem publicada na imprensa especializada, a filial brasileira de

uma instituição estrangeira distribuiu à sua equipe, no início de 2007, cerca de 250 milhões de reais,

o que dá mais de 700 mil reais para cada um de seus 350 funcionários. Suspeita-se que, na época,

tenha sido o maior bônus da história empresarial brasileira.1

A menção aos bancos de investimento decorre do fato de que o setor cresceu enormemente nos últi-

mos anos e estendeu sua influência a vários setores da economia. Essas instituições têm assumido

temporária ou definitivamente o controle de empresas que se encontram em dificuldades financei-

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ras, transmitindo às controladas sua cultura de competição interna e dando exemplo aos concorren-

tes destas.

Por que as empresas estimulam a competição interna

Muitos executivos acreditam fortemente nos benefícios da competição interna. Uma das causas des-

sa crença talvez seja a analogia equivocada que se faz entre as competições esportivas e as guerras

militares, de um lado, e as disputas que envolvem atividades intelectuais, de outro. Os estudos, po-

rém, mostram que o desempenho em atividades que requerem aprendizagem e criatividade depende

de condições fundamentalmente diferentes daquelas necessárias ao sucesso em atividades repetiti-

vas ou predominantemente físicas.

Outro aspecto a se considerar é que, em uma atividade física como, por exemplo, uma corrida,

o desempenho depende fundamentalmente das condições físicas e psicológicas do próprio corredor.

Mas nas organizações, interdependência é a palavra-chave. Dentro de uma empresa, a produtividade

e o desempenho dependem muito mais da cooperação entre as pessoas do que de seus esforços iso-

lados.

Outra razão para o estímulo à competição interna talvez seja o fato de que os líderes – que são as

pessoas que determinam as políticas da companhia – alcançaram suas atuais posições vencendo

uma série de competições escolares e profissionais, começando pelo exame vestibular do ensino su-

perior, passando por um processo seletivo para ingressar na empresa e galgando os respectivos

níveis hierárquicos enfrentando outras tantas disputas. Essa trajetória pode produzir a tendência de

se pensar na competição interna como algo normal, como um processo válido em todas as situações

e em todas as áreas e níveis da organização.

Os mitos e os danos da competição interna

Um famoso educador e pesquisador examinou os argumentos usados para defender os sistemas

competitivos.2 Ele concluiu que esses argumentos, na verdade, são mitos. Um desses mitos sustenta

que a competição é natural ao homem. Não é. Estudos e pesquisas mostram que a idéia de competi-

ção não faz parte da natureza humana, mas é própria apenas das sociedades individualistas, sendo

culturalmente transmitida por meio da educação.

Outro mito afirma que a competição aumenta a produtividade e o desempenho. Esse mito é baseado

na crença equivocada de que o sucesso depende de competição. Ele cita estudos e pesquisas para

sustentar sua afirmativa. Pesquisadores analisaram 122 estudos de desempenho em sala de aula rea-

lizados entre 1924 e 1980. Desses, 65 estudos verificaram que a cooperação produz desempenho

melhor do que a competição, 8 concluíram o contrário e 36 não encontraram diferença significativa

entre as duas formas de atividade. E no final da década de 1970 outros pesquisadores estudaram

103 cientistas homens e verificaram que os de maior sucesso apreciavam tarefas desafiadoras mas

exibiam baixos níveis de competitividade. O mesmo resultado foi encontrado entre executivos, psi-

cólogos, universitários, pilotos e fun-cionários de empresas aéreas.

Um terceiro mito afirma que a competição forma o caráter, fortalecendo a auto-confiança. Dois psi-

cólogos do esporte, porém, depois de estudar cerca de 15 mil atletas, não encontraram suporte para

essa crença. O que ocorre é precisamente o contrário. A competição é danosa porque faz a auto-esti-

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ma depender do resultado de uma disputa. Para manter a auto-estima, o indivíduo passa a depender

de vitórias seguidas, como se fosse um dependente químico que tem necessidade de doses freqüen-

tes da droga que usa. Ao contrário, o indivíduo psicologica-mente saudável possui um senso de

auto-confiança que não depende de nada.

A propósito, a diferença entre auto-confiança e competitividade é ilustrada dramaticamente no filme

“Da terra nascem os homens” (EUA, 1958), um faroeste estrelado por Gregory Peck. No filme,

Peck interpreta o papel de um homem que possui uma auto-confiança tão forte que ele não sente ne-

cessidade de provar nada a ninguém a não ser a si próprio. Ele recusa todos os desafios competiti-

vos que os outros lhe fazem publicamente, apenas para enfrentar e vencer esses mesmos desafios lo-

go depois, sozinho, quando ninguém está olhando.

A competição inibe a aprendizagem e a criatividade. As pessoas envolvidas em uma disputa con-

centram fortemente sua atenção nos concorrentes e em suas reações e, assim, não têm tempo para

aprender nem para imaginar novas maneiras de fazer as coisas. Em uma organização, a competição

interna torna-se especialmente contraproducente quando uma tarefa exige a ajuda de outros ou o

compartilhamento de idéias com terceiros.

Se um líder acredita que um liderado seu é incapaz, essa expectativa negativa reduz o desempenho

deste último. Isso explica porque, a longo prazo, a competição interna enfraquece o desempenho.

As pesquisas sugerem que, quando alguém recebe o rótulo de “perdedor”, seu desempenho subse-

qüente decairá porque seus líderes e colegas inadvertidamente agirão para satisfazer as expectativas

de baixo desempenho. E a perda de auto-estima e motivação sentida pelos que são tratados como

perdedores leva a decréscimos adicionais em seu desempenho.

Sistemas competitivos são incompatíveis com o trabalho em equipe. A competição interna destrói a

cooperação e estimula atos imorais como sonegação de informações, recusa de ajuda a colegas e até

sabotagem do trabalho alheio. Por exemplo, suponha-se uma competição interna entre vendedores.

Os melhores profissionais não desejarão compartilhar seus segredos com os colegas para não correr

o risco de perder a disputa. Em tais condições, a quem os vendedores menos brilhantes poderão

pedir ajuda para melhorar seu desempenho? Ao criar uma competição interna, a mensagem que a

empresa passa aos funcionários é: “Virem-se sozinhos”.

A esse respeito, a pior situação possível ― competição interna acrescida de ameaça de demissão ―

foi retratada no filme “O sucesso a qualquer preço”, de 1992, estrelado por Al Pacino, Jack

Lemmon, Alec Baldwin, Ed Harris, Alan Arkin e Kevin Spacey. No filme, uma imobiliária de Nova

York estabelece um concurso de vendas entre seus corretores. O prêmio para o primeiro colocado é

um automóvel Cadillac Eldorado; para o segundo, um jogo de facas de churrasco; para os outros ...

rua. Os efeitos colaterais da disputa não são de surpreender.

Outro efeito indesejável da competição interna é a inveja, um dos sentimentos mais presentes no

ambiente de trabalho. A pessoa assaltada pela inveja resultante da perda de uma competição pode

suportar em silêncio o ressentimento e a desmotivação e apenas torcer pelo fracasso subseqüente do

vencedor; ou pode passar à ação, tentando prejudicá-lo de alguma maneira. É o lema “se eu não ga-

nho, então ele também não ganhará”, que faz todos perderem, principalmente a organização.

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Competição interna é diferente de premiação por alcance de metas

Rejeitar a competição interna não significa condenar os sistemas de remuneração variável baseados

no desempenho individual, da equipe ou da empresa. Os prêmios por cumprimento de metas não

dependem da existência de sistemas de competição interna. É perfeitamente possível criar esquemas

cooperativos de premiação, nos quais são contemplados todos os que cumprem as metas estabeleci-

das. Ao contrário dos processos competitivos, os sistemas cooperativos estimulam a colaboração e a

solidariedade.

Do ponto de vista ético, a competição interna torna-se questionável quando se considera que (a) os

membros da organização são obrigados a se engajar em uma competição da qual nem todos desejam

participar; (b) a competição interna forçada pode prejudicar a saúde psicológica dos indivíduos;

(c) seus benefícios para a organização são duvidosos; (d) a disputa acirrada pela vitória pode fazer

os indivíduos perderem os limites morais. Nesse sentido, o mundo corporativo está cheio de exem-

plos bem conhecidos.

Notas

1 LETHBRIDGE, Tiago. O ano milionário do Credit Suisse. Revista Exame, ed. 886, 08.02.2007. Disp. em:

http://portalexame.abril.com.br/revista/exame/edicoes/0886/negocios/m0122282.html 2 KOHN, Alfie. No Contest: The Case Against Competition. Boston: Houghton Mifflin, 1992.

* Flavio Farah é Mestre em Administração de Empresas, Professor Universitário e autor do livro “Ética na ges-

tão de pessoas”. Contato: [email protected]