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Tudo menos baunilha Por que cada vez mais empresas se preocupam em definir um sabor marcante para sua cultura corporativa Por Alexandre Teixeira Cultura costuma ser definida como o conjunto de ideais e valores com base nos quais as empresas evoluem ao longo do tempo. O sucesso de qualquer organização, em boa medida, depende da capacidade de alinhar seus colaboradores em torno dessas ideias básicas. Algumas companhias possuem culturas com sabores fortes, daqueles que se ama ou odeia. Não há nada de errado nisso. O sabor ajuda a selecionar pessoas com as quais uma empresa deseja trabalhar. Também orienta candidatos a se decidirem por esta ou aquela companhia. Toda empresa ambiciosa quer ser cobiçada como local de referência para talentos, parceiros de negócios, clientes. O grande risco que corre uma cultura corporativa é ficar no meio do caminho, com o desejo ilusório de ser tudo para todos como a neutra baunilha, sem uma personalidade definida. Quer um exemplo de cultura que não deixa dúvida quanto ao sabor? A AmBev, maior fabricante de bebidas da América Latina, é conhecida no mercado por perseguir metas agressivamente e ser uma empresa na qual os melhores têm ascensão rápida e quem “não entrega” é convidado a sair. Assim, atrai jovens trainees adeptos dos desafios da competição. “A cultura é o que mantém coeso um país, um time ou uma empresa”, diz Marcel Telles, acionista do bloco de controle da Anheuser-Busch InBev. “Nunca transigimos quanto à nossa cultura. Ela é para poucos, mas são esses poucos que nos interessam e garantirão a continuidade da companhia.” Toda cultura empresarial se cristaliza ao longo dos anos. Não é fácil mudá-la. O caso da Usiminas é emblemático. Marco Antônio Castello Branco, um executivo mineiro de 50 anos que fez carreira na Mannesmann, está sentindo na pele o peso da resistência. Ele assumiu a presidência da siderúrgica em junho de 2008 com o desafio de reformar sua cultura corporativa, que, privatizada em 1991, ainda rescendia a estatal. Na pesquisa que encomendou à Interbrand, consultoria especializada em marcas, logo que assumiu o

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texto que fala sobre a importância da cultura organizacional nos resultados das empresas.

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Tudo menos baunilha

Por que cada vez mais empresas se preocupam em definir um sabor

marcante para sua cultura corporativa Por Alexandre Teixeira

Cultura costuma ser definida como

o conjunto de ideais e valores com

base nos quais as empresas

evoluem ao longo do tempo. O

sucesso de qualquer organização,

em boa medida, depende da

capacidade de alinhar seus

colaboradores em torno dessas

ideias básicas. Algumas

companhias possuem culturas com

sabores fortes, daqueles que se

ama ou odeia. Não há nada de

errado nisso. O sabor ajuda a

selecionar pessoas com as quais

uma empresa deseja trabalhar.

Também orienta candidatos a se

decidirem por esta ou aquela

companhia. Toda empresa

ambiciosa quer ser cobiçada como

local de referência para talentos,

parceiros de negócios, clientes. O

grande risco que corre uma cultura corporativa é ficar no meio do caminho, com o

desejo ilusório de ser tudo para todos – como a neutra baunilha, sem uma personalidade

definida.

Quer um exemplo de cultura que não deixa dúvida quanto ao sabor? A AmBev, maior

fabricante de bebidas da América Latina, é conhecida no mercado por perseguir metas

agressivamente e ser uma empresa na qual os melhores têm ascensão rápida e quem

“não entrega” é convidado a sair. Assim, atrai jovens trainees adeptos dos desafios da

competição. “A cultura é o que mantém coeso um país, um time ou uma empresa”, diz

Marcel Telles, acionista do bloco de controle da Anheuser-Busch InBev. “Nunca

transigimos quanto à nossa cultura. Ela é para poucos, mas são esses poucos que nos

interessam e garantirão a continuidade da companhia.”

Toda cultura empresarial se cristaliza ao longo dos anos. Não é fácil mudá-la. O caso da

Usiminas é emblemático. Marco Antônio Castello Branco, um executivo mineiro de 50

anos que fez carreira na Mannesmann, está sentindo na pele o peso da resistência. Ele

assumiu a presidência da siderúrgica em junho de 2008 com o desafio de reformar sua

cultura corporativa, que, privatizada em 1991, ainda rescendia a estatal. Na pesquisa que

encomendou à Interbrand, consultoria especializada em marcas, logo que assumiu o

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cargo, a Usiminas foi descrita como uma empresa tão cinzenta quanto o uniforme de

seus funcionários. Fechada até para os analistas financeiros. Conservadora, provinciana

e bairrista, ironizada por “olhar o mundo pelos óculos de Ipatinga”, cidade do interior

onde está sua sede. “Estes eram os atributos que queríamos eliminar”, diz Castello

Branco. “Começando de dentro para fora.”

Exceto pela proposta de mudar o nome da companhia para dar-lhe ares mais

cosmopolitas, ele aceitou de tudo. A logomarca, antes azul, passou a admitir cinco cores

alternadamente, e o cinza sumiu dos uniformes dos operários. Para mostrar que a

diversidade agora era levada a sério, criou-se um programa de contratação de ex-

presidiários. Buscaram-se no mercado referências de melhores práticas: sistemas de

gestão da Gerdau e da Votorantim, técnicas siderúrgicas japonesas. Nem todos os

funcionários, porém, vestiram bem as novas cores da Usiminas. Como resultado, a

siderúrgica é alvo de uma investigação no Ministério Público do Trabalho, motivada por

denúncias de assédio moral e sexual. Ao mesmo tempo, a demissão de funcionários

aposentados que continuavam ocupando cargos de direção provocou uma rebelião logo

abaixo da cúpula da companhia. Embaraçado perante os acionistas, sobretudo os

japoneses, Castello Branco corre o risco de não ter seu mandato renovado em 30 de

abril.

Revoluções culturais nas empresas – e resistências a elas associadas – não são novidade.

Em meados dos anos 80, no início do reinado de Jack Welch na GE, 100 mil pessoas

foram demitidas da corporação, apesar dos lucros ao final de cada trimestre. Enquanto

cortava cabeças com uma mão, o futuro “executivo do século” assinava com a outra um

cheque de US$ 75 milhões, para a reforma completa do centro de desenvolvimento

gerencial da GE, a hoje incensada escola de Crotonville. A lógica de Welch: livrar-se

dos medíocres e formar pessoas competitivas, voltadas para resultados e comprometidas

com inovação permanente. A resistência foi feroz. “Felizmente o mercado de ações

estava do meu lado”, diz Welch em suas memórias. Há quem questione a sistemática

demissão de 10% dos funcionários a cada ano, desenvolver os 70% medianos e premiar

regiamente os 20% mais competentes. E quase ninguém tolera franqueza brutal em

avaliações de desempenho. Mas o que empresas ambiciosas assim buscam são exceções

que sobrevivam às suas regras.

CULTURA representa para grupos o mesmo que caráter para indivíduos.

É o que afirma o psicólogo americano Edgar Schein,

que cunhou a expressão “cultura corporativa”

No Brasil, alguns pesquisadores costumam confrontar a AmBev – empresa

assumidamente influenciada pela GE de Jack Welch – com a Natura, maior fabricante

de cosméticos do país. De um lado, uma radical meritocracia. De outro, uma cultura que

combina filosofia grega e pragmatismo americano, temperados com discurso new age.

Em comum, ambas mantêm a integridade do modelo escolhido. Uma cultura deve ser

consistente com o estilo de liderança, com a gestão de pessoas e com a estrutura

organizacional. “Se você mistura a cultura da AmBev com os processos da Natura, a

empresa quebra”, afirma Betania Tanure, psicóloga social e consultora. O modelo de

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gestão da AmBev é guiado por uma filosofia básica de autonomia. O funcionário é

estimulado a tomar decisões e remunerado pelo risco. A Cultura Natura aposta no bem-

estar das relações. Talento individual é importante, mas o do grupo é ainda mais. Buscar

resultado, as duas buscam. A Natura, procurando o consenso. A AmBev, estimulando o

confronto. Quem tem razão?

“Cultura representa para grupos o que caráter é para indivíduos”, disse a Época

NEGÓCIOS Edgar Schein, psicólogo que cunhou a expressão cultura corporativa.

Professor da escola de negócios Sloan, do MIT, Schein sustenta há décadas a ideia de

que não há cultura certa ou errada, melhor ou pior. “Se o seu caráter é a soma de tudo o

que você se tornou por meio de seu aprendizado, dizer que é um caráter bom ou um

caráter mau não faz nenhum sentido. Você é o que é, e, pelo mesmo motivo, uma

empresa é o que é.”

A cultura é vivenciada em vários níveis, alguns deles bem visíveis. As pessoas se

vestem informalmente e trabalham em ambientes sem paredes? Ou o que se vê são

executivos engravatados fechados em suas salas? Ambos os cenários dizem algo sobre a

organização. Mas será que a primeira impressão conta tudo? Um pouco de pesquisa de

campo não mostrará um quadro mais completo? Portas fechadas têm uma razão de ser.

A empresa provavelmente valoriza a privacidade e a oportunidade para que os

empregados reflitam antes de partir para a ação. Cave um pouco mais fundo e surgirá a

história da empresa, os valores do fundador. “Uma companhia que cresceu de um certo

modo e é bem-sucedida certamente tem uma cultura”, diz Schein. Em geral, quanto

mais antiga a empresa, mais sólidos serão seus valores. Isso tende a ajudá-la em

períodos de tranquilidade nos mercados ou em setores que pouco mudam. “Mas, se o

ambiente muda, algumas partes dessa cultura podem tornar-se disfuncionais”, afirma

Schein.

A cultura forjada por Luiz Seabra, fundador da Natura, em torno dos conceitos de bem-

estar e sustentabilidade, revelou-se pouco flexível quando foi posta à prova por uma

sequência de eventos em meados da década passada. Primeiro, a companhia abriu

capital, em maio de 2004, e passou a conviver com analistas lhe cobrando resultados

trimestrais. Nove meses depois, houve a profissionalização da gestão, com a sucessão

de Pedro Passos – um dos acionistas controladores – por Alessandro Carlucci. Isso

coincidiu com uma fase de crescimento ao ritmo de quase 40% ao ano no mercado

interno e aceleração da internacionalização. Como não havia talentos internos

suficientes para triplicar a quantidade de gestores em três anos, foi preciso recrutar

muita gente de fora.

AmBev

O modelo de gestão da AmBev, introduzido por Marcel Telles, tem

uma filosofia básica, que é de autonomia na ponta. “Os valores são

comuns, mas os indivíduos trazem diversidade de atuação e estilo”,

diz ele. Originária do banco Garantia, a Cultura AmBev é centrada

em metas, resultados e ascensão rápida

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Natura

Luiz Seabra fundou a Natura influenciado por filósofos. Portanto, os

valores expressos em sua identidade são similares aos que

orientaram as grandes tradições religiosas. É uma cultura baseada

no bem-estar das relações, a partir das quais se constrói valor. A

ideia é buscar o resultado pelo consenso

Com a dificuldade de fazer com que quase 300 gerentes vindos das mais diversas

companhias se adaptassem à filosofia de Seabra, o trem quase saiu do trilho. A volta por

cima foi dada com providências clássicas do mundo empresarial: corte de custos e

redefinição de prioridades estratégicas. Mesmo assim, segundo Marcelo Cardoso, vice-

presidente de Desenvolvimento Organizacional da Natura, a normalização da empresa

não se deu pela adaptação da cultura à nova realidade, mas pelo aculturamento dos

novatos. “Em nenhum momento existiu a intenção de mudar a cultura da companhia”,

afirma. “Os resultados da Natura são consequência do alinhamento profundo do que ela

acredita ser sua proposta de valor para o mundo, sua utopia de transformação do

planeta.”

Transformação do planeta? Uma fabricante de cosméticos quer mudar o mundo? O

ceticismo é saudável, mas a Natura não está sozinha. A Whole Foods, considerada um

dos “arautos da nova ordem administrativa” por Gary Hamel, um guru americano da

estratégia, não se considera uma empresa. Apresenta-se como “uma comunidade de

pessoas que trabalham para fazer diferença no mundo, em que a missão é tão importante

quanto o resultado financeiro”. Whole Foods é aquela rede americana de supermercados

naturebas com 200 lojas e US$ 6 bilhões de faturamento. “Logo no início, o fundador

da Whole Foods, John Mackey, disse: „Quero construir uma empresa que seja baseada

em amor em vez de medo‟”, contou Hamel a Época NEGÓCIOS. “Todos os sistemas de

gestão deles partem daquele compromisso inicial em torno de um conjunto particular de

valores.” A empresa tem uma Declaração de Interdependência, em que se descreve

como uma comunidade que trabalha em conjunto para criar valor para outras pessoas.

É o tipo de cultura que se encontra em algumas das melhores empresas do Vale do

Silício. “Pessoas talentosas sentem-se atraídas pelo Google porque lhes damos poder

para mudar o mundo”, dizem Larry Page e Sergey Brin em um documento chamado

Carta a Futuros Acionistas. “Se, como geralmente se afirma, os funcionários do Google

são uns tipos arrogantes, também são incrivelmente idealistas”, afirma Hamel. Afirmam

que trabalham para democratizar o acesso à informação e, por tabela, tornar as pessoas

menos alienadas. Alex Dias, presidente da filial brasileira do Google, veste a carapuça –

de idealista, não de arrogante. “O Google vê a tecnologia como uma alavanca de

mudança do mundo para melhor”, diz ele. “Por trás de tudo que desenvolvemos há uma

pergunta aparentemente boba: por que não fazer diferente?” Chamam a isso saudável

desprezo pelo impossível. Pela natureza pulverizada da internet, a ideia de publicidade

online não parecia viável como modelo de negócio. Hoje é. Pelo menos para o Google.

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O mote interno da companhia é “Don‟t be evil” (não seja mau). É a base do

relacionamento de longo prazo com o usuário e está por trás da reação da companhia

aos problemas com o Buzz, rede de relacionamento social lançada pelo Google para

concorrer com o Facebook. Numa demonstração de transparência, a empresa admitiu

publicamente falhas na proteção da privacidade dos participantes e modificou o sistema.

Dias afirma que decisões já foram tomadas em detrimento do resultado financeiro, para

“não ser mau”. “Nossa última manifestação em relação à China tem muito a ver com

isso”, diz ele, referindo-se à ameaça de deixar o país depois que hackers, aparentemente

a serviço do governo, invadiram contas de e-mails de dissidentes políticos e a censura

foi intensificada. “Essa situação fere valores nossos que são valores da internet.”

NO PRINCÍPIO, Marcel Telles era tudo para a AmBev, um líder carismático

que impunha seus traços à companhia. Depois, esse tipo de liderança

tornou-se dispensável, afirma Vicente Falconi

E o que dizer da Apple, de Steve Jobs – aquele que é, reconhecidamente, o cara da

inovação? “A Apple é feita por pessoas que pensam de uma forma diferente e original,

que querem usar os computadores para ajudá-las a mudar o mundo, para ajudá-las a

criar coisas que façam diferença, e não apenas para executar um trabalho”, disse Jobs à

revista Time, nos idos de 1998. “Ao longo de sua carreira, Jobs motivou funcionários,

atraiu desenvolvedores de software e cativou compradores invocando um chamado

superior. Para ele, os programadores não trabalham para criar programas fáceis de usar:

estão tentando mudar o mundo”, diz Leander Kahney no livro A Cabeça de Steve Jobs.

Do mesmo modo, o iPod nasceu com a pretensão de ser mais que um tocador de MP3.

“A música está sendo realmente reinventada nesta era digital, e isto está trazendo-a de

volta à vida das pessoas”, disse Jobs à Rolling Stone, em 2003. “É assim que estamos

trabalhando para tornar o mundo um lugar melhor.”

O padrão da Apple para recrutamento e seleção é de assumido elitismo: “Contrate

apenas atores nota 10, demita os idiotas”. É o darwinismo da GE versão iWelch. Na

ânsia de livrar-se dos medíocres, mas também de desenvolver o potencial dos especiais.

Isto é verdade na Apple e também na Pixar, o estúdio de animação que Jobs vendeu à

Disney em 2006 por US$ 7,4 bilhões. No livro Mavericks no Trabalho, Polly LaBarre e

William Taylor explicam que a cultura da Pixar é oposta à de Hollywood, onde se

contratam cineastas por empreitada e financiam-se ideias para roteiros. Jobs instituiu a

prática de manter os artistas na folha de pagamentos e investir neles. Assim, a

Universidade Pixar, com centenas de cursos de animação, arte e produção, está para o

desenvolvimento de colaboradores como Crotonville para a GE.

O gênio e as idiossincrasias de Jobs parecem marcar o fim de uma longa época no

mundo dos negócios. Na última década do século passado, diferentes autores

decretaram o fim da história, da física, da macroeconomia, da ciência e da incerteza.

Mas tantos fins devem igualmente significar outros tantos novos começos. É o que

afirmam Rajendra Sisodia, Jagdish Sheth e David Wolfe, autores de um estudo sobre as

empresas mais queridas do mundo: “Estamos oscilando diante do que os físicos

denominam ponto de bifurcação – um interregno ou intervalo de tempo entre os polos

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da morte e do nascimento (ou do renascimento), quando uma velha ordem está

chegando ao fim e uma nova ordem luta para sair de sua condição embrionária”.

Há uma razão demográfica por trás do que parece um convite quatro décadas atrasado

para celebrar a chegada da Era de Aquário. “O sentido da vida (...) constitui uma

questão recorrente na meia-idade”, afirmam Sisodia, Sheth e Wolfe. Com o

envelhecimento da população, os questionamentos afloram. “Que vou fazer do resto da

minha vida?”, perguntam os que já construíram carreira e família. “Como vamos fazer

para que essa empresa seja um instrumento a serviço da sociedade enquanto cumprimos

com o nosso dever de construir riqueza para os acionistas?”, questionam-se cada vez

mais líderes empresariais.

Apple

“A Apple é feita por pessoas que pensam de forma diferente e

original e querem usar computadores para ajudá-las a mudar o

mundo, criar coisas que façam diferença e não apenas para executar

um trabalho”, diz Steve Jobs. O mote para o recrutamento é:

“Contrate só gente nota 10 e demita os idiotas”

PAI E PAÍS

Para Alfredo Behrens, professor de gestão intercultural no MBA Internacional da

Universidade de São Paulo, a cultura de uma organização é uma mistura das culturas de

seu fundador e de seu país de origem. Esta é mais fácil de se observar quando traduzida

em pequenos códigos de conduta. A pontualidade, por exemplo. “Em países latinos,

chegar atrasado pode ser considerado estiloso e apropriado. Já nos países do norte da

Europa é visto como um insulto”, afirma Schein. Do mesmo modo, chegar ao trabalho

cedo e sair tarde pode significar coisas diferentes em contextos diferentes: forte

compromisso com a empresa ou incapacidade de ser eficiente.

Pode ser mera curiosidade, até o momento em que pessoas de diferentes origens são

alocadas em equipes multiculturais e mal-entendidos tornam-se ameaças à

produtividade. “Se você olha para organizações americanas em geral, o indicador mais

claro de individualismo é a vaca sagrada da responsabilidade individual”, diz Schein.

“Não importa o quanto o trabalho em equipe seja propagandeado na teoria, ele não

existe na prática até que a responsabilidade seja designada ao time todo e sistemas de

pagamento e recompensa sejam instituídos.”

Será que existe uma cultura corporativa brasileira? É possível identificar as suas

origens? Jacques Marcovitch, ex-reitor da Universidade de São Paulo e autor da trilogia

Pioneiros & Empreendedores, entende que sim. “Há uma cultura empresarial com

origem na trajetória dos homens de negócio que lideraram a transição do Brasil de uma

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economia agrícola para a industrialização”, diz. Como Roberto Simonsen. Dirigente da

Companhia Construtora de Santos, ele viveu a grande crise de 1918 e 1919, que entrou

para a história como a Crise dos Quatro Gês: geadas, gafanhotos, guerra e gripe

espanhola. Nesse período, Simonsen correu a Europa em busca das melhores práticas

que pudesse importar. Sua arrancada empresarial teve início logo depois. “A partir da

segunda década do século 20, Simonsen modernizou a administração de suas empresas,

que iam do setor de construção civil aos frigoríficos e aos produtos cerâmicos,

aplicando conceitos que foi buscar na Grã-Bretanha e na França”, diz Marcovitch.

O Brasil, naturalmente, tem traços culturais com impactos notáveis sobre suas

empresas. Três deles são mais importantes, para o bem e para o mal. O primeiro é a

flexibilidade, o conhecido jeitinho brasileiro. Seu trunfo, para a maioria das empresas, é

a facilidade de adaptação a mudanças. O efeito colateral é a indisciplina, que gera

procrastinação e retrabalho. O segundo traço é a ênfase nas relações pessoais. Colegas

de trabalho são amistosos e hospitaleiros, mas com frequência praticam o mote “aos

amigos, tudo; aos inimigos, a lei”. Isso ajuda a entender o paternalismo e a dificuldade

de dar feedback. Basicamente, evita-se o conflito a todo custo, especialmente com quem

tem mais poder. O terceiro – e mais oculto – dos traços diz respeito ao modo como se

lida com o poder. “As empresas do Brasil ainda são extremamente autoritárias nas suas

relações de poder”, afirma Betania Tanure. “Achamos que o Japão é mais autoritário,

mas não é.”

Com suas virtudes e fraquezas, o jeito brasileiro de fazer negócios começa a ser

exportado com algum sucesso. A chamada “Cultura AmBev” talvez seja o melhor

exemplo. Partindo do país, expandiu-se pela América Latina, chegou à Europa e mais

recentemente aos Estados Unidos. Houve choques culturais no caminho – ainda há

muita resistência na Bélgica, onde está a sede da InBev. “Respeitamos as culturas

locais, mas não abrimos mão, nem um centímetro, da nossa, e temos visto que em

qualquer país encontramos os poucos extraordinários que adoram nossa cultura

corporativa”, afirma Marcel Telles.

Diferentemente do que muitas vezes se imagina, a proximidade geográfica não é

garantia de afinidade cultural. “Nos poucos contatos que tive com empresas da

Argentina, percebi que a cultura empresarial de lá é muito difícil de se trabalhar. Em

todos os níveis, até no do operariado”, afirma Vicente Falconi, fundador do Instituto de

Desenvolvimento Gerencial e membro do conselho da AmBev. Segundo ele, seus pares

argentinos, quando ingressam em empresas brasileiras, surpreendem-se com a

humildade do trabalhador local. Talvez seja o complexo de vira-lata rodrigueano

jogando a nosso favor. “Só aprende quem é humilde”, diz Falconi. Nos Estados Unidos,

segundo ele, o desafio é outro. “Você tem de gastar mais tempo para convencê-los, para

vender a ideia”, afirma. “Mas, uma vez assimilada, com uma boa liderança, eles vão

mais longe porque têm mais competência formada.

Mais sutis, mas não menos importantes, os valores do fundador dizem muito sobre as

empresas. Uma das culturas corporativas mais tradicionais do país, a da Odebrecht, não

é baseada nas ciências da administração, mas em uma filosofia de vida. “Ela valoriza a

formação do homem para o trabalho, pelo trabalho e no trabalho”, diz Antonio Carlos

Gomes da Costa, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de um

livro que analisa a obra de Norberto Odebrecht. Educado em alemão até a entrada no

ginásio, o patriarca dos Odebrecht atribui os fundamentos da cultura de um dos maiores

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conglomerados da indústria pesada brasileira a seu preceptor, Otto Arnold. Primeiro

pastor luterano de Salvador, Arnold foi hóspede dos Odebrecht em meados dos anos 20.

Todas as manhãs, dava aulas a Norberto, de acordo com o rígido conceito germânico de

Bildung (formação). Além de caligrafia gótica, o pastor transmitiu ao futuro empreiteiro

uma visão de mundo impregnada da ética protestante e capitalista de Max Weber.

Whole Foods

Considerada pioneira de uma nova ordem gerencial, a maior rede de

varejo orgânico do mundo, fundada por John Mackey, não se

considera uma empresa. Define-se como “uma comunidade de

pessoas que trabalham para fazer diferença no mundo, em que a

missão é tão importante quanto o resultado financeiro”

Odebrecht

Uma das culturas corporativas mais tradicionais do país, a

Tecnologia Empresarial Odebrecht não é baseada nas ciências da

administração, mas no conceito alemão de Bildung (formação). Foi

desenvolvida por Norberto Odebrecht, a partir da educação recebida

de um pastor luterano

Em um texto a respeito de sua formação, Odebrecht afirma que, graças a Arnold,

compreendeu “que a riqueza moral é a base da riqueza material, e a riqueza sem ética

não é riqueza sadia”. Quando foi para o Ginásio Ipiranga, Odebrecht teve de tomar aulas

particulares de português. O contato com a elite baiana foi o primeiro choque de sua

vida. Hábitos como o de apagar o quadro-negro depois da saída do professor foram

tomados por bajulação e lhe renderam apelidos nada elogiosos. A segunda paulada veio

quando seu pai – Emilio Odebrecht, já então o maior construtor da Bahia – faliu,

durante a Segunda Guerra. Norberto tinha 23 anos e ainda estudava engenharia quando

assumiu os negócios – e as dívidas. No futuro, ao comentar a virada que tirou a empresa

da bancarrota e a colocou no rumo do crescimento, ele sempre destacaria o fato de ter

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herdado um corpo de funcionários bem preparado e com um jeito muito próprio de

trabalhar. Era o embrião da TEO, Tecnologia Empresarial Odebrecht.

Mesmo na era dos gurus da gestão, há espaço para culturas nascidas em casa. O sucesso

da Casas Bahia foi um fenômeno dependente da sua cultura. “Ela tinha o que o

Bradesco nunca teve, o que o Itaú nunca teve. Uma cultura de emprestar para pobre”,

diz Clemente Nobrega, consultor de empresas e colunista de Época NEGÓCIOS. “Isso

veio do Samuel Klein [fundador da empresa], que era mascate.” Depois, com o sucesso

da Casas Bahia decodificado, a concorrência descobriu esse mercado. De modo similar,

David Neeleman, fundador da JetBlue, já relatou de que modo sua experiência como

voluntário, vivendo e trabalhando em favelas do Brasil, ajudou a moldar a cultura de sua

empresa. “Entre mim e as pessoas com quem trabalho, me esforço para eliminar as

diferenças mais evidentes de riqueza e posição social e tento propiciar oportunidades

para servir os outros”, disse ele certa vez. “Ao voar a trabalho, sirvo drinques e lanches

junto com a tripulação e levo o lixo para fora quando terminamos.”

Toda cultura corporativa depende, em diferentes medidas, de valores do fundador da

empresa. “Ele tem opiniões fortes sobre como os empregados devem fazer seu trabalho

e que prioridades a organização precisa ter”, afirma Nobrega. “Se os julgamentos do

fundador são falhos, a empresa fracassa. Mas se são sólidos, os empregados vão atestar

por si próprios sua validade para resolver problemas e tomar decisões.” Ou seja, os

processos são definidos por tentativa e erro até que passam a ser o piloto automático da

organização, sua cultura. Não há fórmula pronta para isso. Algumas empresas têm

culturas inspiradas em um livro escrito por um líder, ou por um conjunto de líderes.

Outras partem de comportamentos espontaneamente desenvolvidos e, algum tempo

depois, formalizados. Se a Odebrecht representa o primeiro modelo, a AmBev

certamente alinha-se com o segundo. Sua cultura corporativa nasce com a compra da

Brahma pelo banco Garantia, em 1989, e a chegada de Marcel Telles para administrá-la.

“No começo o Marcel era tudo. Um líder carismático que impunha traços culturais de si

mesmo, o que foi bom para a empresa”, diz Falconi. “Só que, como ele teve a

preocupação de cuidar das pessoas e de formar equipes com gente excepcional, não

existe mais necessidade de um líder carismático.” É natural que seja assim. Líderes

carismáticos geralmente estão associados a sistemas fracos. Quando uma empresa tem

sistemas gerenciais mais fortes, ele já não é indispensável. Dito de outro modo,

enquanto a liderança cria a cultura nos estágios iniciais da empresa, é a cultura que

forma líderes depois que a organização amadurece.

AS CULTURAS unilaterais, aquelas que reúnem pessoas que pensam

parecido e têm a mesma maneira de trabalhar, podem bloquear

a diversidade e a capacidade criativa para inovar

É por isso que startups de sucesso podem ser fulminadas caso seus engenheiros ou

programadores sejam “roubados” pela concorrência. Os jovens líderes das companhias

que dominam a internet hoje têm total consciência disso e, no entanto, adotam

abordagens distintas sobre recursos humanos. Um exemplo é Mark Zuckerberg, CEO do

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Facebook. Sua estratégia é contratar “hackers empreendedores” mesmo que eles não

permaneçam muito tempo na empresa. Zuckerberg prefere engenheiros mesmo para

funções de suporte, como marketing. Sua meta declarada é fazer da maior rede social do

planeta o melhor lugar do mundo para se aprender a construir um negócio baseado na

internet. Considerando que o YouTube, gigante dos vídeos na web, foi cofundado por

Steve Chen, um ex-funcionário do Facebook, não é uma visão distante da realidade.

“Hackers são pessoas impacientes e não querem ficar em um lugar para sempre”, disse

Zuckerberg em uma palestra em outubro na Startup School, na Califórnia.

É uma visão oposta à da Zappos, varejista digital de moda, comprada em 2009 pela

Amazon por US$ 847 milhões. “Queremos que nossos funcionários permaneçam na

empresa por um longo tempo, durante dez anos, talvez a vida inteira”, disse Tony

Hsieh, CEO da Zappos, no mesmo evento. “Damos orientação e treinamento para que

os empregados entrem e, ao longo de um período de cinco a sete anos, possam se tornar

líderes seniores.” Uma estratégia para fazer isso é apertar o ritmo das promoções,

desdobrando-as em degraus menores. Em vez de um salto de longa distância a cada 18

meses, que tal um salto triplo dividido por semestres? Hsieh incentiva chefes e

funcionários a participarem juntos de eventos não vinculados ao trabalho. Mentes

abertas, segundo afirma, captam melhor o propósito da Zappos – oferecer o melhor

serviço do mundo ao consumidor – e vão além da dobradinha receita e lucro.

Ter uma cultura forte traz vantagens inegáveis para as organizações. Por exemplo, a

clareza para selecionar que tipo de gente se quer recrutar, reter e desenvolver. Se essa

cultura torna-se conhecida do mercado, potenciais candidatos, sejam eles estudantes ou

executivos, poderão avaliar se os valores e as práticas da empresa são compatíveis ou

não com os seus. “Nossas entrevistas são interessantes porque sempre forçamos o

candidato a nos fazer várias perguntas, principalmente sobre cultura”, diz Márcio Fróes,

diretor de Gente e Gestão da AmBev, onde trabalha há 18 anos. “Se você não tiver a

capacidade de se apaixonar por esta empresa, não venha, porque aqui você vai casar de

novo.”

Usiminas

Marco Antônio Castello Branco assumiu a siderúrgica em 2008 com

a missão de renovar uma cultura de ex-estatal. A empresa era tida

como pesada, lenta e cinzenta. No pacote de mudanças, adotaram-

se cinco cores para o logotipo e uniformes coloridos. A resistência à

transformação foi parar na Justiça

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VISÃO DE MUNDO

Toda empresa que se preze possui uma missão. Não para pendurar na parede, mas para

orientar suas atividades. Isso é importante, mas não separa os homens dos meninos. O

que empresas inspiradoras, como Apple e Google, têm de diferente é uma visão de

mundo particular. Uma ideologia, como prefere Jim Collins, autor do clássico Feitas

Para Durar. As pesquisas de Collins indicam que “a autenticidade da ideologia e o grau

de alinhamento com ela obtido pela companhia contam mais do que o conteúdo da

ideologia”. Dito de outro modo, consistência é mais importante do que originalidade.

Pelo menos até certo ponto.

Em duas situações críticas – fusões de um lado, gestão de crises do outro –, culturas

muito fortes podem ser um fardo. Quando se torna necessário unir, às vezes à força,

pessoas com origens diferentes, entram em cena especialistas em cultura com o

propósito de evitar, ou ao menos amortecer, os inevitáveis choques. Na maioria dos

casos, a preocupação com culturas diferentes sendo espremidas numa nova organização

surge depois do choque cultural. Nos últimos tempos, companhias previdentes têm

tentado se antecipar.

Tome o exemplo da BRFoods, fruto da união da Perdigão com a Sadia. A nova

companhia aguarda com ansiedade o sinal verde do Cade, previsto para até meados de

junho, para dar início à integração das duas empresas. O temor é de perda de talentos

neste meio-tempo. Dos 20 executivos considerados chaves para a BRFoods, cinco,

provenientes da Sadia, já deixaram a empresa, atraídos por boas ofertas no mercado

aquecido. Em princípio, foi estabelecida a impossibilidade de que duas culturas

diferentes convivessem em uma mesma organização. Ficou decidido que prevalecerá a

do comprador, no caso a Perdigão, com gestão profissionalizada e transparência. “Será

uma cultura com padrão de multinacional”, diz um especialista que acompanha de perto

a movimentação. Isso não deve significar, porém, uma atitude revanchista em relação à

Sadia, que reconhecidamente tem áreas de excelência, como marketing e vendas.

Duas consultorias internacionais foram contratadas para colaborar nesse processo. À

americana McKinsey foi confiada a tarefa de levantar as melhores práticas de cada uma,

a fim de se estabelecerem sinergias. De seu lado, a alemã Egon Zehnder começou a

entrevistar os 15 altos executivos remanescentes, para avaliar eventuais problemas de

adaptação. Perdigão e Sadia têm culturas divergentes. Operada por fundos de

investimento, há muito a Perdigão – que até o início da década de 90 pertencia à família

Brandalise – perdeu os resquícios de empresa familiar. Já a Sadia seguia sob controle

dos muitos herdeiros de seu fundador, Attilio Fontana. Essas diferenças entre antigos

rivais tornaram-se claras em 2001, quando as companhias formaram uma aliança para

operar internacionalmente, responsável pelas exportações de carne para vários países.

Durou cerca de um ano. “Essa curta e conflituosa convivência, que frustrou o negócio

na ocasião, agora serve como importante aprendizado”, diz o observador.

De todos, porém, o principal risco trazido por uma cultura organizacional forte é que a

confiança excessiva em seus valores pode tornar as lideranças emocionalmente

incapazes de aceitar a necessidade de mudar. A indústria automotiva internacional é

uma prova viva disso. “É evidente que um dos pressupostos-chave por trás da cultura da

General Motors era financeiro – você deve sempre maximizar a margem de lucro”,

afirma Schein. Por esse motivo, até a rejeição por parte dos consumidores tornar-se

Page 12: Cultura - Tudo menos baunilha

quase irreversível, a GM resistiu em mudar a ênfase nos SUVs bebedores de gasolina

para carros pequenos e econômicos e em apostar nos modelos híbridos e elétricos.

Agora, com a onda de recalls que já atinge 8,5 milhões de veículos seus, é a Toyota que

está na berlinda. “Os problemas da Toyota são apenas dela, mas sublinham falhas mais

amplas na governança corporativa japonesa, que tornam empresas grandes

particularmente vulneráveis a lidar mal com uma crise como essa”, afirmou

recentemente a revista The Economist. Quem conhece a Toyota por dentro sabe que sua

rígida hierarquia desestimula, para usar um eufemismo, as pessoas a levarem más

notícias para o andar de cima. Na dúvida entre esconder o problema e expô-lo ao chefe,

que corre o risco de passar um carão (lose face, na expressão em inglês), dá-se sempre

um jeito de dourar a pílula. O fato de o conselho de administração da montadora ser

composto por 29 homens japoneses, nenhum deles independente, ajuda pouco a

oxigenar essa cultura. O caso da Toyota é um prato cheio para estudiosos da

administração. Trata-se de uma reconhecida cultura de excelência que está sofrendo

arranhões sérios justamente por problemas de qualidade. “Sua cultura foi construída

sobre confiabilidade, e eles são reconhecidos no mundo todo como modelo de

manufatura”, afirma Schein. “Então, o grande enigma é: mesmo com essa cultura, o que

deu errado?” Segundo Schein, os japoneses, não apenas na Toyota, são orgulhosos e

resistentes a admitir erros, além de rígidos no que diz respeito à lealdade de seus

funcionários. “O problema é que dizer „eles não deveriam ser desse jeito‟ é como dizer

„vocês, brasileiros, não deveriam ser tão amantes da diversão‟. É fácil criticar um traço

cultural, mas difícil mudá-lo.”

Culturas unilaterais, que reúnem pessoas que pensam parecido, têm os mesmos valores

e a mesma maneira de trabalhar, podem bloquear a diversidade de pensamento. É o caso

de uma empresa que junta um grupo de pessoas motivadas por resultados, que gostam

de competição e de ser desafiadas, e que se dispõem a trabalhar sob um sistema de

controle permanente de despesas. Ora, se está todo mundo pensando em economizar

cada tostão, talvez falte alguém raciocinando de maneira criativa. Marcel Telles tem

resposta a este questionamento. Segundo afirma, nas empresas de sua esfera, em

especial a AmBev, “os valores são comuns mas os indivíduos trazem diversidade de

atuação e estilo” para o trabalho. “Acreditamos que pessoas excepcionais procurando

oportunidades de crescer dentro de um time com sonho comum empurrarão a empresa

para a frente e para cima”, afirma ele. A regra do jogo é interesse individual, sim, mas

alinhado com o propósito maior do time. “O ousar é sempre encorajado, desde que

ajude na direção do sonho comum.”

Com todos os riscos e dificuldades, é difícil lembrar de outra era em que tantas

empresas dedicassem tanta energia a suas culturas. Cardoso, da Natura, explica: “É que

os ambientes passaram a ser mais complexos e incertos. A ilusão de controle gerada

pelos modelos tradicionais de gestão evaporou, e a cultura passou a desempenhar papel

fundamental”. A globalização leva companhias a desenhar num país, projetar em outro,

produzir num terceiro e vender em diversos. Tudo isso com a empresa sendo cobrada

pelo triple bottom line (o tripé lucro, pessoas e planeta). “Cuidar da cultura é como

cuidar da água do aquário”, diz Cardoso. “O peixe não percebe, mas alguém está

zelando para que a água tenha a oxigenação, os nutrientes e micro-organismos

necessários para que o ambiente seja saudável.”

Page 13: Cultura - Tudo menos baunilha

“O sucesso é produto dos valores e da paixão

por eles”

Na economia criativa de Gary Hamel, o pensador

americano da gestão do futuro, o desafio não é

controlar as pessoas, mas inspirá-las a levar seus dons

para o trabalho

Entre os qualificativos colecionados por Gary

Hamel estão os de “pensador de negócios mais

influente do mundo” (The Wall Street Journal),

“guru de estratégia dominante” (The

Economist) e “principal especialista do mundo

em estratégia de negócios” (Fortune). Hamel é

professor convidado de Estratégia e Gestão

Internacional da London Business School e

cofundador da consultoria californiana

Strategos. Autor de O Futuro da Administração,

ele afirma nesta entrevista que, em muitas

empresas contemporâneas, os sistemas de

administração são do fim do século 19, era da Revolução Industrial. Controle e

disciplina tolhem paixão e criatividade – “dons que as pessoas levam ou não levam para

o trabalho todo dia”. Exceções? Sim, americanas como Apple e Google; brasileiras

como Natura e Semco. “As empresas que estão liderando essa transformação com

certeza serão as vencedoras.”

O senhor defende uma cultura humanista, com pouca hierarquia e pequenas diferenças

de remuneração. Mas um de seus modelos é a Apple, uma empresa personalista._Muitas

vezes achamos que o sucesso vem da estratégia ou talvez de uma pessoa. Não é esse o

caso. No fim das contas, o sucesso é produto dos valores que alguém tem e da paixão

que se consegue criar em torno desses valores. Não dá para entender uma empresa como

a Apple sem olhar para os valores profundos que formam sua cultura corporativa. Você

pode dizer: é o Steve Jobs. Mas eu te digo, ele é um só. Não existe pessoa com

imaginação suficiente, visão suficiente para reinventar tantos setores. Quando se olha

para a Apple, há um conjunto de valores muito mais profundo. Por exemplo, um valor

que diz: “Vamos ser apaixonados, queremos criar coisas lindas, sensacionais de se

olhar, adoráveis de segurar”.

São culturas como essa que, a seu ver, moldarão o futuro da administração?_É

interessante que, dentro da maioria das empresas, não se possa nem falar sobre beleza,

alegria ou amor. E esses ideais são os mais importantes para nós, como seres humanos.

Isso tem de mudar, porque, em uma economia criativa, você está tentando trazer pessoas

do mundo todo para contribuirem com a sua organização, tentando abrir o processo de

inovação, tentando tornar seus clientes, parceiros e funcionários apaixonados. Não dá

para fazer isso a não ser que sua empresa seja construída em torno de ideais e valores

que realmente mexam com o coração. Não é a riqueza do acionista, não é liderança

numa categoria de produtos, não é vantagem competitiva. É uma percepção profunda de

valores. Por todas essas razões, o que se vê aqui e ali como apenas alguns casos isolados

vão se tornar cada vez mais a norma. As empresas que estão liderando essa

transformação com certeza serão as vencedoras.

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Page 14: Cultura - Tudo menos baunilha

Mas, por ora, são organizações à frente de seu tempo, certo?_Em muitas empresas hoje,

os sistemas de gestão, as ferramentas e os métodos têm suas fundações no fim do século

19 quando, no começo da Revolução Industrial, estávamos quebrando a cabeça para

descobrir como transformar seres humanos em robôs programáveis. Nossos sistemas de

gestão tendem a enfatizar desempenho, controle, disciplina e diligência, às custas de

criatividade, iniciativa, paixão e compromisso. Então, acho que a pergunta é: como se

constroem organizações que sejam altamente disciplinadas e focadas, mas altamente

inovadoras e adaptáveis? Não uma versus a outra. No desenvolvimento de qualquer

cultura corporativa, o ponto de partida crítico é definir que valores serão honrados.

Acho que frequentemente não há uma conversa explícita sobre o tema.

Como se muda isso?_É preciso criar organizações com funcionários dispostos a trazer

seus dons de criatividade e paixão para o trabalho todo dia. Vivemos uma situação

estranha, na qual as capacitações mais importantes para o sucesso das organizações são

as que menos se podem extrair na marra. Criatividade, iniciativa e paixão são dons que

as pessoas levam ou não levam para o trabalho. Os líderes não podem mais perguntar

“Como faço para fazer as pessoas servirem a organização?”. A pergunta é: “Como crio

o senso de propósito e os valores que vão inspirar as pessoas a trazerem esses dons para

o trabalho todo dia?”.

flavioao
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Page 15: Cultura - Tudo menos baunilha

“Quanto mais forte a cultura, mais difícil é

mudá-la”

Edgar Schein, o psicólogo que cunhou a expressão

“cultura corporativa”, diz que valores sólidos podem

ser um fardo quando o ambiente de negócios se

transforma

General Motors e Toyota têm culturas

empresariais fortes, que lhes garantiram

lealdade interna na fase de crescimento. Agora

que o ambiente mudou e o consumidor tem

novas demandas, valores arraigados – como o

orgulho dos japoneses e sua resistência em

admitir erros – dificultam a adaptação. A

avaliação é do psicólogo americano Edgar

Schein, 82 anos, a quem se deve a autoria da

expressão “cultura corporativa”. Professor da

escola de gestão Sloan, do MIT, Schein é autor

de pelo menos dois clássicos sobre a cultura das

empresas. Um deles, The Corporate Culture Survival Guide, foi reeditado no ano

passado, com uma discussão sobre vantagens e desvantagens de possuir valores fortes

em tempos de crise econômica e ambiental. Nesta entrevista, Schein desencoraja

tentativas de mudar culturas inteiras. “É preferível perguntar que partes da cultura

precisam se tornar mais adaptáveis, que partes já não funcionam tão bem”, diz. “Só

então começaremos a entender como fazer as mudanças necessárias.”

Em tempos de crise, o interesse pelo tema cultura corporativa parece aumentar. Por que

isso acontece?_Penso que todas as companhias estão enfrentando transformações. O

mundo está mudando, e as empresas precisam acompanhar. E quando necessitam de

uma palavra para descrever as mudanças que têm de fazer, cultura é muito conveniente.

Mas é a palavra equivocada, porque o que as companhias realmente precisam fazer é

alterar seu comportamento, para se tornarem mais eficazes e adaptáveis. Falar em

mudança de cultura é apenas um jeito fácil de dizer aos empregados, por exemplo, que

não são suficientemente orientados para o cliente.

Sim, mas há empresas focando em cultura, no sentido que o senhor descreve em seu

livro. Isso tem a ver com o ambiente econômico?_Uma empresa que cresceu de um

certo jeito e é bem-sucedida certamente possui uma cultura. A questão então é: essa

cultura é algo que ela deva tentar preservar ou mudar, reforçar ou enfraquecer? E a

resposta é: tudo depende dos problemas que a companhia enfrenta. Por exemplo, uma

empresa com uma história longeva vai ter uma cultura forte, por definição. Então, se o

ambiente muda, algumas partes dessa cultura podem se tornar disfuncionais. Mas não se

deve dizer: “Eu vou mudar a cultura toda”. É preferível perguntar que partes da nossa

cultura precisam se tornar mais adaptáveis, que partes já não funcionam tão bem. Só

então começaremos a entender como fazer as mudanças necessárias.

Nesta reedição de seu livro, o senhor menciona a General Motors como exemplo de

empresa cuja cultura forte dificultou sua adaptação ao ambiente pós-crise. Isso vale para

a Toyota agora?_A cultura da Toyota foi construída sobre a confiabilidade, e eles são

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reconhecidos no mundo todo como modelo de manufatura. Então, o grande enigma é:

mesmo com essa cultura, o que deu errado?

Certo, mas eu me referia ao modo como eles reagiram ao problema de qualidade. A

resposta demorou, e há quem diga que foi porque os orientais têm medo demais de

passar um carão._Os japoneses, não apenas na Toyota mas nas empresas japonesas em

geral, são muito orgulhosos e muito resistentes a admitir erros, muito rígidos no que diz

respeito à lealdade da sua gente. O problema é que dizer “eles não deveriam ser desse

jeito” é como dizer “vocês, brasileiros, não deveriam ser tão amantes da diversão”. É

fácil criticar um traço cultural, mas muito difícil mudá-lo.

Ter uma cultura forte é ou não é uma vantagem para uma empresa?_Uma cultura forte

significa que há consenso e lealdade. A GM tem uma cultura forte. A Toyota também.

Isso é bom ou ruim? Depende dos ambientes econômico e tecnológico. Se é um setor

estável, então claramente uma cultura forte é uma vantagem. A indústria automotiva

vive num ambiente muito distinto. O que o consumidor quer hoje é bem diferente do

que queria quando a GM e a Toyota foram construídas. Então, no caso delas, uma

cultura forte pode ter sido ótima para crescer, mas torna-se ruim quando o ambiente

exige uma nova resposta. Porque quanto mais forte a cultura, mais difícil é mudá-la.